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DIEGO POTIN; VICTOR LIMA; LÍDIA RAFALSKI; ROBERT KAUAN; LUCAS KLIPEL; BRUNA KAROLINY RECUSA À TRANSFUSÃO SANGUÍNEA: DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, LIBERDADE DE CRENÇA E AUTONOMIA DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ CACOAL/RO 2020 DIEGO POTIN; VICTOR LIMA; LÍDIA RAFALSKI; ROBERT KAUAN; LUCAS KLIPEL; BRUNA KAROLINY RECUSA À TRANSFUSÃO SANGUÍNEA: DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, LIBERDADE DE CRENÇA E AUTONOMIA DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ Projeto de Pesquisa apresentado às Faculdades Integradas de Cacoal (UNESC), como requisito parcial para cumprimento da Matriz Curricular corrente e aprovação na disciplina Projeto Integrador: Sociologia e Antropologia Jurídica Orientação: Alexandre Cury Puleto 2 CACOAL/RO 2020 1. INTRODUÇÃO Testemunha de Jeová é o nome dado aos adeptos de uma religião criada em 1872, que prega a não existência de uma trindade divina. As Testemunhas de Jeová são reconhecidas mundialmente pela sua crença, que as impede de receberem transfusão sanguínea. Destarte, a realização de procedimentos terapêuticos que incluam transfusão de sangue acabam sendo recusadas pelas Testemunhas de Jeová, ademais, em casos de ser o único tratamento possível, preferem até mesmo a morte. Entretanto, durante muito tempo, a relação médico-paciente (Testemunha de Jeová) encontrava-se, sobretudo, verticalizada, ocorrendo casos em que a transfusão sanguínea era imposta independentemente da manifestação de vontade desses religiosos, ignorando totalmente a sua autonomia privada e sua dignidade. Todavia, com a inserção de cláusulas gerais no Código Civil de 2002 (influência da ontognoseologia jurídica de Miguel Reale), abriu-se a possibilidade da incidência, no direito privado, de princípios consolidados na Constituição, concretizando-se a ideia de um diálogo de fontes entre Direito Civil e Constitucional. Tal dialética permitiu uma maior reflexão desses princípios, acarretando, por conseguinte, a consciência da existência de eventual choque de direitos que podem incidir sobre o caso das Testemunhas de Jeová, sendo eles, de forma objetiva, o Direito à vida e o princípio Dignidade da Pessoa Humana (sendo incluso dentro deste a liberdade de crença religiosa). 2. METODOLOGIA O presente trabalho, utilizando-se do método hipotético-dedutivo, buscou analisar a realidade e apresentar informações mais fidedignas possíveis quanto à abordagem do tema, enquadrando-se assim como uma pesquisa qualitativa. Ademais, em relação à sua natureza, esta apresenta-se como uma pesquisa aplicada, apresentando hipotéticas soluções que por meio de um procedimento bibliográfico, serão apresentadas e serviram também como, subsídio, um reforço 3 paralelo na análise e na tentativa de solução para os problemas citados neste trabalho. 3. OBJETIVOS 3.1 OBJETIVO GERAL O presente estudo tem como objetivo geral, precípuo e fulcral, definir e explicar o entendimento majoritário doutrinário e jurisprudencial acerca de qual princípio deve ser preservado e primado em caso de eventual conflito que envolva a recusa de transfusão sanguínea por parte das Testemunhas de Jeová, ademais, faz- se mister apresentar qual método/técnica criada pelo legislador, o juiz deve pautar- se ao julgar determinado caso, fugindo de um silogismo completo ou subsunção. 3.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS Como objetivos específicos, o presente estudo busca explanar, conceituar e apresentar ideias consagradas, acerca de tal tema, por doutrinadores civil- constitucionalistas e por enunciados de Jornadas de Direito que possam agregar ao ordenamento jurídico brasileiro. Ademais, busca-se explicar se há hipóteses ou situações em que uma transfusão sanguínea pode ser realizada mesmo que seja contra o consentimento das Testemunhas de Jeová. Busca-se apresentar, também, quais procedimentos podem ser tomados pelas Testemunhas e quais seriam as condutas do médico diante disso, bem como se há consequências para o âmbito ético e penal do mesmo. 4. JUSTIFICATIVA Hodiernamente, pouco se discute sobre tal tema, o que acarreta reflexos em nosso ordenamento jurídico. Diferentemente de países como Portugal e Estados Unidos, não há no Brasil, qualquer menção a este tema nas principais legislações do país. Ademais, não há nem um entendimento certo sobre o mesmo, tanto pela doutrina, quanto pela jurisprudência. Isto acabou forçando com que aqueles que lidam diretamente com esses conflitos, no caso os médicos, elaborassem por meio do Conselho Federal de Medicina, resoluções acerca disso. Destarte, é necessário 4 uma maior conscientização e deliberação acerca do mesmo, e é com este propósito que o presente estudo é produzido. 5. TESTEMUNHAS DE JEOVÁ E SUA CRENÇA Testemunha de Jeová é o nome dado aos adeptos de uma religião fundada em 1872 por Charles Russell, entretanto, esses adeptos consideram Jesus Cristo como o seu verdadeiro fundador,1 ademais, atualmente, estes possuem mais de 893.784 adeptos no Brasil.2 Tais religiosos são reconhecidos mundialmente devido à sua crença, fundada na intepretação da Bíblia, que afirma que a utilização de transfusões sanguíneas, que podem ser totais “ou dos componentes primários do sangue é um desrespeito à lei divina, sendo para esses religiosos, totalmente proibida a utilização e consumo de sangue humano ou animal”.3 Hodiernamente, com o avanço acelerado da Medicina, novos tratamentos terapêuticos alternativos já estão à disposição dos membros dessa crença, mediante a Comissão de Ligação dos Hospitais (COLIH), obtendo resultados satisfatórios, contudo, ainda existem profissionais que não respeitam ou não estão atualizados com essas novas técnicas terapêuticas para a não utilização transfusacional. Deste modo, o Brasil ainda possui pouquíssimos hospitais que realizam esses tipos de tratamentos alternativos e, segundo o Parecer nº 12/2014 do Conselho Federal de Medicina (CFM), somente as cidades de São Paulo, Jundiaí e Belo Horizonte, com aproximadamente 4.500 médicos são conhecedores desses métodos. 6. O CONFLITO APARENTE Diante o exposto, é comum ocorrerem casos em que a autonomia, a liberdade de crença e a dignidade do paciente Testemunha de Jeová sejam suprimidas para que o direito à vida seja resguardado. Ademais, como não há uma atenção para este 1 CARVALHO, M. C.; CAMPOS, T. R.. O estigma religioso imposto às testemunhas de jeová no brasil em face da não aceitação da transfusão de sangue. Universitas Jus, Brasília, v. 27, n. 3, 2016. p. 163. 2 Página oficial da religião registra a existência de mais de 800 mil adeptos no Brasil. Disponível em: <https://www.jw.org/pt/testemunhas-de-jeova/worldwide/BR/>. Acesso em: 01 dez. 2020. 3 FREITAS, M. K. DE L.; GUIMARÃES, P. B. V.. Direito à vida frente à liberdade de crença religiosa: uma análise jurídica da recusa à transfusão de sangue em testemunhas de jeová. Revista FIDES, v. 7, n. 1, 29 dez. 2017, p. 93. 5 assunto, os profissionais da área da saúde, principalmente os médicos, deparam-se com uma enorme indecisão diante de um membro dessa religião que se recusa ao tratamento de transfusão de sangue. Segundo FREITAS, o direito à vida é um: “(...) Direito Fundamental que está consagrado na Constituição Federal de 1988. A Carta Maior proclama no seu art. 5º, caput, expressamente, “a inviolabilidade do direito à vida”, assim sendo, a vida pode ser considerada o mais básico de todos os direitos, já que é um pré-requisito da existência dos demais direitos consagrados constitucionalmente”. 4 Entretanto, o direito à vida não seria formado apenas pelo elemento físico, mas também pelo psíquico e espiritual, sendo inserido nesses a dignidade existencial/humana de cada indivíduo, sendo esta eleita como um dos fundamentosda República Federativa do Brasil, mediante o art. 1°, III, da Constituição Federal. Já acerca da liberdade de crença e/ou religiosa, é possível concluir que em qualquer época da história humana, os pequenos grupos familiares, clãs, vilas, cidades-estados e nações tiveram na religião um fundamento para estilo de vida e comportamentos de adoração. DINIZ, nesse mesmo sentindo, acrescenta: “A adesão do ser humano a uma religião revela não uma preferência pessoal e subjetiva, mas a crença numa realidade transcendente e superior a todas as outras. Tal adesão acarreta um conjunto de comportamentos rituais que estabelecem liames entre o homem e Deus e a obediência a normas cujas origens e sanções estão além de qualquer poder humano, modelando, por essa razão, o seu pensamento e a sua ação”.5 Este direito está consagrado no art. 5°, VI, VII e VIII, da CF, e segundo MIRANDA, este consistiria na possibilidade de qualquer um poder manifestar sua crença, independentemente de qual for. 6Tais liberdades são invioláveis, haja vista ninguém poder ser obrigado a abandonar sua opção religiosa, ou ser forçado a renunciar sua fé, devendo o Estado, respeitar a escolha individual de cada cidadão quanto aos seus dogmas e crenças religiosas, todavia, o limite à liberdade de crença 4 FREITAS, M. K. DE L.; GUIMARÃES, P. B. V.. Direito à vida frente à liberdade de crença religiosa: uma análise jurídica da recusa à transfusão de sangue em testemunhas de jeová. Revista FIDES, v. 7, n. 1, 29 dez. 2017, p. 96. 5 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 4 .ed. atu. e rev. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 261. 6 MIRANDA, Jorge. Manual de direito Constitucional. 6 ed., Revista e atualizada. Coimbra Ed.,tomo IV, 1996, p.359 6 religiosa situa-se no campo do respeito mútuo, não podendo prejudicar outros direitos. Convém lembrar, que nenhum direito fundamental é absoluto, na própria Carta Magna existem várias exceções a esses direitos, assim, quando há colisão entre direitos fundamentais, deve-se ter em mente, a importância dos bens jurídicos protegidos. A partir disso, diz-se ter um conflito aparente, pois mesmo assim um direito deverá ser preservado, por conseguinte, podendo suprimir ou restringir outro. 7. ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL E DOUTRINÁRIO Dada essa perfunctória propedêutica acerca dos princípios aqui conflitantes, é indubitável dizer que, hodiernamente, ainda se faz presente a concepção da pretensa superioridade do direito à vida quando confrontado com a liberdade de crença. Tal concepção é encontrada de forma majoritária tanto na doutrina (destacando-se como expoentes desta corrente, nomes como Flávio Tartuce e Maria Helena Diniz) quanto na jurisprudência dos tribunais brasileiros. Todavia, não há uma decisão firmada sobre tal assunto, assim, restou para que aqueles que lidam diretamente com tais fatos, os médicos, regulassem esse assunto mediante resoluções do Conselho Federal de Medicina, que, muitas das vezes, por não passarem pelo devido processo legislativo, conflitam aparentemente, como visto anteriormente, com determinadas disposições legais do ordenamento jurídico brasileiro. Deste modo, pode-se analisar a presença de duas principais correntes concernentes à questão das Testemunhas de Jeová: a que defende a primazia do direito à vida e a que defende a primazia do direito à liberdade de crença e do princípio da dignidade da pessoa humana. A primeira afirma que, mesmo pelo disposto no art. 15 do Código Civil, o direito à vida mereceria maior proteção do que o direito à liberdade religiosa ou de crença,7 visto que a vida seria compreendida “como um elemento integrador de todos os demais direitos fundamentais, sem a vida não existiria a materialização dos 7 TARTUCE, Flávio. Direito civil: lei de introdução e parte geral. v. 1. 15.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 252. 7 demais atributos da personalidade, como a liberdade de escolha do indivíduo”,8 ou seja, a vida seria considerada como uma prerrogativa para o exercício dos demais direitos. Maria Helena Diniz também assevera nesse sentido: “Se entre os direitos à vida e a liberdade de religião apresenta-se uma situação que venha a colocá-los em xeque, de tal sorte que apenas um deles possa ser atendido, ter-se-á a incidência absoluta do princípio do primado do direito mais relevante, que é indubitavelmente, o direito à vida”.9 Devido a este entendimento, foi muito criticada a Resolução 1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina, que possibilitou aos profissionais da área de saúde o emprego da ortotanásia, esta conceituada como o ato de “limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal”.10 Esta conduta omissiva, mediante um mero silogismo, deveria ser enquadrada como omissão de socorro, tipificada no art. 135 do Código Penal, todavia, por força do princípio da dignidade da pessoa humana,11 pode-se inferir a sua permissão. Ademais, no âmbito ético, tal ato demonstra-se legal (em sentido amplo), visto que o art. 41 e seu parágrafo único, do Código de Ética Médica12 permitem tal ato, além de que, a ortotanásia diferentemente da eutanásia, que abrevia a vida do paciente, permite tão somente a morte em seu tempo natural, sem uso de meios artificiais e inúteis para o seu prolongamento. A corrente do primado da vida não se mostra, todavia, um tanto radical. Esta permite ainda que a recusa à transfusão sanguínea por parte das Testemunhas de 8 FREITAS, M. K. DE L.; GUIMARÃES, P. B. V.. Direito à vida frente à liberdade de crença religiosa: uma análise jurídica da recusa à transfusão de sangue em testemunhas de jeová. Revista FIDES, v. 7, n. 1, 29 dez. 2017, p. 103. 9 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 4 .ed. atu. e rev. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 274. 10 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM - Brasil). Código de ética médica. Resolução nº 1.805/2006. Diário Oficial da União; Poder Executivo, Brasília, DF, n. 227, 28 nov. 2006. Seção 1, p.169. 11 CABETTE, E. L. S. Eutanásia e Ortotanásia: comentários à Resolução 1.805/2006 CFM. Aspectos éticos e jurídicos. Juruá, 2013. 12 “Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal. Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal.”. In: CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA: Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018 , modificada pelas Resoluções CFM nº 2.222/2018 e 2.226/2019 / Conselho Federal de Medicina – Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2019. 8 Jeová seja respeitada, desde que estejam presentes alguns requisitos. Segundo a Resolução CFM N° 2.232/2019, a recusa terapêutica (aqui se faz ênfase a parte subsequente, quando esta dispõe ‘em tratamento eletivo’, ou seja, se em possível risco de morte a transfusão sanguínea for o único meio para salvar a vida do paciente, esta deve ser feita, repetindo o disposto na Resolução CFM N° 1.021/80) deve ser respeitada desde que o paciente seja capaz, lúcido, orientado e consciente e que o médico informe a este os riscos e as consequências previsíveis de sua decisão,13 ato que passou a se chamar de consentimento livre e informado, como exposto no Enunciado n. 533 do CJF/STJ,14 no qual a presente resolução inspirou- se. Ademais, o Código Penal afastou, em seu art. 146, § 3°, I, a responsabilidade penal, quando dispôs que a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, é justificada por iminente perigo de vida.15 Preservando ao máximo a autonomia do pacientee ao mesmo tempo primando o direito à vida, o Enunciado n. 528 do CJF/16STJ declarou válido o chamado “testamento vital”. E em 2012, seguindo esta mesma linha, o CFM publicou sua Resolução N° 1.995/2012, que dispôs acerca da conduta do médico em face da existência de eventual “testamento vital”, denominado a partir daí de diretiva antecipada de vontade. Esta sendo conceituado como: “(...) o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade”.17 Entretanto, se essas diretivas estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica, o médico deixará de levá-la em consideração. Levando em conta tudo o que foi exposto, é indubitável dizer que em possível recusa de transfusão sanguínea por parte das Testemunhas de Jeová mediante uma 13 CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA: Resolução CFM n° 2.232/2019, de 16 de setembro de 2019, Conselho Federal de Medicina – Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2019. 14 CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. Enunciado n. 533. Disponível em: <https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/144>. Acesso em: 29 nov. 2020. 15 BRASIL. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto- lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 29 nov. 2020. 16 CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. Enunciado n. 528. Disponível em: <https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/597>. Acesso em: 29 nov. 2020. 17 CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA: Resolução CFM N° 1.995/2012, de 31 de agosto de 2012, Conselho Federal de Medicina – Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2019. 9 diretiva, esta não seria aceita, por conseguinte, a transfusão seria feita mesmo sem o seu consentimento. Este também é o entendimento majoritário dos tribunais do Brasil.18 Contrária a quase tudo o que foi exposto anteriormente, encontra-se a corrente que defende a autonomia, a dignidade da pessoa humana e a liberdade de crença. Minoritária, entretanto, possuindo argumentos coerentes, esta tem Anderson Schreiber como o seu maior entusiasta. Este defende que todos os direitos fundamentais “são protegidos apenas enquanto e na medida em que se dirigem à promoção da dignidade humana”,19 tendo este papel prioritário no texto constitucional. Destarte, poderíamos falar na existência do direito à vida digna e, por conseguinte, também do seu encerramento ou direito à morte digna, “quando tal resultado for mais consentâneo com a dignidade humana do paciente”,20 e acrescenta: “Intolerável, portanto, que uma Testemunha de Jeová seja compelida, contra a sua livre manifestação de vontade, a receber transfusão de sangue, com base na pretensa superioridade do direito à vida sobre a liberdade de crença. Note-se que a priorização da vida representa, ela própria, uma ‘crença’, apenas que da parte do médico, guiado, em sua conduta, por um entendimento que não deriva das normas jurídicas, mas das suas próprias convicções científicas e filosóficas. (...). A vontade do paciente deve ser respeitada, porque assim determina a tutela da dignidade humana, valor fundamental do ordenamento jurídico brasileiro”.21 18 ”Indenizatória – Reparação de danos – Testemunha de Jeová – Recebimento de transfusão de sangue quando de sua internação – Convicções religiosas que não podem prevalecer perante o bem maior tutelado pela Constituição Federal que é a vida – Conduta dos médicos, por outro lado, que pautou-se dentro da lei e ética profissional, posto que somente efetuaram as transfusões sanguíneas após esgotados todos os tratamentos alternativos – Inexistência, ademais, de recusa expressa a receber transfusão de sangue quando da internação da autora – Ressarcimento, por outro lado, de despesas efetuadas com exames médicos, entre outras, que não merece ser acolhido, posto não terem sido os valores despendidos pela apelante – Recurso não provido” (TJSP, Apelação Cível 123.430-4, Sorocaba, 3.ª Câmara de Direito Privado, Rel. Flávio Pinheiro, j. 07.05.2002, v.u.). “Apelação cível. Transfusão de sangue. Testemunha de Jeová. Recusa de tratamento. Interesse em agir. Carece de interesse processual o hospital ao ajuizar demanda no intuito de obter provimento jurisdicional que determine à paciente que se submeta à transfusão de sangue. Não há necessidade de intervenção judicial, pois o profissional de saúde tem o dever de, havendo iminente perigo de vida, empreender todas as diligências necessárias ao tratamento da paciente, independentemente do consentimento dela ou de seus familiares. Recurso desprovido” (TJRS, Apelação Cível 70020868162, 5.ª Câmara Cível, Rel. Umberto Guaspari Sudbrack, j. 22.08.2007). 19 SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 52. 20 Ibidem. 21 Ibidem, p. 53. 10 Ainda neste sentido, Anderson Schreiber traça alguns critérios, de excepcional importância, aplicáveis a esta situação e as demais que se assemelham a esta: “(i) em primeiro lugar, deve-se respeitar a expressa recusa ao tratamento manifestada pelo paciente consciente, capaz e devidamente informado das consequências de sua decisão, mesmo quando a recusa possa resultar direta ou indiretamente na extinção da sua existência; (ii) se o paciente estiver inconsciente ou por alguma outra razão impedido de se exprimir livremente, sua manifestação prévia da vontade, formalizada em testamento biológico ou não, deve ser respeitada, admitindo-se o não atendimento da sua manifestação de vontade apenas diante de mudanças significativas na eficiência ou variedade dos tratamentos médicos disponíveis que possam afetar a vontade do paciente; (iii) se o paciente não for capaz de exprimir sua intenção e não tiver feito prévia declaração a respeito da matéria, será necessário reconstruir sua vontade, à luz da sua concepção de vida, extraindo de seu próprio comportamento pregresso aquela que seria sua decisão diante das circunstâncias concretas em que se encontra (circunstâncias que podem variar enormemente, indo do simples estado de inconsciência até condições de profundo sofrimento e agonia)”.22 Ademais, tal corrente tem como seu aliado o Enunciado n. 403 do CJF/STF,23 aprovado na V Jornada de Direito Civil. Todavia, tal conflito não deve continuar sem um entendimento sólido por muito tempo, visto que a Procuradoria Geral da República ajuizou Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 618) perante o Supremo Tribunal Federal visando garantir para as “pessoas que professam a religião Testemunhas de Jeová, desde que sejam maiores e capazes, o direito de não se submeterem a transfusões de sangue, por motivo de convicção pessoal”.24 Para a resolução desse conflito, usar-se-á a ponderação, já consolidada em nosso ordenamento jurídico, mediante o art. 489, § 2°, do Código de Processo Civil, esta consistindo em um sopeso entre os valores conflitantes, prevalecendo aquele com maior “peso” no ordenamento jurídico. 22 Ibidem, p. 65. 23 “O Direito à inviolabilidade de consciência e de crença, previsto no art. 5º, VI, da Constituição Federal, aplica-se também à pessoa que se nega a tratamento médico, inclusive transfusão de sangue, com ou sem risco de morte, em razão do tratamento ou da falta dele, desde que observados os seguintes critérios: a) capacidade civil plena, excluído o suprimento pelo representante ou assistente; b) manifestação de vontade livre, consciente e informada; e c) oposição que diga respeito exclusivamente à própria pessoa do declarante.”. In: CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. Enunciado n. 403. Disponível em: <https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/207>. Acesso em: 30 nov. 2020. 24 Procuradora-geral da República busca garantir a Testemunhas de Jeová o direito de recusar transfusões de sangue. Notícias STF, 10 de set. de 2019. Disponível em: <http://stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=423187>.Acesso em: 19 nov. 2020. 11 8. CONCLUSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS Assim, pode-se concluir, diante o exposto, que esses religiosos devem ter o direito de serem informados e escolherem o tipo de tratamento que desejam ou não receber, desde que estes não sejam incapazes, tenha outro tratamento possível para a salvaguarda de suas vidas e não estejam em perigo iminente de vida. Destarte, tais atos, infelizmente, fazem com que as Testemunhas de Jeová sejam impelidas a fazer um procedimento terapêutico, no caso, a transfusão sanguínea, mesmo sem o seu consentimento, ato que viola a sua autonomia e sua dignidade, visto que a vida deve ser compreendida em todos os seus elementos, não somente o físico, mas o espiritual e o psíquico. Mesmo que seja um procedimento terapêutico que preserve a vida, também dela pode retirar a dignidade de viver conforme a sua crença, podendo tornar a sua existência restante sem sentido. Destarte, surgiu uma incipiente corrente, mas muito promissora, favorável à dignidade desses indivíduos. Mesmo que esta ainda tenha pequenos adeptos, possui argumentos demasiadamente coerentes. Não obstante, os direitos fundamentais revestem-se de certa relatividade, assim, de acordo com o caso concreto, através de uma axiologia e fugindo de um silogismo/subsunção, faz- se mister o sopeso desses direitos conflitantes, para que o que tenha maior “peso” seja preservado. REFERÊNCIAS BRASIL. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 29 nov. 2020. CABETTE, E. L. S. Eutanásia e Ortotanásia: comentários à Resolução 1.805/2006 CFM. Aspectos éticos e jurídicos. Juruá, 2013. CARVALHO, M. C.; CAMPOS, T. R.. O estigma religioso imposto às testemunhas de jeová no brasil em face da não aceitação da transfusão de sangue. Universitas Jus, Brasília, v. 27, n. 3, 2016. p. 156-172. CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA. Resolução CFM N° 1.995/2012, de 31 de agosto de 2012, Conselho Federal de Medicina – Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2019. 12 ______. Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018, modificada pelas Resoluções CFM nº 2.222/2018 e 2.226/2019 / Conselho Federal de Medicina – Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2019. ______. Resolução CFM n° 2.232/2019, de 16 de setembro de 2019, Conselho Federal de Medicina – Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2019. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM - Brasil). Código de ética médica. Resolução nº 1.805/2006. Diário Oficial da União; Poder Executivo, Brasília, DF, n. 227, 28 nov. 2006. Seção 1, p.169. CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. Enunciado n. 533. Disponível em: <https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/144>. Acesso em: 29 nov. 2020. ______. Enunciado n. 528. Disponível em: <https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/597>. Acesso em: 29 nov. 2020. ______. Enunciado n. 403. Disponível em: <https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/207>. Acesso em: 30 nov. 2020. DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 4. ed. atu. e rev. 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Direitos da Personalidade. - 2. ed. - São Paulo: Atlas, 2013. TARTUCE, Flávio. Direito civil: lei de introdução e parte geral – v. 1 / Flávio Tartuce. – 15. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019. 13 TJRS, Apelação Cível 70020868162, 5.ª Câmara Cível, Rel. Umberto Guaspari Sudbrack, j. 22.08.2007 TJSP, Apelação Cível 123.430-4, Sorocaba, 3.ª Câmara de Direito Privado, Rel. Flávio Pinheiro, j. 07.05.2002, v.u VIEIRA, Tereza Rodrigues. Aspectos éticos e jurídicos da recusa do paciente testemunha de jeová em receber transfusão de sangue. Rev. Ciên. Jur. e Soc. da Unipar, v. 6, n. 2, p.221-234, jul./dez.. 2003.
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