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FACULDADE UNYLEYA Rafael Pereira Esteves Restauração Fílmica: A questão da alteração de obras históricas na preservação audiovisual. Belo Horizonte 2019 RAFAEL PEREIRA ESTEVES RESTAURAÇÃO FÍLMICA: A QUESTÃO DA ALTERAÇÃO DE OBRAS HISTÓRICAS NA PRESERVAÇÃO AUDIOVISUAL. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade Unyleya como parte integrante do conjunto de tarefas avaliativas do curso Arquivo: Patrimônio Histórico, Artístico E Cultural. Orientador: Róbison Gonçalves de Castro BELO HORIZONTE 2019 AGRADECIMENTOS À Sônia Costa Pereira, que me auxiliou com a revisão ortográfica e gramatical do trabalho. Ao Prof. Dr. José Ricardo Miranda Júnior, pelo auxílio com a pesquisa bibliográfica. Aos meus amigos em Belo Horizonte, que também me auxiliaram com a pesquisa, me inspirando com novas ideias. RESUMO A arte surgiu nos primórdios da humanidade e permitiu a formação de uma sociedade cultural. Ao longo dos anos, diversos campos da arte surgiram. Dentre eles, o cinema, que inaugurou o protagonismo da imagem em movimento. Nesse contexto artístico, também se despontou o conceito de restauração, abrindo espaço para discussões éticas sobre sua aplicação. A película e seus componentes se mostram extremamente frágeis e sujeitos à degradação espontânea, demandando atitudes mais pontuais do campo preservador diante do evanescer do original fílmico. Diversas técnicas e manuais foram preconizados por organizações de cinéfilos, visando perpetuar as antigas produções do audiovisual, muitas delas já em condições críticas. Nesse âmbito, a questão do original, especialmente no meio audiovisual, centraliza muitas dessas discussões, visto que o cinema não permite exatamente uma definição concreta desse termo – devido ao próprio processo de produção cinematográfica. Entretanto, a temporalidade e o acúmulo de história no documento fílmico geram os principais dilemas da área da restauração. Não apenas a questão técnica, mas principalmente a potência filosófica desses dilemas são o foco de estudo e reflexão do presente trabalho. Palavras-chave: Restauração. Cinema. Película. Preservação. Filosofia. Degradação. Arte. Ética. Dilema. ABSTRACT Art emerged in the beginnings of mankind and allowed the formation of a cultural society. Over the years, several fields of art have emerged. Among them, the cinema, which inaugurated the protagonism of the moving image. In this artistic context, the concept of restoration also emerged, opening space for ethical discussions about its application. The film and its components are extremely fragile and subject to spontaneous degradation, demanding more active attitudes of the preservative field before the evanescence of the original film. Several techniques and guidelines were provided by organizations of cinema enthusiasts, aiming to perpetuate the old audiovisual productions, many of them already in critical conditions. In this context, the issue of the original, especially in the audiovisual context, centralizes many of these discussions, since cinema does not exactly allow a concrete definition of that term – due to the film production process itself. However, temporality and the accumulation of history in the film document generate the main dilemmas in the area of film restoration. Not only the technical question, but mainly the philosophical potency of these dilemmas are the focus of study and reflection on the present work. Key words: Restoration. Cinema. Film. Preservation. Philosophy. Decay. Art. Ethics. Dilemma. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AEC - Antes da Era Comum AR - Augmented Reality (Realidade Aumentada) CD - Compact Disc D-SLR - Digital Single Lens Reflex DVD - Digital Video Disc EC - Era Comum EUA - Estados Unidos da América FIAF - Fédération Internationale des Archives du Film (Federação Internacional de Arquivos Cinematográficos) MGM - Metro-Goldwyn-Mayer Inc. MoMA - Museum of Modern Art (Museu de Arte Moderna) NCFA - Netherlands Central Film Archive (Arquivo Central de Cinema da Holanda) ONU - Organização das Nações Unidas P&B - Preto e Branco PTR - Particle Transfer Roller UCLA - University of California, Los Angeles (Universidade da Califórnia em Los Angeles) UNESCO - United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) URSS - União das Repúblicas Socialistas Soviéticas VHS - Video Home System LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 – Rolo de filme em papel fotográfico .......................................................... 24 Figura 2 – Película de nitrato de celulose em estado avançado de degradação ..... 30 Figura 3 – Película de acetato de celulose com síndrome do vinagre ..................... 31 Figura 4 – "Ecce Homo" antes e depois da restauração de Giménez. ..................... 43 Figura 5 – Torre medieval de Matrera antes e depois do restauro. .......................... 44 Figura 6 – Sobreposição de linhas em Heidentor, Áustria. ....................................... 45 Figura 7 – Fotografia de Stalin e o Comissário Yezhov, que foi apagado da fotografia posteriormente. .......................................................................................................... 47 Figura 8 – Películas com som óptico e magnético ................................................... 54 Figura 9 – Erro de análise do programa de computador em "Metrópolis" ................ 57 Figura 10 – Fios visíveis em "O Mundo Perdido" (1925), e em "Guerra dos Mundos (1953) ........................................................................................................................ 59 Figura 11 – Fotograma de "Stalker", de Andrei Tarkovski ........................................ 68 Figura 12 – Ginevra de' Benci, de Leonardo Da Vinci (1475-1478) ......................... 70 Figura 13 – Fotograma do filme Decasia, de Bill Morrison (2002) ............................ 72 Tabela 1 – Parâmetros para temperatura e umidade na guarda de filmes ............... 35 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 9 2 A TRAJETÓRIA DA ARTE NO TEMPO ................................................................ 13 2.1 Restauração e Conservação ......................................................................... 15 2.2 O Cinema e seus meios ................................................................................. 18 2.3 O Restauro e a Preservação no Cinema ...................................................... 23 2.4 Degradação e envelhecimento da película .................................................. 26 2.4.1 Os Tipos de Filme Cinematográfico ........................................................... 26 2.4.2 Os Tipos de Degradação Fílmica ............................................................... 29 2.4.3 A Preservação Fílmica ............................................................................... 33 3 O ORIGINAL E O RESTAURO .............................................................................. 37 3.1 O que é o Original? ........................................................................................ 37 3.2 Restauração .................................................................................................... 41 3.2.1 Restauração Cinematográfica .................................................................... 48 3.2.2 Estudo de Casos ........................................................................................ 55 4 DILEMAS DO INTOCÁVEL ................................................................................... 61 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................... 75 6 REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 78 9 1 INTRODUÇÃO A questão do restauro de objetos históricos sempre gerou discussões no meio acadêmico. Alguns, puristas, defendem a permanência de todo e qualquer defeito na obra, enquanto outros defendem a busca pela forma “original” com a sua restauração. O evento mais recente que gerou polêmica no meio artístico foi o caso da restauradora Cecília Gimenez com o “Ecce Homo”. O acontecido, após o cessar das piadas na mídia, levantou novamente uma reflexão sobre a relação do conceito do “original” com uma obra artística. O equivalente no cinema também acontece com frequência incômoda, como a tentativa de colorização de “Cidadão Kane” (Citizen Kane, EUA, 1941, dir. Orson Welles) por Ted Turner na década de 1980, ou a inserção de música no filme mudo “Metropolis” (Metropolis, Alemanha, 1927, dir. Fritz Lang) por Giorgio Moroder. Os casos geraram opiniões discrepantes, já que o “original” era – e ainda é – um conceito impalpável e subjetivo. Por um lado, Moroder foi criticado por alterar um patrimônio histórico; por outro, bem recebido por fazer sua própria interpretação do filme de Lang (ENTICKNAP, 2013). A falta de uma existência única de uma obra artística, como bem pontua Benjamin (1987), prejudica a percepção do “aqui e agora”, da sua aura como elemento histórico-artístico. Esse ponto de vista acaba se misturando ao conceito de restauro, provocando questionamentos sobre o “original” e sobre sua irrefutável “singularidade”. No cinema, o “aqui e agora” é distorcido, muito por conta de sua forma sui generis de ser produzido. O intérprete atua diante de uma câmera, e não de uma plateia. Portanto, o quê é o original? A película marcada pela luz ao entrar na objetiva, ou o filme exibido para a plateia após sua montagem? A aura do objeto, também discutida por Didi-Huberman (1998), é esvaziada já que não há uma definição de original bem delimitada, o que gera uma reflexão sobre essa qualidade intocável da película defendida pelos puristas. O processo de restauração de uma película tem como definição, segundo Usai (2000), uma ação direta visando a recuperação do filme ao seu estado mais próximo do original. Logo, o que restaria de “aura” no filme terminaria de se esvaziar. Existe um caráter interventivo da restauração. “Em função de sua natureza analógica, as 10 imagens em movimento acabam por sofrer inevitáveis perdas de qualidade quando de um processo de restauro” (BUARQUE, 2011, p. 12). Além de automaticamente gerar uma alteração estrutural na obra, essa ação interventiva que busca eliminar os danos e defeitos da película esbarra em outro impasse: a falta de delimitação do que é um defeito que deve ser “corrigido”. Se, para Read e Meyer (2000, apud BUARQUE, 2011), o filme já se distingue do original após uma exibição, ele é passível de correção? Em outro extremo, estão as correções mais evidentes, que não estavam nem mesmo presentes nos “originais”. Supostas melhorias como os casos de “Metropolis” e “Cidadão Kane”, que já ultrapassam a necessidade de preservação física da película, se aproximam à reinterpretação artística. Um dos principais desafios da preservação audiovisual, segundo Edmondson (2017), é essa questão ética de alteração. Diversas organizações, como a FIAF (Federação Internacional de Arquivos de Filmes), publicam códigos de ética que abordam tais condutas. Porém, mesmo buscando estabelecer limites bem definidos, o cinema ainda flutua na incerteza da arte, já que toda e qualquer alteração pode ser interpretada tanto como uma violação histórica quanto uma reinterpretação contemporânea artística. O progressivo aumento da quantidade de filmes restaurados a partir dos anos 1980, muito por conta da [...] introdução das tecnologias digitais na restauração audiovisual provocaram transformações substanciais e ofereceram possibilidades de intervenção tecnicamente inviáveis até cerca de uma década atrás, levantando questões de natureza ética que vêm fomentando intensos debates (BUTRUCE, 2016). Esse aumento substancial da discussão ética sobre o restauro tramita em meios filosóficos e políticos. A questão do “original” e sua aura inalcançável – ou inexistente – não se mostra próxima de um fim, já que sua subjetividade dificulta um consenso. Busche (2006) tenta aproximar o filme de uma obra artística qualquer, sendo a cópia diante do restaurador, o original. Já Brandi (2005, apud BUTRUCE, 2016) prefere abordar o filme a ser restaurado não como um “original”, mas como uma abra de acervo histórico e estético. Alguns defendem apenas a “conservação preventiva”1, outros uma restauração mais enfática e intrusiva. A discrepância de 1 “Procedimento através do qual são utilizados métodos preventivos de manutenção da integridade de um objeto, sem que haja uma atuação física direto no próprio objeto” (BUARQUE, 2011, p. 11 e 12). 11 opiniões sobre o tema a ser discutido neste trabalho é inegável, tornando-o relevante não só no meio audiovisual, mas em todo o meio artístico. Partindo desse pressuposto, este trabalho tem como tema central a questão filosófica da restauração e alteração histórica de uma película e suas implicações na preservação audiovisual. A preservação demanda restauração ou o restauro é uma forma de violação histórico-artística de uma obra audiovisual? Assim, o objetivo geral é discutir a filosofia da alteração de películas visando a restauração e questionar a necessidade do restauro na preservação audiovisual. E, dentro desse campo mais amplo, o trabalho busca analisar textos de cunho filosófico que discutem o restauro no meio artístico; discutir a importância histórica da preservação audiovisual; problematizar as alterações e remoções de imperfeições em películas durante o restauro das mesmas; discutir o caráter mutável da matéria e sua trajetória histórica, que pode dispensar ou não um restauro que elimine suas transformações em detrimento do tempo. A preservação e restauro de acervo fílmico é, atualmente, a única forma de prolongar a vida da película. Entretanto, esse processo esbarra em questões filosóficas referentes à mutabilidade da matéria. Um filme sempre irá sofrer as alterações do tempo devido a essa mutabilidade. A grande questão é se devemos interferir nesse processo natural e alterar a obra para que ela volte a ter características próximas às de quando foi produzida. Essa discussão permeia o meio não só da preservação audiovisual, como também o artístico em geral, notado no recente caso do restauro desastroso de “Ecce Homo”, original de Martínez. Por ser uma questão moral, puramente filosófica, o meio acadêmico dá espaço para uma discussão mais aprofundada, que pode alterar na prática os procedimentos de restauração de obras artísticas. A metodologia a ser aplicada no trabalho será estritamente qualitativa, já que se abstém de dados matemáticos e variáveis exatas calculáveis. O método escolhido permite a análise filosófica que o estudo demanda, embasando-se numa na análise de textos acadêmicos que têm viés moral e subjetivo. A pesquisa que faz uso do método qualitativo depende fundamentalmente de uma análise crítica do objeto de estudo, curvando-se às suas variáveis para melhor proveito dos dados (impalpáveis) colhidos (MARTINS, 2004). Trata-se, então, de uma forma que aplica-se harmoniosamente à um estudo filosófico como este. 12 A pesquisa se desenvolverá, a princípio, livre de postulações teóricas. Como bem descreve Martins (2017, p. 7) acerca do método qualitativo de pesquisa em trabalhos de cunho subjetivo, “o processo investigativo não parte de hipóteses definidas a priori (a serem comprovadasou refutadas pelas evidências encontradas) nem de uma linha teórica pré-determinada”. Partindo desse princípio, a análise dos textos não buscará uma verdade absoluta, mas uma discussão sobre o restauro e suas implicações no meio da preservação audiovisual. A análise e coleta dos dados será feita exclusivamente por revisão de literatura, buscando a interpretação e compreensão do contexto, já que a metodologia escolhida “baseia-se numa perspectiva epistemológica em que o conhecimento resulta de processos dinâmicos que fluem dialeticamente” (PENNA, 2004, p. 80), permitindo proposições relativas e instigadoras. 13 2 A TRAJETÓRIA DA ARTE NO TEMPO A arte e suas técnicas, que permitiram que o ser humano dominasse seu meio, iniciou-se no centro-leste da África há mais de dois milhões de anos. A emergência do Homo sapiens sapiens, então, firmou-se na história de forma física com os objetos e instrumentos criados pela espécie, garantindo a documentação de sua existência. A princípio, apenas ferramentas de uso cotidiano eram manufaturadas, visando simplesmente sua aplicabilidade prática. Mas, posteriormente, por volta de 30.000 AEC, a produção da humanidade ganhou outros ares. Objetos eram feitos com intuitos exclusivamente visuais ou ritualísticos, escapando da objetividade. Foi no princípio do homem que houve a aurora da arte (HONOUR; FLEMING, 1992). As pequenas estátuas de Willendorf, na Áustria, e de Brno, na Chéquia, fazem parte do primeiro resquício documentado de arte e marcam o início da era de dominância da humanidade. Após essa fagulha, movida exclusivamente pela estética e comunicação visual, houve o desenvolvimento em diversas áreas ao longo da evolução: pinturas rupestres; esculturas em diferentes materiais; cerâmica; obras arquitetônicas de escalas grandiosas; trabalhos em tecido; pinturas em tela; fotografias; filmes. A história da trajetória humana em sua expansão desenfreada é documentada por seu próprio ponto de vista, materializado em peças que contêm em si toda uma cultura e signos específicos. A obra artística transcende limitações circunstanciais, aprofundando nossa percepção sobre nós mesmos e sobre o outro, afiando a compreensão sobre as crenças e costumes alheios e próprios, ajudando a explorar e compreender nossa própria natureza. Todo o acervo artístico da humanidade, entretanto, é o único meio de documentação e registro histórico de culturas. E a história da arte, por conseguinte, é dependente da perseverança e sobrevivência de objetos físicos, sujeitos às intempéries e intervenções ao longo de suas existências. O conceito de perpetuação dos conhecimentos e culturas transmitidos pela arte é extremamente cultural. A abordagem e relação com o tempo e a transcendência em muito se diferem quanto ao Oriente e ao Ocidente. Enquanto diversas sociedades 14 ocidentais se debatem ante o degradar e o esquecimento, algumas culturas orientais regozijam da mutabilidade proporcionada pelo tempo. A transcendência do tempo se manifesta de forma diferente nas tradições artísticas do Ocidente e do Oriente. No Ocidente, obras e procedimentos artísticos são transmitidos no tempo por meio de textos, notações e outros recursos, o que não é comum no Oriente, segundo Edagawa, que citou como exemplo o conjunto de artes tradicionais japonesas chamado gei-do, onde não há registros e os novos praticantes aprendem a executá-las com quem as domina (BELLESA, 2016). É evidente o esforço pela perpetuação e, por isso, a arte ocidental é primordialmente feita visando a eternidade, tanto com técnicas conservadoras quanto pela magnitude da própria obra. O verniz e as proteções de uma pintura à óleo, por exemplo, ou mesmo a grandiosidade das pirâmides egípcias, que atravessam eras com afinco. Dessa forma, a própria estrutura do museu se propõe a combater tal esquecimento e perda. O ato de selecionar e colecionar objetos de significância artístico-cultural praticamente coincide com o surgimento da própria arte. Os conceitos de biblioteca, arquivo e museu foram herdados da Antiguidade. O desejo de acumular e transmitir a memória de uma geração para outra cresceu ao longo da história humana e é próprio dela (EDMONDSON, 2017, p.6). Centros de acúmulo de peças existem muito antes do conceito de museu e objetivam não só a apreciação das obras ali reunidas, mas sua preservação e perpetuação das memórias e crenças. Mas apenas no século XVI que a estrutura apoteótica da arte se estabeleceu como o conceito atual de museu (COSTA, 2006). A questão da degradação da obra de arte é, na maioria dos casos, reprimida e evitada ao máximo. Tal aspecto reflete ainda mais a relação de espelho que o homem tem com o objeto artístico-histórico. É, pois, no museu que se estabelece a profunda relação específica entre a obra e aquele que a experiencia. Ela, com sua fragilidade diante da potência erosiva do tempo, reflete a finitude do próprio homem. E é essa progressão natural que o homem busca reverter com a preservação artística (SCHEINER, 2015). 15 2.1 Restauração e Conservação O bem cultural, independente de seus aspectos físicos e constituintes, está sujeito à degradação natural ao longo do tempo. É quando, então, o ser humano decide interferir e evitar tal degradação que se estabelece a preservação. Entende-se por esse termo o conjunto de medidas que visam a conservação da peça artística ou histórica em detrimento da ação do tempo, bem como a implementação de medidas restauradoras para reverter os processos de degradação já estabelecidos. A primeira se trata de uma ação preventiva e menos incisiva, enquanto a última é mais direta e pontual (RIZZO, 2019). A noção de preservação artística é antiga. Na sociedade ocidental, a ideia de museu e coleção implica, desde seu surgimento, na conservação de bens considerados valiosos ou de alta relevância cultural. Na Idade Antiga, por volta do século III, Roma já possuía um código de posturas que visava a conservação e a preservação da cidade, com medidas punitivas para aqueles que depredassem as estruturas do império, assim como a alteração de fachadas e ornamentos das casas. Entretanto, à partir do momento que essas estruturas deixaram de ser adoradas ou reverenciadas, elas desapareceram como qualquer outra construção obsoleta. O Fórum Romano, por exemplo, só foi redescoberto no século XIX. A falta de apreço pelo antigo convivia com o saudosismo e o respeito pelas formas passadas só retornaram com maior intensidade no Renascimento (LARSON et al, 2017). Foi, portanto, nesse período que a restauração e conservação lograram na relação do europeu com a arte do passado. Não apenas as edificações, mas todas as demais formas de arte visual retomaram o protagonismo e provocaram uma nova abordagem em relação ao tempo. Na Itália, por exemplo, os pintores costumavam “renovar” as pinturas repintando-as, alterando-as e adaptando-as. Existem alguns documentos que comprovam trabalhos de restauro desde o séc. XIV. Os termos “refazer”, “refrescar” e “lavar” foram encontrados em contratos de trabalho de preservação de pinturas do sec. XV. Essa tarefa era atribuída aos artistas. Se uma obra fosse perdida ou estivesse muito danificada, era natural que fosse feita “cópia” dela (RIZZO, 2019). 16 Apesar da movimentação geral da Europa fosse em prol da conservação e “restauração”, diferentes abordagens surgiam em toda parte. Mais ao norte, nos Países Baixos, havia uma maior preocupação com a conservação devido à percepção da delicadeza da obra artística. O termo restauração começou a fazer parte do vocabulário corriqueiro no meio artístico por volta do século XVI, mas ainda com denotações de “refeitura” ou “melhoria”, buscando sempre deixar a obra mais bela e com aspecto de novo. O movimento Renascentista na sociedade acabou gerando um apreço pela artee, principalmente, pelo clássico. O crescimento de colecionadores de arte impulsionou o mercado, com certa prioridade nas obras antigas, muito mais valorizadas. Instituições museológicas foram formadas e a conservação se elevou a um patamar inédito de protagonismo no meio (RIZZO, 2019). O aspecto “melhorador” da restauração permaneceu por muito tempo no meio artístico e, gradativamente, foi ganhando críticos mais puristas. Eugene Delacroix foi um dos teóricos do restauro que pregava um apanhado extremamente purista diante de uma obra de arte. Sua postura rígida era justificada pela metodologia intrusiva aplicada pelos restauradores. Preferia manter a obra intocada, mantendo as degradações do tempo, a submetê-la à uma restauração. Acreditava que esses trabalhos apenas terminavam de arruinar as obras erodidas pelo tempo (SAITO, 1985). A teoria moderna da restauração passou por diversos momentos históricos de evolução, com abordagens específicas à cada era. Brandi (2005) descreve em seus trabalhos a restauração como qualquer intervenção feita num objeto oriundo de atividade humana a fim de devolver sua funcionalidade e eficiência. Dentro desse conceito, cada objeto recebe uma classificação básica: industrial ou obra de arte. A primeira classe se restringe à funcionalidade do objeto. A restauração atua a fim de trazer de volta a função degradada pelo tempo de um objeto manufaturado em larga escala ou de uso primariamente prático ou técnico. Dessa forma, podemos classificar como objeto industrial maquinário e ferramentas enferrujados ou em estado grave de degradação, por exemplo. Seu restauro não visa a estética, mas sua usabilidade. Não são levados em conta a visão do restaurador nem sua abordagem subjetiva, mas apenas a técnica. 17 Já a segunda classe apresenta um paradigma mais complexo. O objeto obra de arte, mesmo que tenha um objetivo funcional (como obras arquitetônicas), demanda uma abordagem diferente do industrial. Mesmo que a princípio seu restauro busque o reestabelecimento de sua funcionalidade, se adiciona uma faceta secundária ao objeto. A interação e alteração do restaurador, nesse caso, é um fator crítico no processo, já que ao restaurar uma obra de arte, sua principal função é alterada: a estética. A partir desse ponto, o objeto passa a ter dois autores, sendo o primeiro o original e o segundo o restaurador (BRANDI, 2005). Para Brandi, a relação entre a obra de arte e o restauro é indissolúvel. A própria existência do objeto num ambiente degradante e erosivo reafirma a presença futura de um restauro. Afinal, a obra de arte condiciona a restauração e não o contrário. Brandi ainda delimita dois princípios da restauração. O primeiro afirma que a restauração constitui o momento de reconhecimento da duplicidade estética e histórica da obra de arte, visando sua transmissão para o futuro. O segundo princípio afirma que [...] a restauração deve visar ao restabelecimento da unidade potencial da obra de arte, desde que isso seja possível sem cometer um falso artístico ou um falso histórico, e sem cancelar nenhum traço da passagem da obra de arte no tempo (BRANDI, 2005, p. 33). Com o passar do tempo, os conceitos e entendimentos da restauração e conservação artísticas foram gradativamente se adaptando às novas abordagens da arte. Segundo Saito (1985), o gosto estético em constante evolução contribuiu para uma mudança drástica metodológica e filosófica no restauro. Reflexões acerca do que deve ser restaurado e como restaurar tomaram o meio artístico, já que as percepções do passado haviam se tornado obsoletas. A estética de uma escultura grega, por exemplo, não possuía o apelo visual que hoje possui, pois a degradação do tempo converteu uma obra de cores intensas num monumento muito mais sóbrio. Dentro dessa perspectiva mais purista, Boito (2003) direciona seu prestígio para os conservadores que são capazes de perpetuar a beleza e garantir a existência de uma obra de arte através do tempo. Por outro lado, seu discurso é muito mais agressivo em relação aos restauradores, os quais acusa de serem “supérfluos e perigosos”. Boito traça uma linha que separa de forma categórica e contrastante a conservação da restauração, as colocando, por vezes, em extremos opostos. 18 A partir do século XVI, houve uma ânsia em restaurar e reconstruir, em especial as estátuas greco-romanas. Os reparos mais novos, bem como os mais medíocres, eram muito bem discerníveis do original, degradando a experiência estética que a obra proporcionava. Além da função estética, o papel histórico também era afetado (BOITO, 2003). A obra de arte, seja ela em qualquer estado, carrega consigo uma carga memorial que a sustenta no tempo. Obras com funções práticas e estéticas servem, como bem pontua Ruskin (2008), não apenas para seu uso cotidiano, mas para usa contemplação e invocação memorial. Assim, a arte conservada carrega consigo uma reflexão humana histórica, que permeia a cultura local e global. A partir do momento que há a degradação, há um acúmulo moral e estético do tempo. Assim como Saito, Ruskin aponta o envelhecimento como uma progressão natural e inevitável, fazendo com que o objeto artístico se adapte ao tempo em que se encontra. É importante ressaltar que o cerne artístico não deve ser perdido, mas o que é perecível não oferece escolhas. O senso de beleza é bastante subjetivo, sendo restrito ao tempo e ao espaço. Com esses novos entendimentos da arte, questões a respeito da restauração tornaram-se muito corriqueiras e igualmente, de forma restrita, alguns dos paradigmas da restauração – especialmente no meio cinematográfico. 2.2 O Cinema e seus meios O cinema surgiu numa era de protagonismo da imagem. A fotografia, que já tinha grande importância na sociedade, abriu as portas para novas tecnologias visuais. Por volta de 1895, o cinema, em fase embrionária, não possuía um código próprio e ainda se mesclava com outras artes performáticas e espetáculos populares. Surgiu, a princípio, como uma curiosidade de feiras de variedades e como novidade no meio científico. Os primeiros vinte anos do cinema forma marcados por mudanças e inovações constantes. As invenções dos irmãos Louis e Auguste Lumière e do americano 19 Thomas A. Edison alavancaram uma corrida tecnológica que lançou o cinema, de uma posição de espetáculo curioso e barato, para o auge industrial a partir de 1915. A invenção do laboratório de Edison – o quinetoscópio – era uma experiência individual, com um visor para que um único espectador pudesse assistir uma pequena tira de filme em looping. Já os irmãos Lumière fizeram uma das primeiras exibições públicas de um filme, estando atrás apenas do bioscópio dos irmãos Max e Emil Skladanowsky. Apesar de não terem sido os primeiros na corrida cinematográfica, os Lumière conseguiram tornar o invento famoso e lucrativo, garantindo a evolução mercadológica desse novo campo artístico. Com o fim do período de atrações e nickelodeons2, o cinema passou por um período de transição para uma construção mais complexa e detalhada, tanto em aspectos técnicos quanto no desenvolvimento do conteúdo. Histórias, personagens e a forma como eram filmados ganharam características formais e se aproximavam pouco a pouco do formato industrial. Até 1915, a montagem as técnicas narrativas e os principais diretores – como D. W. Griffith, Max Linder, Edwin Porter e Georges Meliès – embasaram o segundo grande passo do cinema: as vanguardas dos anos 1920 (MASCARELLO, 2013). O período inicial do cinema foi, de fato, muito movimentado. Após seu estabelecimento no campo das artes e entretenimento, passou a enfrentar dificuldades com a salvaguarda de suas produções. É sabido que a grande maioria dos filmes produzidos nas primeiras fases do cinema foi perdida ou destruída. O conceito de preservação e conservaçãoainda não havia atingido seu auge filosófico e nem alcançado as novas mídias, como o cinema. Para os produtores de filmes na época, após a exibição exaustiva da película, não havia motivo para guardá-la pra a posteridade, pois ainda não existia um mercado interessado. Pilhas de obras cinematográficas foram queimadas a fim de dar espaço para as novas produções ou mesmo servir de efeito especial em outros filmes. No início do cinema, era comum descartar as películas que já haviam sido exibidas. Elas já haviam atingido o público desejado, já tinham feito dinheiro, ninguém imaginava que essas películas poderiam ter outra serventia ou 2 Os nickelodeons surgiram em 1905, quando empresários passaram a investir em grandes espaços para exibirem exclusivamente pequenos filmes para um público de classe média mais diversificado. Eram locais rústicos e abafados, oferecendo a diversão mais barata do momento. O ingresso custava cinco centavos de dólar, ou um níquel, daí seu nome. Rapidamente os nickelodeons se expandiram no mercado, obrigando uma reorganização para atender a demanda crescente (MASCARELLO, 2013). 20 aplicação. Na maioria das vezes, elas eram vendidas a quilo, e acabavam virando pente, vassoura ou esmalte (PEREIRA, 2005, p. 24). Por muito tempo, o cinema era considerado um mero divertimento, que tinha início, meio e fim. A noção de preservação e conservação era ainda muito rudimentar e perigosa. Os materiais que compunham a película eram extremamente inflamáveis e podiam, quando armazenadas em condições precárias, tender à combustão espontânea. Além da mentalidade preservadora ausente, a salvaguarda do filme era complexa e cara. Entretanto, aos poucos o mercado colecionador foi se estabelecendo. O público não queria apenas ver os filmes, mas poder tê-los em casa. Muitas das obras sobreviveram à essa era graças aos colecionadores, que compravam as películas após o fim das sessões do filme, temendo nunca verem novamente suas histórias favoritas. Mas algumas produções escapavam das mãos desses pequenos grupos. Autores como Meliès e Charles Chaplin tinham como costume eliminar seus filmes que não passavam no crivo de qualidade. Destruíam aquelas obras que consideravam ruins e que nunca deveriam ser exibidas (PEREIRA, 2005). Por muitos anos, a película reinou no campo do Cinema. Ganhou som, inaugurando uma nova era narrativa, que dispensava os letreiros entre cenas; em seguida, alcançou as cores, muito além das pinturas rudimentares nas películas do início do século, abrindo espaço para novas possibilidades artísticas. Entretanto, o avanço tecnológico ultrapassou a materialidade do cinema e começou a dar lugar a novos e complexos suportes imateriais. O cinema digital, armazenando imagens e sons nos bits e bytes de aparatos computadorizados, desmaterializou a superfície que, por mais de um século, abrigou os fotogramas, constituindo-se na substância poética em que foram impressionadas as mais pregnantes sensações, visões e fantasias do século XX (MASCARELLO, 2013, p. 413). A introdução do digital no meio cinematográfico facilitou imensamente os processos industriais do cinema como entretenimento e produção em larga escala. Entretanto, a aura fílmica ainda persiste no imaginário coletivo. A materialidade do objeto película traz consigo uma sensação de impregnação humana e nostalgia. A facilidade da produção independente e barata trouxe uma democratização dessa arte, mas também a esvaziou como objeto de carga histórica com sua imaterialidade. A 21 sensação de presença de tangibilidade da película tornou-se uma parte facultativa no cinema moderno, quando antes do digital era uma experiência estética mandatória. A migração para meios mais compactos e menos analógicos converteu o cinema de película numa instituição quase arqueológica. A captação via filme fotográfico passou a ser uma escolha filosófica para os puristas, e uma escolha estética para os saudosistas. Essa relação íntima com a película e o que ela representa iniciou-se muito antes dos questionamentos da era digital. Foi a partir dos grupos de colecionadores de filmes que surgiu a iniciativa da preservação e restauração cinematográfica. Após a publicação de O nascimento da sétima arte, do italiano Ricciotto Canudo, o estabelecimento do cinema como arte permitiu que essa nova forma de expressão ganhasse o interesse do público. Já nos anos 1920, surgiam por toda a Europa cineclubes e associações em prol do cinema. O Cineclubismo se expandiu pelo mundo, muitos desses grupos se converteram em cinematecas e instituições de preservação, ajudando a criar uma mentalidade conservacionista no meio cinematográfico. Essa progressão se deu principalmente em países democráticos, onde a iniciativa popular movimentava não apenas a preservação, como a discussão e divulgação dos filmes. Cinéfilos e críticos se juntavam para discutir e refletir sobre as produções, forçando o estabelecimento de novas posturas por parte dos produtores de cinema. Um dos pioneiros da conservação cinematográfica foi Henri Langlois, que conseguiu estabelecer a Cinemateca Francesa. Sua influência internacional era tamanha que, quando foi afastado de seu cargo, inúmeros protestos no mundo todo demandavam sua restituição, induzindo até mesmo o cancelamento do Festival de Cannes daquele ano. Outra criação de Langlois, hoje a maior da classe, foi a FIAF (Federação Internacional de Arquivos de Filmes) em 1938. Com sede em Bruxelas, Bélgica, a instituição proporcionou um enorme salto no campo da preservação e restauração cinematográfica. Entre as atribuições da FIAF, destacam-se a normalização das técnicas criadas para a conservação e preservação de filmes, a facilitação da investigação histórica permitindo o livre intercâmbio entre cinematecas e o treinamento de mão de obra especializada para a difícil tarefa de preservação, restauração e divulgação do patrimônio audiovisual (PEREIRA, 2005, p. 33). 22 Já em estados totalitários, a conservação de obras artísticas era diretamente influenciada pelo ufanismo totalitário de suas respectivas nações. A ideia de busca por uma unidade nacional coesa e rica levou os principais regimes ditatoriais da Europa a investir na produção cultural e, consequentemente, em sua salvaguarda. Produções soviéticas e alemãs, por exemplo, tinham grande incentivo do governo em todos os estágios – de ideia e concepção à divulgação e preservação. Porém, da mesma forma que alguns diretores dos primórdios do cinema destruíram produções que consideravam irrelevantes ou degradantes, os regimes também trataram de desvincular e eliminar produções contraditórias às suas visões. O nazismo, por exemplo, optou por uma ação deletéria de produções “não arianas”, que batiam de frente com os ideais da “Alemanha acima de tudo”. O mesmo foi aplicado no stalinismo durante a crescente soviética. Os governos desses estados totalitários incentivavam produções cinematográficas diretamente com a aplicação de capital direto a fim de ampliar a propaganda nacional. Produtoras estatais eram comuns e garantiam a perpetuação da linguagem e das obras feitas naquele período histórico. A preservação seletiva do cinema não foi benéfica. Os danos à história do cinema com as atitudes ditatórias causaram perdas irreparáveis nos acervos de diversos países. Assim como na Europa fascista, ditaduras da América Latina – como a de Pinochet, no Chile – também influenciaram na memória audiovisual, apagando grande parte do acervo “danoso” ao governo. Da mesma forma, a ditadura militar brasileira barrou diversa obras primas e, por vezes, conseguiu apagar algumas para sempre. Nos últimos anos, entretanto, diversas iniciativas a fim de recuperar filmes históricos ganharam força. E, ironicamente, o digital que finda o império da película, salvaas imagens que essa produziu. Da mesma forma que o digital trouxe uma mudança metodológica no fazer e exibir filmes, trouxe consigo o fim das produções em película. Como alternativa mais barata e mais prática, a alternativa ao analógico acabou tornando o filme fotográfico ainda mais inacessível. A redução da demanda por filmes e projetores fez com que a produção desses materiais também caísse, acompanhando o mercado em mudança. Apenas os mais puristas optam pela película, um artigo de luxo. 23 Contudo, essa mesma nova tecnologia que enterra o analógico é amplamente utilizado na preservação, conservação e restauração. Não apenas no processo de manejo museológico da película, mas também em relação à redistribuição das histórias. Centenas de títulos esquecidos pelo público conseguem atingir novos espectadores com suas versões digitais. Festivais e cineclubes promovem ainda mais filmes que acabaram sendo deixados de lado no passado, agora em DVD e Blu-ray. Essa nova abordagem acabou criando um amplo mercado para essas relíquias. Assim, paradoxalmente, é graças à tecnologia digital que o passado do cinema ainda resiste e é consumido por um vasto público (PEREIRA, 2005). 2.3 O Restauro e a Preservação no Cinema Em 1995, foi realizada uma iniciativa internacional por parte da UNESCO a fim de preservar e conservar a memória mundial em diversos meios. O Programa Memória do Mundo “definiu diretrizes para a salvaguarda do patrimônio fílmico, já que a memória contida nos filmes é igualmente rica e importante para a história, comparada àquela existente em livros, arquivos fotográficos e peças de museus” (OLIVEIRA, 2016, p. 2). Contudo, a mentalidade de salvaguardar filmes surgiu muito antes do preconizado pela ONU em 1995. Como dito anteriormente, a ânsia de guardar filmes despontou no meio cinematográfico partindo dos colecionadores e cinéfilos que desejavam rever suas películas favoritas. Mas ainda antes da disseminação do filme fotográfico como suporte padrão, sequências fotográficas em papel (Paper Print Collection, ou coleção de cópias em papel) eram registradas na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, em Washington (Figura 1). O objetivo desse método não era apreciativo como o dos cinéfilos, mas estritamente comercial. Thomas Edison e outros produtores pioneiros americanos registravam tais imagens em papel para evitar que seus filmes fossem reproduzidos ilegalmente, uma prática muito comum na 24 época. Cerca de 5 mil desses rolos de papel com fotogramas foram registrados na Biblioteca do Congresso (MASCARELLO, 2013; PEREIRA, 2005). Figura 1 – Rolo de filme em papel fotográfico Fonte: WEBINSIDER, 2019. Outras instituições também recebiam materiais fotográficos e rolos de papel com fotogramas, como o Museu Britânico, em Londres. Entretanto, a atividade de salvaguarda de “meras gravuras” era alvo de pesadas críticas. O entendimento do cinema e da fotografia era apenas como um entretenimento barato e grande parte da população não cogitava a importância histórica de tais obras. Entre os arquivos pioneiros voltados especificamente para o cinema está o Netherlands Central Film Archive (Arquivo Central de Cinema da Holanda), que começou a funcionar em 1917, mas somente anos mais tarde se estabeleceriam diretrizes mais consistentes e melhor elaboradas (EDMONSON, 2017). A iniciativa hollywoodiana de preservação só ganhou mais volume com os primeiros filmes sonoros, por volta de 1927, novamente com intuitos econômicos e não históricos/artísticos. “Hollywood cuidou para que as matrizes de seus blockbusters fossem preservadas para que as novas gerações pudessem assisti-los como publico pagante” (EBERT, 2019). Mas foi com a criação dos cineclubes que a cruzada preservacionista se sedimentou no meio cinematográfico. Henri Langlois e suas contribuições arquivísticas e institucionais proporcionaram uma grande evolução no tratamento de películas no mundo todo. Museus passaram a dar mais atenção às obras 25 cinematográficas, criando sessões específicas em suas estruturas e incentivando grupos de estudo (teóricos e práticos) acerca da preservação, conservação e restauração fílmica. Logo que o filme passou a ser tratado não só como uma fonte de entretenimento, mas como um documento histórico, passou a ser foco de instituições de ensino. O material que os estúdios produziam era absorvido por essas organizações de estudo visando a salvaguarda e análise das películas. Umas das instituições que encabeçou e ainda lidera o meio da preservação no Continente Americano é a UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles). Por volta dos anos 1970, a universidade inaugurou um programa de preservação e restauração audiovisual, que viria a ser o maior do país desde então. Atualmente, como um centro de referência, exporta profissionais para todo o mundo. No Brasil, a questão da preservação cinematográfica apresenta os mesmos problemas técnicos de outros países. A Cinemateca Brasileira, sediada em São Paulo, é a principal instituição conservadora do país desde a década de 1950, contando com um dos maiores acervos da América Latina. Apesar do grande porte e importância, entraves financeiros e climáticos dificultam muito a atuação da Cinemateca, já que as películas apresentam maior degradação em ambientes quentes e úmidos (como toda a região do sudeste) e o baixo investimento não é capaz de conferir ao arquivo um ambiente seguro. A restauração da película cinematográfica caminhou em conjunto com a preservação, fazendo parte integrante do processo de conservação. Contudo, da mesma forma que a restauração em artes plásticas traz uma questão filosófica densa acerca da alteração, a restauração cinematográfica também trouxe tais dilemas. Diversas técnicas de restauro foram desenvolvidas e implementadas de acordo com as demandas da película com o viés filosófico do restaurador. Dessa forma, se fez necessário o estabelecimento de um código de ética para a classe profissional de arquivista audiovisual. Os impasses e reflexões filosóficas que tangem a redação e aplicação desse código serão discorridos mais adiante, pois tal discussão demanda um embasamento teórico sobre quais são os processos de degradação, métodos de restauro e, mais primariamente, em quê consiste um filme. 26 2.4 Degradação e envelhecimento da película Todo objeto, feito pelo homem ou não, está sujeito à degradação por ação natural do tempo e do espaço. O cinema em película é considerado uma arte extremamente efêmera justamente por causa de sua grande susceptibilidade ao dano do tempo. O filme fotográfico possui uma estrutura muito frágil que demanda cuidados específicos e conhecimentos aprofundados para que possa ser preservado adequadamente. Entretanto, a película não é um suporte de características e composições únicas. Diversos formatos e composições químicas foram utilizados ao longo dos anos de produção cinematográfica, sempre buscando uma tecnologia mais prática e de qualidade. Portanto, antes de adereçar os desafios proporcionados pela degradação do filme, é necessário compreender primeiro o quê compõe uma película cinematográfica e seus diferentes formatos. 2.4.1 Os Tipos de Filme Cinematográfico A composição de um filme cinematográfico se dá pela junção de, principalmente, duas estruturas: o suporte e a emulsão, que independem das dimensões da película em si (16mm, 35mm, 70mm etc.). Portanto, serão descritos aqui apenas as composições do suporte e da emulsão, já que a dimensão da imagem não é o principal foco deste estudo. Existem três principais tipos de suporte fílmico: o Nitrato de Celulose; o Acetato de Celulose; e o Poliéster. Nos primórdios do cinema, na última década do século XIX, o único material que conseguiu a popularidade no meio cinematográfico e se disseminoupor todos os continentes foi o Nitrato de Celulose. Sendo o material de melhor resistência e custo, o nitrato foi fabricado a partir de 1889 e só teve seu fim no início da década de 1950. Apesar de ter ganho grande popularidade no meio, tratava- se de um composto de alta periculosidade e extremamente instável. Por esse motivo, a salvaguarda de filmes de suporte de nitrato é de grande complexidade e seu destino, 27 no início do cinema, era a fogueira. Tratava-se de uma película muito inflamável e perigosa de se armazenar. Além do armazenamento, a própria exibição do filme de nitrato era um grande risco. Segundo Oliveira (2016), cerca de 180 pessoas morreram num incêndio causado pela simples exibição de um filme num projetor dos Lumière, na França. O bulbo luminoso que projetava as imagens da película superaqueceu o suporte e iniciou o incêndio fatal. Nos EUA não há registros de grandes fatalidades como essa, mas prejuízos financeiros para os envolvidos, como Thomas Edison. No Brasil, várias produtoras e a Cinemateca Brasileira já sofreram com os incêndios causados pelo nitrato, devido às condições de temperatura e umidade inadequadas para o armazenamento. Diversos originais brasileiros foram perdidos para sempre, já que muitos deles não possuíam cópias de segurança. É bastante estudado o motivo da escolha de um suporte tão perigoso como o nitrato. Especula-se sobre a qualidade e verossimilhança da imagem fotográfica na película de nitrato de celulose, que ainda hoje é apreciada por alguns puristas mais seletivos. O apreço pela imagem sobrepujando a segurança é bastante pertinente para a discussão sobre o restauro e suas alterações. Afinal, mesmo o cinema em seu estágio inicial (considerado um entretenimento barato), a estética era essencial (PEREIRA, 2005). Em 1935, surgiu uma alternativa muito mais segura e um pouco menos instável. A combinação do ácido acético com a celulose forma o composto esterificado Acetato de Celulose, que se espalhou rapidamente pelas produtoras de cinema. Sua primeira variante foi o diacetato que, posteriormente, deu lugar ao triacetato. Foi divulgado como um safety film (filme seguro), pois não era tão inflamável quanto o nitrato e não corria riscos de combustão espontânea. Curiosamente, a descoberta surgiu no meio médico, com os filmes de raios X. Para evitar acumular materiais muito perigosos dentro do hospital, pesquisadores desenvolveram o triacetato. O acetato foi, talvez, a primeira movimentação em direção à uma preservação facilitada. Os primeiros estúdios a adotarem o novo suporte foram a MGM (Metro- Goldwyn-Mayer), Disney e grandes cineastas como Charles Chaplin e Harold Lloyd. O acetato trazia a promessa de longevidade sem degradação das obras audiovisuais. Até 1939, com o fim quase definitivo do nitrato, o acetato já havia substituído seu antecessor totalmente no mercado (ADCOCK; VARLAMOFF; KREMP, 2004). 28 Dois anos mais tarde, o terceiro e último grande suporte de películas iniciou sua ascensão. O Tereftalato de polietileno, ou poliéster, trouxe uma alternativa mecanicamente muito mais resistente, durável e não inflamável para o suporte anterior, que já se demonstrava falho em suas promessas de durabilidade. Apesar de ter sido introduzido no mercado em 1941, só chegou ao Brasil depois da década de 1990 (EBERT, 2019). O acetato manteve-se ainda hegemônico no mercado até a migração para o digital, sendo o suporte de maior quantidade nos centros de preservação do mundo todo. Atualmente, o poliéster é o suporte indicado para películas destinadas a arquivos fílmicos permanentes. A camada de emulsão, ou meio ligante, é a que contém as substâncias reagentes que formam a imagem fotográfica sobre o suporte. Dentre os tipos de emulsões fotográficas estão a albumina, o colódio (solução de nitrocelulose) e, principalmente, a gelatina, que têm a função de aderir ao suporte os componentes químicos específicos (EDUSP, 2005). No filme preto e branco, a composição da película é de no mínimo três camadas de emulsão. Essa é formada, em geral, por gelatina e haleto de prata (AgBr). Os cristais de prata que compõem essa substância são extremamente sensíveis à estímulos luminosos, daí a propriedade fotográfica da emulsão (OLIVEIRA, 2016). Já no filme colorido, o suporte “carrega” seis ou mais camadas de emulsão. Assim como a emulsão em preto e branco, é composta por gelatina e sais de prata, diferenciando apenas na presença de acoplantes de cores. Esses acoplantes são diversos pigmentos orgânicos coloridos que atuam em conjunto com o haleto de prata. São, normalmente, distribuídos em três camadas superpostas, que são subdivididas em camadas de diferentes sensibilidades. Durante o processo de revelação, a imagem gerada pelo haleto de prata é eliminada, restando somente uma imagem gerada pelos pigmentos (cromógena) (MNEMOCINE, 2019). O filme, após sensibilizado, passa pelo processo laboratorial de revelação, que inclui o processamento fotográfico que revela a imagem, estabilização e fixação da mesma. Existem dois tipos de películas, que se comportam de maneiras distintas no processo de revelação. O primeiro, mais comum no meio cinematográfico é o negativo, onde cores e contrastes são invertidos. São principalmente utilizados por sua grande capacidade de cópia em alta qualidade e têm aplicações mais profissionais. Já o positivo, ou filme reversível ou diapositivo, passa por um outro tipo 29 de ação química reveladora. Assim, o filme sai do processamento laboratorial pronto para exibição, sem a necessidade de cópias ou ampliação. Trata-se de um processo mais rápido, de menor qualidade de duplicação, e mais amador, como filmes caseiros e slides comuns nas décadas de 1970 e 1980. 2.4.2 Os Tipos de Degradação Fílmica A película cinematográfica, em suas diversas formas, é extremamente delicada, sendo considerada a mais frágil de todas as mídias (como telas e livros). Inevitavelmente, sofre alterações químicas e físicas ao longo dos anos, demandando uma atenção especializada em sua preservação e restauração. Devido às suas diferentes composições, especialmente em relação ao suporte, apresenta processos de degradação distintos. Como discorrido anteriormente, o material pioneiro do filme cinematográfico foi o que mais apresentou risco, tanto para o próprio filme quanto para os circundantes. A película a base de nitrato é um material extremamente instável, não precisando de um gatilho químico ou físico para iniciar sua degradação. Esse suporte não depende do ar para desencadear uma oxidação intensa, já que seus próprios componentes químicos agem como catalizadores para tal reação. Essa instabilidade natural pode levar, como citado acima, à combustão espontânea. Ao ser fabricado, o filme de nitrato já apresenta uma temperatura de combustão baixa – cerca de 130ºC – sem passar por nenhum processo de degradação natural. Com o passar do tempo, a oxidação consegue atingir níveis alarmantes, baixando a temperatura de combustão para 40ºC, que pode ser facilmente atingida em países tropicais como o Brasil. Devido à sua característica química instável, a combustão, após iniciada, se espalha quase de forma explosiva, não podendo ser controlada por água, espuma ou areia (pois seu processo de combustão gera oxigênio como subproduto). O filme de nitrato era, provavelmente, a substância de uso cotidiana de maior perigo, excluindo apenas o combustível líquido (ENTICKNAP, 2013). 30 Além dos riscos incendiários do nitrato, ele também apresenta uma degradação mais branda, quando não aquecido além dos níveis críticos. O contato com a umidade desencadeia uma reação entre os componentes da emulsão com os do suporte. A decomposição da película de nitrato ocorre da seguinte maneira: a nitrocelulose desprende gases nitrosos que, juntamente à água ou à umidade, formam ácidonitroso (HNO2) e ácido nítrico (HNO3). Tais ácidos destroem a imagem de prata e imagens coloridas contidas na emulsão, assim como a hidrólise da gelatina, que forma a emulsão, também leva à destruição da própria emulsão (OLIVEIRA, 2016, p. 8) Assim, a ação dos ácidos inicia um desbotamento gradativo da imagem, que ganha uma coloração castanha. Em seguida, a emulsão fica pegajosa, amolece e apresenta formações espumosas (processo de liquefação ou hidrólise do filme). Após essa etapa, o filme endurece numa massa compacta e empedrada, evoluindo, em seguida para um material quebradiço e arenoso, resultando apenas num pó castanho e um odor acre. Todos esses estágios podem surgir concomitantemente num mesmo rolo de filme. Figura 2 – Película de nitrato de celulose em estado avançado de degradação Fonte: EBERT, 2019 A ação química do ácido nítrico durante o processo de manufatura não se interrompe após a conclusão desse. Ela continua a atacar estruturas poliméricas do suporte, provocando encolhimento e dissolução da emulsão. Dessa forma, a degradação pode se iniciar também sem uma ação direta da umidade, mas apenas por ação natural dos químicos componentes na película. O resultado final do processo (o pó marrom) é comparável à pólvora quanto à sua volatilidade. Já os filmes de acetato possuem uma maior estabilidade que os de nitrato. Em contraste com seu antecessor, esse suporte apresenta uma alta temperatura de 31 combustão (acima de 400ºC), equivalente ao papel comum. Contudo, mesmo sendo considerado um suporte seguro, é extremamente sensível à umidade. Quando exposto a um nível de umidade mais alto que o ideal, o filme inicia um lento processo de degradação e deformação, ocasionando o encolhimento e a resistência à tração. Porém, caso a umidade ultrapasse os 60%, é iniciado um processo de degradação muito mais complexo, comumente conhecido como síndrome do vinagre (devido ao forte odor do ácido acético). Com a exposição dos rolos à umidade, calor ou agentes químicos, há uma proliferação de fungos que desencadeiam reações químicas, resultando no rompimento das cadeias de acetatos e liberando acido acético. “Nesse processo são observados 4 estágios sucessivos: 1º- apenas o odor, 2º- desplastificação, 3º- cristalização e 4º- liquefação ou empedramento” (EBERT, 2019). Figura 3 – Película de acetato de celulose com síndrome do vinagre Fonte: EBERT, 2019 É possível que também haja uma interação espontânea, sem ação externa (com umidade ou calor). Nesse caso, trata-se de um mecanismo que envolve a desacetilação hidrolítica catalisada pelo ácido e a degradação da estrutura do polímero. Em outras palavras, o ácido utilizado na fabricação do suporte ataca outros componentes da mesma forma que no nitrato, causando a quebra geral de sua estrutura molecular (ENTICKNAP, 2013). Em relação à degradação comum em ambos os suportes, é notável o encolhimento como um dos principais desafios. Com o encolhimento do filme, os orifícios de encaixe não se prendem ao mecanismo denteado que faz o filme rodar no projetor, causando instabilidade da imagem ou até mesmo impossibilitando sua projeção. 32 Além dos danos específicos desses dois suportes, há ainda a degradação física da película. Nesses casos, o dano é distinto do químico, sendo, na maioria das vezes, por iniciativa humana. O dano físico pode ser subdividido em abrasão (arranhões), emendas com falha, danos na perfuração, danos na borda, corpos e agentes estranhos no suporte ou na superfície da emulsão. A abrasão pode ser dividida em dois tipos: no suporte e na emulsão. O primeiro caso é um dano mais simples e de mais fácil reversibilidade. Já o segundo é mais complexo pois há uma perda de conteúdo devido à raspagem da camada de prata que contém a imagem. Esse tipo de dano físico é comum em casos de mau manuseio do filme, má preservação ou mecanismos falhos no processamento da película (e.g. scanners e projetores). Um outro tipo de dano físico é o desbotamento de cores, sejam elas de origem fotográfica ou manual (não fotográfica). Os filmes coloridos existem desde o início do cinema, nos primórdios do século XX. Entretanto a técnica aplicada era diferente do que posteriormente foi padronizado. Diferente da “era colorida”, em que a emulsão possuía acoplantes de cores (ou filtros e múltiplas películas, como no caso da Technicolor3), era comum a aplicação de tintas especiais já no filme após a revelação. Mulheres, normalmente, pintavam à mão cada fotograma com os corantes, dando a cor atrativa para aquele momento da história do cinema. Posteriormente, a técnica de tingimento evoluiu, passando de pinturas à pincel para imersões em fluidos corantes (MASCARELLO, 2013; ENTICKNAP, 2013). Os sistemas de cor não fotográfica, geralmente, não resistem bem ao tempo e desbotam com muita facilidade, deixando pouca informação do corante na película. Assim como tinturas em outros objetos, como esculturas e construções antigas, os 3 A Technicolor é uma empresa fundada em 1893 que desenvolveu um sistema de três filmes por volta de 1934 buscando uma técnica mais fácil e mais precisa de colorização fotográfica no cinema. Inicialmente, o sistema utilizava apenas combinações de duas cores (vermelho e verde). Posteriormente, introduziram no mercado as três cores que proporcionavam uma qualidade chamativa de imagem: o ciano, o magenta e o amarelo. Tratava-se de três negativos expostos aos três diferentes espectros de cor, que quando combinados formavam a imagem multicolorida. Os três negativos passavam pela câmera especial, que continha um prisma para subdividir a luz captada pela lente em três espectros para as respectivas películas. Portanto, um filme Technicolor deveria passar por três processamentos em laboratório antes de ser transferido para a cópia positiva de exibição. Anos mais tarde, foi desenvolvido um filme único com três camadas de cores (vermelho, verde e azul), mas o material ainda era custoso. Por se tratar de uma tecnologia cara, muitos cineastas optaram por migrar para alternativas mais baratas, como a Eastmancolor (produzida pela Kodak). Uma característica específica da Technicolor era a presença marcante dos vermelhos (HIGGINS, 2000). 33 corantes tendem a evanescer com a exposição à luz ambiente e, no caso dos filmes, à luz do projetor. Idealmente, para que uma cor dure indefinidamente, ela deveria ter o mínimo de exposição à luz, o que no caso do cinema é impossível. A energia luminosa pode desestabilizar a estrutura eletrônica dos corantes, mudando assim a sua configuração original. O resultado, na prática, é o que se costuma chamar de “descoramento”, ou perda da cor ou do tom de cor, para outra cor diferente ou esmaecida (WEBINSIDER, 2019). Diferentemente do processo anterior, as cores originadas de processos fotográficos também sofrem desbotamento pela luz, mas uma grande parte do processo de perda de informação é a decomposição química dos elementos coloridos impregnados no filme. É evidente que em ambos os casos há o risco de desbotamento devido aos diversos tipos de degradação química citados anteriormente, mas notou- se um pior envelhecimento em muitos filmes coloridos por processos fotográficos (salvo aqueles produzidos com tecnologia Technicolor). Inevitavelmente, ao se projetar um filme, haverá um desgaste pelo próprio ato de passar a película pelo projetor – mesmo que seja feito por um projecionista experiente numa máquina muito bem conservada. A luz emitida gera desgaste, não só pelo calor do bulbo, mas por si só, provocando o desbotamento das imagens e cores. Há ainda o desgaste mecânico pela tração do filme, orifícios rompidos, quebras de emendas, etc. Na prática, a projeção em si tem mais chances de degradar um filme que o tempo. Segundo Enticknap (2013), estima-se que uma película de nitratotem cerca de 644 projeções antes de apresentar uma falha mecânica. 2.4.3 A Preservação Fílmica Para que a vida de uma película cinematográfica possa ser estendida ao máximo possível, são necessárias medidas que previnam seu desgaste e decomposição química. Como dito anteriormente, a preservação de obras cinematográficas é extremamente complexa devido à instabilidade de seus componentes. 34 Quando se fala em preservação fílmica, é importante ressaltar que se trata de um conjunto de ações que buscam conservar e divulgar (com a disponibilidade de acesso) as obras em questão. A primeira etapa desse processo é a conservação, que, segundo a UNESCO (2002, p. 19), é “o conjunto de medidas precisas para evitar uma deterioração ulterior do documento original e que requerem uma intervenção técnica mínima”. Segundo Boock-Jensen (2010), a preservação audiovisual se dá em quatro principais etapas, indispensáveis em qualquer instituição arquivística: admissão do material com sua inspeção detalhada; armazenamento; cópia; e acesso ao documento fílmico. A inspeção da película se inicia com a identificação do tipo de suporte, tamanho milimétrico do quadro (e.g. 35mm, 16mm, etc.) e o ano de produção. Em seguida, deve-se atentar para os danos claramente estabelecidos na película, com uma observação geral, como marcas de negligência e qualquer outro tipo de dano químico. Após a análise geral, uma varredura mais minuciosa deverá indicar o estado exato de deterioração, os danos presentes na película e perdas de informação (como cores e contraste). A etapa seguinte à inspeção é o armazenamento. Para tal ação preservativa, é necessário um bom projeto de ação, que leve em conta fatores essenciais para a salvaguarda do arquivo, tais como o ambiente, o tipo de material a ser conservado e, principalmente, as técnicas adequadas para seu manuseio e processamento. Todos os arquivos devem ser computados e categorizados de forma coerente, disponibilizando ao preservador os dados necessários para a identificação adequada do filme e suas características (em relação tanto ao seu conteúdo quanto ao seu estado de conservação). Outros elementos externos, como a luz e contaminantes atmosféricos devem ser controlados, já que todo e qualquer tipo de interferência com a película pode causar desbotamento, perda de contraste e desencadear processos químicos indesejados. O manuseio adequado, com luvas específicas para películas cinematográficas, também deve ser atentado, já que, como discorrido anteriormente, o dano físico é em sua maioria causado por erro humano. Por ser um material sensível, elementos perfuro-cortantes ou que podem provocar arranhões devem ser afastados do ambiente de manuseio da película. 35 Cada tipo de película demanda um ambiente adequado para prolongar sua vida, evitando problemas graves como combustões espontâneas e a síndrome do vinagre. Por isso, os ambientes acondicionados e, até mesmo, a localização geográfica do arquivo influenciam diretamente na preservação de um filme. Segundo Oliveira (2016), é estimado que um filme colorido, em condições climáticas semelhantes às do Brasil, não manteria seu cromatismo por mais de cinco anos. Conforme a Tabela 1, cada película deve ser armazenada numa temperatura e umidade específicas para que seus componentes não iniciem um processo grave de deterioração. Também é importante frisar que os filmes já em processos de degradação química, como a Síndrome do Vinagre, devem ser guardados em ambientes separados a fim de evitar contágio pela emissão de gases. Tabela 1 – Parâmetros para temperatura e umidade na guarda de filmes Tipo de Película Temperatura indicada Umidade relativa indicada arquivo de matrizes acetato cor -5ºC 25% arquivo de matrizes acetato P&B 12ºC 25% arquivo de matrizes poliéster cor -5ºC 25% arquivo de matrizes poliéster P&B 12ºC 25% arquivo de matrizes acetato cor (com síndrome do vinagre ativa) -10ºC 35% arquivo de matrizes acetato P&B (com síndrome do vinagre ativa) -5ºC 35% arquivo de matrizes nitrato (P&B) 0ºC 30% arquivo de cópias acetato 15ºC 35% arquivo de cópias nitrato 12ºC 35% Fonte: Elaborada pelo autor com base em Ebert, 2019. Mesmo com todos esses cuidados de armazenamento e manuseio, ainda é possível que haja degradação. Por esse motivo, além do extremo cuidado com o filme original, deve-se fazer uma cópia de segurança para garantir a perpetuação do conteúdo em uma mídia semelhante. Atualmente, são realizadas cópias em poliéster, devido à sua resistência e estabilidade química. É importante atentar que há casos mais delicados, onde há um único arquivo original, possivelmente em mau estado, que devem ser abordados de forma diferente. A cópia, nesse caso, é uma alternativa inviável, já que não é indicado submeter o original à um procedimento que possa levá-lo a um dano irreversível ou até mesmo 36 sua destruição. A transferência para outras mídias e suportes, além de garantir a perpetuação do conteúdo, garante que ele não seja perdido para a obsolescência tecnológica. Entretanto, mesmo que haja a obsolescência, o original deve ser guardado devido ao seu acúmulo tanto de informação visual quando valor histórico (OLIVEIRA, 2016). A última etapa da preservação cinematográfica é o acesso ao documento fílmico. Para que o conteúdo seja adequadamente disponibilizado para o público, são necessárias medidas preventivas, para que em nenhum momento o original esteja em risco. Por muito tempo, o acesso à um arquivo fílmico se dava por disponibilidade de cópias físicas – em acetato ou, preferencialmente, em poliéster. Atualmente, o meio digital tem se mostrado muito mais barato e mais eficiente na distribuição e divulgação das obras cinematográficas, visto que se trata de um formato virtual e transmissível em uma variedade de mídias e, até mesmo, na nuvem (on-line). O manejo em conjunto de mídias analógicas e digitais garante um acesso efetivo para diversos fins, tanto para estudo estético quanto pesquisa histórica (BOOCK-JENSEN, 2010). 37 3 O ORIGINAL E O RESTAURO A restauração é uma área da arte que sempre causou discussões no meio artístico. Por se tratar de algo extremamente subjetivo e variado, uma obra artística apresenta uma infinidade de abordagens, tanto quanto interpretativas quanto técnicas. Como discutido anteriormente, o objeto artístico, assim como qualquer outro, está diretamente associado ao tempo e seus efeitos, afirmando-se apenas em uma certeza: a degradação. Por esse motivo, desenvolveu-se técnicas restauradoras a fim de trazer de volta a potência sublime do belo artístico e resgatar os efeitos de seus primeiros anos. Entretanto, para tal tarefa, são necessários conceitos e entendimentos filosóficos do que é buscado, precisamente, pelos restauradores. A definição desse objetivo central é o “original”. Apesar de ser definido de forma simples, o original esconde um abismo de questionamentos que devem ser abordados antes de se discutir a restauração em si e seus entraves, principalmente no meio cinematográfico. 3.1 O que é o Original? A definição do conceito de “original” é complexa. Trata-se de uma aplicação mais palpável da “autenticidade” do objeto artístico. Uma pintura, por exemplo, pode ser reproduzida por outro pintor, mas nunca terá o elemento essencial da versão original: o aqui e agora. Segundo Walter Benjamin (1994), é nessa existência única que a obra de arte se compõe com sua história. Essa história é não somente o percurso do objeto no tempo, mas suas relações sociais e de tradição, os quais traçam uma linha narrativa rica, desde sua criação até o presente, sempre idêntico a si mesmo. A principal característica do original, segundo Benjamin, é a “aura”. Ela é presente no objeto artístico dotado de unicidade e autenticidade, portanto um originalnão copiável. É também, a inserção no espaço que se encontra. 38 Uma antiga estátua de Vênus, por exemplo, estava inscrita numa certa tradição entre os gregos, que faziam dela um objeto de culto, e em outra tradição na Idade Média, quando os doutores da Igreja viam nela um ídolo malfazejo. O que era comum às duas tradições, contudo, era a unicidade da obra ou, em outras palavras, a aura. A forma mais primitiva de inserção da obra de arte no contexto da tradição se exprimia no culto (BENJAMIN, 1994, p. 171). A obra artística nunca se desprende de um significado, seja ele o original ou um adquirido ao longo dos anos. Essa capacidade única de se perpetuar em sua posição ritualística, política ou social é o que define um objeto aurático. Segundo Benjamin, a condição aurática da arte nunca se destaca de sua função ritualística. Assim, o único e real valor da arte sempre possui um fundamento teológico, desde formas mais tradicionais de culto religioso até as mais seculares e profanas do culto ao Belo. Além desse valor de culto, a arte autêntica do original também acumula um valor de eternidade. Técnicas irreprodutíveis acabam caminhando para o inacabável, já que buscam uma perpetuação intrínseca do artista e do objeto. E são esses valores eternos que são os que dotam o objeto artístico de aura e unicidade e, portanto, o caracterizam como “original”. A obra de arte – e isso inclui todas as suas formas – tem a notável capacidade de transcender a mortalidade humana, de ser produção de história e de ser ressignificada e reapropriada para cada época e cada fruidor. Independentemente do julgamento do que torna algo uma obra de arte, o fato de esta ter múltiplas temporalidades e de ser capaz de se ressignificar a torna dinâmica, e, portanto, merecedora de julgamentos constantemente revisados – principalmente no que tange à sua conservação e restauro (ALOISE, 2015, p. 2). Contudo, como bem descrito por Benjamin, o presente momento difere-se profundamente com os momentos passados da arte. Atualmente, vive-se a era da reprodutibilidade técnica, o que dificulta – ou até mesmo impossibilita – a existência de um objeto dotado de aura. Portanto, a questão do original, antes mais facilmente definida, torna-se complexa demais para uma conceituação breve. A arte sempre foi reproduzida, como um pintor emulando um outro em suas traçadas a fim de copiar um quadro. Porém, a introdução de uma ferramenta mecânica e sem humanidade nesse processo mudou a perspectiva da cópia e do original. Ao desumanizar a arte, ela perde sua unicidade e, com isso, torna-se apenas um objeto de produção em massa, desprovido de aura. 39 Esse movimento no eixo da arte se deve a partir do momento em que a fotografia tomou um protagonismo no mundo, livrando da pintura a busca pela verossimilhança, mas condenando a arte à reprodutibilidade. E, logicamente, o cinema é parte desse movimento, criticado por Benjamin em seus textos acerca da aura de um objeto artístico (JÚNIOR, 2016). Em uma pesada crítica ao cinema, Benjamin descarta sua possibilidade de conteúdo artístico, sugerindo que “na melhor das hipóteses”, o filme se tornaria uma obra de arte durante a montagem. Demonstrando um completo desprezo pelo “mecanizado”, ele aponta o processo mecânico e repetitivo do cinema como o elemento que o converte em um objeto não aurático, antes mesmo de ser submetido à cópia. Mas é inegável que o principal foco das críticas de Benjamin ao cinema se dava pelo fato de sua reprodutibilidade técnica esvaziar a imagem, tornando-a um objeto de produção de massa. Contudo, com a evolução do cinema e seus novos paradigmas, houve uma mudança de perspectiva em relação aos filmes antes criticados por Benjamin. Por sua característica extremamente instável, as películas se degradaram ao ponto de tornarem-se únicas. A destruição de inúmeras cópias levou o cinema antigo a alcançar o que Benjamin não acreditava ser do cinema: o “valor de culto”, diante de uma cópia única de uma película. “Embora essa ‘cópia única’ possa ser reproduzida (desde que esteja em condições para tal), ela – no período em que inexistem outras cópias – ganha raridade e unicidade e, portanto, aura” (JÚNIOR, 2016, p. 145). Em contraponto com Walter Benjamin, outros pensadores e realizadores do meio cinematográfico entendem o cinema como uma obra de conexão social e universal com o espectador e seu mundo, de forma idêntica a qualquer outra vertente artística. Segundo Tarkovski4 (2010), o objeto artístico nada mais é que um catalisador de percepções do espiritual e do universal, e o cinema é um dos meios mais ricos para alcançar tal objetivo imersivo. Assim, a reprodutibilidade não traz um aspecto tão contundente à aura do objeto, mas apenas amplia seu alcance de interação. O 4 Andrei Tarkovski foi um cineasta russo que ganhou reconhecimento mundial logo que saiu da faculdade de cinema de Moscou. Dirigiu um total de sete longa metragens e se estabeleceu na história do cinema mundial como um dos grandes nomes da sétima arte. Além de seus filmes, Tarkovski produziu estudos acerca do cinema e suas filosofias, discorrendo sobre o papel da arte e do cinema, refletindo sobre seus signos e as relações com o universo – principalmente com o tempo. Em seu livro, no qual compilou textos e estudos, discutiu, dentre outros assuntos mais técnicos, a potência aurática do filme e sua capacidade de interação com o expectador, bem como os efeitos do tempo num âmbito mais psicológico (TEJEDA, 2010; RATTON et al, 2017). 40 original, nesse caso, passa a ser o ideal contido no filme e não seus suportes. A película é apenas um meio veicular de abstrações artísticas, que em nada interfere com sua autenticidade ou sua originalidade. Com tal interpretação do original, é possível entender que a forma do filme – sua narrativa, sua estética, sua dinâmica de ações e escolhas oriundas do artista/diretor – é o que o caracteriza como original e não o simples objeto do filme. De forma análoga à Benjamin, Tarkovski associa a arte à “uma experiência puramente religiosa”, remetendo ao “valor de culto”. O grande dilema artístico para ele é a moderna cultura de massas, não no sentido da reprodutibilidade técnica, mas em relação à produção de um original voltado estritamente para o consumidor, visando o lucro. A “aura” proposta por Tarkovski nada mais é que a sinceridade do artista impressa em sua obra, independente de quantas cópias foram feitas. E a imagem artística só é verdadeira (ou dotada de aura) quando é inesgotável e ilimitada em seu significado. A definição de “original” no meio cinematográfico é tão controversa quanto as opiniões pungentes de Walter Benjamin. Deixando de lado a característica inevitável de reprodutibilidade técnica (que toma do cinema sua aura, segundo Benjamin), a suposta falta de autenticidade das imagens cinematográficas ainda abre espaço para discussões. A relativização do que seria uma cópia e o que seria o original acaba mesclando as duas definições. O processo natural do cinema leva, obrigatoriamente, à cópia e à reprodução, desde a filmagem até a distribuição da película. A montagem e o tratamento do filme deturpam o que seria definitivamente categorizado como original, deixando um campo de subjetividade aberto às especulações (BUARQUE, 2011). Segundo Usai (2000), determinados artefatos fílmicos (negativos, cópia de difusão, máster, internegativos) são dotados de uma carga histórica, sendo específica desses objetos e idênticos apenas a si mesmos. Cada um desses objetos deve ser tratado como um original, já que é único em sua composição e rico em evidência temporal e histórica. De forma semelhante, Busche (2006) também valoriza os objetos fílmicos de característica histórica, pontuando que podem ser abrangidos pela teoria de Benjamin, já que o negativo
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