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Dandara Leal,2021. Conceito saúde-doença A delimitação entre o que pode ser considerado normal e o que deve ser tido como “patológico” é uma questão que gera constantes discussões conceituais. Com o intuito de pôr esta questão em debate, o livro “O Normal e o Patológico” de Georges Canguilhem, publicado pela primeira vez em 1943, ainda é referido como bastante atual por contribuir com uma forte argumentação explorando diferentes visões acerca do que pode ser concebido como saúde ou doença e as políticas terapêuticas implicadas nessas visões (SERPA, 2003). As concepções de saúde e doença são limitadas pelo desenvolvimento teórico-conceitual da ciência, sobretudo, por condicionantes ideológicos. Biológico Psicológico Social O conceito de doença condiz com a sua época. Saúde não é necessariamente a ausência de doença. Indo ao encontro com as ideias de Claude Bernard, Canguilhem ainda propõe que haja uma diferenciação qualitativa do estado patológico com relação ao estado normal de um organismo, já que em cada estado o organismo pode produzir comportamentos completamente diferentes. Nesta concepção, uma função do organismo pode ser considerada normal quando independe do resultado que ela produz. “O estômago normal digere sem se digerir”. (p.59) Canguilhem questiona a visão de que doença pode ser efetivamente uma realidade objetiva – alheia ao processo de vida do sujeito – acessível ao conhecimento científico quantitativo, e ainda afirma em oposição a esta visão de que a continuidade de estágios intermediários, não anula a diversidade dos extremos. Entre o que consideramos normal e patológico existe um valor (a troca de significados sobre algo gera uma consciência de valor). Ex: A visão da população e dos pacientes sobre a AIDS na década de 80 e a visão atual. Nessas considerações de significados e definição de valor, deve-se também englobar a experiência do adoecimento. Canguilhem: toda compreensão sobre patologia vem acompanhado do processo de adoecimento; da discussão sobre. Normativa velada Fatores a serem considerados Dandara Leal,2021. A média se extrai da norma, pois é primeiro estabelecido o que é norma e assim posteriormente é produzido o que mais aparece (média) tirada do que é “normal”. Portanto, conforme o tempo passa, as discussões mudam, são estabelecidas novas “normalidades” sobre o que é doença e o que é saúde. Valor implícito Norma Média Ex: padrões de beleza, suicídio, luto durante a pandemia. Canguilhem propõe então que o estado patológico não é a ausência de uma norma, pois não existe vida sem normas de vida, e o estado patológico também é uma forma de se viver. Assim o doente o é por ser incapaz de ser normativo. A saúde seria, portanto, mais do que ser normal, é ser capaz de estar adaptado às exigências do meio, e ser capaz de criar e seguir novas normas de vida, já que “o normal é viver num meio onde flutuações e novos acontecimentos são possíveis” (p.188). A saúde pode por fim ser concebida como um sentimento de segurança na vida, um sentimento de que o ser por si mesmo não se impõe nenhum limite. Como exemplo é citado o astigmatismo, que poderia ser considerado normal em uma sociedade agrícola, mas patológico para alguém que estivesse na marinha ou na aviação. Portanto, o patológico não possui uma existência em si, podendo apenas ser concebido numa relação. O autor ainda complementa afirmando que “não há nada na ciência que antes não tenha aparecido na consciência e que especialmente no caso que nos interessa, é o ponto de vista do doente que, no fundo, é verdadeiro” (Canguilhem, 1966, p.68). Considerações sobre a relação profissão-paciente. Relação biomédica (postura profissional voltada aos critérios objetivos). O desenvolvimento da bioquímica, da farmacologia da imunologia e da genética também contribuiu para o crescimento de um modelo biomédico centrado na doença, diminuindo assim o interesse pela experiência do paciente, pela sua subjetividade. As novas e sempre mais sofisticadas técnicas assumiram um papel importante no diagnóstico em detrimento da relação pessoal entre o médico e o paciente. A tecnologia foi se incorporando no exercício da Dandara Leal,2021. profissão, deixando-se de lado o aspecto subjetivo da relação. O foco no aperfeiçoamento técnico muitas vezes tornou o atendimento de saúde mecânico e a relação profissional-paciente delimitadas (construindo barreiras e desconsiderando o papel do paciente). Assim como apresentado por Le Fanu (2000), uma série de paradoxos acompanha a história recente da medicina. Por exemplo, espera-se que os sucessos da medicina sejam acompanhados por um aumento do grau de satisfação dos médicos que escolhem a carreira médica; estudos recentes, no entanto, mostram que um número crescente deles está mais desiludido e insatisfeito. Mas devido a que? Existem dois fatores envolvidos: benefícios derivados da prática médica que ao invés de reduzir os medos das pessoas está gerando mais preocupações ao estilo de vida, gerando um estado obsessivo de busca à “saúde perfeita”; outro paradoxo/ponto é o aumento em todo o mundo da utilização das medicinas não convencionais (práticas que não são, comumente, ensinadas nas escolas médicas e/ou executadas nos hospitais e cuja eficácia é questionada por não haver estudos rigorosos para análise de resultados e pela falta de uma base racional à luz dos conhecimentos científicos atuais). Para reverter esse cenário é necessário melhorar a qualidade dos serviços de saúde, o ponto de vista dos usuários, e da população que em geral é considerado um elemento fundamental deste processo. A partir dos estudos de Donabedian, nas décadas de 1970 e1980, se conhece que a qualidade dos serviços de saúde, assim como percebida pelos pacientes, depende de 30 a 40% da capacidade diagnóstica e terapêutica do médico, e de 40 a 50% da relação que se estabelece entre profissionais de saúde e usuários, em particular entre médico e paciente (Donabedian, 1990). Por exemplo, imagine que você vai ao clínico geral de uma UBS do seu bairro, você vai ser consultad@ com o Dr.João e pessoa ao seu lado com o Dr.Pedro. Chega sua vez, você entra no consultório e o tratamento do médico é apenas anotar suas queixas, estabelecer diagnósticos e lhe passar os encaminhamentos necessário. Dessa forma, se desconsidera os seus aspectos biológicos, psicológicos e sociais, não houve tempo para você tirar dúvidas, comentar com detalhes dos seus cotidianos sobre suas queixas nem nada do tipo. Após sua consulta, enquanto você aguarda na fila do SISREG, a pessoa que anteriormente estava ao seu lado comenta ao acaso sobre como foi a sua consulta com o Dr.Pedro, “ ele é maravilhoso, teve toda paciência para me ouvir, tirou minhas dúvidas, me explicou sobre umas coisas que eu não sabia se estava fazendo corretamente, sabe aquela consulta Dandara Leal,2021. demorada e boa? Pois é, excelente médico. ” Enfim, entendeu a diferença que se tem na relação profissional-paciente quando também se considera, não apenas o saber técnico do profissional, mas também a subjetividade na relação com o cliente? Deve-se considerar importante o papel do usuário no processo de atendimento e assim também no processo saúde doença, considerar o paciente como um todo e também o seu saber de vida (experiência, cultura etc.). Hoje não é mais suficiente organizar os serviços de saúde mais eficientes, e sim considerar, como afirma Spinsanti em seu recente trabalho: o respeito dos valores subjetivos do paciente, a promoção desua autonomia, a tutela das diversidades culturais (Spinsanti, 1999). A racionalização científica da medicina moderna, baseada numa mensuração objetiva e quantitativa, bem como, na visão dualista mente- corpo (Helman,1984). Esse modelo subestima a dimensão psicológica, social e cultural da relação saúde- doença, com os significados que a doença assume para o paciente e seus familiares. Os médicos e pacientes, mesmo pertencendo à mesma cultura, interpretam a relação saúde-doença de formas diferentes. Além dos aspectos culturais temos de enfatizar que eles (médicos e pacientes) não se colocam no mesmo plano: trata-se de uma relação assimétrica em que o médico detém um corpo de conhecimentos do qual o paciente geralmente é excluído (Arrow, 1963). O médico não é ativamente estimulado a pensar o paciente em sua inteireza, como um ser biopsicossocial, e a perceber o significado do adoecer para o paciente. Considerar o paciente em sua integridade física, psíquica e social e não somente deum ponto de vista biológico é fundamental. O desenvolvimento dessa sensibilidade e sua aplicação na prática médica constituem o mais importante desafio para a biomedicina do século 21. No momento em que nos encontramos, a medicina não está preparada para enfrentar este novo desafio (Caprara & Franco,1999). Uma declaração de consenso conhecida internacionalmente como Toronto Consensus Statement (Simpson et al., 1991). Entre os dados apresentados podemos destacar que 54% dos distúrbios percebidos pelos pacientes não são tomados em consideração pelos médicos durante as consultas (Stewart et al., 1979), bem como 50% dos problemas psiquiátricos e psicossociais não são considerados (Schulberg e tal., 1988; Freeling et al., 1985). Em 50% das consultas, médicos e pacientes não concordam sobre a natureza do problema principal (Starfield et al., 1981), e 65% dos pacientes são interrompidos pelos médicos depois Dandara Leal,2021. de 15 segundos de explicação do problema (Beckmanet al., 1984). Algo semelhante já aconteceu com você? Um comportamento profissional considerando apenas a cura (apenas êxito técnico) Postura do paciente será fragmentada (alienação) preso apenas ao sintomas e tratamentos Consequência= saúde como mercadoria e ausência da associação a qualidade de vida Postura Profissional Assimétrica do saber-poder (hierarquia médico e paciente, superioridade do “saber técnico” Postura do paciente de submissão (dependência médica) Consequências= institucionalização, efeitos iatrogênicos. Iatrogênica refere-se a um estado de doença, efeitos adversos ou complicações causadas por ou resultantes do tratamento médico, no caso será um mal efeito. Postura profissional que leva em conta a qualidade de vida A postura do usuário será voltada para a sua atenção ao estilo de vida Consequência= saúde em vários níveis Promover a qualidade de vida Saúde como um direito Articular os determinantes socais Permitir que o cliente faça reflexões sobre a saúde Dessa forma tem-se a análise da do indivíduo e das relações que ele estabelece. O profissional direciona sua fala para a qualidade de vida. Outras formas: Sucesso prático+ prática do dia a dia adaptação do paciente ao cotidiano estabelece um projeto de felicidade e uma intervenção em rede ( vários aspectos. Por exemplo: cuidados paliativos, despedida antes da intubação, tratamento da AIDS. Dandara Leal,2021. Compartilhamento do saber-poder ( saber técnico do profissional+ saber/ sabedoria de vida do paciente) sabedoria prática singularização, atores sociais, linhas de fuga de um sistema. O conceito saúde-doença envolve o “relacionar’. A diversidade cultural é uma realidade coma qual os médicos de Saúde da Família precisam administrar em sua prática. Essa mesma diversidade exige que o médico seja capaz de aprender novos valores e desenvolver outras percepções de saúde-doença. Prontuário Afetivo Organizar informações do paciente outras características fora as fisiológicas/patológicas/biológicas. Por exemplo: o que ama fazer, uma pessoa especial, música favorita. A abordagem das humanidades médicas prevê a incorporação de elementos das ciências humanas (filosofia, psicologia, antropologia, literatura) na formação e na prática dos profissionais de saúde. As humanidades médicas se constituem como um espaço para repensar a prática em medicina, intervindo na qualidade da assistência com a personalização da relação, a humanização das atividades médicas, o direito à informação, o aperfeiçoamento da comunicação médico-paciente, diminuindo o sofrimento do paciente, repensando as finalidades da medicina, aumentando o grau de satisfação do usuário. Concepção Hermenêutica de Saúde Com efeito, vivemos hoje no Brasil um processo de revisão crítica das tendências tomadas pelas práticas de saúde, crítica que, embora ampla e multifacetada, circula em torno de algumas questões comuns como a recusa da visão segmentada, que não enxerga a totalidade do paciente e seu contexto; a abordagem excessivamente centrada na doença, não no doente; a pobreza da interação médico- paciente e o fraco compromisso com o bem-estar do paciente (DESLANDES, 2006). É como se disséssemos: olhemos menos para a doença e então conseguiremos olhar mais para o doente. O diálogo não é apenas um mero recurso para obtenção de informações requeridas pelo manejo instrumental do adoecimento, forma de produzir uma narrativa estruturada segundo esse interesse, que é o modelo típico da anamnese clássica. O sentido forte de diálogo na perspectiva hermenêutica é o de fusão de horizontes (GADAMER, 2004), isto é, de produção de compartilhamentos, de familiarização e apropriação mútua do que até então nos era desconhecido no outro, ou apenas supostamente conhecido. Não basta, nesse caso, apenas fazer o outro falar sobre aquilo que eu, profissional de saúde, sei que é relevante saber. É preciso também Dandara Leal,2021. ouvir o que o outro, que demanda o cuidado, mostra ser indispensável que ambos saibamos para que possamos colocar os recursos técnicos existentes a serviço dos sucessos práticos almejados. Quando se trata do cuidado individual (AYRES, 2004), essa busca de fusão de horizontes se dá com o recurso aparentemente simples, mas pouco utilizado, de um perguntar efetivamente interessado no outro e a escuta atenta e desarmada frente à alteridade encontrada. Perguntas simples, como “O que você acha que você tem?” Ou “O que você pensa que pode ser feito por você? ”, por exemplo, podem ser um excelente dispositivo para desencadear a fusão de horizontes entre profissionais e usuários, porquanto permitirá aproximar as racionalidades práticas e instrumentais de que se vai precisar dispor para realizar o encontro cuidador. Mas quantas vezes nos lembramos de fazer perguntas deste tipo no cotidiano da atenção à saúde? Outras formas de comunicação não- verbal são também relevantes para facilitar o encontro cuidador. Basta lembrar a força do olhar. Quantos de nós, profissionais de saúde, já não tivemos a experiência de ouvir alguma coisa deum usuário, mas, ao olhar para ele, perceber que ele está dizendo outra coisa bem diferente?! Da mesma forma o nosso modo de tocar, nossa postura corporal, nosso gestual, as atitudes de responsabilidade, acolhimento e compromisso que demonstramos com nossas ações, o ambiente onde nos encontramos, todos esses aspectos devem ser lembrados quando se trata de potencializar o diálogo no encontro cuidador. Umdiálogo é essencialmente uma interação aberta. O curso de um diálogo pertence tanto a seus interlocutores quanto estes lhe pertencem. Enquanto há diálogo é porque há mais o que saber, é porque há mais a se dizer. Por isso, ao concluir esta reflexão, o máximo a que podemos chegar na procura de uma conceituação de saúde de caráter prático, não subordinada à discursividade biomédica, sem tampouco se dissociar dela, é uma proposição ao modo de uma descrição procedimental. Uma construção que nos lembrasse do caráter contra fático, existencial e intersubjetivo da experiência da saúde e que nos aponte caminhos produtivos para manter a fecundidade dialógica de nossa participação profissional nessa experiência. É nesse sentido que nos aventuramos a definir saúde como a busca contínua e socialmente compartilhada de meios para evitar, manejar ou superar de modo conveniente os processos de adoecimento, na sua condição de indicadores de obstáculos encontrados por indivíduos e coletividades à realização de seus projetos de felicidade. Dandara Leal,2021. Obras utilizadas: Uma Concepção Hermenêutica de SaúdePHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 17(1):43- 62, 200743Uma Concepção Hermenêutica de SaúdeJOSÉ RICARDO C. M. AYRES A relação assimétrica médico- paciente:repensando o vínculo terapêutico - Andrea Caprara 1Josiane Rodrigues 1 O normal e o patológico: contribuições para a discussão sobre o estudo da psicopatologia - Thiago Loreto Garcia da Silva Alice Einloft Brunnet Daniele LindernAdolfo Pizzinato
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