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Alfabetização e Letramento W B A 0 0 4 3 _ v1 .3 2/158 Alfabetização e Letramento Autora: Lucimara Cristina de Paula Como citar este documento: PAULA, Lucimara Cristina de. Alfabetização e Letramento. Valinhos, 2015. Sumário Apresentação da Disciplina 03 Unidade 1: Breve Histórico da Alfabetização 05 Unidade 2: A Psicogênese da Língua Escrita 47 Unidade 3: Conceitos e Práticas de Letramento 88 Unidade 4: Implicações Pedagógicas dos Estudos sobre Alfabetização e Letramento para o Planejamento do Ensino 122 2/158 3/158 Apresentação da Disciplina Algumas questões se colocam aos professores no início do processo de ensino da leitura e da escrita: como alfabetizar? Por onde começar o processo de alfabetização? Pelos nomes das letras, pelos seus sons, pelas sílabas, por palavras- chaves, por sentenças, por histórias? Durante os estudos da disciplina Alfabetização e Letramento, você terá a oportunidade de refletir sobre estas questões, conhecendo um pouco sobre a trajetória histórica das concepções e procedimentos que subsidiaram a prática pedagógica dos professores alfabetizadores, no decorrer dos tempos e na sociedade brasileira. Também poderá compreender por que estas concepções e procedimentos ainda oferecem bases para a ação pedagógica dos educadores. A disciplina Alfabetização e Letramento tem como objetivos a ampliação de conhecimentos sobre este campo de estudos e a adoção crítica e reflexiva de práticas pedagógicas que sirvam à melhoria da qualidade dos processos de ensino e aprendizagem da linguagem escrita nas escolas. Por isso, apresenta-se este material de estudos e discussões, estabelecendo como conteúdos: Unidade 1: Breve histórico da alfabetização. Trajetória histórica da aprendizagem da leitura e da escrita, no decorrer da história da humanidade; do aparecimento das cartilhas no contexto português e a história dos métodos de alfabetização no Brasil. Esta aula visa 4/158 à compreensão das razões pelas quais algumas concepções sobre alfabetização persistem até os dias atuais, nas práticas pedagógicas, bem como a forma como se organizavam os procedimentos didáticos de ensino da língua, em diferentes épocas. Unidade 2: A psicogênese da língua escrita. Fundamentos teóricos que subsidiam as propostas de alfabetização no Brasil, desde a década de 1980, após a divulgação dos resultados das pesquisas de Emília Ferreiro. Essa aula objetiva a compreensão dos pressupostos que embasam as práticas de alfabetização na atualidade, esclarecendo como a criança desenvolve conhecimentos sobre a linguagem escrita. Unidade 3: Conceitos e práticas de letramento. Concepções sobre o termo letramento, adotado nas pesquisas, na mídia e nos meios acadêmicos e educacionais desde a década de 1980. Também serão realizados estudos sobre o que significa “alfabetizar letrando”. Unidade 4: Implicações pedagógicas dos estudos sobre alfabetização e letramento para o planejamento do ensino. O que se propõe que os alunos aprendam, e o que cabe aos professores ensinar, durante o processo de alfabetização, mediante as concepções e propostas pedagógicas vigentes no campo do ensino e da aprendizagem da leitura e da escrita, desde os anos 1980, nos sistemas educacionais. Que você tenha um ótimo aproveitamento dos estudos! 5/158 Unidade 1 Breve Histórico da Alfabetização Objetivos 1. Há quanto tempo os seres humanos têm sistematizado e disseminado este objeto cultural que é a escrita? Como os povos têm se organizado para responder a essa necessidade? De que forma a alfabetização tem sido trabalhada no Brasil, em diferentes momentos históricos? 2. Respondendo a estas questões, você estudará um pouco sobre a história da alfabetização no decorrer dos tempos, e no Brasil, compreendendo como foram organizados os processos de ensino da leitura e da escrita, visando à promoção da aprendizagem destas capacidades. Conhecerá também os métodos utilizados para a transmissão destes conteúdos, bem como as concepções e procedimentos que os embasaram em diferentes momentos históricos. Unidade 1 • Breve Histórico da Alfabetização6/158 Introdução Antes de iniciar as discussões sobre a temática referida, considero relevante refletir sobre algumas questões: • Por que estudar esses dois temas? Qual a importância que assumem na atualidade para a educação de crianças, jovens e adultos? • Como evoluiu o pensamento brasileiro sobre estas temáticas? Como são propostas e exploradas na formação dos educadores e educadoras? Para a professora Maria do Rosário Mortatti, docente da Faculdade de Filosofia e Ciências, da UNESP de Marília/ SP, e pesquisadora sobre Metodologia da Alfabetização, a alfabetização escolar, enquanto processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita, na fase inicial da escolarização, consiste em um processo multifacetado e complexo, envolvendo ações humanas e caracterizando-se como dever do Estado e direito constitucional do cidadão. Neste sentido, considerando a sociedade letrada que existe nos dias de hoje, coloca-se a necessidade de inclusão dos não alfabetizados no universo da cultura escrita e nos contextos de uso da linguagem, o que exige a elaboração de meios eficazes para implementar ações que efetivem esta inclusão, atendendo a interesses políticos, sociais e educacionais. Ao longo da história do Brasil, a escola tem fracassado em sua tarefa de garantir que Unidade 1 • Breve Histórico da Alfabetização7/158 todos sejam alfabetizados: em um primeiro momento, porque o acesso à escola não era assegurado a toda a população; posteriormente, com a democratização do acesso, a escola não conseguiu ensinar efetivamente todos os estudantes a ler e escrever, principalmente quando são oriundos de grupos sociais desfavorecidos. De acordo com Soligo (2001), os índices de fracasso escolar na alfabetização são inaceitáveis e as ações dos sistemas públicos ainda não contribuem para a transformação da situação de forma efetiva. A dificuldade em alfabetizar todas as crianças, verificada nas escolas, tem motivado professores, especialistas e pesquisadores à procura de explicações e soluções para o fracasso escolar, ao longo de décadas, cujas abordagens de estudo do problema levaram à indicação de culpados, que ora eram representados pelas próprias crianças que não aprendiam, ora os métodos que não se mostravam adequados, ora os educadores que não ensinavam eficientemente. Esse panorama colaborou para a implementação de políticas federais, estaduais e municipais direcionadas ao sucesso escolar de todas as crianças: ampliação do ensino fundamental para nove anos, escolarização por ciclos, programas de formação continuada de professores, projetos de aceleração da aprendizagem e de apoio escolar às dificuldades enfrentadas em sala Unidade 1 • Breve Histórico da Alfabetização8/158 de aula, materiais de ensino pautados na metodologia de projetos didáticos, sistemas de avaliação externa, promoções e gratificações relacionadas ao desempenho ou à qualificação profissional, entre outras. A necessidade de somar esforços no âmbito escolar, político e acadêmico para continuar lutando pela eliminação do fracasso escolar justifica os estudos no campo da alfabetização e do letramento, contribuindo para que todos os estudantes, crianças ou adultos, possam usufruir do direito de aprender e utilizar a língua em diferentes situações, combatendo as desigualdades sociais. 1. A Aprendizagem da Leitura e da Escrita no Decorrer da Histó- ria da Humanidade A alfabetização é tão antiga quanto os sistemas de escrita, pois a invenção da escrita exigiu, ao mesmo tempo, a invenção de suas regras de decifração, a fim de que se pudesse decifrar o que está escrito, possibilitando o entendimento de como o sistema de escrita funciona e como pode ser usado. O estudo dos sistemas de escrita permitiu descobrir que seus inventores sempre tiveram a preocupaçãode fornecer meios para que fossem decifrados. Deste modo, estes sistemas sempre se mostraram simples e práticos, o que facilitou seu ensino às novas gerações (CAGLIARI, 2002). Unidade 1 • Breve Histórico da Alfabetização9/158 A partir dessa descoberta, criar um sistema de formas gráficas, figurativas ou não, para representar palavras ou frases ou mesmo histórias, era um passo fácil de ser dado (Id. Ibid., p. 14). Desde o tempo em que os seres humanos habitavam as cavernas, já esboçavam desenhos em suas paredes, representando animais, pessoas, objetos e cenas de seu cotidiano. Provavelmente, estas figurações serviram à comunicação entre as pessoas, na medida em que evocavam explicações e reflexões sobre o que representavam, transformando-se em objetos de leitura. Ou seja, os desenhos, além de representar objetos da vida real, podiam servir também para representar palavras que, por sua vez, se referiam a esses mesmos objetos e fatos na linguagem oral. A humanidade descobria, assim, que quando uma forma gráfica representa o mundo é apenas um desenho, mas quando representa uma palavra, passa a ser uma forma de escrita. Unidade 1 • Breve Histórico da Alfabetização10/158 Fonte: http://www.fumdham.org.br/pinturas.asp Em um momento mais primitivo da construção da escrita, saber ler e escrever significava dominar e repetir modelos mais ou menos padronizados. Com a disseminação do sistema de escrita, houve um aumento considerável de informações a serem adquiridas para que se pudesse ler e escrever, obrigando as pessoas a substituírem o sistema de símbolos que representavam coisas por outro, que pudesse representar os sons da fala (Id. Ibid.). De acordo com Cagliari (Ibid.), a escrita suméria se desenvolveu de forma autônoma por volta de 3.300 a.C e, provavelmente, o mesmo ocorreu com o povo egípcio, no ano de 3.000 a.C, http://www.fumdham.org.br/pinturas.asp Unidade 1 • Breve Histórico da Alfabetização11/158 aproximadamente, e com o povo chinês, há mais ou menos 1.500 anos. Os demais sistemas de escrita foram inventados a partir do contato entre povos que desenvolviam suas formas de escrever. Na Antiguidade, as pessoas aprendiam a ler e escrever com pessoas que dominavam o conhecimento da escrita, possivelmente para poderem lidar com negócios, comércio ou interpretar obras religiosas e obter informações culturais da época. A decifração da escrita, estabelecendo relações entre os símbolos e as palavras faladas, provavelmente, consistia no procedimento mais comum. Não era necessário fazer cópias ou escrever, apenas saber ler. A escrita surgia em consequência do domínio da leitura. Na Antiguidade, os alunos alfabetizavam- se aprendendo a ler algo já escrito e depois copiando. Começavam com palavras e depois passavam para textos famosos, os quais eram estudados exaustivamente. Finalmente, passavam a escrever seus próprios textos. O trabalho de leitura e cópia era o segredo da alfabetização. Note que essa atividade está diretamente ligada ao trabalho futuro que esses alunos irão desempenhar, escrevendo para a sociedade e a cultura da época (CAGLIARI, 2002). A escrita pautada no alfabeto, como é conhecida hoje, é resultado do esforço de diversos povos em simplificar as formas de simbolizar as informações a serem expressas, facilitando o processo de Unidade 1 • Breve Histórico da Alfabetização12/158 aprendizagem do sistema de escrita. Os povos semitas, gregos e romanos deixaram alguns “alfabetos”, inscrições de letras em pedras, tábuas e chapas de metal, na ordem tradicional dos alfabetos, que serviram ao aprendizado da leitura e da escrita. Esses registros demonstraram ser as “cartilhas” mais antigas da humanidade (Id. Ibid.). Na Idade Média, a aprendizagem da leitura e da escrita ocorria com mais frequência na vida privada das pessoas: quem sabia ler ensinava a quem não sabia, mostrando o valor fonético das letras do alfabeto em determinada língua, a forma ortográfica das palavras e a interpretação da forma gráfica das letras e suas variações” (Id. Ibid., p. 18). Nesse contexto, as crianças não iam à escola; eram introduzidas no domínio da leitura e da escrita pelos pais, por alguma pessoa da família, ou por um preceptor contratado para ensinar. Essa prática se estende até o século XVI d.C. As experiências com a transmissão do conhecimento da leitura e da escrita, vivenciada pelos povos de tempos mais remotos, sugere que a alfabetização pode ocorrer fora do ambiente escolar, se Unidade 1 • Breve Histórico da Alfabetização13/158 Você assistirá, a seguir, a um breve relato sobre a construção da escrita. houver pessoas que se dediquem ao seu ensino. Muitas pessoas aprendem a ler e a escrever antes de sentarem nos bancos escolares, ao desfrutarem de contatos enriquecedores com a cultura escrita, ou porque são excluídos da escola, como o cientista Thomas Alva Edison (CAGLIARI, 2002). Para saber mais Thomas Edison (1847-1931), um dos maiores inventores de todos os tempos, nascido nos Estados Unidos da América, tinha problemas na escola. Abandonou a escola, passou a ser educado em casa pela mãe e transformou-se em um autodidata. Thomas Edison patenteou mais de 2000 inventos, entre eles a lâmpada elétrica, o gravador, o microfone e o projetor de cinema. Link “História da escrita” Fonte: <http://www.youtube.com/watch?v=r7yeiRtc1fA> http://www.youtube.com/watch?v=r7yeiRtc1fA Unidade 1 • Breve Histórico da Alfabetização14/158 2. A História das Cartilhas de Alfabetização: Contexto Portu- guês O aparecimento das cartilhas é impulsionado pelo Renascimento (séculos XV e XVI) e pelo uso da imprensa na Europa, que fizeram aumentar a preocupação com os leitores, pois havia necessidade de produzir livros para um número maior de pessoas. Esse contexto fez com que a leitura de obras famosas deixasse de ser coletiva para se tornar individual, e que a preocupação com a alfabetização adquirisse grande importância. Surgem também, nesta época, as primeiras gramáticas das línguas neolatinas, motivando os gramáticos a se dedicarem à alfabetização: “era preciso estabelecer uma ortografia e ensinar o povo a escrever nas línguas vernáculas, deixando de lado cada vez mais o latim” (CAGLIARI, 2002). Desse momento em diante, diversas pessoas, em diferentes países, propuseram a sistematização de procedimentos e métodos para a alfabetização do povo. Com a Revolução Francesa surgem mudanças para as escolas, como a responsabilidade pela educação das crianças e a introdução da alfabetização como matéria escolar. Alfabetizar era um processo garantido às camadas ricas da população, representadas pela burguesia. Com a escolarização, o processo educativo da alfabetização tinha de acompanhar o calendário escolar. Como as antigas Unidade 1 • Breve Histórico da Alfabetização15/158 cartilhas eram simples esquemas, passaram a ser mais desenvolvidas. O estudo foi dividido em lições, cada uma enfatizando um fato. O ensino silábico passou a dominar o alfabético. O método do ba-be-bi-bo-bu começava a aparecer. Com poucas modificações superficiais, esse tipo de cartilha iria ser o modelo dos livros de alfabetização (Id. Ibid., p. 21). Em 1540, o português João de Barros (1496-1571) publicou a mais antiga gramática portuguesa e, junto a ela, a Cartinha – diminutivo de “carta”, assim como “cartilha” –, que significa esquema, mapa de orientação. Em sua Cartinha encontrava-se o alfabeto (em letras góticas) e em seguida as “tabelas”, que traziam combinações de letras usadas na escrita das sílabas das palavras, em língua portuguesa. Na sequência, havia uma lista de palavras que iniciavam com cada letra do alfabeto, acompanhando desenhos. Por fim, apresentavam-se mandamentos de Deus e da Igreja e algumas orações (Id. Ibid.). A Cartinha de João de Barros não servia ao uso escolar, pois a escola da época não alfabetizava, e poderia ser usada por adultos e crianças. A alfabetizaçãoconsistia em decorar o alfabeto, guiando-se pelo nome das letras para decifração, e em memorizar palavras- chave, colocando em prática o princípio acrofônico, próprio do alfabeto. Após essa fase de estudo, procedia-se à leitura e à escrita, interpretando as sílabas faladas, Unidade 1 • Breve Histórico da Alfabetização16/158 estabelecendo sua correspondência com a forma escrita. Como o método se detinha na decifração da escrita, a preocupação com a escrita correta – ortografia – não ocorria. Em 1850, Antonio Feliciano de Castilho publica sua cartilha Método português para o ensino do ler e do escrever, cuja característica importante foi o emprego de “alfabetos picturais ou icônicos”, utilizados na Grécia antiga e durante o Renascimento, e que perduraram nas cartilhas modernas. Na obra de Castilho verificava-se também o uso de “textos narrativos” que serviam ao ensino das letras, destinando uma lição para cada uma delas e para os dígrafos (CAGLIARI, 2002). Por sua vez, João de Deus publica outra cartilha portuguesa, que também ficou famosa no Brasil, a Cartilha Maternal ou arte de leitura. Esta cartilha trazia a escrita de letras com destaque nas palavras, para que o aprendiz se concentrasse nas partes da escrita que eram apresentadas. Apesar de a obra destacar a leitura em seu título, notava-se uma forte tendência para a valorização da escrita. A cartilha de João de Deus serviu como modelo para muitas que a sucederam, inclusive as que foram utilizadas nos últimos anos (Id. Ibid.). A Cartilha maternal (1870) exerceu grande influência no Brasil. Depois desta, outras surgiram com métodos e estratégias diferenciadas de alfabetização. Entre os métodos mais antigos, até a cartilha Unidade 1 • Breve Histórico da Alfabetização17/158 de João de Deus, destacou-se o método sintético, que partia do alfabeto para a soletração e silabação, de acordo com uma ordem hierárquica de dificuldades, finalizando com o texto. Ao contrário deste, a Cartilha Maternal propõe o método analítico, que assume maior importância na década de 1930, com o surgimento dos testes de maturidade psicológica, que condicionam o processo de aprendizagem aos resultados destes estudos. A Cartilha do Povo (1928), de Lourenço Filho, e o famoso Teste ABC (1934), deste mesmo autor, ilustram o modelo apresentado (Id. Ibid.). Com o passar do tempo, aparecem outros modelos de cartilha que utilizam o método misto, os quais associam estratégias do método sintético e do método analítico, como a Cartilha Caminho Suave (1948), de Branca Alves de Lima, que trazia o período preparatório. Nos anos 1990, assistiu- se ao surgimento de obras chamadas de construtivistas, que propunham a aplicação das concepções da psicogênese da língua escrita, elaborada por Emília Ferreiro e Ana Teberosky, por meio do livro didático (Id. Ibid.). Unidade 1 • Breve Histórico da Alfabetização18/158 Fonte: http://www.crmariocovas.sp.gov.br/obj_a.php?t=cartilhas01 http://www.crmariocovas.sp.gov.br/obj_a.php?t=cartilhas01 Unidade 1 • Breve Histórico da Alfabetização19/158 3. Os Métodos de Alfabetização no Brasil O estudo do texto anterior mostrou que a história da alfabetização, ou seja, da aprendizagem da leitura e da escrita de uma língua, é tão antiga quanto a história de construção dos sistemas de escrita, devido à necessidade de divulgar esse conhecimento para que todas as pessoas pudessem utilizá-lo. Verificou-se também que essa divulgação demandou a elaboração de meios apropriados para o ensino da leitura e da escrita, culminando na produção de “cartilhas”, formuladas a partir de diferentes métodos: sintéticos, analíticos e mistos. Os próximos estudos irão se deter na história dos métodos no Brasil, para que se possa compreender as concepções que embasam as práticas pedagógicas de muitos professores alfabetizadores até os dias atuais. Conhecer os métodos de alfabetização, as concepções que os fundamentam e como eram organizados é de fundamental importância para entender o funcionamento e os resultados dos processos educativos nos anos iniciais de escolarização que, historicamente, são assumidos no Brasil. A história desses processos possibilita assumir posturas críticas frente a eles e fazer opções entre procedimentos pedagógicos mais adequados a cada situação encontrada em sala de aula, considerando a complexidade Unidade 1 • Breve Histórico da Alfabetização20/158 que envolve as relações de ensino e aprendizagem na escola, bem como a diversidade de educandos colocados diante dos professores, para que dominem os conteúdos curriculares. Para apresentar a trajetória histórica dos métodos de alfabetização adotados no Brasil, foram selecionados os estudos de Mortatti (2006 e 2009) sobre a temática, envolvendo o século XIX e XX. De acordo com a pesquisadora, a história da alfabetização no Brasil torna-se visível por meio da história dos métodos de alfabetização, entre os quais se têm constatado disputas relacionadas a diferentes explicações sobre a dificuldade enfrentada pelas crianças na aprendizagem da leitura e da escrita em escolas públicas. Uma multiplicidade de tematizações, normatizações e concretizações, engendradas pelas disputas entre os defensores de cada método de alfabetização, tem justificado o enfrentamento do problema do fracasso escolar e o empenho em auxiliar os estudantes a se inserirem no universo da cultura letrada. Os estudos de Mortatti (2006 e 2009) enfatizam a disputa pela hegemonia de determinados métodos de alfabetização no contexto paulista, a partir dos anos 1890, considerando o caráter modelar das iniciativas educacionais assumidas neste estado, e o momento em que foi iniciado um processo sistemático de escolarização das práticas de leitura e escrita, a partir da proclamação da República. Unidade 1 • Breve Histórico da Alfabetização21/158 Em nosso país, desde o final do século XIX, especialmente com a proclamação da República, a educação ganhou destaque como uma das utopias da modernidade. A escola, por sua vez, consolidou-se como lugar necessariamente institucionalizado para o preparo das novas gerações, com vistas a atender aos ideais do Estado republicano, pautado pela necessidade de instauração de uma nova ordem política e social; e a universalização da escola assumiu importante papel como instrumento de modernização e progresso do Estado-Nação, como principal propulsora do “esclarecimento das massas iletradas”. (MORTATTI, 2006, p. 2) O domínio da leitura e da escrita, segundo os ideais republicanos, representava um instrumento privilegiado de aquisição do conhecimento e imprescindível à modernização e ao desenvolvimento da sociedade. Desse modo, a leitura e a escrita, enquanto práticas culturais ao alcance de poucas pessoas, e transmitidas de forma assistemática em âmbito privado, ou de forma precária nas escassas “escolas” do Império – as “aulas régias” – passam a compor os fundamentos de uma escola obrigatória, gratuita e leiga, enquanto objeto de ensino e Unidade 1 • Breve Histórico da Alfabetização22/158 aprendizagem escolarizados. Nesse novo contexto, as práticas de ler e escrever, caracterizadas como tecnicamente ensináveis, foram submetidas a um ensino sistematizado e intencional, que demandava o preparo de profissionais especializados. Os processos de ensinar e de aprender a leitura e a escrita representaram, nesse período histórico, o acesso para o novo mundo da cultura letrada, que inaugura novas relações entre as pessoas, com a natureza, a história e o próprio Estado, trazendo novas formas de pensar, sentir, querer e agir. As dificuldades evidenciadas na concretização destes propósitos, para a formação escolar do cidadão, provocaram questionamentos e conduziram a diferentes explicações para os problemas relacionados à alfabetização. Essas explicações centram-se, por vezes, no método de ensino, no aluno, no professor,no sistema escolar, nas condições sociais ou nas políticas públicas (MORTATTI, 2006). É possível constatar que, desde o final do século XIX, o problema do “fracasso escolar na alfabetização” constitui um problema estratégico, que exige soluções urgentes e a mobilização do poder público, dos legisladores do ensino, de pesquisadores e educadores. No decorrer dos anos, muitos foram os esforços para a superação daquilo que é considerado tradicional no ensino de cada época e responsável pelo seu fracasso. Estes esforços se detiveram na questão dos métodos de ensino, gerando Unidade 1 • Breve Histórico da Alfabetização23/158 disputas entre seus defensores (MORTATTI, 2006, 2009). Há mais de vinte anos, porém, a discussão sobre os métodos se tornou tradicional e os problemas constatados na alfabetização têm sido abordados sob outro ponto de vista, no plano das políticas públicas. O novo olhar sobre o problema deriva da compreensão do processo de aprendizagem da criança, que entra em contato com o mundo da escrita, sob o enfoque da psicogênese da língua escrita (Idem, 2006). Em cada período histórico, as mudanças quanto às perspectivas de ensino da leitura e da escrita, pautadas em “modernas verdades científicas”, levaram os defensores de cada método a estabelecer operações de diferenciação qualitativa, por meio de uma reconstituição sintética do passado (porém presente, no sentido das concretizações), acusando de “antigos” e “tradicionais” os métodos utilizados, propondo sua substituição por outros, “revolucionários”. Essa reconstituição visava à homogeneização e ao esvaziamento de qualidades e diferenças, caracterizando o método, até então utilizado, como antigo, indesejável, decadente, buscando a definição do novo como melhor e desejável (Idem, 2009). Unidade 1 • Breve Histórico da Alfabetização24/158 Para viabilizar a mudança, torna-se, assim, necessário produzir uma versão do passado e desqualificá-lo, como se se tratasse de uma herança incômoda, que impõe resistências à fundação do novo, especialmente quando a filiação decorrente (embora, muitas vezes, não assumida) da tradição atuante no presente ameaça fazer voltarem à cena os mesmos personagens do passado, que seus herdeiros desejam esquecer, rever ou aprimorar (MORTATTI, 2009, p. 94). Mortatti (Ibid.) considera que uma “nova tradição” é fundada quando ocorrem disputas pelas formas como se pensa e se pratica a alfabetização, cujo sentido torna-se hegemônico, pois é oficial, mas não único nem homogêneo, ou isento de resistências, que ocorrem pelo uso velado dos antigos métodos e práticas alfabetizadoras. De acordo com a autora, a história da alfabetização no Brasil é marcada por um recorrente discurso de mudança que apresenta a tensão constante entre permanências e rupturas, gerando disputas pela hegemonia de projetos políticos e educacionais, apontados como modernos. Para entender as diferenças fundamentais entre as formas de pensar e agir diante da responsabilidade de alfabetizar os estudantes, apresentar-se-á a caracterização dos métodos Unidade 1 • Breve Histórico da Alfabetização25/158 que têm sido chamados de tradicionais,e a perspectiva construtivista de aprendizagem da língua, adotada nas últimas décadas. 3.1 O Método Sintético Até o final do Império, o material utilizado para o ensino da leitura era precário, embora houvesse livros para o seu ensino, produzidos na Europa. A iniciação à leitura fazia-se com as “cartas de ABC” e, posteriormente, os estudantes liam e copiavam documentos manuscritos. Nesta época, o ensino não dispunha de organização; havia poucas escolas que funcionavam em salas adaptadas e reuniam alunos de todas as “séries”, em prédios pouco adequados para seu objetivo – eram as “aulas régias”. O ensino dependia do empenho de alunos e professores para que pudesse se efetivar (MORTATTI, 2006). Para o ensino da leitura, utilizavam-se, nessa época, métodos de marcha sintética (da “parte” para o “todo”): da soletração (alfabético), partindo do nome das letras; fônico (partindo dos sons correspondentes às letras); e da silabação (emissão de sons), partindo das sílabas. Unidade 1 • Breve Histórico da Alfabetização26/158 Dever-se-ia, assim, iniciar o ensino da leitura com a apresentação das letras e seus nomes (método da soletração/alfabético), ou de seus sons (método fônico), ou das famílias silábicas (método da silabação), sempre de acordo com certa ordem crescente de dificuldade. Posteriormente, reunidas as letras ou os sons em sílabas, ou conhecidas as famílias silábicas, ensinava-se a ler palavras formadas com essas letras e/ou sons e/ou sílabas e, por fim, ensinavam-se frases isoladas ou agrupadas. Quanto à escrita, esta se restringia à caligrafia e ortografia, e seu ensino, à cópia, ditados e formação de frases, enfatizando-se o desenho correto das letras (Id. Ibid., p. 5). No final do século XIX, as primeiras cartilhas brasileiras produzidas por professores de São Paulo e do Rio de Janeiro, a partir de suas experiências didáticas, pautavam-se nos métodos sintéticos (soletração, fônico e silabação), conforme exemplo do Quadro 1.1. Essas cartilhas foram utilizadas em partes do país por muitas décadas. Quadro 1.1: Lições do método sintético Unidade 1 • Breve Histórico da Alfabetização27/158 2ª. lição VOCÁBULOS EXERCÍCIO va ve vi vo vu vo-vó a-ve a-vô o-vo vo-vó viu a a-ve ve va vo vu vi vi-va vo-vo ou-ve u-va a a-ve vi-ve e vô-a vo vi va ve vu ui-va vi-vi-a vi-ú-va eu vi a vi-ú-va vai viu vou vi-va a vo-vó vo-vô vê o o-vo a a-ve vo-a-va Fonte: Cartilha da Infância, de T. A. B. Galhardo. Exemplo encontrado em MORTATTI, 2000, p. 43. A partir da década de 1890, o impulso nacionalizante na produção de materiais (cartilhas) para o ensino da leitura e da escrita ocorre em alguns estados, e se estabelece nas primeiras décadas do século XX devido ao apoio de editores e a especialização das editoras na publicação desses materiais; o surgimento do professor como um tipo específico de escritor didático profissional; a institucionalização da cartilha, mediante sua aprovação, compra e distribuição às escolas públicas pelos governos estaduais (MORTATTI, 2009). Unidade 1 • Breve Histórico da Alfabetização28/158 3.2 O Método Analítico Em 1876, a Cartilha Maternal ou Arte da Leitura, escrita pelo poeta português João de Deus, é publicada em Portugal. Em 1880, o método desta cartilha começa a ser divulgado sistematicamente no Brasil, principalmente nas províncias de São Paulo e do Espírito Santo. Diferentemente dos anteriores, o “método João de Deus”, ou “método da palavração”, estava fundamentado nos princípios da moderna linguística da época e iniciava o ensino da leitura pela palavra, prosseguindo à análise dos valores fonéticos das letras (MORTATTI, 2006). Até o início da década de 1890 houve uma disputa entre aqueles que defendiam o “método João de Deus” e os defensores dos métodos sintéticos, a qual instaurou uma tradição: a de que ensinar a ler é uma questão de método e envolve uma relação entre o que ensinar e como ensinar. Com a reforma da instrução pública paulista, em 1890, houve uma reorganização da Escola Normal, com a criação de uma Escola-Modelo Anexa e, posteriormente, do Jardim da Infância nesta escola, em 1896. Um dos aspectos educacionais contemplados pela reforma estava na adoção do revolucionário método analíticopara o ensino da leitura, adotado na Escola-Modelo, em que as normalistas desenvolviam práticas e os professores lecionavam. A partir da implantação do método Unidade 1 • Breve Histórico da Alfabetização29/158 analítico, os professores formados pela Escola Normal de São Paulo passaram a defendê-lo e o disseminaram para outros estados, por meio da ocupação de cargos administrativos, assumidos na instrução pública, da produção de instruções normativas, de cartilhas e artigos em jornais e revistas. Esse movimento favoreceu a institucionalização do método analítico, tornando sua utilização obrigatória nas escolas públicas paulistas (Id. Ibid.). Com o tempo, grande parte dos professores passou a fazer queixas sobre a lentidão dos resultados deste método, mas a obrigatoriedade de seu uso perdurou até a implementação da “Reforma Sampaio Dória”, de 1920, que propunha a “autonomia didática”. O método analítico, ao contrário dos métodos sintéticos, baseava-se em princípios didáticos fundamentados numa concepção diferenciada de criança, de caráter biopsicofisiológico, segundo o qual a apreensão do mundo se fazia de forma sincrética. Nesta perspectiva, o ensino da leitura partia do “todo” para a análise das partes (Quadro 1.2), sob diferentes modos: alguns dos seguidores do método analítico consideravam como “todo” a palavra, outros a sentença ou, então, a “historieta” (MORTATTI, 2006). Unidade 1 • Breve Histórico da Alfabetização30/158 Quadro 1.2: Lições do Método Analítico 1ª. Lição Eu vejo uma menina. Esta menina chama-se Maria. Maria tem uma boneca. A boneca está no colo de Maria. Maria está beijando a boneca. Fonte: Instruções práticas para o ensino da leitura pelo método analítico – modelo de lições. Exemplo encontrado em MORTATTI, 2000, p. 44. No início do século XX, a programação das cartilhas baseava-se no método analítico (palavração ou sentenciação), conforme instruções oficiais do governo paulista. Até os anos 1920, os defensores dos dois métodos travavam disputas sobre como se deveria processar o ensino da leitura, pois o ensino da escrita era visto como uma questão de caligrafia e de tipo de letra a ser usada, o que exigia treino por meio de atividades de cópia e ditado. No final da década de 1910, o termo alfabetização passa a se referir ao ensino inicial da leitura e da escrita (MORTATTI, 2006). Unidade 1 • Breve Histórico da Alfabetização31/158 Neste momento histórico, verificou-se a emergência de uma nova tradição, segundo a qual o ensino da leitura envolve o como ensinar, a partir das habilidades visuais, auditivas e motoras da criança – a quem ensinar. Isso significa que as questões de ordem didática estavam subordinadas às questões de ordem psicológica da criança. O método analítico é institucionalizado nas primeiras décadas do século XX e se consolida com a publicação de instruções práticas para o ensino da leitura (modelos de lições), no Estado de São Paulo, em 1915. Essas instruções priorizaram a historieta (conjunto de frases relacionadas entre si) como ponto de partida e núcleo de sentido para o início do ensino da leitura e da escrita, destacando suas funções instrumentais. 3.3 O Método Eclético Em meados da década de 1920, devido à “autonomia didática” proposta pela “Reforma Sampaio Dória”, e as novas urgências políticas e sociais que se colocavam, houve uma intensificação da resistência dos professores em relação ao método analítico e, consequentemente, à busca por novas propostas para solucionar os problemas do ensino e da aprendizagem durante a alfabetização. No intuito de conciliar o método analítico com o método sintético (Quadro 1.3), em suas tematizações e concretizações, surgem Unidade 1 • Breve Histórico da Alfabetização32/158 os métodos mistos ou ecléticos (analítico-sintético ou sintético-analítico), considerados mais rápidos e eficientes (Id. Ibid.). Apesar das novas proposições quanto à fase inicial do ensino da leitura e da escrita, a disputa entre os defensores dos métodos sintético e analítico não cessou, mas tornou-se menos acirrada devido à tendência de relativização da importância do método. Essa tendência de relativização da importância do método decorreu especialmente da disseminação, repercussão e institucionalização das então novas e revolucionárias bases psicológicas da alfabetização contidas no livro Testes ABC para verificação da maturidade necessária ao aprendizado da leitura e escrita (1934), escrito por M.B. Lourenço Filho. Nesse livro, o autor apresenta resultados de pesquisas com alunos de 1º. Grau (atual 1ª. série do ensino fundamental), que realizou com o objetivo de buscar soluções para as dificuldades de nossas crianças no aprendizado da leitura e escrita. Propõe, então, as oito provas que compõem os testes ABC, como forma de medir o nível de maturidade necessária ao aprendizado da leitura e escrita, a fim de classificar os alfabetizandos, visando à organização de classes homogêneas e à racionalização e eficácia da alfabetização. (MORTATTI, 2006, p. 9) Unidade 1 • Breve Histórico da Alfabetização33/158 O embasamento psicológico da alfabetização, que sustentava o material didático de Lourenço Filho, levou à relativização dos métodos, considerados a partir de então como tradicionais. A função instrumental do ensino e da aprendizagem da leitura e da escrita permaneceu, mas em outras bases teóricas, a partir das quais esses processos eram concebidos como decorrentes de habilidades visuais, auditivas e motoras. (Id. Ibid.). Quadro 1.3. Lições do Método Eclético Vejo uma bonita vaca. A vaca é a violeta. Violeta é do vovô. Vovô bebe leite da vaca. vaca veio ovo cava vejo novo cavalo vadio povo cavava vida vovô couve vivo vila Fonte: Cartilha Caminho Suave, de Branca Alves de Lima. Exemplo encontrado em MORTATTI, 2000, p. 46. Nesse período, as cartilhas passaram a ser elaboradas com o método misto e acompanhadas Unidade 1 • Breve Histórico da Alfabetização34/158 por manuais destinados ao professor, e as ideias e práticas relacionadas ao período preparatório foram disseminadas. Um ecletismo processual e conceitual emerge no campo da alfabetização, que passa a envolver procedimentos de “medida”, e o método de ensino passa a depender da identificação do nível de maturidade das crianças, classificadas em classes homogêneas. A aprendizagem da escrita permaneceu como uma questão de habilidade caligráfica e ortográfica, a ser trabalhada juntamente com a habilidade da leitura (MORTATTI, 2006). Nos anos 1950, a psicologia amplia seus estudos nas universidades brasileiras e a escola torna-se laboratório para os pesquisadores. Ignorando conhecimentos pedagógicos e linguísticos, os psicólogos passam a aplicar vários testes com os estudantes e concluem que as crianças que apresentavam dificuldade para se alfabetizarem mostravam-se carentes. A carência estava relacionada à alimentação na infância, aos estímulos ambientais necessários para o desenvolvimento de conhecimentos e à motivação emocional para aquisição da cultura, que consistiam em obstáculos ao processo de aprender (CAGLIARI, 2002). Para solucionar o problema da carência, pois as crianças não poderiam ficar fora da escola, criou-se um período preparatório, anterior à alfabetização, durante o qual as crianças treinariam habilidades básicas Unidade 1 • Breve Histórico da Alfabetização35/158 a fim de se prepararem para o início do processo de aprendizagem da leitura e escrita. De acordo com Cagliari (Ibid.), a universidade causou um grande mal à educação ao convencer os professores de um equívoco, algo que não se achava cientificamente correto. As questões de linguagem presentes nos testes eram mal elaboradas e não consideravam conhecimentos linguísticos, sobretudo as noções de variação linguística.Os procedimentos e resultados dos testes revelaram grande preconceito contra a pobreza e as crianças menos favorecidas; os “pré-requisitos lógico-formais” da teoria da prontidão assemelhavam- se aos argumentos de preconceito racial, baseados na teoria da carência sociocultural e na teoria da superioridade racial. A partir desses testes, as crianças pobres foram rotuladas como deficientes, excepcionais e carentes, pois, segundo os acadêmicos, escreviam e falavam errado (Id. Ibid.). Cagliari (Ibid.) explica que o problema mostrou-se essencialmente linguístico, considerando que os alunos diagnosticados como incapazes eram, na verdade, falantes de variedades linguísticas estigmatizadas pela sociedade. Portanto, o período preparatório não passou de um grande equívoco pedagógico e psicológico, inclusive porque os esforços feitos em busca de seu aperfeiçoamento não alteraram os índices de 50% de reprovação nas primeiras séries. Unidade 1 • Breve Histórico da Alfabetização36/158 Apesar dos índices, estas formas de conceber e colocar em prática o processo de alfabetização estenderam-se até o final da década de 1970, difundindo, conforme Mortatti (2006), uma nova tradição, segundo a qual as questões didáticas estavam subordinadas às de ordem psicológica. Link Para ampliar seus conhecimentos sobre os problemas que envolvem o uso das cartilhas durante a alfabetização, e pensar sobre alternativas que se mostram mais interessantes ao ensino da leitura e da escrita – a literatura infantil – recomenda-se o texto A cartilha e a leitura, de Luis Carlos Cagliari. Disponível em: <http://www.crmariocovas.sp.gov.br/lei_a. php?t=011>. Acesso em: 20 jun. 2012. http://www.crmariocovas.sp.gov.br/lei_a.php?t=011 http://www.crmariocovas.sp.gov.br/lei_a.php?t=011 Questão reflexão ? para 37/158 Elabore uma síntese que explique as características referentes a cada método de alfabetização: sintético, analítico e eclético. 38/158 Considerações Finais A construção de um sistema de escrita pela humanidade suscitou a necessidade da criação de meios para a disseminação deste sistema, a fim de viabilizar a comunicação entre as pessoas. A utilização de materiais que sistematizassem o ensino da língua – as cartilhas – é impulsionada pelo Renascimento (séculos XV e XVI) e pela invenção da escrita, movida pela preocupação em formar mais leitores. A história da alfabetização no Brasil torna-se visível a partir da história dos métodos de ensino, cujos defensores passaram a travar disputas para explicar o problema enfrentado pelas crianças na aprendizagem da leitura e da escrita. Unidade 1 • Breve Histórico da Alfabetização39/158 Referências CAGLIARI, L. C. Alfabetizando sem o BA – BE – BI – BO – BU. SP: Ática, 2002. MORTATTI, M. R. L. A “querela dos métodos” de alfabetização no Brasil: contribuições para me- todizar o debate. 2009. Disponível em: <https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esr- c=s&source=web&cd=1&cad=rja&uact=8&ved=0ahUKEwj_0Prb55XLAhUEx5AKHQBvC6kQFg- gyMAA&url=http%3A%2F%2Fwww.revistas.usp.br%2Freaa%2Farticle%2Fdownload%2F11509%- 2F13277&usg=AFQjCNHgP-6pkLyVE-0p_l1o9jegztG0yQ&sig2=jTdGFISY_OZ8Co0CG0jKpA&b- vm=bv.115339255,d.Y2I>. Acesso em: 15 jul. 2011. _______. Cartilha de alfabetização e cultura escolar: um pacto secular. Cadernos Cedes, n. 52, p. 41-54, 2000. _______. História dos métodos de alfabetização no Brasil. 2006. Disponível em: <http://portal.mec. gov.br/seb/arquivos/pdf/Ensfund/alf_mortattihisttextalfbbr.pdf>. 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De acordo com os estudos de Mortatti, o processo de alfabetização pode ser caracterizado como: a) Um direito público dos cidadãos e cidadãs, garantido pela legislação dos municípios e estados, responsáveis pelos sistemas de ensino. b) Um dever de todas as famílias, pois são responsáveis pelo encaminhamento dos filhos e filhas às escolas. c) Uma técnica a ser adquirida dentro das escolas, a fim de instrumentalizar os estudantes para as atividades de escrita e leitura utilizadas no meio social. d) Um fenômeno complexo, multifacetado, que é o resultado de ações humanas e representa um direito constitucional e dever do Estado. e) Uma prática social a ser assumida pelos órgãos públicos e pela iniciativa privada, para garantir o direito à aprendizagem da leitura e da escrita. Questão 1 41/158 2. As pesquisas de Cagliari (2002) revelam que a produção dos modos de ensinar e aprender a língua escrita são tão antigos quanto o próprio sistema de escrita, porque: a) As pessoas sempre se preocuparam com a elaboração de técnicas para disseminação do conhecimento científico. b) A produção de sistemas de escrita exigiu a elaboração de regras para sua decifração, a fim de possibilitar o entendimento de como este sistema funciona e suas formas de uso. c) Era preciso sistematizar formas de se trabalhar o conhecimento da leitura e da escrita para alfabetizar as crianças dentro do sistema escolar. d) Todas as pessoas precisavam dominar o código escrito a fim de disseminá-lo às novas gerações. e) As populações primitivas inventaram formas de comunicação por meio de pinturas e símbolos, que representavam nas paredes das cavernas. Questão 2 42/158 3. A alfabetização, enquanto experiência de transmissão do conhecimen- to da leitura e da escrita, vivenciada por diversos povos no desenvolvi- mento da história humana, pode ocorrer: a) Somente dentro das escolas, por meio de materiais específicos elaborados para o ensino da leitura e escrita. b) Apenas pelo contato sistemático com profissionais qualificados, que planejam seus métodos e procedimentos, selecionam materiais e atividades didáticas. c) No interior de instituições educativas, criadas com a finalidade de organizar e transmitir conhecimentos sequenciados sobre o ensino da leitura e da escrita. d) Frequentemente no interior das relações familiares, que desde cedo estimulam as crianças a lerem materiais escritos e registrar seus conteúdos. e) Fora dos contextos escolares, por meio do contato com pessoas que ensinem o funcionamento da cultura escrita. Questão 3 43/158 4. O conhecimento dos métodos de alfabetização e do modo como fun- cionam é de fundamental importância, porque: a) Permite o entendimento de como ocorrem os processos educativos, nos anos iniciais de escolarização,bem como dos resultados destes processos, possibilitando optar por procedimentos mais adequados a cada situação de sala de aula. b) Amplia o repertório de técnicas utilizadas pelos professores, considerando que há formas mais eficientes de ensinar a ler e a escrever. c) Determinados métodos prejudicam o aprendizado da leitura e da escrita, limitando a aprendizagem dos conteúdos escolares. d) Auxiliam no acompanhamento do processo de ensino e aprendizagem da língua escrita, permitindo identificar as crianças que aprendem com facilidade e as que revelam dificuldade em aprender. e) Os professores e professoras precisam definir uma metodologia de ensino, considerando que as disputas históricas pelos métodos explicam as dificuldades enfrentadas pelas crianças na aprendizagem da leitura e da escrita. Questão 4 44/158 5. As formas de pensar e de se trabalhar o processo de ensino e aprendi- zagem da leitura e da escrita, no Brasil, são conhecidas como métodos tradicionais e perspectiva construtivista de aprendizagem da língua. Es- tes métodos foram classificados como: a) Método sintético (da “parte” para o “todo”), método analítico (do “todo” para a análise das “partes”) e método misto ou eclético (analítico-sintético ou sintético-analítico). b) Método sintético (do “todo” para as “partes”), método analítico (das “partes” para a análise do “todo”) e método eclético (da palavração à historieta). c) Método sintético (da “parte” para o “todo”), método analítico (“palavração” ou “sentenciação”) e método misto (do “todo” para as “partes”). d) Método sintético (“palavração” ou “sentenciação”), método analítico (soletração, fônico e silabação) e método eclético (analítico-sintético ou sintético-analítico). e) Método sintético (da palavração à historieta), método analítico (soletração e silabação) e método eclético (fonetização, silabação e sentenciação) Questão 5 45/158 Gabarito 1. Resposta: D. Para a pesquisadora em Metodologia da Alfabetização, Maria do Rosário Mortatti, a alfabetização, enquanto processo complexo e multifacetado de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita, na fase inicial da escolarização, envolve ações humanas e consiste em um dever do Estado e um direito constitucional dos cidadãos e cidadãs. 2. Resposta: B. Em suas pesquisas sobre a origem da escrita, Cagliari (2002) descobriu que a alfabetização é tão antiga quanto os sistemas de escrita, pois a invenção destes sistemas demandou a invenção de regras que orientassem seu uso e funcionamento. 3. Resposta: E. Cagliari (2002) explica que, historicamente, a alfabetização pode ocorrer fora do ambiente escolar, se houver pessoas que possam ensinar o sistema de escrita a outras. Muitas pessoas aprenderam a ler e escrever antes de iniciar os estudos escolares, pois desfrutaram de contatos enriquecedores com a leitura e escrita. 4. Resposta: A. Conhecer os métodos de alfabetização, as concepções que os fundamentam 46/158 e como eram organizados é de fundamental importância para entender o funcionamento e os resultados dos processos educativos nos anos iniciais de escolarização que historicamente são assumidos no Brasil. A história desses processos possibilita assumir posturas críticas frente a eles e fazer opções entre procedimentos pedagógicos mais adequados a cada situação encontrada na sala de aula, considerando a complexidade que envolve as relações de ensino e aprendizagem na escola, bem como a diversidade de educandos colocados diante dos professores para que dominem os conteúdos curriculares. 5. Resposta: A. O método sintético se caracteriza por partir do estudo das “partes” da escrita para o “todo” (soletração, fônico, silabação); o método analítico segue do “todo” para as “partes” (palavração, sentenciação ou historieta) e o método eclético ou misto concilia o método sintético com o método analítico. Gabarito 47/158 Unidade 2 A Psicogênese da Língua Escrita Objetivos 1. Quais mudanças são possíveis de verificar no campo da alfabetização, a partir da difusão das pesquisas de Emília Ferreiro no Brasil, na década de 1980? Quais pressupostos epistemológicos passam a fundamentar os estudos sobre o ensino da leitura e da escrita com a chegada dos novos conhecimentos? 2. Nesta aula você estudará as mudanças paradigmáticas ocorridas no âmbito da aprendizagem da leitura e da escrita, que deslocaram as preocupações sobre “como se ensina” para “como se aprende” a ler e escrever. Serão verificadas as contribuições que as teorias da psicolinguística trouxeram para se pensar as práticas de alfabetização sob nova perspectiva. 3. Você compreenderá como as crianças constroem conhecimentos sobre a escrita, levantando hipóteses sobre o que ela representa e como representa, mediante uma concepção de escrita enquanto sistema de representação e não código de transcrição da fala. Unidade 2 • A Psicogênese da Língua Escrita48/158 Introdução Na década de 1980, as cartilhas e as concepções sobre prontidão para a alfabetização passaram a ser questionadas e novas propostas de mudanças no cenário educacional aparecem para o enfrentamento do problema do fracasso escolar, que não fora resolvido. Nesse momento, o pensamento construtivista sobre alfabetização é introduzido no Brasil, como resultado de pesquisas realizadas sobre a psicogênese da língua escrita, desenvolvidas pela pesquisadora argentina Emília Ferreiro e seus colaboradores. As pesquisas de Ferreiro deslocaram o eixo das discussões sobre os métodos de ensino – o como ensinar – para o processo de aprendizagem da criança – como o sujeito cognoscente aprende – propondo uma revolução conceitual que demandava o abandono das teorias e práticas tradicionais, desmetodizando o processo de alfabetização e questionando a necessidade das cartilhas (MORTATTI, 2006). A propagação das ideias de Ferreiro e o empenho de pesquisadores brasileiros em utilizar seus conhecimentos no campo didático, produzindo novas propostas de alfabetização, levaram as autoridades educacionais e os educadores acadêmicos a um esforço de convencimento dos alfabetizadores, por meio da divulgação de artigos, teses, livros, vídeos, sugestões metodológicas, relatos de experiências bem sucedidas e ações de formação continuada. Esse movimento visou Unidade 2 • A Psicogênese da Língua Escrita49/158 garantir a apropriação do construtivismo, institucionalizado na rede pública de ensino (Id. Ibid.). Uma nova disputa inicia-se entre os partidários do construtivismo e os defensores dos métodos tradicionais, conduzindo a um novo ecletismo processual e conceitual em alfabetização: cartilhas “construtivistas” ou “socioconstrutivistas” são produzidas e convivem com as cartilhas tradicionais e com os livros de alfabetização, nas indicações oficiais e no acervo dos professores; prevalece o modelo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita disseminado pelas cartilhas, apesar dos professores afirmarem a adoção de uma “linha construtivista” ou “interacionista” e seus alunos não utilizarem antigos materiais em sala de aula (Id. Ibid.). Nesse momento histórico, ganha hegemonia o discurso sobre o construtivismo e propostas didáticas decorrentes de certas apropriações da teoria construtivista. A institucionalização da nova corrente de pensamento pode ser verificada na produção dos Parâmetros Curriculares Nacionais, lançados em 1997 pelo governo federal brasileiro. Nas análises de Mortatti (Ibid.), a ênfase do construtivismo no sujeito que aprende e em como aprende a língua escrita, provocou a nova tradição da desmetodização da alfabetização, gerando a criação de um consenso ilusório de que a aprendizagem não depende do ensino. Unidade 2 • A Psicogênese da Língua Escrita50/158 Também na década de 1980, surge o pensamento interacionista em alfabetização, que ganha destaque e provoca disputa com os defensores do construtivismo. Mortatti (Ibid.) define o interacionismoda seguinte forma: O pensamento que denomino “interacionista” baseia-se em uma concepção interacionista de linguagem, de acordo com a qual o texto (discurso) é a unidade de sentido da linguagem e deve ser tomado como objeto de leitura e escrita, estabelecendo-se o texto como conteúdo de ensino, que permite um processo de interlocução real entre professor e alunos e impede o uso de cartilhas para ensinar a ler e a escrever. (MORTATTI, 2006, p. 11) A disputa entre interacionistas e construtivistas vai se diluindo com a conciliação de aspectos das duas vertentes. No entanto, novos problemas foram emergindo no ensino inicial da leitura e da escrita com a falta de uma “didática construtivista”, que abriu caminho para que alguns pesquisadores apresentassem propostas de alfabetização pautadas em antigos métodos, como os sintéticos. Outro aspecto dos problemas a serem enfrentados são as discussões e propostas relacionadas ao letramento, às vezes entendido como complementar à alfabetização, como Unidade 2 • A Psicogênese da Língua Escrita51/158 diferente dela e mais desejável ou como processos excludentes entre si (Id. Ibid.). Nessa etapa dos estudos sobre alfabetização e letramento serão conhecidas as concepções que embasam o construtivismo, estudando um pouco sobre a psicogênese da língua escrita e sobre como ela foi traduzida em procedimentos didáticos pelos pesquisadores brasileiros, ganhando expressão nas propostas curriculares, nos materiais produzidos para a alfabetização das crianças e nos programas de formação continuada dos educadores, no âmbito das políticas públicas. 1. As Pesquisas de Emília Ferreiro Emília Ferreiro e Ana Teberosky descrevem suas pesquisas experimentais realizadas na Argentina, durante os anos de 1974, 1975 e 1976, enquanto docentes da Universidade de Buenos Aires, no livro Psicogênese da Língua Escrita, publicado no Brasil em 1985, pela editora Artes Médicas. Os estudos das pesquisadoras foram embasados na epistemologia e psicologia de Jean Piaget, mas trataram de um campo do conhecimento que ele desconhecia, utilizando sua teoria e seu método científico. De acordo com a concepção teórica de Piaget, a aquisição de conhecimentos se faz na atividade do sujeito em interação com o objeto Unidade 2 • A Psicogênese da Língua Escrita52/158 de conhecimento. No caso da escrita, a criança é confrontada com este objeto cultural e demonstra ideias, teorias, hipóteses que constrói sobre ele, colocando-as à prova, frente à realidade e às ideias de outras pessoas. O método piagetiano de exploração das noções infantis através de um diálogo, durante o qual o experimentador elabora hipóteses sobre as razões do pensamento da criança, provoca perguntas e cria situações para testar, no próprio momento, suas hipóteses, resulta ser – neste campo como em muitos outros – o mais frutífero método. Este método permite distinguir as ideias básicas sustentadas por uma grande quantidade de crianças, das reações imediatas da criança interrogada que pensa ser necessário dizer ou fazer algo, simplesmente para responder. Mais ainda, este método permite ao experimentador que sabe usá-lo com tanta habilidade quanto as autoras deste livro, ver a maneira como se modificam as noções da criança até chegar a adquirir, reconstituindo-o, um conceito que a humanidade custou tanto a elaborar. (SINCLAIR, 1985, p. 13) Unidade 2 • A Psicogênese da Língua Escrita53/158 Preocupadas com o grande índice de crianças que não aprendiam a ler e escrever, que se encontravam fora do sistema educacional ou que o deixavam antes de chegarem à 4ª série do primeiro grau (hoje denominado Ensino Fundamental), em todos os países da América Latina, Ferreiro e Teberosky (1985) buscaram uma explicação dos processos e das formas pelas quais as crianças chegam a aprender a ler e escrever. Compreender tais processos significava estudar o caminho que as crianças percorrem para entender as características, o valor e a função da escrita. Para as pesquisadoras, o problema do analfabetismo, causado pelo fracasso escolar, pela evasão e repetência tem mais dimensões sociais que individuais. Por isso, elas sugerem que o problema seja tratado como uma questão de seleção social do sistema educativo, e não como um “mal endêmico”; que a saída das crianças do sistema educativo seja interpretada como expulsão encoberta, e não como deserção. Essa nova proposição não significa apenas uma mudança de terminologia, mas a adoção de outro referencial interpretativo, considerando que a desigualdade social e econômica se manifesta também por meio da desigual distribuição de oportunidades educacionais (FERREIRO; TEBEROSKY, 1985). Ferreiro e Teberosky (1985) explicam que as crianças procuram ativamente compreender a natureza da linguagem, formulando hipóteses, buscando regularidades, colocando à prova suas antecipações e Unidade 2 • A Psicogênese da Língua Escrita54/158 criando sua própria gramática – que é criação original e não simples cópia do modelo adulto. Desconhecendo esta capacidade das crianças, o ensino tradicional pautava-se em duas suposições: que uma criança de seis anos não conseguia distinguir os fonemas do seu idioma, e que a escrita alfabética é uma transcrição fonética do idioma. A primeira suposição é falsa, pois durante a aprendizagem da linguagem oral as crianças já distinguem pares de palavras, como pau/mau; a segunda também é falsa, tendo em vista que nenhuma escrita constitui a transcrição fonética da língua oral. De acordo com as autoras, o ensino da língua não deve se deter na distinção de fonemas, mas deve levar à conscientização das diferenciações fonéticas que as crianças já sabem fazer. No entanto, Ferreiro e Teberosky (1985) reconhecem que: Dificilmente, a escola teria podido assumir esse “saber linguístico” da criança antes que a psicolinguística o tivesse colocado em evidência; mas podemos agora ignorar os fatos? Podemos continuar atuando como se a criança nada soubesse a respeito da sua própria língua? Podemos continuar atuando de tal maneira que obriguemos a ignorar tudo o que ela sabe sobre a língua para ensinar-lhe, precisamente, a transcrever esta mesma língua em código gráfico? (FERREIRO e TEBEROSKY, 1985, p. 25) Unidade 2 • A Psicogênese da Língua Escrita55/158 Além das concepções que as crianças constroem sobre a língua, Ferreiro (1995) também coloca a importância de se atentar para a forma como a escrita é concebida. A pesquisadora explica que a escrita pode ser considerada como uma representação da linguagem ou como um código de transcrição gráfica das unidades sonoras. As diferentes formas de conceber a escrita ocasionam consequências pedagógicas também diferenciadas. Se a escrita é concebida como um sistema de representação, sua construção envolve um processo de diferenciação dos elementos e relações reconhecidas no objeto apresentado, bem como uma seleção dos elementos e relações que serão retidos na representação. O vínculo entre um sistema de representação e a realidade que representa pode ser de tipo analógico ou arbitrário. No caso da codificação, os elementos e as relações já se encontram predeterminados, e um novo código apenas encontrará formas diferentes de representar os elementos e relações encontrados em um sistema (é o caso do braile, por exemplo). Ao entrarem em contato com os dois sistemas envolvidos no início da alfabetização, o de representação dos números e o de representação da linguagem, as crianças enfrentam dificuldades conceituais semelhantes àquelas vivenciadas pelos povos na construção do sistema. Portanto, pode-se afirmar que as crianças reinventam esses sistemas. Unidade 2 • A Psicogênese da Língua Escrita56/158 Bem entendido: não se trata de que as crianças reinventem as letras nem os números, mas que, para poderem se servir desses elementos como elementos de um sistema, devem compreender seu processode construção e suas regras de produção, o que coloca o problema epistemológico fundamental: qual é a natureza da relação entre o real e a sua representação? (FERREIRO, 1995) Emília Ferreiro (1995) enfatiza que a distinção entre sistema de representação e código não é apenas terminológica, mas traz consequências para a ação alfabetizadora: se a escrita é concebida como um código de transcrição, que converte unidades sonoras em unidades gráficas, será privilegiada a discriminação perceptiva nas modalidades auditiva e visual, considerando como dificuldade para aprender a ler e escrever a incapacidade de discriminar formas visuais e auditivas; se a escrita é concebida como um sistema de representação, sua aprendizagem se fará pela apropriação de um objeto de conhecimento. No primeiro caso, a aprendizagem da escrita é vista como uma técnica; no segundo, ela significa uma aprendizagem conceitual. Unidade 2 • A Psicogênese da Língua Escrita57/158 Essa diferenciação esclarece que, por trás das ações pedagógicas dos educadores, há sempre um conjunto de ideias que as orientam, mesmo quando não se tem consciência delas. Portanto, para compreender suas ações é preciso desvelar qual a sua concepção: sobre o conteúdo a ser ensinado, sobre o processo de aprendizagem e sobre como deve ser o ensino (WEISZ, 2002). No próximo tópico deste capítulo, você estudará as concepções que as crianças constroem sobre o sistema de escrita. Unidade 2 • A Psicogênese da Língua Escrita58/158 Para saber mais Emilia Ferreiro nasceu na Argentina em 1936. Doutorou-se na Universidade de Genebra, sob orientação do biólogo Jean Piaget, cujo trabalho de epistemologia genética (uma teoria do conhecimento centrada no desenvolvimento natural da criança) ela continuou a desenvolver, estudando um campo que o mestre não havia explorado: a escrita. A partir de 1974, Emilia desenvolveu na Universidade de Buenos Aires uma série de experimentos com crianças que deu origem às conclusões apresentadas em Psicogênese da Língua Escrita, assinado em parceria com a pedagoga espanhola Ana Teberosky e publicado em 1979. Emilia é hoje professora titular do Centro de Investigação e Estudos Avançados do Instituto Politécnico Nacional, da Cidade do México, onde mora. Além da atividade de professora - que exerce também viajando pelo mundo, incluindo frequentes visitas ao Brasil -, a psicolinguista está à frente do site www.chicosyescritores. org, em que estudantes escrevem em parceria com autores consagrados e publicam os próprios textos. Unidade 2 • A Psicogênese da Língua Escrita59/158 2. As Concepções das Crianças sobre a Escrita As produções espontâneas das crianças, que não são resultado de cópias, indicam suas explorações para a compreensão do sistema de escrita. Ao escreverem algo, tal como acreditam que poderia ou deveria representar um conjunto de palavras, as crianças oferecem valiosos documentos que precisam ser interpretados, a fim de que sejam avaliados. Essas escritas espontâneas têm sido chamadas de garatujas, um puro jogo. No entanto, aprender a interpretá-las constitui um longo aprendizado, que requer atitude teórica definida (FERREIRO,1995). Para saber mais Fonte: <http://revistaescola.abril.com. br/lingua-portuguesa/alfabetizacao- inicial/estudiosa-revolucionou- alfabetizacao-423543.shtml>. http://revistaescola.abril.com.br/lingua-portuguesa/alfabetizacao-inicial/estudiosa-revolucionou-alfabetizacao-423543.shtml http://revistaescola.abril.com.br/lingua-portuguesa/alfabetizacao-inicial/estudiosa-revolucionou-alfabetizacao-423543.shtml http://revistaescola.abril.com.br/lingua-portuguesa/alfabetizacao-inicial/estudiosa-revolucionou-alfabetizacao-423543.shtml http://revistaescola.abril.com.br/lingua-portuguesa/alfabetizacao-inicial/estudiosa-revolucionou-alfabetizacao-423543.shtml Unidade 2 • A Psicogênese da Língua Escrita60/158 Afirmar que as crianças sabem algo sobre a escrita não significa dizer que dominem um conhecimento socialmente aceito sobre ela, mas que constroem concepções que explicam um conjunto de fenômenos ou de objetos da realidade. As crianças podem conhecer o nome ou o valor sonoro das letras e não compreender o sistema de escrita. Por outro lado, podem obter avanços na compreensão do sistema sem ter recebido informações a respeito do nome das letras (FERREIRO,1995). Veja a explicitação das concepções construídas pelas crianças, a partir das interações que mantêm com a escrita, enquanto objeto de conhecimento. 2.1 Hipóteses Infantis sobre a Escrita As primeiras escritas infantis surgem como linhas onduladas ou quebradas (ziguezague), contínuas ou fragmentadas ou como uma série de elementos repetidos (linhas verticais ou bolinhas). A aparência gráfica dos escritos não garante que sejam tentativas de escrita. É preciso conhecer as condições em que foram produzidos para que se possa afirmar suas intenções. Unidade 2 • A Psicogênese da Língua Escrita61/158 Fonte: <http://www.scielo.br/img/revistas/rcefac/v16n2//1982-0216-rcefac-16-2-0446-gf04.jpg> http://www.scielo.br/img/revistas/rcefac/v16n2//1982-0216-rcefac-16-2-0446-gf04.jpg Unidade 2 • A Psicogênese da Língua Escrita62/158 Dentro de concepções tradicionais da escrita infantil, consideram-se apenas os aspectos gráficos das produções infantis, ignorando seus aspectos construtivos. Os aspectos gráficos têm a ver com a qualidade do traço, a distribuição espacial das formas, a orientação predominante (da esquerda para a direita, de cima para baixo), a orientação dos caracteres individuais (inversões, rotações etc). Os aspectos construtivos têm a ver com o que se quer representar e os meios utilizados para criar diferenciações entre as representações. (FERREIRO,1995, p. 18) Ferreiro (1995) descobriu que, sob o ponto de vista construtivo, a escrita das crianças segue uma evolução regular, em diversos meios culturais, situações educativas e em diversas línguas. A evolução dessa escrita pode ser dividida em grandes períodos, que comportam muitas subdivisões. Unidade 2 • A Psicogênese da Língua Escrita63/158 2.1.1 Distinção entre o Modo de Representação Icônico e Não Icônico Durante esse período, as crianças adquirem duas distinções básicas, figurativas (não servem para escrever) e não figurativas (servem para escrever); a constituição da escrita como objeto substituto. É de fundamental importância a distinção entre “desenhar” (domínio do icônico) e “escrever” (domínio do não icônico): no primeiro, os grafismos reproduzem as formas dos objetos; no segundo, a forma dos grafismos não reproduz a forma dos objetos. Portanto, a arbitrariedade das formas, utilizadas em ordenação linear, caracteriza a escrita pré- escolar (FERREIRO,1995). A arbitrariedade ainda não significa, necessariamente, a convencionalidade, mas as formas convencionais podem aparecer precocemente. Essas características indicam que as crianças não tentam inventar letras novas, mas adotam as letras utilizadas no uso social. Fonte: <http://portfolioacademico.blogspot. com/2008/11/o-grafismo-infantil.html> http://portfolioacademico.blogspot.com/2008/11/o-grafismo-infantil.html http://portfolioacademico.blogspot.com/2008/11/o-grafismo-infantil.html Unidade 2 • A Psicogênese da Língua Escrita64/158 2.1.2 A Construção de Formas de Diferenciação (Controle Pro- gressivo das Variações sobre os Eixos Qualitativo e Quantitativo) Avançando em relação às diferenciações anteriores, as crianças se dedicam intelectualmente à diferenciação entre as escritas, a partir de critérios intrafigurais e interfigurais, que consistem em propriedades que o texto escrito deve apresentar para que seja interpretável. Os critérios intrafigurais se expressam sobre o eixo quantitativo, pela exigência de uma quantidade mínima de letras (geralmente três) necessárias para que uma escrita tenha significado, e sobre o eixo qualitativo, pela necessidade de uma variação interna entre os elementosde uma escrita, para que ela seja interpretada. Se uma escrita apresenta a mesma letra constantemente, ela não pode ser interpretada (FERREIRO,1995). Para saber mais Os critérios intrafigurais se referem às diferenciações quantitativa e qualitativa (variedade e quantidade) de letras dentro da mesma palavra. Os critérios interfigurais dizem respeito às diferenciações de tipos e quantidade de letras entre palavras diferentes. Estes critérios garantem que as palavras possam ser lidas, pois nesta fase as crianças acreditam que coisas diferentes são escritas de formas diferentes. Unidade 2 • A Psicogênese da Língua Escrita65/158 As próximas hipóteses construídas pelas crianças referem-se às diferenciações entre as escritas produzidas, a fim de “dizer coisas diferentes”. Essas diferenciações se dão por meio de critérios interfigurais, o que não significa o abandono das diferenciações intrafigurais. A preocupação, nessa fase, é criar formas sistemáticas de diferenciação entre uma escrita e a seguinte, com o intuito de garantir diferentes interpretações. Por isso as crianças exploram critérios que permitem variações dentro do eixo quantitativo (utilizar várias letras) e qualitativo (utilizar letras diferentes). Constata-se, portanto, que a coordenação dos modos de diferenciação no eixo quantitativo e qualitativo constitui uma atividade cognitiva difícil (Id. Ibid.). Unidade 2 • A Psicogênese da Língua Escrita66/158 Fonte: <http://cantinhocriativodalu.blogspot.com/2009/08/textos-e-artigos.html> http://cantinhocriativodalu.blogspot.com/2009/08/textos-e-artigos.html Unidade 2 • A Psicogênese da Língua Escrita67/158 2.1.3 A Fonetização da Escrita (que se Inicia com um Período Silábico e Culmina no Período Alfabético) Nos períodos anteriores, o que a criança escreve não está regulado por diferenças ou semelhanças entre os significantes sonoros. O terceiro período é marcado pela atenção às propriedades sonoras do significante, com a descoberta de que as partes da escrita (suas letras) podem corresponder às partes da palavra (sílabas). No âmbito do eixo quantitativo, as crianças descobrem que a quantidade de letras usadas para escrever pode corresponder à quantidade de partes que são emitidas oralmente (sílabas). Com esta descoberta, inicia-se o período silábico, que evolui até chegar a uma exigência rigorosa: uma sílaba por letra, sem omitir sílabas e sem repetir letras (FERREIRO,1995). A hipótese silábica é da maior importância, pois permite obter um critério geral para regular as variações quanto à quantidade de letras a serem usadas; centra a atenção das crianças nas variações sonoras entre as palavras. Unidade 2 • A Psicogênese da Língua Escrita68/158 Fonte: <http://cantinhocriativodalu.blogspot.com/2009/08/textos-e-artigos.html> Com o tempo, esta hipótese cria suas próprias condições de contradição: entre o controle silábico e a quantidade mínima de letras que uma escrita necessita para que seja interpretável http://cantinhocriativodalu.blogspot.com/2009/08/textos-e-artigos.html Unidade 2 • A Psicogênese da Língua Escrita69/158 (exemplo – o monossílabo: deveria ser escrito com apenas uma letra, mas, com somente uma letra, não é possível ler o que está escrito); entre a interpretação silábica e as escritas produzidas pelos adultos (que utilizam mais letras para escrever) No eixo qualitativo, outro conflito é enfrentado pela criança: as letras passam a adquirir valores sonoros (silábico) estáveis, ou seja, as partes sonoras semelhantes entre as palavras são expressas por letras semelhantes. Os conflitos desestabilizam a hipótese silábica e há uma transição para o período silábico-alfabético. A criança descobre que a sílaba não pode ser considerada uma unidade, mas pode ser analisada em seus elementos menores, compreendendo o sistema de escrita. Esta fase também acarreta novos problemas: no eixo quantitativo, não basta uma letra por sílaba, mas não é possível estabelecer uma regularidade (duplicando a quantidade de letras por sílaba); no eixo qualitativo, problemas de ordem ortográfica serão enfrentados (a identidade de som não garante a identidade de letras, e vice- versa) (Id. Ibid.). Unidade 2 • A Psicogênese da Língua Escrita70/158 Fonte: <http://revistaescola.abril.com.br/lingua-portuguesa/portfolio-milca-santos.shtml?ft=1p> http://revistaescola.abril.com.br/lingua-portuguesa/portfolio-milca-santos.shtml?ft=1p Unidade 2 • A Psicogênese da Língua Escrita71/158 Fonte: <http://cantinhocriativodalu.blogspot.com/2009/08/textos-e-artigos.html> http://cantinhocriativodalu.blogspot.com/2009/08/textos-e-artigos.html Unidade 2 • A Psicogênese da Língua Escrita72/158 2.2 Sondagem das Hipóteses de Escrita das Crianças A sondagem é um recurso utilizado para conhecer as hipóteses que as crianças estão construindo sobre a escrita alfabética. Durante a sondagem, as crianças também têm a oportunidade de refletir enquanto escrevem, a partir das intervenções do adulto. A sondagem pode ser proposta de diferentes maneiras: por meio de uma relação de palavras, acompanhadas ou não de frases ou de uma produção espontânea de texto ou outra atividade de escrita. Entretanto, a escrita proposta deve ser acompanhada da leitura imediata do que foi escrito, a fim de descobrir se a criança estabelece correspondência entre a leitura e a escrita, e de qual natureza é esta correspondência. Portanto, a sondagem revela se a criança faz ou não relações entre fala e escrita e, se faz, de que tipo é essa relação (nível pré- silábico, silábico ou silábico-alfabético) (MEC, 1999). Realizar sondagens no decorrer do ano (pelo menos três vezes) é de fundamental importância para o trabalho dos professores, pois ela fornece informações sobre a evolução “histórica” das escritas infantis. Por meio deste procedimento, é feita uma avaliação diagnóstica do processo de aprendizagem do sistema alfabético, que não é estática: ela representa o momento em que foi realizada e seus resultados podem mudar de um dia Unidade 2 • A Psicogênese da Língua Escrita73/158 para o outro (Id. Ibid.). Frequentemente, as hipóteses infantis sobre a escrita avançam durante a execução da sondagem, devido aos questionamentos que o professor faz, obrigando a criança a pensar para solucionar problemas na construção do que está escrevendo. Uma sugestão de sondagem, oferecida por equipes de construtivistas que elaboram os programas oficiais de alfabetização e formação continuada de professores do Estado de São Paulo, consiste numa relação de palavras e uma frase, considerando as seguintes orientações: • A relação de palavras deve ser iniciada por um polissílabo e terminar com um monossílabo. • As palavras devem apresentar letras variadas, evitando-se repetição de letras. • As palavras devem ser ditadas sem “silabar”, ou seja, devem ser pronunciadas naturalmente pela pessoa que entrevista. • Cada palavra escrita deve ser imediatamente acompanhada da leitura pela criança. • Durante a sondagem, a professora deve registrar a escrita e a leitura do aluno, juntamente a outras informações que considerar relevantes, em uma folha à parte. • Na frase proposta para o final da sondagem, deve-se utilizar pelo Unidade 2 • A Psicogênese da Língua Escrita74/158 menos uma das palavras que fazem parte da lista, a fim de que se possa observar se há estabilidade na escrita (MEC, 1999). As listas de palavras devem ser escritas uma abaixo da outra, devem pertencer a um mesmo campo semântico e terem uma função pragmática. Por exemplo, pode-se propor palavras que fazem parte de uma lista de compras, de uma lista de livros da classe, de animais conhecidos, de material escolar, de brinquedos ou comidas encontradas em festas de aniversário. Veja, a seguir, alguns exemplos de listas no Quadro 2.1: Quadro 2.1: Lista de palavras para sondagem de hipóteses de escrita Lista de animais Lista de partes
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