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DIREITO DE VIZINHANÇA (Direito Civil, vol 3 – Flavio Tartuce – 2018) CONCEITO DE DIREITO DE VIZINHANÇA O Código Civil de 2002 (arts. 1.277 a 1.313), regula os direitos de vizinhança (Capítulo V do Livro que trata do Direito das Coisas). Na atual norma material codificada, a matéria está dividida em sete seções: Do uso anormal da propriedade (Seção I, arts. 1.277 a 1.281 do CC). Das árvores limítrofes (Seção II, arts. 1.282 a 1.284 do CC). Da passagem forçada (Seção III, art. 1.285 do CC). Da passagem de cabos e tubulações (Seção IV, arts. 1.286 e 1.287), novidade introduzida pela codificação de 2002. Das águas (Seção V, arts. 1.288 a 1.296 do CC). Dos limites entre prédios e do direito de tapagem (Seção VI, arts. 1.297 e 1.298 do CC). Do direito de construir (Seção VII, arts. 1.299 a 1.313 do CC). A matéria que regula o direito de vizinhança tem natureza de ordem pública, pois interessam muito mais do que almejam as partes envolvidas, ou seja, aos proprietários dos terrenos vizinhos. As normas de regência dos direitos de vizinhança são preferentemente cogentes, porque os conflitos nessa matéria tendem ao litígio e ao aguçamento de ânimos. Em uma visão clássica conceitual, Washington de Barros Monteiro assevera que “Os direitos de vizinhança constituem limitações impostas pela boa convivência social, que se inspira na lealdade e na boa-fé. A propriedade deve ser usada de tal maneira que torne possível a coexistência social. Se assim não se procedesse, se os proprietários pudessem invocar uns contra os outros seu direito absoluto e ilimitado, não poderiam praticar qualquer direito, pois as propriedades se aniquilariam no entrechoque de suas várias faculdades” (Curso..., 2003, v. 3, p. 135). Rubens Limongi França conceitua as relações de vizinhança como sendo “o complexo de direitos e obrigações recíprocos que regulam o direito da propriedade imóvel entre os vizinhos” (Instituições..., 1996, p. 464). Segundo Paulo Lôbo, “os direitos de vizinhança compreendem o conjunto de normas de convivência entre os titulares de direito de propriedade ou de posse de imóveis localizados próximos uns aos outros. (...). Na dimensão positiva, vizinhos são os que devem viver harmonicamente no mesmo espaço, respeitando reciprocamente os direitos e deveres comuns” (LÔBO, Paulo. Direito..., 2015, p. 177). DO USO ANORMAL DA PROPRIEDADE. O dispositivo fundamental relativo ao uso anormal da propriedade é o art. 1.277 do CC/2002, prevendo o seu caput que “O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha”. Pois bem, algumas conclusões fundamentais podem ser retiradas do dispositivo. A primeira delas é que as normas de direito de vizinhança não protegem somente o proprietário, mas também o possuidor, uma vez que o último também pode tomar as devidas medidas em casos de perturbações praticadas por terceiros. A segunda conclusão é que o dispositivo consagra uma ampla proteção, relacionada com a segurança, o sossego e a saúde dos habitantes do imóvel. Esses três parâmetros consagram a regra dos três Ss (segurança, sossego e saúde), que deve ser observada para a configuração do exercício regular do direito de propriedade ou não. Ilustrando, em havendo excesso de barulho decorrente de um prédio vizinho, o possuidor ou proprietário pode tomar as medidas necessárias para a sua cessação. Uma demanda coletiva pode ser reconhecida como medida cabível a afastar tais atentados à saúde, como entendeu o Tribunal de Justiça de São Paulo no aresto a seguir: “Ação civil pública. Liminar. Meio ambiente. Ruído excessivo causado por clube. Tratamento acústico em suas instalações determinado, bem como embargos das atividades, até a comprovação da obtenção da licença de localização e funcionamento. Medida de proteção do bem-estar da vizinhança e da comunidade, coibindo a produção de energia sonora nociva à saúde. Resolução CONAMA 1, de 08.03.1990. Validade da concessão da liminar. Possibilidade da ampla defesa do requerido no âmbito da ação civil pública. Recurso improvido” (TJSP, Agravo de Instrumento 535.404-5/9, Santos, Câmara Especial do Meio Ambiente, Relator: Renato Nalini, 20.04.2006, v.u., Voto 11.160). Em reforço à ilustração, cite-se curioso julgado do mesmo Tribunal, em que se concluiu que a existência de oito cães em pequeno imóvel traria lesão aos direitos de vizinhança, devendo o número de animais ser reduzido para dois: “Direito de vizinhança. Uso nocivo da propriedade. Oito cães em pequeno quintal. Ruídos e odores excessivos. Sentença mantida para limitar a dois animais. Recurso improvido” (TJSP, Apelação Cível 846.178-0/0, São Paulo, 36.ª Câmara de Direito Privado, Rel. Pedro Baccarat, 24.08.2006, v.u., Voto 1.465). O art. 1.277 do CC/2002 acaba por trazer, na sua essência, uma preocupação com a proteção ambiental, nos termos do que consta o art. 225 da Constituição Federal. Nesse sentido, preconiza o Enunciado n. 319 do CJF/STJ, aprovado na IV Jornada de Direito Civil, que “A condução e a solução das causas envolvendo conflitos de vizinhança devem guardar estreita sintonia com os princípios constitucionais da intimidade, da inviolabilidade da vida privada e da proteção do meio ambiente”. A proteção é mais ampla do que se imagina, pois nos termos do art. 21 do CC/2002 e do art. 5.º, X, da Constituição, a vida privada e a intimidade também merecem amparo nas questões de vizinhança. Além disso, a utilização da propriedade, quanto ao direito de vizinhança, não pode gerar abuso do direito, nos termos dos arts. 187 e 1.228, § 2.º, do CC/2002. A título de exemplo, podem ser citadas as medidas de tutela específica cabíveis nas obrigações de fazer e de não fazer, nos termos do Código de Processo Civil; a ação de dano infecto; a ação de nunciação de obra nova e mesmo a drástica medida da ação demolitória. Obviamente, o vizinho perturbado igualmente pode ingressar ainda com uma ação de reparação por danos materiais e morais suportados na relação vicinal. Em complemento a essa ampla proteção que consta do caput do art. 1.277 do CC/2002, dispõe o seu parágrafo único que devem ser proibidas as interferências externas, considerando-se a natureza da utilização e a localização do prédio. Além disso, devem ser atendidas as normas que distribuem as edificações em zonas, e os limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança. O último dispositivo traz outros dois critérios para a determinação da existência ou não do uso anormal da propriedade, quais sejam, a natureza da utilização e a localização do prédio. Por óbvio que se uma área em uma localidade praiana é destinada a bares noturnos (conforme normas regulamentares do próprio Município) deve existir uma tolerância maior ao barulho. O raciocínio não é o mesmo se a casa noturna se localizar em uma região essencialmente residencial. Em relação à divisão das edificações por zonas, no tocante às áreas urbanas, o Estatuto da Cidade trata do plano diretor, entre os seus arts. 39 a 42. Enuncia a citada norma que a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas (art. 39, caput, da Lei 10.257/2001). Segundo o que consta do art. 1.280 do CC/2002, o proprietário ou o possuidor tem direito a exigir do dono do prédio vizinho a demolição, ou a reparação deste, quando ameace ruína, bem como que lhe preste caução pelo dano iminente. Em complemento ao que já foi afirmado, o comando legal acaba por prever quatro ações à disposiçãodo vizinho nos casos de uso anormal da propriedade: a ação de obrigação de fazer ou de não fazer, a ação demolitória, a ação de nunciação de obra nova e a ação de dano infecto, que merecem ser exemplificadas. Em reforço, a norma consagra a possibilidade de o prejudicado pleitear perdas e danos, com a reparação também dos danos imateriais, conforme antes se destacou. DA PASSAGEM FORÇADA E DA PASSAGEM DE CABOS E TUBULAÇÕES A categoria da passagem forçada também é tratada no direito de vizinhança, uma vez que constitui típico instituto relativo ao tema. Preceitua o caput do art. 1.285 do CC que “O dono do prédio que não tiver acesso a via pública, nascente ou porto, pode, mediante pagamento de indenização cabal, constranger o vizinho a lhe dar passagem, cujo rumo será judicialmente fixado, se necessário”. Visando entender a problemática relativa à passagem forçada, pode ser elaborado o seguinte desenho, com uma visão aérea: Como se pode notar no desenho, o imóvel A não tem saída para a rua, pois está cercado de casas por todos os lados. Sendo assim, haverá a necessidade de uma saída por B, para que o imóvel A tenha utilidade. O imóvel A é denominado imóvel encravado, enquanto que B é o imóvel serviente, uma vez que por ele haverá a passagem. A função social da propriedade é o fundamento do instituto, nos termos do que prevê o art. 5.º, XXII e XXIII da CF/1988 e o art. 1.228, § 1.º, do CC/2002. No caso descrito, se não houvesse a passagem, o imóvel encravado não teria qualquer finalidade social. Como adentrar no imóvel? Pulando de paraquedas? Dispõe o § 1.º do art. 1.285 do CC/2002 que sofrerá o constrangimento o vizinho cujo imóvel mais natural e facilmente se prestar à passagem. Segue-se o espírito anterior de que a passagem forçada deve ser instituída da maneira menos gravosa ou onerosa aos prédios vizinhos. Se ocorrer eventual alienação parcial do prédio serviente, de modo que uma das partes perca o acesso à via pública, nascente ou porto, o proprietário da outra deve tolerar a passagem (art. 1.285, § 2.º, do CC). A obrigação de tolerar a passagem forçada deve acompanhar a coisa, constituindo uma obrigação ambulatória ou propter rem. A regra de tolerância nos casos de alienação deve ser aplicada ainda quando, antes da alienação, existia passagem através de imóvel vizinho, não estando o proprietário deste constrangido, depois, a dar uma outra (art. 1.285, § 3.º, do CC). Na passagem forçada há necessariamente o pagamento de uma indenização ao imóvel serviente. O Código Civil de 2002 passou a disciplinar a passagem de cabos e tubulações como instituto de direito da vizinhança, nos seus arts. 1.286 e 1.287. De acordo com o primeiro dispositivo, mediante recebimento de indenização que atenda, também, à desvalorização da área remanescente, o proprietário é obrigado a tolerar a passagem, por meio de seu imóvel, de cabos, tubulações e outros condutos subterrâneos de serviços de utilidade pública, em proveito de proprietários vizinhos, quando de outro modo for impossível ou excessivamente onerosa. O instituto também está fundado na função social da propriedade, havendo, em reforço, um interesse público indireto, pois as passagens de cabos e tubulações atendem aos interesses de outras pessoas. O regime jurídico é muito próximo do da passagem forçada, o que justifica a proximidade legislativa. A introdução dos institutos no Código de 2002 se deu, segundo a doutrina, diante da evolução tecnológica, pois não se imaginava, quando da elaboração do Código Civil de 1916, a existência constante de linhas de transmissão e energia elétrica, telefonia e processamento de dados ou de grandes adutoras subterrâneas (MALUF, Carlos Alberto. Código Civil..., 2004, p. 1.173). O desenho a seguir demonstra um esquema relativo a uma tubulação de água, que deve ser concebida em regime de passagem forçada: Da figura percebe-se que o imóvel A não tem como escoar as águas de seu prédio. Assim sendo, o imóvel B, serviente ou onerado, concederá a passagem das tubulações, até porque não é do interesse da coletividade que o esgoto fique represado no outro imóvel, o que causará um prejuízo ambiental. Contudo, no caso descrito, o proprietário de B pode requerer que a instalação dos tubos seja realizada da maneira menos onerosa ou gravosa, princípio que também é aplicado para a passagem forçada (princípio da menor onerosidade). Essa é a regra do parágrafo único do art. 1.286 do CC/2002, in verbis: “O proprietário prejudicado pode exigir que a instalação seja feita de modo menos gravoso ao prédio onerado, bem como, depois, seja removida, à sua custa, para outro local do imóvel”. Ainda quanto ao instituto, determina o art. 1.287 do CC/2002 que, se as instalações oferecerem grave risco, será facultado ao proprietário do prédio onerado exigir a realização de obras de segurança.. DAS ÁGUAS. As águas constituem partes integrantes do Bem Ambiental (art. 225 da CF/1988) e, sendo assim, merecem ampla proteção, para atender à função socioambiental da propriedade. Quanto ao direito de vizinhança, há regras específicas entre os arts. 1.288 a 1.296 do CC/2002, dispositivos que devem necessariamente ser analisados de acordo com a proteção transgeracional ambiental. Inaugurando o tratamento do direito de vizinhança, determina o art. 1.288 do Código Privado que o dono ou o possuidor do prédio inferior é obrigado a receber as águas que correm naturalmente do superior, não podendo realizar obras que embaracem o seu fluxo. Isso justifica a instituição da passagem obrigatória de tubulações, nos termos do art. 1.286 do CC/2002. Porém, enuncia ainda o art. 1.288 da codificação material que a condição natural e anterior do prédio inferior não pode ser agravada por obras feitas pelo dono ou possuidor do prédio superior. Ilustrando, a construção das tubulações não pode simplesmente aniquilar a funcionalidade do prédio inferior, uma vez que a passagem deve ser da maneira menos gravosa, conforme se expôs (princípio da menor onerosidade). Sob outro prisma, se, eventualmente, o proprietário do prédio inferior realizar obras que impeçam o escoamento das águas, caberá ação visando a afastar tal obstrução, sem prejuízo de eventuais perdas e danos, pelo ato ilícito praticado. Nos casos de escoamento artificial de águas, de um prédio superior para outro inferior, poderá o dono deste reclamar que se desviem, ou se lhe indenize o prejuízo que sofrer. Da indenização será deduzido o valor do benefício obtido, conforme preconiza o art. 1.289 do CC, incluído seu parágrafo único. Expliquemos melhor. Pode acontecer de o dono do prédio superior ter realizado com outra pessoa a canalização de águas, mediante a servidão predial de aqueduto (art. 1.378) a fim de plantar arroz e não encontre outra forma de escoar as águas que não seja para prédio inferior. Se este exigir o desvio das águas, tornará impossível o plantio da referida cultura” (Direito das coisas..., 2007, p. 199). Entretanto, outra solução seria o enquadramento da hipótese no art. 1.286 do CC/2002, que trata da passagem de tubulações. Por esse caminho, a passagem pode ser tida como obrigatória, levando-se em conta a finalidade social dos imóveis envolvidos. O art. 1.290 da codificação material privada trata das nascentes das águas e do escoamento das águas pluviais. Determina esse comando legal que o proprietário de nascente, ou do solo onde caem águas pluviais, satisfeitas as necessidades de seu consumo, não pode impedir ou desviar o curso natural das águas remanescentes pelos prédios inferiores. As nascentes são conceituadas pelo art. 89 do Código de Águas nos seguintes termos: “Consideram-se „nascentes‟ para os efeitos deste Código, as águas que surgem naturalmente ou por indústria humana, e correm dentrode um só prédio particular, e ainda que o transponham, quando elas não tenham sido abandonadas pelo proprietário do mesmo”. Confrontando-se as duas normas, percebe-se que a regra do Código Civil está de acordo com o que consta do art. 90 do Código de Águas, pelo qual “O dono do prédio onde houver alguma nascente, satisfeitas as necessidades de seu consumo, não pode impedir o curso natural das águas pelos prédios inferiores”. Em conclusão do que consta de todos esses dispositivos, o proprietário do imóvel da nascente é obrigado a permitir o escoamento das águas pelos prédios inferiores, pois o curso de água que do seu imóvel surge tem importante finalidade social. Essa preocupação com a coletividade também inspira o art. 94 do Código de Águas, segundo o qual o proprietário de uma nascente não pode desviar o seu curso quando desta se abasteça uma população. Vale dizer que o mesmo raciocínio de permissão serve, nos termos do Código Civil, para as águas pluviais, aquelas decorrentes das chuvas, conforme dispõe o art. 102 do Código das Águas. Prevê ainda o Decreto-lei 24.643/1934 que as águas pluviais pertencem ao dono do prédio onde caírem diretamente, podendo ele dispor delas à vontade, salvo existindo direito em sentido contrário (art. 103, caput). A ressalva feita pela norma é que ao dono do prédio onde caírem as águas pluviais não é permitido: 1.º) desperdiçar essas águas em prejuízo dos outros prédios que delas se possam aproveitar, sob pena de indenização aos proprietários dos mesmos; 2.º) desviar essas águas de seu curso natural para lhes dar outro, sem consentimento expresso dos donos dos prédios que irão recebê-las (art. 103, parágrafo único, do Decreto 24.643/1934). A vedação da poluição das águas, conforme dispõe o § 1.º do art. 1.228 do CC/2002, consta igualmente do seu art. 1.291, pelo qual o possuidor do imóvel superior não poderá poluir as águas indispensáveis às primeiras necessidades da vida dos possuidores dos imóveis inferiores. A parte final do último dispositivo é altamente criticável, pois expressa que “(...) as demais, que poluir, deverá recuperar, ressarcindo os danos que estes sofrerem, se não for possível a recuperação ou o desvio do curso artificial das águas”. Ora, a lei está admitindo, em sua literalidade, a possibilidade de poluição de águas, tidas como não essenciais, algo inadmissível em tempos atuais, diante da constante preocupação com o Bem Ambiental, o que culmina na adoção dos princípios da precaução e da prevenção. Nesse contexto, o dispositivo acaba por ferir a ampla proteção legislativa do meio ambiente, sobretudo a que consta do art. 225 da Constituição e da Lei 6.938/1981. Por isso, na opinião deste autor, o comando legal deveria ser imediatamente revogado, em razão de sua inconstitucionalidade. Na III Jornada de Direito Civil, aprovou-se o Enunciado n. 244 do CJF/STJ, prevendo que “O art. 1.291 deve ser interpretado conforme a Constituição, não sendo facultada a poluição das águas, quer sejam essenciais ou não às primeiras necessidades da vida”. Dispõe o art. 1.292 do atual Código Privado que o proprietário tem o direito de construir barragens, açudes, ou outras obras para represamento de água em seu prédio. Se as águas represadas invadirem prédio alheio, será o seu proprietário indenizado pelo dano sofrido, deduzido o valor do benefício obtido. Mais uma vez deve ser dito que o direito de construção ou represamento não pode gerar danos ao meio ambiente, havendo necessidade da fiscalização das atividades pelas autoridades administrativas, com o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto ao Meio Ambiente (RIMA). O art. 1.293 do Código Civil de 2002 trata do direito à construção do aqueduto, canais de recebimento ou transporte das águas. É a redação literal do dispositivo: “Art. 1.293. É permitido a quem quer que seja, mediante prévia indenização aos proprietários prejudicados, construir canais, através de prédios alheios, para receber as águas a que tenha direito, indispensáveis às primeiras necessidades da vida, e, desde que não cause prejuízo considerável à agricultura e à indústria, bem como para o escoamento de águas supérfluas ou acumuladas, ou a drenagem de terrenos. § 1.º Ao proprietário prejudicado, em tal caso, também assiste direito a ressarcimento pelos danos que de futuro lhe advenham da infiltração ou irrupção das águas, bem como da deterioração das obras destinadas a canalizá-las. § 2.º O proprietário prejudicado poderá exigir que seja subterrânea a canalização que atravessa áreas edificadas, pátios, hortas, jardins ou quintais. § 3.º O aqueduto será construído de maneira que cause o menor prejuízo aos proprietários dos imóveis vizinhos, e a expensas do seu dono, a quem incumbem também as despesas de conservação”. Da leitura do comando legal, a conclusão é que o aqueduto deve atender a uma função social. Isso não afasta a possibilidade de fixação de uma indenização em favor dos vizinhos, se a sua instituição gerar prejuízos a outrem. O princípio da menor onerosidade também deve reger o instituto, o que resta claro pela sua instituição subterrânea. DOS LIMITES ENTRE PRÉDIOS E DO DIREITO DE TAPAGEM Superado o tratamento das águas, o Código Civil de 2002 traz regras relativas ao limite entre prédios – em que realmente surgem vários confrontos entre os vizinhos –, e o direito de tapagem, que vem a ser o direito que o proprietário de um imóvel tem de cercar, murar, valar e tapar de qualquer modo o seu prédio urbano ou rural, nos termos do caput do art. 1.297 do Código Civil. Em continuidade, prevê ainda o último dispositivo citado que o proprietário pode constranger o seu confinante a proceder com ele à demarcação entre os dois prédios, a aviventar rumos apagados e a renovar marcos destruídos ou arruinados, repartindo-se proporcionalmente entre os interessados as respectivas despesas. Em suma, o artigo reconhece, em sua segunda parte, a possibilidade da ação demarcatória, assegurada ao proprietário, nos termos do art. 569, I, do CPC/2015: “para obrigar o seu confinante a estremar os respectivos prédios, fixando-se novos limites entre eles ou aviventando-se os já apagados”. A ação demarcatória continua a seguir o procedimento ou rito especial, na esteira das regras constantes entre os arts. 574 a 587 do CPC/2015. O § 1.º do art. 1.297 do CC/2002 dispõe a existência de um condomínio necessário entre os proprietários confinantes relativo aos intervalos, muros, cercas e os tapumes divisórios, sebes vivas, cercas de arame ou de madeira, valas ou banquetas – tapumes comuns ou ordinários. Nesse ponto da matéria é importante fazer menção às ofendículas, que para Washington de Barros Monteiro constituem elementos predispostos a lesar, ferir ou ofender caso alguém pretenda ingressar na propriedade alheia, o que constituíram defesas preventivas. Como exemplos, podem ser citadas as colocações de cacos de vidro em cima de muros, de grades de ferro com lanças ou mesmo das atuais cercas elétricas (Curso..., 2003, v. 3, p. 159). Para a maioria da doutrina do Direito Penal, tais instrumentos são considerados como hipóteses de legítima defesa preordenada. Na visão civil, em regra, esses instrumentos representam o exercício regular de um direito, no caso do direito de propriedade (art. 188, I, do CC). Todavia, o art. 187 do CC serve como parâmetro, para que as ofendículas não constituam abuso de direito, gerando o dever de indenizar. Aprofundando, no caso de uma cerca elétrica, é interessante que o proprietário que a introduziu como proteção afixe uma placa informando do perigo. O dever de informar, como se sabe, é anexo à boa-fé objetiva, um dos requisitos legais para a configuração do abuso de direito. Voltando ao § 1.º do art. 1.297 do CC/2002, é importante salientar quea norma traz uma presunção relativa desse condomínio necessário, pois se admite prova em contrário (presunção iuris tantum). Conforme o trecho final do dispositivo, os condôminos são obrigados, de conformidade com os costumes da localidade, a concorrer, em partes iguais, para as despesas de sua construção e conservação. Como novidade na lei material, o § 2.º do art. 1.297 do CC determina que as sebes vivas, as árvores, ou plantas quaisquer, que servem de marco divisório, só podem ser cortadas, ou arrancadas, de comum acordo entre proprietários. Apesar desse reconhecimento legislativo, note-se que as sebes, as árvores e as plantas fazem parte da fauna, não sendo tolerável, em regra, a sua destruição, diante da proteção do Bem Ambiental. O § 3.º do art. 1.297 admite a construção de tapumes especiais para impedir a passagem de animais de pequeno porte, ou para outro fim. Essa construção pode ser exigida de quem provocou a necessidade deles, pelo proprietário, que não está obrigado a concorrer para as despesas. O que se percebe, portanto, nos termos da norma jurídica, é que os tapumes comuns envolvem as divisórias em geral, caso das cercas e muros que dividem a propriedade, havendo divisão das despesas pelos confinantes. Já os tapumes especiais são aqueles que vedam a passagem dos animais, devendo arcar por eles os proprietários dos bens semoventes. Ilustrando os últimos podem ser citados os mata-burros e as cercas de arame que vedam a passagem de aves (DINIZ, Maria Helena. Código Civil..., 2005, p. 1.044). Encerrando o tratamento do direito de tapagem, sendo confusos os limites entre as propriedades, em falta de outro meio, se determinarão de conformidade com a posse justa (art. 1.298 do CC). Pelo mesmo comando legal, não sendo essa posse justa provada, o terreno contestado se dividirá por partes iguais entre os prédios, ou, não sendo possível a divisão cômoda, se adjudicará a um deles, mediante indenização ao outro. Assim, a prioridade é a definição dos limites pela posse justa (art. 1.200 do CC). Não havendo tal prova, haverá determinação, em ação demarcatória, da linha divisória das propriedades. Isso fica claro pelo que consta dos arts. 578 a 581 do CPC/2015, que tratam da referida demanda, a saber: “Art. 578. Após o prazo de resposta do réu, observar-se-á o procedimento comum”. “Art. 579. Antes de proferir a sentença, o juiz nomeará um ou mais peritos para levantar o traçado da linha demarcanda”. “Art. 580. Concluídos os estudos, os peritos apresentarão minucioso laudo sobre o traçado da linha demarcanda, considerando os títulos, os marcos, os rumos, a fama da vizinhança, as informações de antigos moradores do lugar e outros elementos que coligirem”. “Art. 581. A sentença que julgar procedente o pedido determinará o traçado da linha demarcanda. Parágrafo único. A sentença proferida na ação demarcatória determinará a restituição da área invadida, se houver, declarando o domínio ou a posse do prejudicado, ou ambos”. Percebe-se que o trabalho será de engenharia, a fim de se determinar por trabalho técnico qual a propriedade de cada um. Se a divisão da área não for cômoda, levando-se em conta a função social da propriedade e o caso concreto (particularmente o animus dos envolvidos), caberá ação de adjudicação da área por um dos confinantes, sendo indenizado o outro. DO DIREITO DE CONSTRUIR O direito de construir é o último tópico relativo ao direito de vizinhança, surgindo igualmente neste ponto situações conflituosas e endêmicas relativas à propriedade. As regras são detalhadas e, como se verá ao final, envolvem tanto questões materiais quanto processuais. De início, o Código Civil reconhece ao proprietário, como regra geral, amplos direitos de construir, prevendo o seu art. 1.299 que o proprietário pode levantar em seu terreno as construções que lhe aprouver, salvo o direito dos vizinhos e os regulamentos administrativos. Quanto aos direitos de vizinhos, podem ser citados os limites constantes do art. 1.228, § 2.º (configuração do abuso de direito), e do art. 1.277 do Código Civil (uso anormal da propriedade). No que concerne aos regulamentos administrativos, cite-se o plano diretor, que visa à organização das cidades, conforme dispõe o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001). Em todos os casos não se pode esquecer que a função social e socioambiental da propriedade também representam claras restrições ao direito de construir (arts. 5.º, XXII e XXIII, 225 da CF/1988 e 1.228, § 1.º, do CC/2002). Em todas as hipóteses envolvendo abusos no direito de construir caberá, por parte do proprietário prejudicado, a ação demolitória, que seguia rito ordinário, atual procedimento comum, na vigência do Novo CPC (art. 318). Isso sem prejuízo de outras medidas processuais, caso da ação de nunciação de obra nova, da ação reivindicatória, das ações possessórias, da ação de obrigação de fazer e de não fazer, ou mesmo da ação de indenização pelos danos sofridos. Pois bem, após essa regra geral, que já traz claras limitações, o que se percebe nos demais dispositivos relativos ao tema são específicas restrições ao direito de construir. Isso fica claro pelo teor do art. 1.300 do CC/2002, pelo qual o proprietário construirá de maneira que o seu prédio não despeje águas, diretamente, sobre o prédio vizinho. O dispositivo tem um sentido mais amplo do que o art. 575 do CC/1916, seu correspondente, que previa: “O proprietário edificará de maneira que o beiral do seu telhado não despeje sobre o prédio vizinho, deixando entre este e o beiral, quando por outro modo o não possa evitar, um intervalo de 10 (dez) centímetros, pelo menos”. Em continuidade, também há distinção quanto às aberturas para luz ou ventilação, pois o § 2.º do art. 1.302 do CC estabelece que as referidas proibições a elas não se aplicam, desde que as aberturas não sejam maiores de dez centímetros de largura sobre vinte de comprimento e construídas a mais de dois metros de altura de cada piso. O prazo decadencial para a propositura da ação visando a desfazer a obra em desrespeito ao que consta dos arts. 1.300 e 1.301 (ação demolitória) está previsto no dispositivo seguinte, o art. 1.302 do CC, in verbis: “O proprietário pode, no lapso de ano e dia após a conclusão da obra, exigir que se desfaça janela, sacada, terraço ou goteira sobre o seu prédio; escoado o prazo, não poderá, por sua vez, edificar sem atender ao disposto no artigo antecedente, nem impedir, ou dificultar, o escoamento das águas da goteira, com prejuízo para o prédio vizinho”. O direito de travejamento ou de madeiramento consta ainda do art. 1.305, caput, do CC/2002, no tocante à parede-meia, pois segundo esse comando legal, o confinante, que primeiro construir, pode assentar a parede divisória até meia espessura no terreno contíguo, sem perder por isso o direito a haver meio valor dela se o vizinho a travejar, caso em que o primeiro fixará a largura e a profundidade do alicerce. Aplicando a norma do Tribunal Gaúcho: “Construção de muro. Parede-meia. Possibilidade. Sendo lícito ao confinante construir sobre parede divisória, se não ultrapassar a meia espessura, e se o fizer primeiro, improcede o pedido de demolição. Exegese do art. 1.305 do Código Civil. Negaram provimento. Unânime” (TJRS, Apelação Cível 496307- 24.2012.8.21.7000, Vacaria, 18.ª Câmara Cível, Rel. Des. Pedro Celso Dal Pra, j. 28.02.2013, DJERS 06.03.2013). Reforçando a disciplina da parede-meia ou parede divisória, prevê o parágrafo único do art. 1.305 do Código Civil, que se esta pertencer a um dos vizinhos e não tiver capacidade para ser travejada pelo outro, não poderá este último fazer-lhe alicerce ao pé sem prestar caução àquele, pelo risco a que expõe a construção anterior. Eventualmente, caberá a ação de dano infecto para se exigir a caução. Em verdade,o que se percebe quanto à parede-meia ou parede divisória de dois imóveis é a existência de um condomínio necessário. Sendo dessa forma, o condômino da parede-meia pode utilizá-la até ao meio da espessura, não pondo em risco a segurança ou a separação dos dois prédios (art. 1.306 do CC). Segundo o mesmo dispositivo, um condômino deve sempre avisar previamente o outro das obras que ali pretende fazer; não pode, sem consentimento do outro, fazer, na parede-meia, armários, ou obras semelhantes, correspondendo a outras, da mesma natureza, já feitas do lado oposto. Tudo isso sem prejuízo das medidas judiciais cabíveis, caso da ação de nunciação de obra nova, da ação de dano infecto ou mesmo da ação demolitória. A menção ao dever de informar mantém relação com a boa-fé objetiva, e a violação desse dever, havendo obras posteriores, pode gerar a configuração do abuso de direito, nos termos do art. 187 do CC/2002. Sendo assim, a responsabilidade do agente em abuso é objetiva, segundo o que consta do Enunciado n. 37 do CJF/STJ, aprovado na I Jornada de Direito Civil, que traduz a posição da doutrina majoritária. Como novidade no que concerne à parede-meia, o art. 1.307 do Código de 2002 introduziu o direito de alteamento, que é o direito que tem o proprietário de aumentar a sua altura. De acordo com o último comando legal, qualquer dos confinantes pode altear a parede divisória, se necessário reconstruindo-a, para suportar o alteamento. O confinante que realiza as obras arcará com todas as despesas, o que inclui as de conservação, ou com metade, se o vizinho adquirir meação também na parte aumentada. A proteção da parede-meia veda que se encoste a ela chaminés, fogões, fornos ou quaisquer aparelhos ou depósitos suscetíveis de produzir infiltrações ou interferências prejudiciais ao vizinho (art. 1.308 do CC). A vedação permite ao proprietário lindeiro que demande a nunciação ou a demolição da obra. Para encerrar, cumpre comentar os cinco dispositivos que fecham, no Código Civil, o tratamento do tema relativo ao direito de construir. - O primeiro dispositivo tem relação com a proteção das águas e melhor seria se estivesse situada no tópico que trata do tema. Dispõe o art. 1.309 do CC/2002 que são proibidas construções capazes de poluir, ou inutilizar, para uso ordinário, a água do poço, ou nascente alheia, a elas preexistentes. A norma já constava do Código Civil de 1916 (art. 584) e ganhou reforço pela proteção constitucional do Bem Ambiental (art. 225 da CF/1988). No mesmo sentido, porém mais específico, o art. 1.310 do Código proíbe que o proprietário faça escavações ou quaisquer obras que tirem ao poço ou à nascente de outrem a água indispensável às suas necessidades normais. Como outra novidade, o Código Civil de 2002 veda a realização de obras ou serviços suscetíveis de provocar desmoronamento ou deslocação de terra, ou que comprometa a segurança do prédio vizinho. Nos termos do art. 1.311, caput, tais obras somente são possíveis após haverem sido feitas as obras acautelatórias. Realizada a obra em desrespeito ao que dispõe o dispositivo, serão cabíveis a ação de nunciação de obra nova, de dano infecto ou mesmo a ação demolitória. Sem prejuízo disso, o proprietário do prédio vizinho tem direito a ressarcimento pelos prejuízos que sofrer, não obstante haverem sido realizadas as obras acautelatórias (art. 1.311, parágrafo único, do CC). A responsabilidade civil, com a aplicação do princípio da reparação integral dos danos, é reconhecida como caminho a ser percorrido pelo proprietário prejudicado, sem prejuízo da demolição das construções feitas (art. 1.312 do CC). a) b) Desse modo, além da destruição das obras que infringem as normas civis, o prejudicado pode requerer a reparação dos danos materiais, nas categorias de danos emergentes (o que a pessoa efetivamente perdeu) e lucros cessantes (o que a pessoa razoavelmente deixou de lucrar); danos morais (lesão a direitos da personalidade) e danos estéticos (havendo algum dano físico no caso concreto – Súmula n. 387 do STJ). Para ilustrar: o vizinho entra no imóvel de outrem para pegar uma bola de futebol ou um gato perdido. Uma vez sendo entregue a coisa buscada pelo vizinho, o proprietário, por razões óbvias, pode impedir novas entradas no imóvel (art. 1.313, § 2.º, do CC). Mesmo havendo essa tolerância prevista em lei, se do seu exercício provier dano ao proprietário, terá o prejudicado direito a ressarcimento, aplicando-se o princípio da reparação integral dos danos, cobrindo a indenização dos três tipos de danos reparáveis no Brasil: danos materiais, danos morais e danos estéticos, se for o caso (art. 1.313, § 3.º, do CC). Ilustrando, imagine-se o caso em que as obras de reparos realizadas pelo vizinho fizeram desmoronar o telhado de uma casa, que veio a atingir os seus proprietários, causando-lhes danos físicos e patrimoniais.