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by Wilson Oliveira Polo - Campo Limpo - SPby Wilson Oliveira – Polo Campo Limpo São Paulo - SP A EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL | CARLOS ROBERTO JAMIL CURY Semana 1 – Texto – Base 1 A educação básica no Brasil ganhou contornos bastante complexos nos anos posteriores à Constituição Federal de 1988 e, sobretudo, nos últimos oito anos. Analisá-la não é fácil exatamente porque as contingências que a cercam são múltiplas e os fatores que a determinam têm sido objeto de leis, políticas e programas nacionais, alguns dos quais em convênio com órgãos internacionais. A Constituição Federal de 1988, no capítulo próprio da educação, criou as condições para que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394/96, assumisse esse conceito já no § único do art. 11 ao assinalar a possibilidade de o Estado e os municípios se constituírem como um sistema único de educação básica. Mas a educação básica é um conceito, definido no art. 21 como um nível da educação nacional e que congrega, articuladamente, as três etapas que estão sob esse conceito: a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio. E o art. 22 estabelece os fins da educação básica: A educação básica tem por finalidade desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores. Mas o art. 22 da LDB, a fim de evitar uma interpretação dualista entre cidadania e trabalho e para evitar o tradicional caminho no Brasil de tomar a qualificação do trabalho como uma sala sem janelas que não a do mercado, acrescenta como próprios de uma educação cidadã tanto o trabalho quanto o prosseguimento em estudos posteriores. A própria etimologia do termo base nos confirma esta acepção de conceito e etapas conjugadas sob um só todo. Base provém do grego básis,eós e significa, ao mesmo tempo, pedestal, suporte, fundação e andar, pôr em marcha, avançar. A educação básica é um conceito mais do que inovador para um país que, por séculos, negou, de modo elitista e seletivo, a seus cidadãos o direito ao conhecimento pela ação sistemática da organização escolar. A EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL | CARLOS ROBERTO JAMIL CURY Semana 1 – Texto – Base 1 Resulta daí que a educação infantil é a base da educação básica, o ensino fundamental é o seu tronco e o ensino médio é seu acabamento, e é de uma visão do todo como base que se pode ter uma visão consequente das partes. A educação básica torna-se, dentro do art. 4º da LDB, um direito do cidadão à educação e um dever do Estado em atendê-lo mediante oferta qualificada. E tal o é por ser indispensável, como direito social, a participação ativa e crítica do sujeito, dos grupos a que ele pertença, na definição de uma sociedade justa e democrática. A Constituição Federal de 1988 reconhece o Brasil como uma República Federativa formada pela união indissolúvel dos estados e municípios e do Distrito Federal [...] (art. 1º da Constituição). E ao se estruturar assim o faz sob o princípio da cooperação, de acordo com os artigos 1º, 18, 23 e 60, § 4º, I. O art. 23 lista as competências comuns cuja efetivação se impõe como tarefa de todos os entes federativos, pois as finalidades nelas postas são de tal ordem que, sem o concurso de todos eles, elas não se realizariam. Deve-se assinalar o inciso V que diz ser competência comum proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência. É importante assinalar o que diz o § único desse art. 23: “Lei complementar fixará normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional”. No art. 24 figuram as competências concorrentes entre União, estados e Distrito Federal. É preciso observar que, nesse caso, são assuntos sobre os quais estes entes federativos podem legislar. O inciso IX diz ser matéria concorrente de todos educação, cultura, ensino e desporto. A EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL | CARLOS ROBERTO JAMIL CURY Semana 1 – Texto – Base 1 A Constituição fez escolha por um regime normativo e político, plural e descentralizado no qual se cruzam novos mecanismos de participação social com um modelo institucional cooperativo e recíproco que amplia o número de sujeitos políticos capazes de tomar decisões. Por isso mesmo a cooperação exige entendimento mútuo entre os entes federativos e a participação supõe a abertura de arenas públicas de decisão. Mas, a Constituição, ao invés de criar um sistema nacional de educação, como o faz com o sistema financeiro nacional, com o sistema nacional de emprego ou como o faz com o sistema único de saúde, opta por pluralizar os sistemas de ensino (art. 211) cuja articulação mútua será organizada por meio de uma engenharia consociativa de e articulada com normas e finalidades gerais, por meio de competências privativas, concorrentes e comuns. A insistência na cooperação, a divisão de atribuições, a assinalação de objetivos comuns com normas nacionais gerais indicam que, nesta Constituição, a acepção de sistema dá-se como sistema federativo por colaboração tanto quanto de Estado Democrático de Direito. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional denominará tal pluralidade consociativa de Sistema de Organização da Educação Nacional, em seu Título IV. É desta concepção articulada entre os sistemas que decorre a exigência de um Plano Nacional de Educação (art. 214 da Constituição Federal) que seja, ao mesmo tempo, racional nas metas e nos meios, e efetivo nos seus fins. Um dos obstáculos para a realização deste modelo federado é a desproporção existente entre os estados do Brasil seja sob o ponto de vista de recursos financeiros, seja do ponto de vista de presença política, seja do ponto de vista de tamanho, demografia e recursos naturais. Um outro óbice importante, até agora, para efeito de um sistema articulado nos fins e cooperativo nos meios e nas competências é a ausência de uma definição do que vem a ser o regime de colaboração, como determina o § único do art. 23 da Constituição Federal. A EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL | CARLOS ROBERTO JAMIL CURY Semana 1 – Texto – Base 1 Na ausência de uma tal definição e que dela decorresse um sistema de constrangimentos legais, o risco que se corre é de transformar a cooperação em competição, como no caso da chamada “guerra fiscal”. Na sua ausência, pode-se aventar a hipótese de uma continuidade de traços pré-1988, sobretudo na repartição e distribuição de impostos em face das novas competências e da entrada de novos condicionantes provindos da descentralização entendida sob a crítica a uma postura estatal burocratizada e pouco flexível. Aprovadas as diretrizes e bases da educação nacional, via Lei nº 9.394/96, o governo federal, disposto a aplicar o regime descentralizado (o qual em matéria de educação escolar provém de 1834) sob o enfoque da focalização, obteve êxito incomum na aprovação da Emenda nº 14/96, e da qual resultou a aprovação da Lei nº 9.424/96, quase que concomitante à aprovação da LDB. Esta legislação reforça a política histórica de descentralização de atribuições e recursos, com controle recentralizado na União. A nova LDB instaurou o conceito de educação básica como direito da cidadania e dever do Estado cobrindo três etapas sequenciais da escolarização: a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio. E os recursos vinculados devem ser voltados para a manutenção e o desenvolvimento da educação. Há também programas compensatórios como Bolsa-Escola, criado pela Medida Provisória nº 2.140, de 13 de fevereiro de 2001, aprovado pelo Congresso Nacional em 27 de março de 2001. Ele foi sancionado pelo presidente da República, por meio da Lei nº 10.219, de 11 de abril de 2001. Tecnicamente é o Programa Nacional de Renda Mínima vinculada à educação – “Bolsa-Escola” – e manifesta-se como uma estratégia compensatória de combate à pobreza via concessão de incentivo financeiro mensal àsfamílias em situação de pobreza. Ele tem como contrapartida a manutenção da criança na escola. A EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL | CARLOS ROBERTO JAMIL CURY Semana 1 – Texto – Base 1 A contrapartida deste ponto é a focalização da política educacional no ensino fundamental gratuito, obrigatório, presencial, na faixa etária de 7 a 14 anos. Como se sabe a focalização é um modo de priorizar uma etapa do ensino cujo foco pode significar o recuo ou o amortecimento ou o retardamento quanto à universalização de outras etapas da educação básica e a sua sustentação por meio de recursos suficientes. Valeria a pena debruçar-se também sobre as experiências de municípios que constroem a etapa do ensino fundamental de seus sistemas de ensino a partir dos 6 anos de idade. Isso pode sinalizar caminhos para a meta de número dois do ensino fundamental tal como sinalizada no Plano Nacional de Educação. O ensino médio é outro momento complexo e significativo da educação básica. Torna-se imperativo focalizar um ponto desta complexidade que se mescla com o ordenamento jurídico e é parte dele ao mesmo tempo. O ensino médio, legalmente uma competência dos estados pela LDB, tornou-se explicita e vinculadamente uma atribuição prioritária destes com a Lei nº 9.424/96, a lei do FUNDEF. A lei assegura o ensino médio como a etapa conclusiva da educação básica, com três anos de duração e com um mínimo de 2.400 horas de 60 minutos. O ensino médio, assim entendido, tornou-se constitucionalmente gratuito e também, por lei ordinária, “progressivamente obrigatório”. A indicação do “progressivamente obrigatório” era constitucional e foi desconstitucionalizada pela Emenda nº 16/96. Uma alteração ainda não devidamente analisada... Legalmente, então, o ensino médio – gratuito no âmbito do ensino público – deixou de ser independente do conjunto da educação básica, compondo-se com ela e tornando-se progressivamente obrigatório. A EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL | CARLOS ROBERTO JAMIL CURY Semana 1 – Texto – Base 1 Assim, do ponto de vista jurídico, consideradas as três funções clássicas atribuídas ao ensino médio: a função propedêutica, a função profissionalizante e a função formativa, é esta última que agora, conceitual e legalmente, predomina sobre as outras. Legalmente falando, o ensino médio não é, como etapa formativa, nem porta para o ensino superior e nem chave para o mercado de trabalho. Ele tem uma finalidade em si, embora seja requisito tanto do ensino superior quanto da educação profissional de nível técnico. Entretanto, mostrando-se um governo forte para implantar sua política, vem à luz o Decreto nº 2.208/97 que tornou o ensino médio co-requisito para cursos de educação profissional de nível técnico e o seu certificado conclusivo tornou-se pré-requisito para o diploma da educação profissional de nível técnico. Isto será melhor visto adiante. Por sua vez, a Lei nº 10.127/2001, ou seja, o Plano Nacional de Educação (PNE), em seu diagnóstico do ensino médio, acusa uma população entre 15 e 18 anos com 16.580.383 habitantes em 1997, dos quais 5.933.401 matriculados no ensino médio. Este número se divide, por dependência administrativa público/privado, em 73% X 27%. Este número se amplia para 7 milhões de matrículas em 1998 e para 7,8 milhões em 1999 (81% X 19%). O Censo Escolar 2001 (MEC/INEP) mostra 8,4 milhões de matrículas no ensino médio com um total de 1,8 milhão de concluintes. O mesmo diagnóstico de 1997, citado no PNE, revela, porém, um reduzido acesso ao ensino médio. De uma população de 17 milhões na faixa de 15 a 19 anos, havia só 6 milhões de estudantes matriculados. Também é grande o número de adultos que volta à escola, vários anos após o ensino fundamental. Assim, o atendimento acima da idade prevista, ou seja, 3,8 milhões ou 53,8%, está acima de 17 anos. No conjunto dos quase 7 milhões, 3,8 milhões são estudantes do noturno, o que faz supor que a maioria destes já esteja no mercado de trabalho. E em termos de rede física, o ensino médio acaba por ocupar e até competir com as instalações do ensino fundamental. A EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL | CARLOS ROBERTO JAMIL CURY Semana 1 – Texto – Base 1 Só 32% da faixa etária de 15 a 17 anos – faixa considerada legalmente apropriada – está matriculada nas escolas. Por decorrência, só em 2011, o ensino médio tornar-se-ia obrigatório e, nessa medida, seria considerado direito público subjetivo. De acordo com a Lei nº 9.394/96, art. 36, § 2º, “o ensino médio, atendida a formação geral do educando, poderá prepará-lo para o exercício de profissões técnicas”. Já o § 4º do mesmo art. 36 estabelece uma distinção entre “a preparação geral para o trabalho”, certamente para fazer jus ao artigo 205 da Constituição Federal de 1988, e a “habilitação profissional” cujo desenvolvimento pode ser feito ou nos próprios estabelecimentos de ensino médio ou em cooperação com instituições especializadas. Por outro lado, o art. 40 da LDB usa a expressão “articulação” na interface entre o ensino médio e a educação profissional de nível técnico. Com isso, a interpretação do § 2º do art. 36, que, a rigor, necessitava de explicação e de interpretação pelo órgão normativo próprio, tornou o ensino médio independente da e articulado com a educação profissional de nível técnico, vedada a possibilidade de integração. Dessa maneira, a matrícula no ensino médio é condição de possibilidade para a matrícula na educação profissional de nível técnico e o certificado de conclusão do ensino médio é conditio sine qua non do diploma de técnico. Mas, se antes da Constituição de 1988 não havia um princípio nacional que garantisse a gratuidade do ensino do então 2º grau, este, quando oferecido, era gratuito na prática ou por injunção de uma Constituição Estadual, ou mesmo lei ordinária estadual. O financiamento do 2º grau tornava-se imanente ao dever de Estado. Numa palavra: a educação profissional era responsabilidade de Estado e financiada por ele. A EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL | CARLOS ROBERTO JAMIL CURY Semana 1 – Texto – Base 1 Agora, o ensino médio (formação geral) é dever de Estado devendo ser oferecido de modo gratuito nos estabelecimentos públicos sob a função formativa. Trata-se de um avanço inconteste. Mas com a definição do Decreto nº 2.208/97 estabelecendo o caráter independente e separado da educação profissional do ensino médio, ainda que articulado a este, e sem um apoio legal explícito no que concerne à gratuidade e ao financiamento, ela não tem mais um responsável claro e distinto. A educação profissional tornou-se órfã do dever de Estado em matéria de financiamento e sua responsabilidade ficou diluída. É crescente a presença do Ministério do Trabalho nesta área, sobretudo em cursos de educação profissional de nível básico (atente-se para a ambiguidade do termo “básico” tal como expresso no Decreto e tal como posto na LDB...) por meio do Fundo de Apoio ao Trabalhador (FAT). Cumpre diferenciar o que são Diretrizes Curriculares Nacionais do que são os Parâmetros Curriculares Nacionais. As diretrizes curriculares, postas na Lei nº 9.131/95, devem explicitar os dispostos no art. 22, XXIV, e no art. 210 da Constituição Federal de 1988, que dizem, respectivamente: Compete privativamente à União legislar sobre: (...) Diretrizes e bases da educação nacional; Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. Além desse artigo, há na Constituição outros dispositivos relativos a componentes curriculares como, nas Disposições Constitucionais Gerais, o art. 242, e 1º, e o art. 215, e 1º. Estes dois dispositivos se coadunam com aquele expresso no capítulo da educação, conforme art. 210, e 2º: “O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem” A EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL | CARLOS ROBERTOJAMIL CURY Semana 1 – Texto – Base 1 Mas não se pode esquecer que, com maior ênfase no ensino fundamental, já havia orientações significativas postas pela Lei nº 8.069 de 13/7/1990, mais conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Além da importância geral desse Estatuto para as crianças e os adolescentes no processo educativo, há que se ressaltar a relevância de dois artigos. Dizem eles respectivamente: Art. 57: O Poder Público estimulará pesquisas, experiências e novas propostas relativas a calendário, seriação, currículo, metodologia, didática e avaliação, com vistas à inserção de crianças e adolescentes excluídos do ensino fundamental. Art. 58: No processo educacional respeitar-se-ão os valores culturais, artísticos e históricos próprios do contexto social da criança e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade de criação e o acesso às fontes de cultura. Ora, a Lei nº 9.131/95, que (re)criou o Conselho Nacional de Educação (CNE), atribui à Câmara de Educação Básica (CEB), entre outras competências, no art. 9º, letra c, a de deliberar sobre as diretrizes curriculares propostas pelo MEC... Logo, cabe ao CNE deliberar sobre essas diretrizes propostas. Ora, desde a eleição de Fernando Henrique Cardoso, a equipe de governo havia tomado a iniciativa de trazer à agenda política a discussão do que denominou Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), antes da Lei nº 9.131/95 e da Lei nº 9.394/96. Tratava-se de materializar um projeto de governo relativo à educação, no que se refere a currículos escolares. A fim de justificar as distintas competências cabíveis às instâncias constituintes da federação cumpre entender o sentido da expressão diretrizes. A EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL | CARLOS ROBERTO JAMIL CURY Semana 1 – Texto – Base 1 Diretrizes são linhas gerais que, assumidas como dimensões normativas, tornam-se reguladoras de um caminho consensual, conquanto não fechado a que historicamente possa vir a ter um outro percurso alternativo, para se atingir uma finalidade maior. Nascidas do dissenso, unificadas pelo diálogo, elas não são uniformes, não são toda a verdade, podem ser traduzidas em diferentes programas de ensino e, como toda e qualquer realidade, não são uma forma acabada de ser. O termo diretriz significa caminhos propostos para e, contrariamente à imposição de caminhos, ele denota um conjunto de indicações pelo qual os conflitos se resolvem pelo diálogo e pelo convencimento. A diretriz supõe, no caso, uma concepção de sociedade e uma interlocução madura e responsável entre vários sujeitos, sejam eles parceiros, sejam eles, no campo político, dirigentes e dirigidos. Dessa interlocução, espera-se o traçado de diferentes modos de se caminhar para a efetivação dos fins comuns, obedecendo-se à diversidade de circunstâncias socioculturais, ao respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais (cf. art. 210) e à recusa ao monopólio da verdade. Diretriz, assim, aproxima-se de orientação que é, ao mesmo tempo, impulso inicial e rumo geral. Mas aproxima-se também de norte, seja no sentido de superar uma possível desorientação, seja no sentido largo de orientação para um fim. Logo, os currículos e seus conteúdos mínimos (art. 210 da CF/ 88) propostos pelo MEC (art. 9º, letra c, da Lei nº 9.131/95) terão seu norte estabelecido por meio de diretrizes. Estas terão como foro de deliberação a Câmara de Educação Básica (art. 9º, letra c, da Lei nº 9.131/95). E dentro da opção cooperativa que marcou o federalismo no Brasil após a Constituição de 1988, a propositura das diretrizes será feita em colaboração com os outros entes federativos (LDB, art. 9º, IV). Entretanto o objetivo dessas diretrizes já está dado: trata-se da formação básica comum, assegurada a todos os estudantes. A EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL | CARLOS ROBERTO JAMIL CURY Semana 1 – Texto – Base 1 Dada a nova legislação e a normatização que lhe é consequente, percebe-se que está extinta a noção de “currículo mínimo” nacionalmente fixado. Os entes federativos, assim, gozam de autonomia para enriquecer essas diretrizes com seus parâmetros. Posta esta consideração sobre a pendência entre Diretrizes e Parâmetros, não se pode deixar de articular a questão dos componentes curriculares com a avaliação. O papel da União em matéria de avaliação escolar não decorre de um ato arbitrário do governo. Ele está ancorado em lei. Basta verificar o art. 9º, VI, da LDB dentro de um sistema nacional de avaliação, segundo o art. 4º do PNE e o art. 87, § 3º, IV, da LDB. Mas se a avaliação é competência própria da União, ela o é também sob o regime de colaboração recíproca. Assim, ao SAEB foi dada uma configuração diferenciada e também foi criado o Exame Nacional do Ensino Médio. O ENEM é um exame não-obrigatório, de vez que essa etapa da educação básica não conta com o caráter de obrigatoriedade. Ele pretende medir a aprendizagem dos alunos, podendo servir aos processos seletivos para ingresso nos cursos superiores ou no mundo do trabalho. Amparado na avaliação das respostas a itens que buscam medir competências e habilidades, o ENEM vem se tornando um dos principais programas de políticas educacionais da União com vistas, inclusive, a ser um componente determinante do processo seletivo para o ensino superior. O problema é se a cooperação recíproca entre os sistemas, legalmente exigida para efeito de levar adiante o eixo da avaliação, está sendo efetivada tanto na montagem do processo avaliativo quanto na sua metodologia. Caso contrário, corre-se o risco de tornar os programas de avaliação novos paradigmas curriculares (do tipo currículo mínimo), inviabilizando a flexibilidade que a desburocratização legal permitiu em face da autonomia dos estabelecimentos escolares e refreando a criatividade estimulada pela lei. A EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL | CARLOS ROBERTO JAMIL CURY Semana 1 – Texto – Base 1 Nesse caso, a cooperação exigida em lei pode se transformar em formas sofisticadas de políticas centralizadoras. Se as políticas de descentralização sempre fizeram parte de nossa tradição histórica, pelo menos desde o Ato Adicional de 1834, agora elas adquiriram um caráter bem mais marcante na medida em que a Constituição de 1988 elevou os municípios à categoria de entes federativos. Na ausência de um sentido explícito e consequente do pacto federativo por cooperação recíproca, até por omissão do Congresso Nacional, a descentralização, nas mãos de um governo central poderoso, ganha um sentido de centralização de concepção e descentralização da execução nos níveis subnacionais de governo. No âmbito da educação básica, é bastante delicado falar em política de privatização dados os “amortecedores” do financiamento vinculado e do princípio da gratuidade associados ao “direito do cidadão e dever do Estado”. Pelo menos até agora, o Brasil não conhece programas de “vouchers” ou vales, como é o caso do Chile, por exemplo. Contudo, o repasse de responsabilidades entre os escalões de poderes públicos sem o devido sustentáculo financeiro acaba por significar a redução na capacidade de atendimento da demanda O segundo elemento a ser levado em conta é o § único do art. 23 da CF/88, que exige a elaboração de uma lei complementar que defina o que é um regime de colaboração recíproca entre os entes federados. Desde 1988, esse § único não foi levado adiante pelo Congresso Nacional. Sem essa definição, o avançado e conceituado regime de colaboração de nossa Lei Maior, em seu modus operandi, vem se revelando muito mais um regime de decisões nacionalmente centralizadas e de execuções de políticas sociais subnacionalmente desconcentradas em que se percebe uma situação de competitividade recíproca (guerra fiscal) entre os subnacionais. A EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL | CARLOS ROBERTO JAMIL CURY Semana 1 – Texto – Base 1 A política centrada em superávits primários faz o Estado Nacional recuar nos aspectos relativos aos direitos sociais, inclusive na obrigação de a União serum polo coordenador de política social por meio da função normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais, segundo o § primeiro do art. 8º da LDB. Afinal, como assegurar, de modo consistente, o aumento do gasto público sem uma previsão das fontes seguras de recursos? DAS POLÍTICAS DE GOVERNO À POLÍTICA DE ESTADO: REFLEXÕES SOBRE A ATUAL AGENDA EDUCACIONAL BRASILEIRA | DALILA ANDRADE OLIVEIRA Semana 1 – Texto – Base 2 No último ano de mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi realizada a Conferência Nacional de Educação (CONAE), que significou um amplo movimento financiado e, em grande medida, ensejado pelo Ministério da Educação. A referida Conferência, ocorrida em Brasília, entre os dias 28 de março e 1º de abril de 2010, pretendeu ser um processo democrático aberto pelo Poder Público que possibilitasse a ampla participação de setores ligados à educação brasileira nos seus distintos níveis, modalidades, interesses e finalidades, já que pautou a educação escolar, da educação infantil à pós-graduação. A CONAE foi precedida de conferências municipais, regionais e estaduais que, a partir de um documento de referência, possibilitou o debate sobre o futuro da educação brasileira para os próximos dez anos, envolvendo professores e outros profissionais da educação, estudantes, pais, gestores, enfim, diferentes segmentos organizados em torno da educação. ANTECEDENTES: O CONTEXTO QUE ENGENDROU A CONAE O contexto que antecedeu a CONAE foi marcado por rupturas e permanências em relação ao período anterior ao governo Lula, mais especificamente à década de 1990, em que por oito anos esteve à frente do Estado brasileiro um governo encabeçado pelo sociólogo Fernando Henrique Cardoso (FHC), que promoveu amplas mudanças no conjunto das políticas públicas e sociais. O conjunto de reformas implantadas na educação brasileira nesse período resultou na reestruturação da educação escolar nos seus aspectos relativos à organização, à redefinição dos currículos por meio dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), à avaliação pelo incremento ao Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB) e depois o Exame Nacional de Cursos (ENC), à gestão e ao seu financiamento, melhor exemplificado pela criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF). Especialmente na educação básica, as mudanças realizadas redefiniram sua estrutura. DAS POLÍTICAS DE GOVERNO À POLÍTICA DE ESTADO: REFLEXÕES SOBRE A ATUAL AGENDA EDUCACIONAL BRASILEIRA | DALILA ANDRADE OLIVEIRA Semana 1 – Texto – Base 2 As alterações na legislação educacional brasileira consumaram essa nova reconfiguração, tendo como expressão maior a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) n. 9.394/96. Esse movimento de reformas levado a termo no Brasil pelo governo de FHC acompanhou a tendência em nível mundial que apontava na direção de maior flexibilidade na gestão, maior autonomia às escolas e maior responsabilização dos docentes. A descentralização administrativa, financeira e pedagógica foi a grande marca dessas reformas, resultando em significativo repasse de responsabilidades para o nível local, por meio da transferência de ações. MUDANÇA DE RUMOS NA POLÍTICA EDUCACIONAL DO GOVERNO LULA Os primeiros anos do governo Lula foram marcados muito mais por permanências que por rupturas em relação ao governo que o antecedeu. Os dois primeiros-ministros da Educação não chegaram a estabelecer uma agenda que se contrapusesse à anterior. Apesar das tentativas do Ministério da Educação nesses primeiros anos de imprimir nova marca à política educacional em curso, no geral observou-se a mesma fragmentação e descontinuidade da década passada. Criado em 2007, o IDEB passou a ser a principal referência do governo para aferir a qualidade na educação. O IDEB mede o desempenho do sistema, estabelecendo uma escala que vai de zero a dez. O índice, inspirado no PISA, foi elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP/MEC). A partir da análise dos indicadores do IDEB, o MEC ofereceu apoio técnico e financeiro aos municípios com índices insuficientes de qualidade de ensino. DAS POLÍTICAS DE GOVERNO À POLÍTICA DE ESTADO: REFLEXÕES SOBRE A ATUAL AGENDA EDUCACIONAL BRASILEIRA | DALILA ANDRADE OLIVEIRA Semana 1 – Texto – Base 2 O SISTEMA NACIONAL ARTICULADO: A CONAE COMO POLÍTICA DE GOVERNO E O PNE COMO POLÍTICA DE ESTADO A iniciativa acima mencionada do ministro Fernando Haddad de estabelecer como eixo de sua política (ou gestão) o PDE, criado por meio de um decreto, pode nos indicar a tentativa de preenchimento de um espaço vazio, ou de lacunas deixadas pelo Plano Nacional de Educação até então vigente, Lei n. 10.176/01. A pouca eficácia do PNE (2001-2010) em orientar a educação nacional pode ter facilitado a iniciativa de um governo de adotar suas políticas no lugar em que deveria seguir as do Estado. A aprovação do PNE(2001-2010) ocorreu em processo turbulento de tramitação e com idas e vindas e muitos embates entre governo e setores organizados em defesa da educação. Ao final, o texto aprovado resultou em atrasos em relação a conquistas importantes já inscritas na educação brasileira e foi bastante criticado como limitado pelos setores organizados da sociedade em defesa da educação pública, tendo recebido muitos vetos pelo então presidente FHC, que acabaram por comprometer suas metas e objetivos As sociedades e seus sistemas escolares são comumente comparados em relação aos seus níveis de integração, mais factíveis de serem medidos e averiguados. A integração de uma sociedade depende do papel que exerce o Estado em relação aos seus cidadãos, ou seja, as políticas públicas e sociais que desenvolve e põe em ação. Assim, a integração de um país é maior ou menor dependendo das políticas de saúde, segurança, previdência, regulação das relações de trabalho, entre outras que o Estado promove. As desigualdades sociais e de renda, bem como outras variáveis, tais como o tamanho do país, sua dimensão territorial e população, também interferem na integração, tornando-a mais complexa. Da mesma forma, a escola que escolariza seus alunos por longo período e de maneira comum é mais integrada que aquela que os seleciona precocemente e os divide e classifica em diferentes posições. DAS POLÍTICAS DE GOVERNO À POLÍTICA DE ESTADO: REFLEXÕES SOBRE A ATUAL AGENDA EDUCACIONAL BRASILEIRA | DALILA ANDRADE OLIVEIRA Semana 1 – Texto – Base 2 A coesão é definida por valores e atitudes, tradições culturais e históricas. É do grau de coesão que depende o sentimento de pertencimento social, papel atribuído aos sistemas escolares e tarefa atribuída aos professores para desenvolver em seus alunos, na constituição dos Estados modernos. A noção de coesão é hoje imposta como imperativo pelas agências internacionais e por organismos vinculados à ONU, preocupados com a governance nas sociedades mais fragmentadas. Esses organismos têm defendido o desenvolvimento da coesão como ferramenta estratégica para a governabilidade dos sistemas. A coesão é diferente e complementária à noção de integração: ao passo que esta pressupõe um sistema, a coesão comporta um conjunto de valores, representações, de crenças, que desenvolve o civismo, a solidariedade, a confiança em si, nos outros e nas instituições. São os vínculos, mais que as posições sociais, que asseguram a densidade e a unidade da vida social. Ela interessa à escola pelos valores transmitidos. Refletindo sobre a educação brasileira, sobre o papel que poderia exercer o Sistema Nacional de Educação na integração e coesão deste país, observa-se que nos dois aspectos há muito a fazer. A pouca integração observada no sistema federativo brasileiro e os entraves à real repartição de obrigações e de recursos tributários põem em risco a colaboração pretendida entre os entes federados. O sentimento de pertencimento a um grupo, decompartilhamento de um mesmo coletivo que tem regras comuns, valores e atitudes é indispensável não só aos alunos, mas, sobretudo, aos profissionais. A coesão de um sistema escolar é vital para seu desenvolvimento e melhoramento. DAS POLÍTICAS DE GOVERNO À POLÍTICA DE ESTADO: REFLEXÕES SOBRE A ATUAL AGENDA EDUCACIONAL BRASILEIRA | DALILA ANDRADE OLIVEIRA Semana 1 – Texto – Base 2 OS DESAFIOS ATUAIS DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA E O PNE: PARA ONDE CAMINHAM AS POLÍTICAS DE ESTADO? Têm sido apontados com frequência como principais desafios para a educação brasileira resultantes da nova posição que o país vem alcançando nos últimos anos no cenário político mundial o aumento do nível de escolarização da população e a melhoria do desempenho dos alunos. Apesar dos avanços obtidos nos últimos anos, a população brasileira permanece vergonhosamente pouco escolarizada. Segundo dados da PNAD de 2010, a taxa de analfabetismo absoluto da população com 15 anos ou mais é de 9,7%. Considerando o analfabetismo funcional, essa taxa sobe para 20,3%. Constatou-se aumento na taxa de escolarização das crianças de 4 e 5 anos, de 70,1% em 2007 para 72,8% em 2008. Em números absolutos, mais 73 mil crianças desse grupo etário entraram na escola no período, indo de 4,124 milhões para 4,197 milhões de estudantes. Nas demais faixas etárias, houve queda: de 30,9% (7,3 milhões) para 30,5% (7,082 milhões) de 18 a 24 anos, e de 5,5% para 5,3% (5,83 milhões para 5,771 milhões) para 25 anos ou mais. Mesmo com esse crescimento verificado da taxa de escolarização da população nas faixas etárias consideradas, ainda são muitos os desafios para alcançarmos indicadores sociais satisfatórios. Página 11 A EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL | CARLOS ROBERTO JAMIL CURY Semana 2 – Texto – Base 1 A educação básica no Brasil ganhou contornos bastante complexos nos anos posteriores à Constituição Federal de 1988 e, sobretudo, nos últimos oito anos. Analisá-la não é fácil exatamente porque as contingências que a cercam são múltiplas e os fatores que a determinam têm sido objeto de leis, políticas e programas nacionais, alguns dos quais em convênio com órgãos internacionais. A Constituição Federal de 1988, no capítulo próprio da educação, criou as condições para que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394/96, assumisse esse conceito já no § único do art. 11 ao assinalar a possibilidade de o Estado e os municípios se constituírem como um sistema único de educação básica. Mas a educação básica é um conceito, definido no art. 21 como um nível da educação nacional e que congrega, articuladamente, as três etapas que estão sob esse conceito: a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio. E o art. 22 estabelece os fins da educação básica: A educação básica tem por finalidade desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores. Mas o art. 22 da LDB, a fim de evitar uma interpretação dualista entre cidadania e trabalho e para evitar o tradicional caminho no Brasil de tomar a qualificação do trabalho como uma sala sem janelas que não a do mercado, acrescenta como próprios de uma educação cidadã tanto o trabalho quanto o prosseguimento em estudos posteriores. A própria etimologia do termo base nos confirma esta acepção de conceito e etapas conjugadas sob um só todo. Base provém do grego básis,eós e significa, ao mesmo tempo, pedestal, suporte, fundação e andar, pôr em marcha, avançar. A educação básica é um conceito mais do que inovador para um país que, por séculos, negou, de modo elitista e seletivo, a seus cidadãos o direito ao conhecimento pela ação sistemática da organização escolar. A EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL | CARLOS ROBERTO JAMIL CURY Semana 2 – Texto – Base 1 Resulta daí que a educação infantil é a base da educação básica, o ensino fundamental é o seu tronco e o ensino médio é seu acabamento, e é de uma visão do todo como base que se pode ter uma visão consequente das partes. A educação básica torna-se, dentro do art. 4º da LDB, um direito do cidadão à educação e um dever do Estado em atendê-lo mediante oferta qualificada. E tal o é por ser indispensável, como direito social, a participação ativa e crítica do sujeito, dos grupos a que ele pertença, na definição de uma sociedade justa e democrática. A Constituição Federal de 1988 reconhece o Brasil como uma República Federativa formada pela união indissolúvel dos estados e municípios e do Distrito Federal [...] (art. 1º da Constituição). E ao se estruturar assim o faz sob o princípio da cooperação, de acordo com os artigos 1º, 18, 23 e 60, § 4º, I. O art. 23 lista as competências comuns cuja efetivação se impõe como tarefa de todos os entes federativos, pois as finalidades nelas postas são de tal ordem que, sem o concurso de todos eles, elas não se realizariam. Deve-se assinalar o inciso V que diz ser competência comum proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência. É importante assinalar o que diz o § único desse art. 23: “Lei complementar fixará normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional”. No art. 24 figuram as competências concorrentes entre União, estados e Distrito Federal. É preciso observar que, nesse caso, são assuntos sobre os quais estes entes federativos podem legislar. O inciso IX diz ser matéria concorrente de todos educação, cultura, ensino e desporto. A EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL | CARLOS ROBERTO JAMIL CURY Semana 2 – Texto – Base 1 A Constituição fez escolha por um regime normativo e político, plural e descentralizado no qual se cruzam novos mecanismos de participação social com um modelo institucional cooperativo e recíproco que amplia o número de sujeitos políticos capazes de tomar decisões. Por isso mesmo a cooperação exige entendimento mútuo entre os entes federativos e a participação supõe a abertura de arenas públicas de decisão. Mas, a Constituição, ao invés de criar um sistema nacional de educação, como o faz com o sistema financeiro nacional, com o sistema nacional de emprego ou como o faz com o sistema único de saúde, opta por pluralizar os sistemas de ensino (art. 211) cuja articulação mútua será organizada por meio de uma engenharia consociativa de e articulada com normas e finalidades gerais, por meio de competências privativas, concorrentes e comuns. A insistência na cooperação, a divisão de atribuições, a assinalação de objetivos comuns com normas nacionais gerais indicam que, nesta Constituição, a acepção de sistema dá-se como sistema federativo por colaboração tanto quanto de Estado Democrático de Direito. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional denominará tal pluralidade consociativa de Sistema de Organização da Educação Nacional, em seu Título IV. É desta concepção articulada entre os sistemas que decorre a exigência de um Plano Nacional de Educação (art. 214 da Constituição Federal) que seja, ao mesmo tempo, racional nas metas e nos meios, e efetivo nos seus fins. Um dos obstáculos para a realização deste modelo federado é a desproporção existente entre os estados do Brasil seja sob o ponto de vista de recursos financeiros, seja do ponto de vista de presença política, seja do ponto de vista de tamanho, demografia e recursos naturais. Um outro óbice importante, até agora, para efeito de um sistema articulado nos fins e cooperativo nos meios e nas competências é a ausência de uma definição do que vem a ser o regime de colaboração, como determina o § único do art. 23 da Constituição Federal. A EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL | CARLOS ROBERTO JAMIL CURY Semana 2 – Texto – Base 1 Na ausência de uma tal definição e que dela decorresse um sistema de constrangimentos legais, o risco que se corre é de transformar a cooperação em competição, como no caso da chamada “guerra fiscal”. Na sua ausência,pode-se aventar a hipótese de uma continuidade de traços pré-1988, sobretudo na repartição e distribuição de impostos em face das novas competências e da entrada de novos condicionantes provindos da descentralização entendida sob a crítica a uma postura estatal burocratizada e pouco flexível. Aprovadas as diretrizes e bases da educação nacional, via Lei nº 9.394/96, o governo federal, disposto a aplicar o regime descentralizado (o qual em matéria de educação escolar provém de 1834) sob o enfoque da focalização, obteve êxito incomum na aprovação da Emenda nº 14/96, e da qual resultou a aprovação da Lei nº 9.424/96, quase que concomitante à aprovação da LDB. Esta legislação reforça a política histórica de descentralização de atribuições e recursos, com controle recentralizado na União. A nova LDB instaurou o conceito de educação básica como direito da cidadania e dever do Estado cobrindo três etapas sequenciais da escolarização: a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio. E os recursos vinculados devem ser voltados para a manutenção e o desenvolvimento da educação. Há também programas compensatórios como Bolsa-Escola, criado pela Medida Provisória nº 2.140, de 13 de fevereiro de 2001, aprovado pelo Congresso Nacional em 27 de março de 2001. Ele foi sancionado pelo presidente da República, por meio da Lei nº 10.219, de 11 de abril de 2001. Tecnicamente é o Programa Nacional de Renda Mínima vinculada à educação – “Bolsa-Escola” – e manifesta-se como uma estratégia compensatória de combate à pobreza via concessão de incentivo financeiro mensal às famílias em situação de pobreza. Ele tem como contrapartida a manutenção da criança na escola. A EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL | CARLOS ROBERTO JAMIL CURY Semana 2 – Texto – Base 1 A contrapartida deste ponto é a focalização da política educacional no ensino fundamental gratuito, obrigatório, presencial, na faixa etária de 7 a 14 anos. Como se sabe a focalização é um modo de priorizar uma etapa do ensino cujo foco pode significar o recuo ou o amortecimento ou o retardamento quanto à universalização de outras etapas da educação básica e a sua sustentação por meio de recursos suficientes. Valeria a pena debruçar-se também sobre as experiências de municípios que constroem a etapa do ensino fundamental de seus sistemas de ensino a partir dos 6 anos de idade. Isso pode sinalizar caminhos para a meta de número dois do ensino fundamental tal como sinalizada no Plano Nacional de Educação. O ensino médio é outro momento complexo e significativo da educação básica. Torna-se imperativo focalizar um ponto desta complexidade que se mescla com o ordenamento jurídico e é parte dele ao mesmo tempo. O ensino médio, legalmente uma competência dos estados pela LDB, tornou-se explicita e vinculadamente uma atribuição prioritária destes com a Lei nº 9.424/96, a lei do FUNDEF. A lei assegura o ensino médio como a etapa conclusiva da educação básica, com três anos de duração e com um mínimo de 2.400 horas de 60 minutos. O ensino médio, assim entendido, tornou-se constitucionalmente gratuito e também, por lei ordinária, “progressivamente obrigatório”. A indicação do “progressivamente obrigatório” era constitucional e foi desconstitucionalizada pela Emenda nº 16/96. Uma alteração ainda não devidamente analisada... Legalmente, então, o ensino médio – gratuito no âmbito do ensino público – deixou de ser independente do conjunto da educação básica, compondo-se com ela e tornando-se progressivamente obrigatório. A EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL | CARLOS ROBERTO JAMIL CURY Semana 2 – Texto – Base 1 Assim, do ponto de vista jurídico, consideradas as três funções clássicas atribuídas ao ensino médio: a função propedêutica, a função profissionalizante e a função formativa, é esta última que agora, conceitual e legalmente, predomina sobre as outras. Legalmente falando, o ensino médio não é, como etapa formativa, nem porta para o ensino superior e nem chave para o mercado de trabalho. Ele tem uma finalidade em si, embora seja requisito tanto do ensino superior quanto da educação profissional de nível técnico. Entretanto, mostrando-se um governo forte para implantar sua política, vem à luz o Decreto nº 2.208/97 que tornou o ensino médio co-requisito para cursos de educação profissional de nível técnico e o seu certificado conclusivo tornou-se pré-requisito para o diploma da educação profissional de nível técnico. Isto será melhor visto adiante. Por sua vez, a Lei nº 10.127/2001, ou seja, o Plano Nacional de Educação (PNE), em seu diagnóstico do ensino médio, acusa uma população entre 15 e 18 anos com 16.580.383 habitantes em 1997, dos quais 5.933.401 matriculados no ensino médio. Este número se divide, por dependência administrativa público/privado, em 73% X 27%. Este número se amplia para 7 milhões de matrículas em 1998 e para 7,8 milhões em 1999 (81% X 19%). O Censo Escolar 2001 (MEC/INEP) mostra 8,4 milhões de matrículas no ensino médio com um total de 1,8 milhão de concluintes. O mesmo diagnóstico de 1997, citado no PNE, revela, porém, um reduzido acesso ao ensino médio. De uma população de 17 milhões na faixa de 15 a 19 anos, havia só 6 milhões de estudantes matriculados. Também é grande o número de adultos que volta à escola, vários anos após o ensino fundamental. Assim, o atendimento acima da idade prevista, ou seja, 3,8 milhões ou 53,8%, está acima de 17 anos. No conjunto dos quase 7 milhões, 3,8 milhões são estudantes do noturno, o que faz supor que a maioria destes já esteja no mercado de trabalho. E em termos de rede física, o ensino médio acaba por ocupar e até competir com as instalações do ensino fundamental. A EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL | CARLOS ROBERTO JAMIL CURY Semana 2 – Texto – Base 1 Só 32% da faixa etária de 15 a 17 anos – faixa considerada legalmente apropriada – está matriculada nas escolas. Por decorrência, só em 2011, o ensino médio tornar-se-ia obrigatório e, nessa medida, seria considerado direito público subjetivo. De acordo com a Lei nº 9.394/96, art. 36, § 2º, “o ensino médio, atendida a formação geral do educando, poderá prepará-lo para o exercício de profissões técnicas”. Já o § 4º do mesmo art. 36 estabelece uma distinção entre “a preparação geral para o trabalho”, certamente para fazer jus ao artigo 205 da Constituição Federal de 1988, e a “habilitação profissional” cujo desenvolvimento pode ser feito ou nos próprios estabelecimentos de ensino médio ou em cooperação com instituições especializadas. Por outro lado, o art. 40 da LDB usa a expressão “articulação” na interface entre o ensino médio e a educação profissional de nível técnico. Com isso, a interpretação do § 2º do art. 36, que, a rigor, necessitava de explicação e de interpretação pelo órgão normativo próprio, tornou o ensino médio independente da e articulado com a educação profissional de nível técnico, vedada a possibilidade de integração. Dessa maneira, a matrícula no ensino médio é condição de possibilidade para a matrícula na educação profissional de nível técnico e o certificado de conclusão do ensino médio é conditio sine qua non do diploma de técnico. Mas, se antes da Constituição de 1988 não havia um princípio nacional que garantisse a gratuidade do ensino do então 2º grau, este, quando oferecido, era gratuito na prática ou por injunção de uma Constituição Estadual, ou mesmo lei ordinária estadual. O financiamento do 2º grau tornava-se imanente ao dever de Estado. Numa palavra: a educação profissional era responsabilidade de Estado e financiada por ele. A EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL | CARLOS ROBERTO JAMIL CURY Semana 2 – Texto – Base 1 Agora, o ensino médio (formação geral) é dever de Estado devendo ser oferecido de modo gratuito nos estabelecimentos públicos sob a função formativa. Trata-se de um avanço inconteste. Mas com a definição do Decreto nº 2.208/97 estabelecendo o caráter independente e separado da educação profissional do ensino médio, ainda que articulado a este, e sem um apoio legalexplícito no que concerne à gratuidade e ao financiamento, ela não tem mais um responsável claro e distinto. A educação profissional tornou-se órfã do dever de Estado em matéria de financiamento e sua responsabilidade ficou diluída. É crescente a presença do Ministério do Trabalho nesta área, sobretudo em cursos de educação profissional de nível básico (atente-se para a ambiguidade do termo “básico” tal como expresso no Decreto e tal como posto na LDB...) por meio do Fundo de Apoio ao Trabalhador (FAT). Cumpre diferenciar o que são Diretrizes Curriculares Nacionais do que são os Parâmetros Curriculares Nacionais. As diretrizes curriculares, postas na Lei nº 9.131/95, devem explicitar os dispostos no art. 22, XXIV, e no art. 210 da Constituição Federal de 1988, que dizem, respectivamente: Compete privativamente à União legislar sobre: (...) Diretrizes e bases da educação nacional; Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. Além desse artigo, há na Constituição outros dispositivos relativos a componentes curriculares como, nas Disposições Constitucionais Gerais, o art. 242, e 1º, e o art. 215, e 1º. Estes dois dispositivos se coadunam com aquele expresso no capítulo da educação, conforme art. 210, e 2º: “O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem” A EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL | CARLOS ROBERTO JAMIL CURY Semana 2 – Texto – Base 1 Mas não se pode esquecer que, com maior ênfase no ensino fundamental, já havia orientações significativas postas pela Lei nº 8.069 de 13/7/1990, mais conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Além da importância geral desse Estatuto para as crianças e os adolescentes no processo educativo, há que se ressaltar a relevância de dois artigos. Dizem eles respectivamente: Art. 57: O Poder Público estimulará pesquisas, experiências e novas propostas relativas a calendário, seriação, currículo, metodologia, didática e avaliação, com vistas à inserção de crianças e adolescentes excluídos do ensino fundamental. Art. 58: No processo educacional respeitar-se-ão os valores culturais, artísticos e históricos próprios do contexto social da criança e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade de criação e o acesso às fontes de cultura. Ora, a Lei nº 9.131/95, que (re)criou o Conselho Nacional de Educação (CNE), atribui à Câmara de Educação Básica (CEB), entre outras competências, no art. 9º, letra c, a de deliberar sobre as diretrizes curriculares propostas pelo MEC... Logo, cabe ao CNE deliberar sobre essas diretrizes propostas. Ora, desde a eleição de Fernando Henrique Cardoso, a equipe de governo havia tomado a iniciativa de trazer à agenda política a discussão do que denominou Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), antes da Lei nº 9.131/95 e da Lei nº 9.394/96. Tratava-se de materializar um projeto de governo relativo à educação, no que se refere a currículos escolares. A fim de justificar as distintas competências cabíveis às instâncias constituintes da federação cumpre entender o sentido da expressão diretrizes. A EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL | CARLOS ROBERTO JAMIL CURY Semana 2 – Texto – Base 1 Diretrizes são linhas gerais que, assumidas como dimensões normativas, tornam-se reguladoras de um caminho consensual, conquanto não fechado a que historicamente possa vir a ter um outro percurso alternativo, para se atingir uma finalidade maior. Nascidas do dissenso, unificadas pelo diálogo, elas não são uniformes, não são toda a verdade, podem ser traduzidas em diferentes programas de ensino e, como toda e qualquer realidade, não são uma forma acabada de ser. O termo diretriz significa caminhos propostos para e, contrariamente à imposição de caminhos, ele denota um conjunto de indicações pelo qual os conflitos se resolvem pelo diálogo e pelo convencimento. A diretriz supõe, no caso, uma concepção de sociedade e uma interlocução madura e responsável entre vários sujeitos, sejam eles parceiros, sejam eles, no campo político, dirigentes e dirigidos. Dessa interlocução, espera-se o traçado de diferentes modos de se caminhar para a efetivação dos fins comuns, obedecendo-se à diversidade de circunstâncias socioculturais, ao respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais (cf. art. 210) e à recusa ao monopólio da verdade. Diretriz, assim, aproxima-se de orientação que é, ao mesmo tempo, impulso inicial e rumo geral. Mas aproxima-se também de norte, seja no sentido de superar uma possível desorientação, seja no sentido largo de orientação para um fim. Logo, os currículos e seus conteúdos mínimos (art. 210 da CF/ 88) propostos pelo MEC (art. 9º, letra c, da Lei nº 9.131/95) terão seu norte estabelecido por meio de diretrizes. Estas terão como foro de deliberação a Câmara de Educação Básica (art. 9º, letra c, da Lei nº 9.131/95). E dentro da opção cooperativa que marcou o federalismo no Brasil após a Constituição de 1988, a propositura das diretrizes será feita em colaboração com os outros entes federativos (LDB, art. 9º, IV). Entretanto o objetivo dessas diretrizes já está dado: trata-se da formação básica comum, assegurada a todos os estudantes. A EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL | CARLOS ROBERTO JAMIL CURY Semana 2 – Texto – Base 1 Dada a nova legislação e a normatização que lhe é consequente, percebe-se que está extinta a noção de “currículo mínimo” nacionalmente fixado. Os entes federativos, assim, gozam de autonomia para enriquecer essas diretrizes com seus parâmetros. Posta esta consideração sobre a pendência entre Diretrizes e Parâmetros, não se pode deixar de articular a questão dos componentes curriculares com a avaliação. O papel da União em matéria de avaliação escolar não decorre de um ato arbitrário do governo. Ele está ancorado em lei. Basta verificar o art. 9º, VI, da LDB dentro de um sistema nacional de avaliação, segundo o art. 4º do PNE e o art. 87, § 3º, IV, da LDB. Mas se a avaliação é competência própria da União, ela o é também sob o regime de colaboração recíproca. Assim, ao SAEB foi dada uma configuração diferenciada e também foi criado o Exame Nacional do Ensino Médio. O ENEM é um exame não-obrigatório, de vez que essa etapa da educação básica não conta com o caráter de obrigatoriedade. Ele pretende medir a aprendizagem dos alunos, podendo servir aos processos seletivos para ingresso nos cursos superiores ou no mundo do trabalho. Amparado na avaliação das respostas a itens que buscam medir competências e habilidades, o ENEM vem se tornando um dos principais programas de políticas educacionais da União com vistas, inclusive, a ser um componente determinante do processo seletivo para o ensino superior. O problema é se a cooperação recíproca entre os sistemas, legalmente exigida para efeito de levar adiante o eixo da avaliação, está sendo efetivada tanto na montagem do processo avaliativo quanto na sua metodologia. Caso contrário, corre-se o risco de tornar os programas de avaliação novos paradigmas curriculares (do tipo currículo mínimo), inviabilizando a flexibilidade que a desburocratização legal permitiu em face da autonomia dos estabelecimentos escolares e refreando a criatividade estimulada pela lei. A EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL | CARLOS ROBERTO JAMIL CURY Semana 2 – Texto – Base 1 Nesse caso, a cooperação exigida em lei pode se transformar em formas sofisticadas de políticas centralizadoras. Se as políticas de descentralização sempre fizeram parte de nossa tradição histórica, pelo menos desde o Ato Adicional de 1834, agora elas adquiriram um caráter bem mais marcante na medida em que a Constituição de 1988 elevou os municípios à categoria de entes federativos. Na ausência de um sentido explícito e consequente do pacto federativo por cooperação recíproca, até por omissão doCongresso Nacional, a descentralização, nas mãos de um governo central poderoso, ganha um sentido de centralização de concepção e descentralização da execução nos níveis subnacionais de governo. No âmbito da educação básica, é bastante delicado falar em política de privatização dados os “amortecedores” do financiamento vinculado e do princípio da gratuidade associados ao “direito do cidadão e dever do Estado”. Pelo menos até agora, o Brasil não conhece programas de “vouchers” ou vales, como é o caso do Chile, por exemplo. Contudo, o repasse de responsabilidades entre os escalões de poderes públicos sem o devido sustentáculo financeiro acaba por significar a redução na capacidade de atendimento da demanda O segundo elemento a ser levado em conta é o § único do art. 23 da CF/88, que exige a elaboração de uma lei complementar que defina o que é um regime de colaboração recíproca entre os entes federados. Desde 1988, esse § único não foi levado adiante pelo Congresso Nacional. Sem essa definição, o avançado e conceituado regime de colaboração de nossa Lei Maior, em seu modus operandi, vem se revelando muito mais um regime de decisões nacionalmente centralizadas e de execuções de políticas sociais subnacionalmente desconcentradas em que se percebe uma situação de competitividade recíproca (guerra fiscal) entre os subnacionais. A EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL | CARLOS ROBERTO JAMIL CURY Semana 2 – Texto – Base 1 A política centrada em superávits primários faz o Estado Nacional recuar nos aspectos relativos aos direitos sociais, inclusive na obrigação de a União ser um polo coordenador de política social por meio da função normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais, segundo o § primeiro do art. 8º da LDB. Afinal, como assegurar, de modo consistente, o aumento do gasto público sem uma previsão das fontes seguras de recursos? O desenvolvimento meandroso da educação brasileira entre o estado e o mercado | Luiz Antônio Cunha Semana 2 – Texto – Base 2 Neste texto, questiono a imagem do desenvolvimento da educação brasileira como um processo generalizado e contínuo de privatização. No meu entender, a privatização é um processo cheio de meandros, que não comporta resposta simples. Isso porque a segmentação dos sistemas educacionais não obedece a um trajeto retilíneo, sendo determinada por forças que ora incentivam o crescimento do setor público, ora do setor privado, ora de ambos. As forças em conflito, que determinam a segmentação dos sistemas educacionais, são o Estado e o Mercado, aqui definidos como categorias empíricas. Compreendem o Estado o Ministério da Educação, o Conselho Nacional (ou Federal) de Educação, o Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Educação e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação, assim como as instituições públicas de ensino. Compreendem o Mercado as instituições privadas de ensino e suas entidades representativas, como a Associação Brasileira de Entidades Mantenedoras, a Associação Nacional das Universidades Particulares, a Associação de Educação Católica do Brasil, o Conselho Geral das Instituições Metodistas de Ensino, a Associação Nacional de Faculdades e Institutos Superiores, entre outras. SUBSÍDIOS INDISCRIMINADOS O regime militar (1964/1985) favoreceu enormemente a iniciativa privada no campo educacional. Não porque as Forças Armadas fossem espontaneamente privatistas, mas, sim, porque os agentes e colaboradores do golpe de Estado de 1964 fizeram parte ou tinham afinidades político-ideológicas com os grupos que defenderam o Projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de orientação privatista, que deu origem à Lei n. 4.024, de dezembro de 1961. Além disso, divididos os centros de tomada de decisão, tornou-se mais difícil a resistência às pressões e aos atrativos das instituições privadas de ensino. Contraditoriamente, desde os anos do “milagre econômico”, a ampliação das camadas médias propiciou uma clientela ávida de escola privada, não só como símbolo de status prestigioso, mas, também, como alternativa para o ensino público que se deteriorava a cada ano, justamente por força das políticas elaboradas e implementadas pelos empresários do ensino e seus prepostos, que ocupavam os postos diretivos dos sistemas de educação, nos níveis federal, estadual e municipal. Vários têm sido os mecanismos pelos quais os empresários do ensino conseguiram o apoio governamental para seus empreendimentos: imunidade fiscal, garantia de pagamento das mensalidades pelos alunos, mediante bolsas de estudo distribuídas pelo poder público, e até mesmo a inibição de iniciativas governamentais de criação e/ou ampliação de escolas, para disporem de uma espécie de reserva de mercado. Não bastassem os recursos transferidos às escolas privadas, sob a forma de bolsas de estudos para os alunos, a acumulação de capital no campo educacional foi fortemente favorecida pela reforma tributária do primeiro governo militar. A Constituição de 1946 trazia um dispositivo que assegurava a isenção tributária para as instituições de educação, vedando à União, aos estados e aos municípios o lançamento de impostos sobre seus bens e serviços, desde que suas rendas fossem integralmente aplicadas no país e para os fins educacionais. Na reforma constitucional de 1965, os privilégios fiscais dessas instituições foram ampliados, estendendo-se a isenção de impostos para suas rendas. A Constituição de 1967 e a Emenda de 1969 mantiveram esse dispositivo. Assim, as escolas privadas passaram a gozar de uma verdadeira imunidade fiscal, o que ampliou suas possibilidades de acumulação de capital. Semana 2 – Texto – Base 2 O desenvolvimento meandroso da educação brasileira entre o estado e o mercado | Luiz Antônio Cunha O Decreto n. 72.485/73, que estabeleceu “normas para a concessão de amparo técnico e financeiro às entidades particulares de ensino”, recomendou aos governos estaduais que evitassem a criação de estabelecimentos públicos de ensino onde as escolas privadas fossem consideradas suficientes para absorver a demanda efetiva ou capazes de expandir a oferta para atender à demanda contida. INFLEXÃO NA TRANSIÇÃO A transição para a democracia levou a uma inflexão na política de subsídios indiscriminados às instituições privadas de ensino. Com efeito, a eleição de Tancredo Neves (MG), Leonel Brizola (RJ) e Franco Montoro (SP), candidatos de oposição aos governos militares, para dirigirem os estados mais importantes do país, em termos econômicos e políticos, abriu caminho para um novo protagonismo das secretarias de educação, como ficou patente com Darcy Ribeiro, no Rio de Janeiro, e com a dupla Otávio Elísio Alves de Brito e Neidson Rodrigues, em Minas Gerais. A Constituição de 1946 criou um tributo para as empresas, denominado salário-educação, o qual só foi regulamentado em 1964. As empresas ficaram sujeitas a uma contribuição, calculada à base de 1,4% (2,5% depois da Lei n. 5.692/71) do valor da folha de pagamento, para financiar o ensino primário (depois 1º grau) dos trabalhadores e seus filhos. Ao invés de recolherem a contribuição, as empresas poderiam optar por manter escola própria ou transferir os recursos devidos a instituições educacionais privadas, a título de bolsas de estudo para alunos “da comunidade”, não necessariamente de seus empregados ou seus filhos. Semana 2 – Texto – Base 2 O desenvolvimento meandroso da educação brasileira entre o estado e o mercado | Luiz Antônio Cunha Depois de décadas de abusos, o Decreto n. 91.796/85 garantiu a manutenção dos alunos que, na época, frequentavam escola privada com recursos diretamente transferidos pelas empresas, mas vedou que novos alunos fossem atendidos por essa via. Promulgada a Constituição, em 1996, o Presidente Fernando Henrique Cardoso e seu ministro da Educação, Paulo Renato Souza, desfecharam iniciativas de mudança legislativa em vários domínios, desde o ensino profissional até o ensinosuperior. No que concerne ao financiamento do ensino fundamental, a Emenda Constitucional n. 14/96 criou o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério (FUNDEF). Este Fundo contábil promoveu nova forma de realocação de recursos entre as redes estadual e municipais, em cada unidade da Federação, reservando para o ensino público, nesse nível, pelo menos 60% dos 25% garantidos pela Constituição para aplicação mínima na educação. A legislação do salário-educação só foi mudada, significativamente, no governo Lula, quando a Lei n. 10.832/2003 determinou que os recursos advindos da quota estadual e municipal seriam divididos proporcionalmente ao número de alunos das respectivas redes escolares, no ensino fundamental, em cada unidade da Federação. Ou seja, utilizava-se o mesmo critério do FUNDEF. SUBSÍDIOS DISCRIMINADOS Na segunda metade da década de 1990, já no governo FHC, a promulgação da LDB trouxe novos elementos ao processo meandroso aqui descrito. Ela reconheceu, pela primeira vez na legislação brasileira, a possibilidade de lucro para as instituições privadas de ensino: as particulares, no sentido estrito, definidas, implicitamente, por oposição às instituições privadas sem fins lucrativos (comunitárias, confessionais e filantrópicas). Semana 2 – Texto – Base 2 O desenvolvimento meandroso da educação brasileira entre o estado e o mercado | Luiz Antônio Cunha Nova inflexão no desenvolvimento desse processo ocorreu no governo Lula, com o Programa Universidade para Todos. O PROUNI foi ao encontro da demanda de acesso ao ensino superior gratuito, não atendida pelas instituições públicas, e da determinação do Plano Nacional de Educação (Lei n. 10.172, de 9 de janeiro de 2001) de aumentar a taxa de escolarização dos jovens de 18 a 24 anos, no ensino superior, de 12% para 30%, até o final da década, mas de um modo tal que a participação do setor público fosse igual ou maior a 40% do alunado. A primeira configuração do Programa Universidade para Todos foi o Projeto de Lei (PL) n. 3.582, enviado ao Congresso Nacional em maio de 2004. A pressa em implantar o programa, assim como a criação de um fato consumado, de modo que o Congresso não pudesse mudar muito a proposta do MEC, levou o Presidente a baixar a Medida Provisória (MP) n. 213, de 10 de setembro de 2004. Para facilitar a tramitação, a MP foi ao encontro de parte dos interesses das IES privadas, fortemente representadas na Câmara dos Deputados e no Senado. Muito modificada no Congresso Nacional, a medida provisória resultou na Lei n. 11.096, de 13 de janeiro de 2005, sancionada quando já apareciam os primeiros efeitos do Programa, a partir da adesão de várias instituições. A ideia geral do PROUNI era de que, para terem direito à isenção fiscal, as IES privadas ficariam sujeitas a uma contrapartida, na forma de bolsas de gratuidade nos cursos superiores de graduação e sequenciais de formação específica. Os beneficiados seriam estudantes provenientes de famílias de baixa renda, negros, indígenas e pardos, deficientes físicos e professores das redes púbicas de ensino (neste caso, independentemente de situação financeira e racial). Semana 2 – Texto – Base 2 O desenvolvimento meandroso da educação brasileira entre o estado e o mercado | Luiz Antônio Cunha Promulgada, então, a Lei n. 11.096/2005, as entidades representativas das instituições privadas de ensino manifestaram-se em apoio ao Programa, satisfeitas com as condições estabelecidas, particularmente do “preço” da isenção fiscal que lhes beneficiava. Como se não bastassem as concessões às entidades lucrativas, o PL n. 920/2007 (um dos componentes do Plano de Desenvolvimento da Educação) prevê a possibilidade das instituições que tiverem dívidas com a União, particularmente com a Receita Federal, abatê-las com a concessão de bolsas de estudo, segundo os critérios do PROUNI, ao qual devem aderir. No momento em que este artigo foi concluído, o projeto de lei tramita na Câmara dos Deputados. O conjunto de medidas denominadas Plano de Desenvolvimento da Educação incluiu o Decreto n. 6.096, de 24 de abril de 2007, que instituiu o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI). Em suma, o REUNI está para o segmento federal do setor público, assim como o PROUNI está para o setor privado. EFEITOS DIVERGENTES A tabela a seguir apresenta o número de alunos matriculados nos três níveis de ensino, segundo dependência administrativa pública ou privada, desde 1965, em intervalos de dez anos. Vejamos que conclusões podemos tirar dela. Semana 2 – Texto – Base 2 O desenvolvimento meandroso da educação brasileira entre o estado e o mercado | Luiz Antônio Cunha Antes de tudo, uma advertência sobre a leitura dos dados de 1965 e a comparação com os de 1975. À primeira vista, alguém poderia concluir, equivocadamente, que o número de alunos do ensino fundamental público teria mais do que triplicado na primeira década do regime militar. Essa impressão se desfaz pela leitura atenta das observações feitas na tabela, que mostram serem os dados de 1965 referentes ao ensino primário, enquanto que os de 1975 são do ensino de 1º grau, resultado da justaposição do primário ao ginásio e o fim do exame de admissão. Infelizmente, não foi possível separar os dados do então ensino médio (ginásio + colégio), de modo a se ter uma comparação mais aproximada. De 1965 a 2005, o alunado do ensino público cresceu, na educação básica, de 5,9 para 38,1 milhões, enquanto que o do ensino privado aumentou de 1,8 para 4,4 milhões. Isto quer dizer que as escolas públicas tinham um efetivo discente, em 2005, igual a 6,5 vezes o de 1965. No mesmo ano, as escolas privadas tinham um alunado igual a 2,4 vezes ao do ano inicial do período. Semana 2 – Texto – Base 2 O desenvolvimento meandroso da educação brasileira entre o estado e o mercado | Luiz Antônio Cunha QUANTIDADE E QUALIDADE O caráter meandroso do desenvolvimento da educação brasileira dificulta chegar-se a uma conclusão segura sobre as tendências futuras. Contudo, não impede que algumas assertivas sejam feitas, assim como certas indagações sobre suas possibilidades, particularmente no que concerne aos efeitos sobre a qualidade do ensino no país. O aumento quantitativo do alunado do ensino público na educação básica, especialmente no ensino médio, gera nova qualidade. Quer dizer: os alunos não são apenas muitos, eles são outros, em termos sociais e culturais. Este fato exige que se encare o ensino em termos distintos do que se tem feito. Novos contingentes sociais passam a frequentar a escola, sem as premissas culturais de antes, quando os destinatários eram poucos e selecionados, “espontaneamente”, pelas condições de vida das famílias, pela localização das escolas no espaço urbano e pela distribuição das vagas oferecidas, por turno e modalidade de ensino. A ampliação do alunado implica a obsolescência de muito do que deu certo durante décadas, porque a escola torna-se cada vez mais distante das realidades significativas para os alunos Numa frase: os novos contingentes sociais e culturais exigem novos currículos, com tudo o que o termo implica (conteúdos, métodos, espaço, tempo etc.). Repetir o mesmo produzirá efeitos cada vez piores, a menos que sejam dissimulados pela promoção automática. Quando se fala da qualidade da educação pública, não em termos do mais e do menos, do maior ou do menor rendimento diante de certos testes, mas em termos do que se ensina, do que e como se aprende, a questão da laicidade assume o primeiro plano. Semana 2 – Texto – Base 2 O desenvolvimento meandroso da educação brasileira entre o estado e o mercado | Luiz Antônio Cunha A tese e a luta pela municipalização do ensino de lº Grau são muito antigas no Brasil, mas podemos tomar como um marco nessa trajetória o pensamento de Anísio Teixeira. Para A. Teixeira, a municipalização do ensino primário ofereceria vantagens deordem administrativa, social e pedagógica. Quanto à primeira, as razões são óbvias. Quanto à segunda, as vantagens adviriam do fato do professor ser um elemento local ou pelo menos aí integrado e não mais um cônsul representante de um poder externo. Quanto à terceira, residiria principalmente na possibilidade do currículo escolar refletir a cultura local. Todos sabemos que as coisas não são bem assim e que a simples administração local do ensino não representa por si só nenhuma garantia de sua efetiva democratização e pode até mesmo ser oportunidade de exercício de formas mais duras de coerção sobre o processo educativo e sobre o magistério. Municipalização do ensino é apenas uma expressão abstrata e, nessas condições, nada indica que deva provocar reações de apoio ou de desaprovação. É preciso — como fez Anísio Teixeira — que indiquemos claramente quais são os problemas que se pretende resolver com uma política municipalista em educação. Sem isso, a retórica pró-municipalização, como também a retórica antimunicipalização são inteiramente vazias, não obstante o tecnicismo de que se revistam e, eventualmente, podem até ensejar fortes prejuízos à causa educacional. Contudo, foi nesse quadro que as constituições federal e estadual instituíram a municipalização do ensino. Mais ainda, ambas as constituições falam em sistemas municipais de ensino de maneira genérica e ambígua o que, eventualmente, poderá contribuir para aumentar a confusão com relação ao tema. Uma ideia sobre a municipalização do ensino | JOSÉ MÁRIO PIRES AZANHA Semana 2 – Aprofundando o tema – Texto 1 Já em 1968, a Lei nº 10.125, que instituiu o Código de Educação do Estado de São Paulo, distinguia claramente sistema de ensino e rede de escolas, conceituando aquele como o " conjunto de normas que disciplinam, em seus vários aspectos o processo educativo". Essa distinção entre a noção restrita de sistema de ensino e a de rede escolar é útil para um clareamento do assunto, porque permite o estabelecimento de coordenadas claras para projetos de municipalização do ensino. É evidente que municipalizar o ensino, instituindo um sistema próprio num sentido amplo, é coisa muito diferente de municipalizar o ensino apenas assumindo a administração de uma rede de escolas. As escolas poderão oferecer, ao invés de um currículo amplo e de mentira, aquele outro que refletirá as tradições locais e as possibilidades efetivas de cada município. Nem se diga que isto comprometerá uma unidade nacional desejável e que municípios pobres teriam um currículo empobrecido. Não há unidade curricular nacional construída sobre a mentira e o faz-de-conta. Se um município não tiver condições de enriquecer um currículo nuclear e obrigatório, a simples ampliação do estudo da língua nacional teria um alto efeito educativo. Não acreditamos que a escola pública já seja uma instituição falida, embora não se possa deixar de reconhecer que, a persistir o quadro atual, a falência talvez seja inevitável porque, na última década do século, a escola paulista de lº Grau ainda não abrange toda a população escolarizável e mesmo aquela parcela que é alcançada acaba, em proporções significativas, sendo expulsa pela evasão e pela repetência. E mesmo aqueles que sobrevivem a essa dizimação pedagógica terminam o seu curso pouco além do limiar do analfabetismo ou, pelo menos, em estado indiscutível de penúria cultural. Semana 2 – Aprofundando o tema – Texto 1 O desenvolvimento meandroso da educação brasileira entre o estado e o mercado | Luiz Antônio Cunha Quando, há décadas, A. Teixeira escreveu um livro de combate: Educação não é privilégio, ele pretendia denunciar a alarmante situação da escola primária brasileira cuja composição de matrícula da lª à 4ª série assemelhava- se a uma pirâmide. Muitos entravam na lª série, mas poucos concluíam o curso. O restante perdia-se pela evasão e pela repetência, como hoje. Era assim no Brasil e era assim em São Paulo. A escola pública não pode falhar porque, se é verdade que é muito difícil a determinação do valor relativo da educação como elemento de ascensão social, um ponto é indiscutível: a ausência da educação num meio social altamente urbanizado é devastadora e marginalizante. A municipalização precisa consistir num movimento de convocação e mobilização de todos os setores da sociedade local no sentido de salvação da escola pública. E isso, evidentemente, só tangencialmente está ligado à administração do ensino e à construção ou reforma de prédios escolares. Dentre os fatores desencadeantes da crise da escola pública, há componentes psicossociais muito fortes e que poderiam ser designados pela expressão falta de compromisso com a escola publica. Falta de compromisso profissional e político do magistério e falta de compromisso cívico de toda a comunidade. E uma questão de mentalidade. Não há mais tempo a perder. Em matéria de educação pública, atingimos um ponto-limite. Além dele, é possível a tragédia e a convulsão social. Ou salvamos a escola pública ou fixaremos um destino de miséria física e social para milhões de crianças. Semana 2 – Aprofundando o tema – Texto 1 O desenvolvimento meandroso da educação brasileira entre o estado e o mercado | Luiz Antônio Cunha Oracy Nogueira tornou-se internacionalmente conhecido por um pequeno trabalho apresentado no XXXI Congresso Internacional de Americanistas, realizado em São Paulo, em agosto de 1954: “Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem — sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil” Esta pérola sociológica, elo insubstituível do desenvolvimento dos estudos de relações raciais e de sociologia brasileiros, recebeu, finalmente, sua primeira e há muito merecida edição em livro no ano passado, 1998, pelas mãos de Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, que organizou e anotou os originais, introduzindo-nos o estudo e restituindo-lhe o nome original: Preconceito de marca: as relações raciais em Itapetininga. O título reproduz o conceito famoso que todos havíamos aprendido com Oracy, quando distingue os dois tipos básicos de preconceito racial: “Considera-se como preconceito racial uma disposição (ou atitude) desfavorável, culturalmente condicionada, em relação aos membros de uma população, aos quais se têm como estigmatizados, seja devido à aparência, seja devido a toda ou parte da ascendência étnica que se lhes atribui ou reconhece. Quando o preconceito de raça se exerce em relação à aparência, isto é, quando toma por pretexto para as suas manifestações os traços físicos do indivíduo, a fisionomia, os gestos, o sotaque, diz-se que é de marca; quando basta a suposição de que o indivíduo descende de certo grupo étnico para que sofra as consequências do preconceito, diz-se que é de origem.” (Nogueira, 1985 [1954], pp. 78-79). Pois bem, o que o estudo de comunidade em Itapetininga nos revela é o modo histórico e concreto como se formou e se exerce no Brasil o preconceito racial contra os negros. Semana 2 – Aprofundando o tema – Texto 2 A marca de cor | Oracy NOGUEIRA Do primeiro aspecto, dirá Oracy: “A coincidência entre as camadas sociais e as nuanças da cor da pele é tal que quase não há margem para equívoco. [...] abaixo dos proprietários brancos, estão os demais homens livres brancos, vindo imediatamente em seguida os pardos claros, descendentes quer de índios, quer de mulatos mais escuros com brancos, depois os pardos mais escuros, até atingir os pretos livres, geralmente crioulos, e, por fim, a massa dos cativos, que também se diferenciam, para efeito do tratamento que recebem, em mulatos, pretos crioulos, e pretos africanos ou ‘de nação’.” (p. 124). Do segundo e terceiro aspectos, Oracy anota: “Os líderes tanto locais quanto regionais dos movimentos abolicionistas e republicano saem, em sua maioria, do mesmo círculo de parentesco a que pertencem os elementos mais poderosos e conservadores da comunidade [...] O movimento abolicionista
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