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1 FACULDADE ÚNICA DE IPATINGA Alfabetização e Letramento 2 SUMÁRIO Unidade 1: O Contexto Histórico da Alfabetização.......................................................................... Unidade 2: A Psicogênese da Língua Escrita ................................................................................ Unidade 3: Alfabetização e Letramento ......................................................................................... Unidade 4: A leitura: uma aprendizagem ........................................................................................... Unidade 5: A importância dos jogos .................................................................................................. Unidade 6: Produzindo conhecimento coletivo: projetos .................................................................... Unidade 7: Uso da Tecnologia na Alfabetização ............................................................................... Unidade 8: Ambiente Alfabetizador ................................................................................................... 3 INTRODUÇÃO Assumir a postura de um profissional que se apresente como mediador do conhecimento é compreender a diversidade e as complexidades que surgem na individualidade de cada educando diante de suas necessidades e potencialidades. Estudar em EaD não é uma tarefa tão fácil como muitos pensam, os desafios são constantes. Vale ressaltar que esta modalidade também permite muitas vantagens na aquisição de um curso superior, como a possibilidade da interatividade entre colegas, tutores e técnicos administrativos que auxiliam na construção da aprendizagem dentro do conforto de sua casa. O Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA) disponibiliza uma gama de recursos, tecnologias da comunicação e ferramentas de apoio à aprendizagem que permitem a interação acima, entre elas estão: fóruns, chats, videoconferências, simulações e exercícios on-line. Não poderíamos esquecer que muitas pessoas gostam de ler e estudar o material de maneira física, fazendo suas anotações, grifos e dialogando com os autores a partir de comentários ou apresentando dúvidas para serem sanadas pelo tutor ou para serem compartilhada com os colegas. Buscando mais uma alternativa para apoiar os(as) alunos(as) em seus estudos, esta coletânea foi elaborada com o objetivo de facilitar a impressão de todos os capítulos de livros que estão disponibilizados no Ambiente Virtual de Aprendizado (AVA) para quem deseja estudar no material físico sem precisar imprimir os arquivos separados por unidades. Desta forma, o aluno poderá ter acesso a todos os textos que serão fundamentais para as atividades da disciplina em um só material. Bom trabalho e aproveite cada instante da oportunidade de construir conhecimento, pois este é um pilar fundamental para sua formação. Um abraço, Equipe Pedagógica ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO Virna Mac-Cord Catão O contexto histórico da alfabetização Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Analisar como o processo de alfabetização surgiu na Antiguidade. Reconhecer a importância do surgimento das cartilhas para o processo de alfabetização. Descrever o processo de alfabetização nos dias atuais. Introdução A escrita tem origem na evolução da comunicação, iniciada com dese- nhos e, posteriormente, composta pela representação grafema-fonema, conhecida como alfabeto. Com o passar dos tempos, sua função inicial foi caracterizada de acordo com as necessidades e condições de cada era. A dimensão do contexto histórico que envolve a escrita vai desde sua invenção até a escolarização, culminando no uso de cartilhas baseadas nos métodos de alfabetização e em reflexões atuais sobre o letramento. Neste capítulo, você vai ver como o processo de alfabetização surgiu na Antiguidade. Também vai compreender, por meio da contextuali- zação histórica, a importância do surgimento das cartilhas para o pro- cesso alfabetizador. Por fim, você vai estudar o processo alfabetizador contemporâneo. O processo de constituição da alfabetização na Antiguidade A escrita tem origem no mundo antigo, num momento histórico marcado pelo desenvolvimento da civilização, das artes, do governo, do comércio, da agricultura, da manufatura e dos transportes. De acordo com Barbosa (2013), a escrita é considerada um marco da passagem da pré-história para a história. Ao analisar o desenvolvimento da escrita, é fundamental conhecer suas condições de realização. A escrita foi inventada na Antiguidade pela necessidade de se fazer um registro da própria história da humanidade, pois, até então, o que predominava eram os relatos orais. Então, o homem criou um código, ou seja, a escrita passou a ser um código utilizado para registrar e comunicar essa história. Esses primeiros registros eram rústicos e evoluíram com o passar dos tem- pos, até chegar à criação do alfabeto. Essa evolução partiu dos desenhos, organizou-se em hieróglifos (Figura 1), até chegar ao código alfabético que você conhece. Figura 1. Exemplo de hieróglifo. Fonte: Fernandes ([2018]). Essa condição inicial da escrita, também chamada de “pictórica”, mostra como a representação das ideias se deu, historicamente, de um registro menos elaborado para um mais elaborado. Tal condição demonstra a capacidade, já naquela época, de o homem evoluir, gradativamente, nas relações insti- tuídas com os símbolos. Da mesma forma, hoje, a partir de alguns estudos acerca da construção da língua escrita, se entende que a aprendizagem da escrita se dá, processualmente, do simples ao complexo. Isso significa que é extremamente relevante a ideia de evolução assinalada no ensino da escrita na educação escolar. O contexto histórico da alfabetização2 Como a escrita era originada de registros pictóricos, escrever era comparado ao ato de desenhar; assim, a escrita era considerada uma arte. Naquela época, não existiam livros impressos. Os materiais utilizados para a escrita eram de difícil manuseio. No começo, eram feitas marcações com instrumentos pontiagudos em pedras, argila, couro, evoluindo para o uso do papiro e do pergaminho (Figura 2), usando uma pena. Quantas habilidades eram neces- sárias para o uso desses instrumentos, não é? Figura 2. Pergaminho. Fonte: Andrey_Kuzmin/Shutterstock.com. A caligrafia era totalmente desenvolvida em movimentos diferenciados, como se de fato fosse uma grande obra de arte. A arte de escrever era dominada por poucos. Você pode perceber, assim, que a escrita sempre teve relação com o poder, pois estava restrita a poucos. Os escribas eram representantes dos reis que, por meio da escrita, registravam as leis. Para reforçar essa restrição, a arte passava de pai para filho, ou seja, esse conhe- cimento não era para todos. Naquela época, grandes bibliotecas foram organizadas, registrando os saberes construídos pela humanidade até então. Não existia a imprensa, não existiam o papel e a caneta e os livros eram manuscritos, o que dificultava mais ainda a democratização desse saber. As tecnologias da escrita vieram se modificando a partir dos tempos e, consequentemente, o acesso também. 3O contexto histórico da alfabetização O processo de escolarização da escrita e o surgimento das cartilhas Com as mudanças de paradigmas, e, consequentemente, o advento de novas tecnologias, Barbosa (2013) afi rma que a escrita na sociedade foi assumindo novas proposições e usos, o que vai do uso pela Igreja até a sua entrada na instituição chamada escola, durante a Modernidade. Quando a escrita entra na escola, ler e escrever passam a ser objetivos de ensino. Era necessário, portanto, pensar em metodologias que traduzissem e alcançassem esse objetivo. Mais tarde,as cartilhas serão ferramentas importantes na escolarização da escrita, como você vai ver a seguir. Os tempos históricos são marcados por mudanças paradigmáticas. Na Idade Média, ocorreu uma mudança que conduziu todos os princípios da humanidade à condição teocentrista de existência. Ou seja, o poder e o pensamento da Igreja predominavam na sociedade. Na Idade Média, muitos documentos escritos foram destruídos para que se utilizassem os papiros em que estavam grafados os registros. Naquela época, os documentos eram copiados para serem preservados. Alguns autores apontam que as transcrições eram até modificadas para manter a Igreja no poder. Os copistas faziam transcrições, que eram guardadas em grandes bibliotecas, sob o domínio da Igreja. Nessas bibliotecas, era impedido o acesso aos escritos considerados hereges, ou seja, aqueles que iam contra o poder hegemônico da Igreja. Dessa forma, mais uma vez a escrita estava atrelada às relações de poder instituídas na sociedade. Ainda assim, a Igreja teve grande importância na reprodução e na preservação de documentos. Surgem então as primeiras car- tilhas, como a Cartilha Civile Honesteté des enfants (Figura 3), que defendia a ideia de ensinar quatro letras por dia. Nesse período, os locais de ensino eram as próprias igrejas. O contexto histórico da alfabetização4 Figura 3. Cartilha Civile Honesteté des enfants. Fonte: Granjon (2009). Mas o que realmente influenciou o aparecimento das cartilhas foi a invenção da imprensa (Figura 4), por Gutemberg, durante o Renascimento, séculos XV e XVI. A criação da imprensa foi de grande valia para a difusão da escrita, pois assim o acesso estava mais disponível. As primeiras obras passaram a circular e a escrita ganhou espaço no cenário mundial. Figura 4. Imprensa. Fonte: Gutemberg (2015). 5O contexto histórico da alfabetização Naquele tempo, a princípio, aprendia-a a ler e a escrever em casa mesmo, decorando letras e repetindo e copiando as famílias silábicas. Era um pro- cesso mecânico, baseado na memorização. Nesse contexto, as cartilhas são elaboradas como livros didáticos que objetivam sistematizar, metodologi- camente, o ensino da língua escrita. As cartilhas geralmente eram (e ainda são) acompanhadas do manual do professor, o que, de certa forma, legitima a condição tecnicista que perdurou por séculos e séculos na alfabetização nas instituições escolares. No dicionário Houaiss (CARTILHA, 2001), você pode encontrar a etimologia da palavra “cartilha”, que tem origem na junção de dois prefixos, a saber: carta + ilha. Na época, a cartilha era um pequeno caderno ou livro com os primeiros movimentos para se apren- der o ABC. As cartilhas também ficaram conhecidas como “cartas de ABC” (Figura 5). Figura 5. Exemplo de cartas de ABC, primeiras cartilhas. Fonte: Ernesto Filho (2008). Essas cartilhas estavam pautadas em métodos, mais conhecidos como sintéticos e analíticos, cuja base organizacional estava na memorização, em exercícios repetitivos, na união e na separação das partes que constituem as letras, sílabas, palavras e textos. O contexto histórico da alfabetização6 O papel da escola perante a sociedade só ganhou força com a Revolução Francesa. “Escolarizar para alfabetizar” era o sonho republicano. Com a escola republicana, as crianças foram transformadas em alunos e, a partir daí, a escrita se tornou importante para essa instituição. A escola iniciou um processo de universalização da educação formal sob o controle do Estado. É o mito da alfabetização: saber ler e escrever para ascender socialmente. Nesse contexto, instrumentos diferenciados são utilizados para atender à grande massa: os “romances” são reproduzidos, o quadro de giz é criado e surgem outros instrumentos. A partir do momento em que a escola representa o “saber”, a generali- zação da alfabetização abre uma nova era na história da humanidade. As sociedades ocidentais iniciam um período caracterizado pela revolução permanente, que ressoa nos planos político, econômico, social e cultural. Essa época foi marcada pela emergência das nações democráticas, pelo avanço da industrialização, pelo crescimento das cidades e pela erupção do individualismo, bem como pela supremacia da cultura visual. Esse período também se caracteriza predominantemente pela metodização, ou seja, pela preocupação com o “como se ensina” em detrimento do “como se aprende”. Os primeiros métodos foram os sintéticos, como o alfabético (ou soletração), o fônico e o silábico. Eram métodos em que a marcha da alfabetização partia das menores porções da língua. Em contrapartida, havia os métodos analíticos, em que a marcha ocorria de forma contrária, ou seja, partia do todo para as partes. A alfabetização nos dias atuais Aqui, você vai ver a transição da alfabetização enraizada em metodologias e seus instrumentos correspondentes, as cartilhas, para uma concepção mais cognitivista e sociointeracionista. Essa transição traz a ideia de que a leitura e a escrita são construções e processos ativos e refl exivos. A partir do momento em que a alfabetização passa a ser o sonho republi- cano no Brasil, ela ganha impulso com o movimento escolanovista dos anos 1930, que preconizava uma escola pública, gratuita, obrigatória e laica, de acordo com os estudos de Mortatti (2000; 2009). Nesse cenário, Lourenço Filho (2008) lança os testes ABC, que se sustentavam em exercícios de prontidão para a alfabetização (Figura 6). Esses exercícios, por incrível que pareça, são vinculados à prática docente até hoje, limitando a alfabetização à mecanização da escrita. 7O contexto histórico da alfabetização Figura 6. Exemplo de um exercício de prontidão. Fonte: Lourenço Filho (2008). Por muito tempo, as escolas brasileiras alfabetizaram seus alunos por meio de métodos e cartilhas, com ênfase em exercícios mecânicos (CARVALHO, 2007). Mais tarde, como afirma Moll (1996), há uma modificação na centra- lidade da alfabetização, relacionada aos estudos piagetianos. Assim, ganha destaca o “como se aprende” em detrimento do “como se ensina”, até então onipotente na produção escolar. A perspectiva piagetiana considera que as crianças, em suas relações com o mundo, têm ideias próprias sobre a escrita e constroem significados a partir do contato simbólico. Nessa direção, Carvalho (2007) sinaliza que ganha força a pesquisa realizada por Emilia Ferreiro intitulada Psicogênese da Língua Escrita. Essa pesquisa demonstra que a construção da escrita se dá por meio de um processo gradual e contínuo, ou seja, do conhecimento menos elaborado, mais rústico da escrita, para um conhecimento mais elaborado, uma escrita mais alfabética. Emilia Ferreiro resgata os pressupostos epistemológicos da teoria de Piaget para aplicá-los na análise do aprendizado da língua escrita. No entanto, o objetivo de suas investigações não é a prescrição de novos métodos para o ensino da leitura e da escrita, muito menos a proposta de novas formas de classificar as dificuldades de aprendizagem. Os estudos de Emilia Ferreiro desvendam a “caixa-preta” dessa aprendizagem, demonstrando como são os processos existentes nos sujeitos na aquisição da língua escrita. O contexto histórico da alfabetização8 Leia mais sobre o trabalho de Emilia Ferreiro no texto disponível no link ou código a seguir. https://goo.gl/cdEpDj No Brasil, até os anos 1980, a aprendizagem da escrita era considerada apenas uma técnica dependente das cartilhas e de seus métodos de ensino, sus- tentada nas teorias psicológicas vinculadas ao empirismo (estímulo-resposta). De tal compreensão surgiram questionamentos que se consolidaram em uma proposta de desmetodização da alfabetização. Entende-se por desmetodização o momento pedagógico em que se desloca o eixo do “como se ensina” (método) para o “como se aprende” (processo de construção do conhecimento). Essa concepção surge a partir dos estudos construtivistas, acompa- nhada do abandono das teorias tradicionais e do questionamento douso das cartilhas. Você pode perceber, então, que o construtivismo deslocou o eixo de dis- cussão do “como se ensina” para o “como se aprende”. Logo, as teorias e práticas tradicionais foram abandonadas e as cartilhas, criticadas. Passou-se a entender que para se alfabetizar era necessário haver trocas entre o aluno e a língua escrita, mediadas pelo professor e pelo próprio grupo. No paradigma construtivista, a aprendizagem do educando é objeto de observação, entendimento e intervenção, de modo que se refutam os métodos e procedimentos de ensino tradicionais. Cabe ressaltar que nessa reinvenção da alfabetização alguns se aventuraram no repúdio aos métodos, porém outros, com medo do novo, preferiram permanecer no mecanicismo imposto pelos métodos e suas fiéis escudeiras, as cartilhas. No entanto, o problema persis- tia, pois aqueles que priorizavam o “como se ensina” ignoravam o “como se aprende”, e outros que defendiam a reinvenção da alfabetização pautada no “como se aprende” repudiavam o “como se ensina”. 9O contexto histórico da alfabetização Atualmente, sabe-se que, embora seja necessário, o conhecimento das letras não é suficiente para alguém ser competente no uso da língua escrita. A língua não é um mero código para comunicação. A linguagem é um fenômeno social, estruturado de forma dinâmica e coletiva. Portanto, a escrita também deve ser vista do ponto de vista cultural e social. Nessa direção, Magda Soares (2000) produz uma discussão sobre o termo “letramento” no Brasil. Para a autora, que difundiu os estudos acerca do tema, letramento e alfabetização têm especificidades próprias, cada processo com suas facetas. Assim: Letramento [...] — imersão das crianças na cultura escrita, participação em experiências variadas com a leitura e a escrita, conhecimento e interação com diferentes tipos e gêneros de material escrito — [...] alfabetização [...] — cons- ciência fonológica e fonêmica, identificação das relações fonema–grafema, habilidades de codificação e decodificação da língua escrita, conhecimento e reconhecimento dos processos de tradução da forma sonora da fala para a forma gráfica da escrita (SOARES, 2000, p. 15). Ao afirmar que letramento e alfabetização têm suas facetas próprias, Magda Soares (2000) os coloca, cada um, em uma face. O que significa isso? As faces se unem nos vértices, mas são elementos distintos que, ao se unirem, completam uma forma. Ou seja, para a pesquisadora, são processos diferentes, mas inseparáveis. Que mudanças aconteceram nos últimos tempos com relação à alfabetiza- ção? Pelo menos no campo teórico, muitas mudanças ocorreram. A principal é o diálogo entre o “como se ensina” e o “como se aprende”. Nessa relação, o aluno não é mais visto como passivo perante a alfabetização, e sim como um elemento que se relaciona com o mundo, a escola, as linguagens, a leitura e a escrita. Cabe a você, como professor, articular, portanto, a teoria com a prática. BARBOSA, J. J. Alfabetização e leitura. São Paulo: Cortez, 2013. CARTILHA. In: HOUAISS, A. Enciclopédia e dicionário. Rio de Janeiro: Moderna, 2001. CARVALHO, M. Alfabetizar e letrar: um diálogo entre a teoria e a prática. Petrópolis: Vozes, 2007. O contexto histórico da alfabetização10 ERNESTO FILHO, P. Ainda tenho guardada minha carta de abc. 2008. Disponível em: <http://www.perfilho.prosaeverso.net/audio.php?cod=15201%20(como%20 %C3%A9%20capa%20de%20livro,%20pode%20ser%20que%20encontrei%20em%20 outro%20site)>. Acesso em: 7 jun. 2018. FERNANDES, C. Hieróglifos egípcios. [2018]. Disponível em: <https://brasilescola.uol. com.br/historiag/hieroglifos-egipcios.htm>. Acesso em: 7 jun. 2018. GRANJON, R. Civilité. 2009. Disponível em: <https://coopertypography.wordpress. com/2009/03/02/civilite/>. Acesso em: 10 jun. 2018. GUTEMBERG: o criador da imprensa. 2015. Disponível em: <http://gcn.net.br/no- ticias/289730/criancas/2015/06/o-criador-da-imprensa>. Acesso em: 10 jun. 2018. LOURENÇO FILHO, M. B. Testes ABC: para a verificação da maturidade necessária à aprendizagem da leitura e da escrita. 13. ed. Brasília: INEP, 2008. Disponível em: <http://portal.inep.gov.br/documents/186968/484703/Testes+ABC+para+a+verific a%C3%A7%C3%A3o+da+maturidade+necess%C3%A1ria+%C3%A0+aprendizage m+da+leitura+e+da+escrita/1a6d156b-fd55-4115-a1b3-9e39ea469ed7?version=1.3>. Acesso em: 10 jun. 2018. MOLL, J. Alfabetização possível: reinventando o ensinar e o aprender. Porto Alegre: Mediação, 1996. MORTATTI, M. R. L. História dos métodos de alfabetização no Brasil. 2006. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Ensfund/alf_mortattihisttextalfbbr. pdf>. Acesso em: 7 jun. 2018. MORTATTI, M. R. L. Os sentidos da alfabetização. São Paulo: UNESP, 2000. SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. Leituras recomendadas FERRARI, M. Emilia Ferreiro, a estudiosa que revolucionou a alfabetização. Nova Escola, out. 2008. Disponível em: <https://novaescola.org.br/conteudo/338/emilia-ferreiro- -estudiosa-que-revolucionou-alfabetizacao>. Acesso em: 7 jun. 2018. SOARES, M. Alfabetização e letramento. São Paulo: Contexto, 2003. 11O contexto histórico da alfabetização ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO Fabiola dos Santos Kucybala A psicogênese da língua escrita Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Reconhecer a psicogênese da língua escrita não como um método, mas como um processo de aquisição da língua escrita. Analisar as hipóteses de escrita (pré-silábica, silábica, silábico-alfabética, alfabética e ortográfica). Identificar o “erro” como construtivo no processo de alfabetização. Introdução O processo de aquisição da língua escrita pelas crianças é uma temá- tica muito discutida no campo da educação, principalmente a partir dos estudos de Emília Ferreiro e Ana Teberosky (1985) a respeito da psicogênese da língua escrita. Tais estudos apontam que as crianças constroem diferentes hipóteses sobre a escrita, resolvem situações- -problema, buscam conhecimentos e elaboram, analisam e refletem sobre aquilo que escrevem. Neste capítulo, você vai reconhecer a psicogênese não como um método pronto a ser seguido para se atingir uma aprendizagem sig- nificativa, e sim como um processo de aquisição da língua escrita em que o sujeito constrói suas ideias e conhecimentos a partir de diferentes hipóteses. Essas hipóteses e níveis de escrita, mais especificamente a pré-silábica, a silábica, a silábico-alfabética, a alfabética e a ortográfica, também serão analisados ao longo do texto. Além disso, você vai ver que o erro pode ser encarado como um processo construtivo no pe- ríodo de alfabetização, o que permite à criança aprender a partir da experimentação e percorrer caminhos que a auxiliem a alcançar níveis mais elevados de escrita. C04_Psicogenese.indd 1 28/05/2018 15:47:25 Psicogênese da língua escrita: um processo de aquisição da língua escrita Em meados de 1980, a educação começou a deixar de lado os métodos analíticos e sintéticos, voltados à repetição e à memorização de cartilhas com conteúdos artifi ciais e pouco interessantes. Tais conteúdos, como você deve imaginar, eram direcionados à aprendizagem da leitura e da escrita de forma mecânica e técnica. Nesse período, despontou uma nova concep- ção de alfabetização e surgiram os estudos e pesquisas da psicolinguista Emília Ferreiro e da pedagoga Ana Teberosky (1985). Essas autoras apre- sentam a psicogênese da língua escrita como um processo de aprendizado da criança que leva em consideração a compreensão da natureza da escrita e sua organização. Esses estudos surgiram a partir dos altos índices de fracasso escolar na área da alfabetização e passaram a ter relação com o construtivismo, campo analisado por Jean Piaget. A teoria de Piaget parte do conhecimento centrado no desenvolvimento natural da criança e na construção de situações de apren- dizagem. Ou seja, a criança é vistacomo um agente da sua compreensão, na medida em que constrói os conhecimentos vinculados aos contextos sociais em que está inserida. Desse modo, do ponto de vista da alfabetização, é importante criar opor- tunidades de interação em que a criança esteja em contato, desde muito cedo, com diversas formas e gêneros da linguagem oral e escrita, de maneira que aprenda, envolva-se, produza e construa respostas às situações-problema apresentadas ao longo do processo de aprendizagem. Teberosky e Colomer (2003, p. 79) destacam que: “A maneira como as crianças aprendem, o papel dos professores e o significado que dão à sua experiência pedagógica, am- plamente ignorados pela perspectiva reducionista, encontram-se no centro da perspectiva construtivista”. Nessa perspectiva construtivista, o professor assume um papel-chave no aprendizado: pensar em um ensino que atenda à diversidade presente em sala de aula, criando um ambiente acolhedor de construção de saberes que provoque novos aprendizados e crie desafios passíveis de serem resolvidos. Tal ambiente também deve atender às necessidades e características dos alunos, valorizar seus diferentes posicionamentos e ideias e promover a autonomia, a postura investigativa, a troca entre os pares e o respeito ao educando. A psicogênese da língua escrita2 C04_Psicogenese.indd 2 28/05/2018 15:47:26 O professor alfabetizador não é um mero reprodutor de métodos cujo objetivo é o domínio do código escrito. Pelo contrário, ele precisa ter clareza sobre qual concepção de alfabetização quer alicerçar em seu trabalho. Isso é possível a partir da constante formação e da reflexão mais aprofundada sobre a própria prática docente. Diante dos apontamentos levantados, por que dizer então que a psicogênese não é um método e sim um processo de aquisição da língua escrita? Em primeiro lugar, é importante conceituar a palavra “método”. Segundo o dicionário da língua portuguesa Priberam (MÉTODO, 2018, documento on-line), entre tantos significados, método seria “[...] o processo racional para chegar a determinado fim, conhecimento ou demonstração de verdade”. Diante disso, na perspectiva da educação, você pode considerar que um método é uma forma, um modelo que norteia os estudos e o trabalho do professor, determinando como esse trabalho deve ser realizado. Em segundo lugar, conforme relata Albuquerque (2012), a psicogênese se diferencia dos métodos tradicionais que priorizavam atividades de memori- zação, percepção, coordenação motora e repetição de palavras simples e de textos prontos e desconectados da realidade da criança. A psicogênese nasce a partir da alfabetização como apropriação das funções sociais da escrita e do aprendizado gradual com foco em como o aluno se alfabetiza. Aqui, o sujeito não é um mero objeto no processo de aprendizagem, mas um indivíduo capaz de produzir o próprio conhecimento e de procurar ativamente compreender e reconstruir a linguagem. É preciso, portanto, fugir da concepção de que a aprendizagem ocorre sem lógica e que se dá a partir de atividades motoras e de percepção, bem como da noção de que a memória serve apenas como depósito de informações. Nesse sentido, Albuquerque (2012) destaca que, após o início dos traba- lhos acerca da psicogênese da língua escrita, iniciaram-se muitas discussões contrárias aos métodos tradicionais para se alfabetizar, e a palavra método foi sendo substituída por práticas sociais de leitura e escrita. Portanto, é correto afirmar que não existem métodos e manuais a serem seguidos para se atingir a aprendizagem, tampouco algo que determine o que está certo ou errado na hora de alfabetizar. A aquisição da leitura e da escrita depende da relação da 3A psicogênese da língua escrita C04_Psicogenese.indd 3 28/05/2018 15:47:26 criança com a cultura escrita antes mesmo de ingressar na escola, sendo um trabalho que tem continuidade no início da alfabetização, a partir da com- preensão de que a leitura não consiste em decodificar, mas em compreender as diferentes formas e unidades linguísticas. Segundo essa teoria, o analfabetismo e, consequentemente, o fracasso escolar são problemas de proporção social e não uma consequência individual do sujeito que não tem capacidade de aprender. Pelo contrário, ele é responsável por buscar constantemente soluções para os problemas propostos. A criança, nesse sentido, não é impedida de avançar e ter contato com diferentes tipos de materiais escritos por não ter adquirido ainda o domínio e a capacidade de realizar a leitura de palavras isoladas. Longe disso: cada vez mais cedo, a criança tem a oportunidade de manusear, explorar e descobrir novas apren- dizagens a partir da compreensão da função social da escrita. Esse trabalho é potencializado por meio da inserção e do uso de textos atuais, contos, livros, histórias, poesias, jornais, revistas, o que possibilita que a criança esteja inserida em um ambiente alfabetizador. Você deve lembrar-se de que a qualidade do material ao qual a criança estará exposta influenciará a construção desse conhecimento. Além disso, o ambiente, tanto material quanto social, contribuirá para o levantamento de hipóteses e para o desenvolvimento de habilidades e competências de leitura. O ambiente alfabetizador deve ser aconchegante, rico em aprendizados e descobertas. Nele, a criança deve aprender a partir do manuseio de materiais didáticos que estejam ao seu alcance e que permitam que ela se sinta inserida em um processo alfabetizador. É importante você notar que um ambiente alfabetizador não se resume à decoração da sala de aula. Esse ambiente deve ser um local em que as crianças sejam capazes de manipular, tocar, explorar, experimentar e participar de novas vivências de leitura e escrita. E isso a partir de objetos produzidos por elas mesmas, que tenham significado e relação com o que está sendo desenvolvido em aula. Esse é um processo construtivo que só será alcançado se for relevante para a criança. A aquisição da língua escrita com base nesse pressuposto tem como eixo o processo vivenciado pelos alunos para aprender a ler e a escrever. Ela tam- bém se relaciona aos níveis em que eles se encontram a cada momento do ano letivo e a como se dá o processo de envolvimento entre corpo docente e corpo discente para a construção de saberes voltados à realidade em que a escola está inserida. A psicogênese da língua escrita4 C04_Psicogenese.indd 4 28/05/2018 15:47:26 Outro ponto importante é que a criança aprende na interação, no envol- vimento e na troca com os colegas que se encontram em níveis diferentes de escrita que o seu. Por isso, o professor deve conhecer como ocorrem essa aprendizagem e esse envolvimento para planejar e organizar os trabalhos em sala de aula. Do ponto de vista da prática pedagógica, é importante você refletir que a criança pensa sobre a escrita antes mesmo de entrar na escola e que esse processo independe da autorização ou do consentimento do professor para que tenha início. Para que a alfabetização se torne um processo construtivo, é necessário que o professor faça um movimento no sentido de reconhecer a importância da interação, da reflexão e da elaboração de desafios que envolvam a criança de forma prazerosa em situações-problema. Além disso, ele deve viabilizar a formação de um sujeito que pratique e exerça a escrita em diferentes situações sociais que lhe são oferecidas, adquirindo habilidades que lhe permitirão fazer o emprego concreto e significativo do ato de ler e escrever. Análise das hipóteses de escrita A discussão a seguir se inicia com as contribuições de Ferreiro e Tebe- rosky (1985) acerca das hipóteses de escrita que a criança elabora. Mesmo antes de se apropriar do sistema de escrita, a criança, à medida que tem oportunidades e contato com situações de leitura e escrita, vai construindo hipóteses, avançando na aquisição da base alfabética e pensando em como se escrevem as palavras. Para isso, é necessário que oprofessor, por meio de um diagnóstico ou de uma sondagem inicial realizada no início do ano letivo, acompanhe atentamente as dificuldades e evoluções presentes nesse processo. Essa sondagem possibilita detectar o nível de compreensão da criança em relação ao sistema alfabético, identificar as hipóteses e conhecimentos que faz a respeito do que lê e escreve e determinar como cada aluno se depara com o mundo da escrita. Além disso, ela auxilia o professor no planejamento de suas aulas conforme as necessidades de aprendizagem de cada aluno. Dessa forma, ele pode organizar intervenções adequadas à diversidade de saberes da turma. A sondagem caracteriza um momento em que a criança 5A psicogênese da língua escrita C04_Psicogenese.indd 5 28/05/2018 15:47:26 tem a possibilidade de refletir sobre o que está escrevendo, tornando o processo mais significativo. O indivíduo, para aprender a ler e escrever, necessita conhecer o sistema de escrita, e esse processo acontece de forma gradativa e em momentos diferen- ciados. À medida que constrói e reconstrói hipóteses, ele passa por diferentes etapas até chegar à escrita. Para compreender melhor como acontece o processo de desenvolvimento da leitura e da escrita, é importante que você conheça quais são as hipóteses que cada criança apresenta ao longo do seu período de apropriação do sistema de escrita. Ferreiro e Teberosky (1985) destacam que, para compreender o funciona- mento da língua, a criança passa por quatro níveis de hipóteses para a escrita alfabética — e você vai conhecer e ver exemplos de todas elas ao longo deste capítulo. São elas: pré-silábica, silábica, silábico-alfabética e alfabética, até finalmente chegar à hipótese ortográfica. Para entender melhor cada nível e as diferenças existentes em cada etapa, você vai ver a nomeação e a classificação de outros subníveis, cada qual com suas características peculiares na fase de evolução da criança. Além disso, você vai conhecer algumas estratégias e propostas de intervenção por parte do educador para que cada nível de aprendizagem avance na língua escrita. No entanto, antes de vê-las, é importante que você saiba como realizar a sondagem. A investigação a partir do teste da psicogênese deve acontecer individualmente. A criança deverá escrever quatro palavras do mesmo campo semântico (animais, frutas, objetos) ditadas pelo professor. A primeira palavra deve ser polissílaba, seguida de uma trissílaba, uma dissílaba e, por fim, uma monossílaba. Após a listagem das palavras, a última etapa é a escrita de uma frase que contenha uma das palavras citadas. Na Figura 1, a seguir, há uma lista com sugestões de palavras e frases, de acordo com diferentes campos semânticos, que o professor pode utilizar para realizar as testagens durante o diagnóstico com os alunos. A psicogênese da língua escrita6 C04_Psicogenese.indd 6 28/05/2018 15:47:26 Figura 1. Exemplos para a sondagem com os alunos. Fonte: Lopes (2013) Partes do corpo Sobrancelha Cabeça ou orelha Dedo ou unha Pé ou mão O menino machucou... Alimentos Espaguete Açúçar Leite Sal O menino gosta de leite. Higiene Sabonete Escova Gel A escova é azul. Temperos Cebolinha Pimenta Alho Sal A comida tem sal. Brinquedos Escorregador Boneca Bola Pá A bola é azul. Bebidas Vitamina Refresco Café Chá A vitamina é de uva. Sentimentos Alegria Carinho Amor Paz Hoje estou em paz. Ferramentas Furadeira Martelo Chave Pá O martelo quebrou. Festa junina Bandeirinha Pipoca Doce Som A bandeirinha é azul. Doces Gelatina, brigadeiro Paçoca Pudim Bis Eu comi gelatina de uva. Material escolar Lapiseira ou apontador Caderno ou caneta Livro ou lápis Giz O giz é branco. Animais Dinossauro Formiga ou coelho Cão ou rã A rã pulou no rio. As hipóteses descritas e analisadas a seguir foram fundamentadas a partir da Psicogênese da Língua Escrita, de Ferreiro e Teberosky (1985), contando com as contribuições de Grossi (1990a, 1990b, 1990c) e Morais e Leite (2012). Hipótese pré-silábica A hipótese pré-silábica é característica do período em que a criança não percebe a escrita como representação do que é falado, não havendo assim vínculos entre a linguagem oral e o que está sendo escrito. Essa hipótese pode ser dividida em dois níveis, o pré-silábico I e o pré-silábico II. 7A psicogênese da língua escrita C04_Psicogenese.indd 7 28/05/2018 15:47:27 Algumas características do nível pré-silábico I: a escrita não é formada por grafias convencionais, utilizando grafismos primitivos, predominando garatujas e pseudoletras, desenhos, símbolos e números; na escrita convencional, a criança não possui controle da quantidade, fazendo sucessões de grafias que só são interrompidas pelo limite da folha; há letras e números aleatórios; a criança pensa que, quando alguém lê para ela, está fazendo a leitura das figuras, portanto ela acredita que a escrita é outra maneira de desenhar algo. No exemplo da Figura 2, ambas as crianças que participaram da testa- gem encontram-se no nível pré-silábico I, mas apresentam diferentes formas de caracterizar a escrita. No primeiro quadro, a menina utiliza rabiscos ou garatujas para representar. Já no segundo, o menino faz a representação por meio de desenhos. Figura 2. Nível pré-silábico I. Fonte: Costa (2009). A psicogênese da língua escrita8 C04_Psicogenese.indd 8 28/05/2018 15:47:27 O nível pré-silábico II é caracterizado pelo processo em que: a criança conhece poucas letras e normalmente utiliza as letras do seu nome para escrever palavras; as letras são colocadas aleatoriamente na palavra, não havendo relação entre o som apresentado e a letra escrita; a criança pensa que existe uma quantidade mínima de letras para es- crever e parte de dois princípios, o primeiro de que as letras não podem ser repetidas, e o segundo de que deve utilizar as mesmas letras na palavra, apenas variando a sua ordem. há realismo nominal, ou seja, a capacidade de a quantidade de letras corresponder ao tamanho do objeto — se o objeto for grande, precisa de muitas letras, se for pequeno, de poucas letras. No exemplo da Figura 3, Bruno utiliza na escrita das palavras letras ale- atórias, sem relação com o som original. Maria, por sua vez, utiliza as letras do próprio nome para representar a escrita. Além disso, revela a presença do realismo nominal e a dificuldade de pensar a palavra independentemente do seu significado. Nesse caso, Maria, por acreditar que o elefante é grande, necessita utilizar mais letras para escrever essa palavra. Da mesma forma, ao escrever “formiga”, emprega poucas letras por ser um animal pequeno. Figura 3. Nível pré-silábico II. Fonte: Costa (2009). 9A psicogênese da língua escrita C04_Psicogenese.indd 9 28/05/2018 15:47:28 Para que esse aluno pré-silábico avance, é necessário que ele conheça as letras e o seu valor sonoro e que represente, na forma escrita, o papel das letras por meio da expressão da fala. Para isso, é preciso pensar em algumas estratégias e propostas didáticas importantes de trabalho com esse aluno. Entre elas, você pode considerar as listadas a seguir. Oportunizar contato com todas as letras, palavras e textos significativos que façam parte do cotidiano da criança. Trabalhar com as palavras contextualizadas e na sua totalidade (sílabas soltas não possuem muito sentido). Promover atividades de consciência fonológica em que a criança possa fazer uma análise da palavra de acordo com a sua dimensão sonora (quantidade de letras, sílaba inicial, sílaba final, tamanho e posição das letras nas palavras, etc.). Propiciar situações que levem os alunos a compreender as funções da escrita e a fazer relações do objeto com a palavra escrita. Utilizar jogos, brincadeiras, leituras, músicas, assim como a criação de histórias orais, a confecção de livros ilustrados e outros recursos para enriquecer o processo. Hipótese silábica A hipótese silábica caracteriza-sepela tentativa da criança de vincular a linguagem oral com a escrita. Essa hipótese é necessária e é um processo de construção original de cada alfabetizando, pois é o período em que a criança começa a encontrar uma regra para a escrita e a fortalecer sua capacidade de explicar de que forma está utilizando as letras nas palavras. Isso lhe dá segurança e lhe prepara para enfrentar novos desafi os. Essa escrita também se divide em dois níveis: silábico sem valor so- noro e silábico com valor sonoro. No primeiro, a criança representa, para cada sílaba, uma letra qualquer que não possui relação com o som que a palavra representa. Na Figura 4, a seguir, você pode ver um exemplo do nível silábico. A psicogênese da língua escrita10 C04_Psicogenese.indd 10 28/05/2018 15:47:28 Figura 4. Hipótese silábica sem valor sonoro. Fonte: Maria (2011). No exemplo da Figura 4, há a correspondência quantitativa entre a pronúncia oral das palavras e os sinais gráficos. Ou seja, a criança fez a seguinte relação: cada vez que abre a boca para pronunciar uma palavra, precisa utilizar uma letra. Se for escrever uma palavra com quatro sílabas, no caso, “brigadeiro”, deve utilizar quatro letras, mesmo que estas ainda não correspondam ao som original. Já no nível silábico com valor sonoro, a criança continua utilizando uma letra para cada sílaba, porém está iniciando o processo de relação entre a letra, o fonema e o som. As palavras podem ser expressas de forma vocálica (que inicia a escrita a partir de vogais) ou consonantal (a partir de consoantes). Nessa hipótese, a criança já supõe que a menor unidade seja a sílaba e tenta fonetizar a escrita, dando valor sonoro às letras. Ao escrever frases, pode utilizar uma letra para cada palavra. Na Figura 5, a seguir, nas duas testagens, as crianças representam as síla- bas por letras. No primeiro quadro, Gabriel escreve utilizando as vogais; no segundo, Júlia representa por meio das consoantes. Ambas possuem relação com o som das sílabas. 11A psicogênese da língua escrita C04_Psicogenese.indd 11 28/05/2018 15:47:28 Figura 5. Hipótese silábica com valor sonoro. Fonte: Hipóteses... (2013). Na hipótese silábica, para que a criança avance, é necessário que ela atri- bua valor sonoro a todas as letras. Para isso, o professor deve proporcionar atividades didáticas de reconhecimento da forma das letras e de associação grafema-fonema, assim como dar ênfase à primeira e à segunda letras na sílaba inicial da palavra, como forma de provocar dúvidas nas crianças sobre o número de letras necessárias para formar uma sílaba. Entre algumas sugestões, você deve estar atento à importância de: trabalhar com gravuras, desenhos e listas de palavras significativas para que a criança reconheça a letra inicial, a quantidade de sílabas, a classificação das palavras, a sílaba inicial e a sílaba final. analisar frases para contar o número de palavras, os espaços entre elas, o número de letras de cada palavra e o número de sílabas. trabalhar com letras e alfabeto móvel para que a criança possa ordenar, agrupar, montar e completar palavras. Hipótese silábico-alfabética Nessa hipótese intermediária, a criança começa a perceber que é necessário escrever mais de uma letra para formar uma sílaba. Ela entende o quanto se torna difícil ler uma palavra escrita silabicamente, da mesma forma que realizar a leitura de algo escrito pelos já alfabetizados. Inicia-se então a utilização e a A psicogênese da língua escrita12 C04_Psicogenese.indd 12 28/05/2018 15:47:29 combinação de vogais e consoantes numa mesma palavra. Aqui a criança está em transição entre as hipóteses silábica e alfabética e a sua escrita oscila, pois às vezes utiliza somente uma letra para cada sílaba e outras vezes representa as unidades menores, as sílabas e os fonemas. Na Figura 6, a seguir, você pode ver um exemplo da hipótese silábico-alfabética. Figura 6. Hipótese silábico-alfabética. Fonte: Hipóteses... (2013). É importante continuar investindo nas atividades propostas para o nível silábico, de maneira que a criança possa formular e resolver situações-problema de acordo com palavras significativas para o contexto em que está inserida, da mesma forma que possa representar os fonemas com as letras a fim de atingir a hipótese seguinte, a alfabética. É também fundamental o trabalho simultâ- neo de letras, sílabas, palavras e textos para que a criança possa relacionar e compreender as unidades linguísticas. Hipótese alfabética Na hipótese alfabética, a criança já compreende o sistema de escrita e sua função social. Nessa fase, a criança percebe que é necessário escrever mais de uma letra para formar a sílaba e tenta adequar a escrita à fala. Além disso, 13A psicogênese da língua escrita C04_Psicogenese.indd 13 28/05/2018 15:47:29 conhece o valor sonoro de quase todas as letras e consegue realizar a leitura do que escreve, porém ainda há a omissão de algumas letras e a necessidade de intervenções ortográfi cas. Na Figura 7, a seguir, você pode ver um exemplo da hipótese alfabética. Figura 7. Hipótese alfabética. Fonte: Flores (2015). Conforme a criança vai avançando em suas hipóteses, ela vai começando a compreender que é necessário separar as palavras ao escrever frases e peque- nos textos. Além disso, ela entende que precisa se preocupar com as questões ortográficas da língua, assim como refletir sobre a forma com que se escrevem as palavras. Por exemplo, ao escrever “cachorro”, se questiona se a palavra é escrita com X ou CH, com R ou RR. Por isso, é importante que o professor promova atividades voltadas à produção e à leitura de textos do cotidiano, de forma a aprofundar o estudo de palavras nas mais diferentes complexidades, a fim de proporcionar a compreensão de como a escrita se fundamenta. Por fim, o último nível que a criança atinge é o ortográfico, no qual ela supera as hipóteses anteriores e segue as determinações ortográficas. Você deve notar que não são necessariamente todos os alunos que atingirão o nível esperado ao mesmo tempo. Além disso, não se pode dizer que as atividades A psicogênese da língua escrita14 C04_Psicogenese.indd 14 28/05/2018 15:47:29 propostas deverão ser as mesmas independentemente da hipótese em que a criança está. Pelo contrário, o professor deverá traçar estratégias e agrupar os alunos para que possam variar entre o trabalho com colegas do mesmo nível de escrita e com colegas que estão em níveis diferentes, de forma que sejam estimulados a serem colaboradores e auxiliem-se no decorrer das atividades. No vídeo disponível no link a seguir, você vai ver que o processo de alfabetização e letramento ocorre a partir de três desenvolvimentos que acontecem articuladamente: o desenvolvimento psicogenético, o conhecimento das letras e a consciência fonológica. Magda Soares, professora especialista na temática alfabetização e letramento, aponta que o percurso que a criança traça ao longo do processo de alfabetização é um caminho de descoberta e construção do conhecimento da língua escrita. O professor tem o papel fundamental de orientar esse processo de forma sistemática e planejada. A partir de algumas situações de aprendizagem apresentadas no vídeo, é possível compreender e ter maior clareza sobre como cada fase acontece e sobre como são as intervenções do professor nesse trabalho. https://goo.gl/Ha4XhY Identificação do “erro” como construtivo no processo de alfabetização O processo de alfabetização é caracterizado pela construção de diferentes hipóteses elaboradas pela criança para chegar à escrita das palavras. Essa construção passa por um longo caminho em que o aluno analisa, experimenta e refl ete sobre o sistema de escrita alfabética, de maneira que, a partir de erros e acertos, vai formulando seus conhecimentos, organizando suas ideias até, fi nalmente, avançar em sua aprendizagem. Nessa perspectiva de construção do conhecimento, como o erro é visto no processode alfabetização? É importante, em primeiro lugar, descrever o erro antes dos estudos da psicogênese. Até meados de 1980, quando a alfabetização era concebida a partir dos métodos sintéticos e analíticos, as práticas de leitura e escrita eram muito sucintas. Da mesma forma, a avaliação realizada pelo professor era excludente e não levava em consideração os conhecimentos da criança. Pelo contrário, visava à mensuração de resultados e tinha como 15A psicogênese da língua escrita C04_Psicogenese.indd 15 28/05/2018 15:47:29 objetivo principal medir a aprendizagem do aluno, tornando-o apto ou não a progredir para o ano seguinte. Na concepção tradicional, as crianças chegavam ao ensino fundamental sem muitos conhecimentos relacionados à leitura e à escrita. Para que avançassem em seus estudos e desenvolvessem a maturidade para aprender, era necessário que adquirissem determinadas habilidades motoras e de prontidão. Para o processo formal, essas habilidades deveriam ser iniciadas já na pré-escola, que nos dias atuais corresponde à segunda etapa da educação infantil. Quando a criança ingressasse no ensino fundamental, deveria ser possível iniciar ime- diatamente o processo de memorização e conhecimento do código alfabético. A avaliação, nessa concepção, era vista como indispensável, pois era ela que indicaria se o aluno estava aprendendo ou não as unidades ensinadas pelo professor, sendo preciso garantir que a criança cometesse o menor número de erros para que prosseguisse em seus estudos. O erro, nesse sentido, era o indicador de que a criança não havia aprendido ou memorizado o conteúdo e era visto como algo que deveria ser evitado. A postura do educador frente ao erro despertava no aluno desânimo, baixa autoestima e desinteresse, o que contribuía para os crescentes casos de reprovação. O fracasso escolar e as repetidas retenções começaram a ser relacionados à forma tradicional que as escolas assumiam, da mesma maneira que o ensino e o modo de avaliar começaram a ser discutidos e aprofundados a partir dos estudos de Emília Ferreiro e Ana Teberosky (1985) acerca da psicogênese da língua escrita. A avaliação passa a ser vista sob um novo enfoque, em que as escritas não convencionais que as crianças elaboram servem como indicadores de que o aluno está refletindo sobre o que está escrevendo e formando diferentes hipóteses. Consequentemente, o erro assume uma proposta construtivista, segundo a qual a criança terá a possibilidade de aprender, interagir com outras formas de escrita e buscar lógicas para escrever livremente, sem se preocupar se a escrita está correta ou não. Ferreiro e Teberosky (1985, p. 30) fazem alguns apontamentos para o erro construtivo a partir das ideias de Piaget: [...] Para uma psicologia (e uma pedagogia) associacionista, todos os erros se pare- cem. Para a psicologia piagetiana, é chave o poder distinguir entre os erros aqueles que constituem pré-requisitos necessários para a obtenção da resposta correta. Nesse sentido, os erros cometidos pela criança devem ser considerados construtivos, visto que eles não devem ser impedidos, e sim permitidos a partir da possibilidade de acesso à resposta correta. A psicogênese da língua escrita16 C04_Psicogenese.indd 16 28/05/2018 15:47:29 Na proposta construtivista, as crianças são avaliadas a partir das conquistas e possibilidades potencializadas durante todo o ano letivo. Essa proposta leva em consideração o erro como forma de analisar o que o estudante pensa sobre os conteúdos trabalhados em sala de aula. Em detrimento da avaliação que visava à medição dos conhecimentos, agora os professores utilizam diferentes tipos de instrumentos avaliativos, tanto no âmbito individual quanto no coletivo, para identificar o que cada criança já desenvolveu, auxiliando-a a avançar em sua aprendizagem. A avaliação passa a ser contínua e processual e visa a incluir os alunos e contemplar os diferentes saberes existentes dentro da sala de aula. Alguns objetivos precisam ser analisados pelo professor antes de pensar na avaliação, sendo o principal deles a sondagem e a identificação dos conhe- cimentos que já foram construídos pela criança. A partir desse diagnóstico, é possível pensar no que já foi desenvolvido e no que ainda é necessário resgatar e trabalhar, utilizando diferentes alternativas e estratégias para verificar o percurso de aprendizagem percorrido pela criança ao longo do ano letivo. Diante desse pressuposto, a prática docente também assume o importante papel de proporcionar e favorecer diferentes oportunidades de aprendizagem para as crianças, com vistas a possibilitar que cada indivíduo, ao seu tempo, possa livremente testar suas hipóteses. Por isso, é fundamental o professor conhecer bem cada etapa e cada nível de escrita pelo qual a criança passa para, a partir daí, planejar atividades que lhe permita avançar em suas hipóteses. Identificar os conhecimentos de cada um acerca do sistema de escrita alfabética também é essencial, assim como compreender que os erros são necessários para que o sujeito evolua e, consequentemente, para que o processo se concretize. A partir desse trabalho, os professores podem fazer as intervenções ne- cessárias adequando-as a cada aluno e à diversidade de saberes existentes. O respeito a essa diversidade e a essa heterogeneidade de saberes vinculado ao planejamento de atividades significativas de acordo com a realidade da turma é que possibilitará que a aula se torne mais rica, dinâmica e participativa. Essas estratégias didáticas vêm ao encontro da concepção de avaliação de Ferreiro e Teberosky (1985), cujos objetivos estão voltados à progressão dos alunos em seus conhecimentos, levando em consideração as hipóteses que elaboram durante esse processo. No entanto, é preciso que a escola deixe claro também para as famílias que a forma de avaliação e a concepção de erro passaram por grandes mudanças ao longo das décadas. Assim, não é porque uma criança escreve, por exemplo, a palavra “rato” apenas com as letras “ao” que ela deve ser considerada errada. Pelo contrário, essa criança está em processo de construção da aprendizagem da língua escrita e esse é um passo importante que ela está vivenciando para que 17A psicogênese da língua escrita C04_Psicogenese.indd 17 28/05/2018 15:47:29 consiga avançar para a hipótese seguinte. Porém, é necessário que o professor retome constantemente a escrita correta das palavras e faça as intervenções necessárias para que a criança compreenda e reflita a partir de seus erros o que precisa ser modificado. Isso não significa que a professora irá dar as respostas prontas ou tampouco que vá dizer que a escrita está errada. Ela vai indicar caminhos, propor atividades e buscar outras maneiras de fazer com que os alunos compreendam esse processo. É importante quebrar alguns paradigmas, reconhecer e aceitar que o erro faz parte do processo de aprendizagem, principalmente no período de alfabetização. Da mesma forma, é preciso promover discussões também entre as escolas e as famílias, com o objetivo de esclarecer como acontece a aprendizagem inicial da língua escrita, qual o papel do professor frente ao erro e como este possibilitará que a criança reflita e avance em seus conhecimentos. Somente dessa maneira, por meio da parceria entre escola e família e da compreensão de como a criança constrói a sua aprendizagem, é que a avaliação na alfabetização poderá ser vista como um processo de conquistas. Nesse processo, serão identificadas as hipóteses e as possibilidades de cada educando, a fim de auxiliá-lo a compreender e se apropriar do sistema de escrita alfabética e, consequentemente, avançar na aprendizagem. ALBUQUERQUE, E. B. C. de. Concepções de alfabetização: o que ensinar no ciclo de alfabetização. In: BRASIL. Secretaria de Educação Básica. Pacto nacional pela alfabe- tização na idade certa: currículo na alfabetização: concepções e princípios: ano 1: unidade 1. Brasília:MEC, 2012. COSTA, L. dos S. T. As hipóteses de leitura e escrita: uma forma de compreender porque e como a criança aprende. 2009. Disponível em: <http://cantinhocriativodalu.blogspot. com.br/2009/08/textos-e-artigos.html>. Acesso em: 23 maio 2018. FERREIRO, E.; TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artmed, 1985. FLORES, C. Hipóteses na construção da escrita. 2015. Disponível em: <https://coruji- nhasdapedagogia.wordpress.com/2015/06/17/hipoteses-na-construcao-da-escrita/>. Acesso em: 23 maio 2018. GROSSI, E. P. Didática do nível pré-silábico. 10. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990a. GROSSI, E. P. Didática do nível silábico. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990b. GROSSI, E. P. Didática do nível alfabético. 9. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990c. A psicogênese da língua escrita18 C04_Psicogenese.indd 18 28/05/2018 15:47:30 HIPÓTESES de escrita. Educaipo, 2013. Disponível em: <http://educaipo.blogspot.com. br/2013/08/hipoteses-de-escrita.html#.WwX-zPkvxdh>. Acesso em: 23 maio 2018. LOPES, E. Tabela de nível de escrita e lista de campos semânticos. 2013. Disponível em: <http://edu-candoconstruindosaber.blogspot.com.br/2013/06/tabela-de-nivel-de- -escrita-e-lista-de.html>. Acesso em: 23 maio 2018. MARIA, I. Níveis conceituais da escrita. 2011. Disponível em: <http://sabidinhosdaioio.blo- gspot.com.br/2011/04/niveis-conceituais-da-escrita.html>. Acesso em: 23 maio 2018. MÉTODO. In: Priberam. 2018. Disponível em: <https://www.priberam.pt/dlpo/ m%C3%A9todo>. Acesso em: 23 maio 2018. MORAIS, A. G. de; LEITE, T. M. S. B. R. A escrita alfabética: por que ela é um sistema no- tacional e não um código? Como as crianças dela se apropriam? In: BRASIL. Secretaria de Educação Básica. Pacto nacional pela alfabetização na idade certa: a aprendizagem do sistema de escrita alfabética: ano 1: unidade 3. Brasília: MEC, 2012. TEBEROSKY, A.; COLOMER, T. Aprender a ler e a escrever: uma proposta construtivista. Porto Alegre: Artmed, 2003. Leitura recomendada NOVA ESCOLA. Alfaletrar: psicogênese da língua escrita. Youtube, 19 jul. 2017. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=aovD7Kq-Dmg>. Acesso em: 23 maio 2018. 19A psicogênese da língua escrita C04_Psicogenese.indd 19 28/05/2018 15:47:30 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO Fabiola dos Santos Kucybala Alfabetização e letramento Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Conceituar alfabetização. Definir letramento. Explicar a proposta de alfabetizar letrando. Introdução Os conceitos de alfabetização e letramento, as situações que permeiam esses processos, a prática pedagógica e a relação entre o ensino e a aprendizagem são temas atuais e recorrentes no cotidiano de professores e outros profissionais da educação. Nesse sentido, é necessário pensar em um ensino que atenda a toda a diversidade da sala de aula, com vistas à promoção de um ambiente que responda às necessidades e aos desejos dos educandos. Neste capítulo, você vai entender a concepção de alfabetização e letramento. Também vai refletir sobre a importância de o professor apre- sentar uma proposta de trabalho em que a criança vá além do conheci- mento de letras, sílabas e palavras. A ideia é que os alunos compreendam e exerçam práticas sociais utilizando a escrita e a leitura como parte do seu cotidiano. Conceito de alfabetização Antes de dar início às discussões, você deve conhecer o signifi cado da palavra alfabetização. Segundo o dicionário Houaiss, alfabetização é a “[...] ato de propagar o ensino ou difusão das primeiras letras” (ALFABETIZA- ÇÃO, 2009). Nesse sentido, se pode dizer que a alfabetização seria a ação de ensinar/aprender a ler e escrever. Essa ação permitirá que o sujeito crie novos conhecimentos. Maciel e Lúcio (2009, p. 14) complementam dizendo: C03_Alfa_letramento.indd 1 22/05/2018 10:56:02 A escrita, comparável a um instrumento, é vista como capaz de permitir a entrada do aprendiz no mundo da informação, seja possibilitando o acesso aos conhecimentos histórica e socialmente produzidos, seja criando condições diferenciadas para produção de novos conhecimentos. Soares (2004, p. 16) conceitua alfabetização como o “[...] processo de aquisição e apropriação do sistema da escrita”. Além disso, ela destaca a alfabetização como um “[...] conjunto de habilidades de uso da leitura e da escrita nas práticas sociais que envolvem a língua escrita” (SOARES, 2004, p. 16). Em outra obra, Soares (2006) complementa dizendo que, para entrar e viver no mundo do conhecimento, o sujeito precisa desenvolver duas habilidades. A primeira se relaciona ao domínio da escrita, que contempla o sistema alfabético e ortográfico, desenvolvido pela alfabetização. Já a segunda tem a ver com o domínio das competências e com o uso da escrita em diferentes situações e contextos, o que é obtido por meio do letramento. Seguindo a mesma linha, Paulo Freire (1983) afirma que a alfabetização é um ato criador, no qual o sujeito é agente da aprendizagem na medida em que vai aprendendo e compreendendo a leitura e a escrita. Segundo o autor, esse processo não acontece de forma mecânica ou desvinculada de um universo existencial, ele requer uma atitude e uma postura de criação e recriação. Freire (1991) também destaca que não basta apenas dominar a escrita, é preciso inserir o sujeito nesse mundo para que desenvolva uma leitura crítica das relações sociais. Se você analisar os dois conceitos, vai notar que ambos caminham para a mesma direção. Ambos entendem que alfabetizar não é apenas decodificar ou dominar a leitura e a escrita. É preciso ir além e se torna fundamental pensar na formação de sujeitos capazes de interpretar e transformar a leitura e a escrita utilizando-as em suas práticas cotidianas. Traçando uma breve trajetória da alfabetização, você pode perceber que até meados de 1980 ela era pensada a partir de métodos sintéticos e analíticos que resultavam em formas definidas de como o professor deveria ensinar. Nesses métodos, em especial no silábico ou no fônico, a criança repetia informações prontas, transmitidas por meio de cartilhas, nas quais aprendia a memorizar o nome e o traçado das letras, decorando seus sons. A correspondência som- -grafia e a memorização das famílias silábicas eram utilizadas nas atividades diárias do professor, de forma que a criança era exposta a textos prontos para fixar as letras e sílabas trabalhadas. Alfabetização e letramento2 C03_Alfa_letramento.indd 2 22/05/2018 10:56:02 Observe a frase a seguir. Ela exemplifica o método de alfabetização em que eram utilizadas palavras com as mesmas famílias silábicas. A criança, por meio da leitura repetitiva, deveria fazer a relação fonema-grafema. IVO VIU A UVA O trabalho era mecânico e bastava a criança decorar o nome das letras, o som e a junção das sílabas para formar palavras. A alfabetização, nesse caso, resumia-se à cópia e à repetição, sendo vista sob a perspectiva do professor, responsável por ensinar. Na maioria dos casos, as crianças, por repetirem tantas vezes as informações obtidas nas cartilhas, as decoravam. Contudo, não compreendiam por que cada letra era utilizada. Além disso, eram privadas de avançar em sua aprendiza- gem. Isso porque os professores acreditavam que a criança só poderia seguir para a leitura se, primeiro, passasse por esse processo. O chamado “período preparatório” visava a atividades de motricidade e percepção. Os trabalhos de Emília Ferreiro e Ana Teberosky (1985) mudaram o foco, pensando em como a criança aprende, se desenvolve e se apropria da língua escrita. A partir desses trabalhos, esses processos passaram a ser compre- endidos como uma construção contínua, desenvolvida concomitantemente dentro e fora da sala de aula, em processo interativo e que acontece desde as primeiras relações da criança com a escrita. Aqui, a criança não é mais vista como mero receptor de conhecimento, mas como umsujeito que pensa a escrita desde muito cedo, buscando compreender como ela funciona. As cartilhas são substituídas por atividades e elementos que fornecem indícios para a elaboração de atividades desafiadoras, a fim de que as hipóteses construídas pelos alunos sejam colocadas em pauta. Para perceber o Sistema de Escrita Alfabética (SEA), é preciso que a criança compreenda a suas propriedades. Esse sistema envolve um conjunto de hipóteses e, sabendo disso, o aluno pode realizar a leitura ou a escrita de novas palavras apenas memorizando a relação entre letra e som de forma produtiva. 3Alfabetização e letramento C03_Alfa_letramento.indd 3 22/05/2018 10:56:02 O Sistema de Escrita Alfabética significa muito mais que a aquisição de um código, como propunham as teorias tradicionais. Ele é um sistema no- tacional de representação da escrita, em que as habilidades perceptivas e de motricidade não têm um peso fundamental. Nesse caso, atividades reflexivas e desafiadoras auxiliarão a criança a compreender os segmentos sonoros da fala e das palavras. É preciso tratar a escrita alfabética como um objeto de conhecimento. Assim, o professor auxiliará o aluno a descobrir, reconstruir e se apropriar do SEA. Morais (2005, p. 45) destaca que para alfabetizar letrando é preciso: [...] reconhecer que a escrita alfabética é em si um objeto de conhecimento: um sistema notacional. Na esteira desse posicionamento, além de buscarmos abandonar o emprego das palavras “código”, “codificar” e “decodificar”, parece-nos necessário criar um ensino sistemático que auxilie, dia após dia, nossos alunos a refletir conscientemente sobre as palavras, para que venham a compreender como esse objeto de conhecimento funciona e possam me- morizar suas convenções. Nesse sentido, quando a criança ingressa na escola, é fundamental que o professor crie uma rotina diversificada, com diferentes atividades de reflexão e exploração sobre os níveis das palavras, assim como com a compreensão do sistema de escrita como um todo. Seguindo essa linha, é importante também promover habilidades de consciência fonológica, que permitirão que o sujeito reflita sobre as dimensões sonoras das palavras. As habilidades de consciência fonológica surgem à medida que a criança consegue refletir sobre as palavras na dimensão da sonoridade, percebendo que elas podem ser trabalhadas de diferentes formas. Vale apostar em ativi- dades que façam a criança identificar e compreender o que é uma palavra, quantas sílabas ela possui, quais os fonemas existentes e como são feitas as correspondências entre os fonemas e as letras. Por isso, você pode utilizar atividades que envolvam separação, contagem e comparação quanto ao tamanho ou semelhança sonora. Além disso, pode se valer de atividades que abrangem rimas, som inicial e som final, que contribuem para que o aluno perceba os sons da fala. Mas, sobretudo, o aluno deve ser incentivado a escrever e a elaborar hipóteses, mesmo que ainda não domine o sistema alfabético de escrita. A ideia é que a criança construa o conceito de língua escrita e caminhe por esse processo significativamente. Portanto, para que ela aprenda a ler e escrever, é necessário que seja exposta a situações que a desafiem a refletir sobre a língua, transformando as informações recebidas em saberes próprios. Alfabetização e letramento4 C03_Alfa_letramento.indd 4 22/05/2018 10:56:03 Conceito de letramento O letramento ocorre muito antes do ingresso na escola. Ele é um processo sistemático que envolve, além dos professores, pais e demais pessoas que convivem com a criança. Biazioli (2018) destaca que a criança, desde muito pequena, está inserida em um contexto letrado, rodeada de situações cotidianas que envolvem a leitura e a escrita. Entre essas situações, você pode considerar o uso de livros e revistas, as contações de histórias, as músicas e as cantigas de roda como exemplos práticos e concretos de como esse processo é rico quando apresentado desde os primeiros anos de vida. Quando o adulto apresenta o mundo da cultura à criança, ela se apropria, ou seja, ela internaliza, dando sentido àquilo que está vivenciando, conhecendo, experimentando. No link a seguir, Raquel de Godoy Retz (2018) destaca a importância de motivar e apresentar o mundo da leitura para as crianças desde muito pequenas. Ela também mostra o quanto é rico esse momento para desenvolver a criatividade, a imaginação e a interação entre pais e filhos. https://goo.gl/4Xtkbx Depois desse primeiro contato com os pais e familiares, é importante que as práticas sociais de letramento sejam promovidas. Elas devem ter início desde a educação infantil, em que a criança tem o seu primeiro convívio coletivo. Posteriormente, devem ter continuidade no ensino fundamental, em que serão criadas situações práticas para que esse processo seja aprimorado e aprofundado. É nesse período que a escola e, mais especificamente, o professor assumem um papel fundamental na inserção no ambiente letrado. Afinal, é necessário que tanto a sala de aula quanto os demais espaços da escola sejam vistos pela criança como lugares agradáveis e com múltiplas possibilidades de atividades e aprendizagens. Em síntese, é preciso instigar a criança a interagir com as práticas de letramento, alimentando seu desejo de estar na escola. Visitas à biblioteca, por exemplo, podem proporcionar à criança o contato com dife- 5Alfabetização e letramento C03_Alfa_letramento.indd 5 22/05/2018 10:56:03 rentes tipos de materiais escritos e possibilitar ainda uma experiência fora da sala de aula. Quanto mais objetos, instrumentos, linguagens, gêneros e portadores de textos de conhecimento da criança forem utilizados, maior será o sentido, o desejo e o significado internalizado por ela. Pensar na função social da leitura e da escrita é pensar no que os textos representam no dia a dia desses sujeitos dentro e fora da sala de aula. Ou seja, à medida que as crianças compreen- dem o uso e a função da escrita, elas têm as suas intenções de aprendizagem contempladas. Nessa perspectiva, você deve considerar que utiliza a leitura no seu dia a dia para os mais variados propósitos, como localizar endereços, fazer uma receita, ler uma bula de remédio, mandar uma mensagem para algum amigo ou familiar, entre tantas outras. Essas leituras diversas envolvem o confronto de opiniões e interpretações e a exploração mais aprofundada do conteúdo abordado. O que você deve é incorporar tais conhecimentos na rotina da sala de aula para que os alunos se tornem verdadeiros leitores e escritores. O ponto de partida para o processo de efetivo aprendizado é a convi- vência, o contato e a experimentação com o mundo da cultura escrita. Os conhecimentos sobre a linguagem adquiridos nas mais variadas situações que a criança traz quando chega à escola evidenciam que ela está inserida em um contexto comunicativo de produção e compreensão das funções da língua escrita. Assim, a ideia é criar nas novas gerações a necessidade de utilizar a escrita socialmente, coletivamente, de acordo com a função para a qual foi criada. Além disso, é possível ampliar a comunicação e a troca de vivências entre os alunos, de forma que eles interajam, auxiliem-se e aproximem-se das atividades propostas pelo letramento. Esse é o sentido, a significação e a reconstrução proposta por diferentes perspectivas de apropriação do sistema de leitura e escrita. Essa apropriação da escrita possibilita um avanço no desenvolvimento cultural da criança, pois abre possibilidades para um conhecimento mais refinado do mundo e, consequentemente, para o raciocínio e o pensamento mais complexos. Por conta disso, é importante favorecer o contato dos alunos com diferentes tipos de textos para que façam uso dessa tecnologia da escrita nas diferentes situações vivenciadas. Nesse sentido, você precisa ter em mente que a criança, como membro da sociedade, precisa do convívio com a leitura e a escritapara conhecer o mundo que a rodeia. Dessa forma, ela se interessa e busca respostas para suas indaga- ções, tornando o processo de aprendizagem mais significativo. É fundamental Alfabetização e letramento6 C03_Alfa_letramento.indd 6 22/05/2018 10:56:03 que a criança possa falar, escutar, escrever e se envolver em situações reais de mediação e interação na sociedade, de forma que a sala de aula também se torne um espaço de participação, partilha, cooperação recíproca e trocas de opiniões, informações e experiências. Segundo Franchi (2012), essa interação social proporciona vastas experiências entre as crianças, além de favorecer que o professor observe as dificuldades e peculiaridades existentes durante a realização das atividades, na medida em que faz os devidos encaminhamentos nos momentos apropriados. Esse processo ainda deve levar em consideração que os modelos escritos sejam contextualizados com uma significação. Ou seja, é fundamental que a criança faça relações entre a palavra trabalhada e o objeto que ela representa. Para isso, o professor deve traçar diferentes estratégias que coloquem o sujeito em contato com distintas situações e informações do cotidiano, levando-o a compreender aquilo que está escrevendo ou lendo. Tais atividades, atreladas a debates e discussões, contribuem para que a criança contextualize as palavras, fazendo relações entre som, grafia e interpretando o sentido a que está sendo exposta. Além disso, essas ativida- des se tornam significativas quando envolvem os sujeitos na construção do conhecimento e na resolução de problemas e desafios. Outra questão pertinente que favorece a compreensão e a apropriação do sistema de escrita é o uso de atividades orais e espontâneas. O professor deve trabalhar tanto a letra, a sílaba e a junção delas na formação de palavras quanto a contextualização desse conhecimento para que a criança reflita sobre o processo. A promoção dessas situações dialogadas dá oportunidade para que os alunos construam novas significações voltadas à proposta de alfabetização e letramento. É importante você notar que o letramento não é um treinamento repetitivo de de- terminada habilidade trabalhada em sala de aula, tampouco pode ser aprendido ou medido. Ele vai além do conhecimento das letras e dos sons. É preciso que o significado da língua escrita tenha relevância no mundo letrado e que a criança possa identificar e refletir sobre os usos sociais, de maneira que interaja com os mais variados gêneros de textos. Para ela estar inserida nesse mundo, não é necessário apenas compreender o sistema de escrita alfabética. É preciso que o aluno use a língua nas diversas práticas sociais de leitura e escrita, a fim de produzir novos sentidos para o que apreende e a fim de participar de forma integrada da sociedade. 7Alfabetização e letramento C03_Alfa_letramento.indd 7 22/05/2018 10:56:03 Reflexão acerca do alfabetizar letrando Alfabetização e letramento são processos paralelos, são duas ações distintas, mas que caminham juntas e são inseparáveis para a garantia da aprendizagem da leitura e da escrita. Ou seja, o professor vai ensinar o Sistema de Escrita Alfabética permitindo que a criança vivencie práticas de leitura e escrita, agregando esses conhecimentos a situações reais e atividades cotidianas. Dissociar alfabetização e letramento é um equívoco porque, no quadro das atuais concepções psicológicas, linguísticas e psicolinguísticas de leitura e escrita, a entrada da criança (e também do adulto analfabeto) no mundo da escrita ocorre simultaneamente por esses dois processos: pela aquisição do sistema convencional de escrita — a alfabetização — e pelo desenvolvimento de habilidades de uso desse sistema em atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais que envolvem a língua escrita — o letramento (SOARES, 2004, p. 14). No entanto, há algumas questões importantes que o educador deve levar em consideração antes de tentar contemplar esses dois conceitos em seu planejamento: é possível que todas as crianças aprendam ao mesmo tempo? Como ensinar os alunos? Qual é o papel e qual é a importância do professor alfabetizador? Você pode começar refletindo sobre o papel do educador. É importante que ele realize um trabalho voltado à inserção do aluno em um ambiente alfabetizador e letrado. Nesse ambiente, a criança deve ter a oportunidade de conhecer, vivenciar, refletir e experimentar novas práticas de leitura e escrita. Além disso, o professor deve criar um espaço acolhedor que contemple as diferenças, especificidades e características dos alunos. Todo esse trabalho parte de um planejamento voltado ao que o professor quer e ao que precisa ensinar aos alunos ao longo de todo o ano letivo. Para fazer esse planejamento, o professor deve levar em consideração os usos sociais da língua escrita, tanto no âmbito escolar como nas demais esferas, promovendo uma postura investigativa em que a autonomia, o respeito e o diálogo sejam as peças-chave para o aprendizado. Nesse sentido, a escola e o professor devem fazer a mediação entre as prá- ticas de alfabetização (importantes para o desenvolvimento das competências dos alunos) e os objetivos sociais e práticas relevantes presentes nas situações do cotidiano. É fundamental que, na fase de alfabetização, a criança possa vivenciar a leitura, assim como a produção, a compreensão e a reflexão de textos orais e escritos, a Alfabetização e letramento8 C03_Alfa_letramento.indd 8 22/05/2018 10:56:03 fim de se apropriar do Sistema de Escrita Alfabética. A ideia é que as diferentes ideias e posicionamentos dos alunos possam fazer parte do trabalho como um todo. Partindo desse pressuposto, o trabalho com diferentes portadores de texto e gêneros textuais serve como ponto de partida para enriquecer a aula. Afinal, tais portadores e gêneros se aproximam da realidade em que a criança está inserida, valorizam as suas experiências, instigam a imaginação, possibilitam um aprendizado mais significativo e propiciam vivências práticas que vão além dos conteúdos escolares. A seguir, você pode ver alguns dos muitos portadores de texto e gêneros textuais existentes. Eles podem ser trabalhados em sala de aula na perspectiva da alfabetização e do letramento. Além disso, se aproximam das práticas sociais vivenciadas pelos alunos. Receitas Manuais, regras de jogos, listas e instruções Bilhetes Cartas Convites Histórias em quadrinhos, tirinhas Parlendas, cantigas de roda, trava-línguas, lendas Músicas Piadas Poesias, contos, fábulas Rótulos e embalagens Símbolos, placas Cardápios Jornais, revistas, sites, noticiários, cartazes informativos A partir do planejamento da prática, o professor poderá, por meio das atividades diárias realizadas em sala de aula, observar e buscar respostas aos questionamentos anteriores: é possível que todas as crianças aprendam ao mesmo tempo? Como ensinar os alunos? Você pode considerar que em todas as turmas, independentemente da localidade, existe uma grande diversificação e heterogeneidade em relação ao conhecimento de cada criança. Algumas possuem conhecimento além do que se espera ou do que é trabalhado durante o ano. Outras parecem não acompanhar o mesmo ritmo do restante da turma. E essa complexidade das interações em sala de aula é que torna o trabalho do professor tão desafiador. 9Alfabetização e letramento C03_Alfa_letramento.indd 9 22/05/2018 10:56:03 As crianças iniciam o ano com diferentes conhecimentos, aprendizagens, capacidades e habilidades, tanto em relação ao sistema de escrita alfabética como em relação a outros conteúdos abordados dentro e fora da sala de aula. Algumas crianças envolvem-se mais cedo e são cercadas por práticas de letramento; outras, porém, estão envolvidas em um contexto com poucos estímulos e necessitam de um contato maior com o material escrito. O que o professor precisa ter em mente é que os alunos são capazes deaprender, independentemente do ambiente em que estão inseridos. Assim, mesmo que as crianças iniciem o ano com conhecimentos abaixo do que é esperado para os objetivos de trabalho, o professor pode contemplar as hipóteses e saberes que já possuem. Na perspectiva do trabalho conjunto entre alfabetização e letramento, o professor precisa, em primeiro lugar, traçar um perfil da turma, percebendo os diferentes níveis em que as crianças se encontram. Depois, deve pensar em atividades diversificadas que trabalhem com o sistema notacional e as situações de reflexão, questionamento e criação de hipóteses. A partir desse envolvimento e desse conhecimento que as crianças possuem acerca da es- crita, é possível planejar atividades que de fato contribuam para que o aluno avance em seus conhecimentos sobre o sistema de escrita alfabética, criando diferentes oportunidades de aprendizagem e de integração com o processo de escolarização. Cabe ao professor compreender o processo, buscar soluções por meio de estudo, reflexão e troca com seus pares. Assim, ele deve trabalhar com esses diferentes saberes, conhecendo as práticas culturais e sociais vivenciadas pela comunidade e pelos alunos. Ele precisa ainda favorecer o contato com a escrita nas mais variadas circunstâncias, para que a criança vá se familiarizado com as situações de aprendizagem e avance de nível. Mesmo que as crianças não tenham dominado todos os conhecimentos propostos pelos professores ao final do ano letivo, isso não significa que elas não aprenderam; pelo contrário, alguns saberes foram agregados e construídos. Contudo, é necessário observar e identificar quais conquistas foram possibilitadas, de forma que a criança se sinta segura, valorizada e motivada para novas aprendizagens. Alfabetização e letramento10 C03_Alfa_letramento.indd 10 22/05/2018 10:56:04 Por fim, é urgente que escolas e educadores pensem em práticas de alfabetiza- ção e letramento partindo de um planejamento que contemple atividades capazes de auxiliar os alunos a avançarem em sua aprendizagem. Tais atividades devem ser do interesse da criança e estar de acordo com a realidade em que ela está inserida. Somente por meio dessas experiências será possível refletir sobre a prática da leitura e da escrita em diferentes circunstâncias. Portanto, o desenvolvimento das capacidades dos alunos em relação à língua escrita não é um processo que se encerra assim que eles se apropriam do sistema de escrita; pelo contrário, ele se estende por toda a vida. O que os sujeitos fazem é apenas aprimorar e criar possibilidades na construção de novos conhecimentos e habilidades. ALFABETIZAÇÃO. In: HOUAISS, A.; VILLAR, M. S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. BIAZIOLI, A. A importância do letramento na educação infantil. Estadão, mar. 2018. Disponível em: <http://educacao.estadao.com.br/blogs/blog-dos-colegios-salesiano- -liceu-coracao-de-jesus/a-importancia-do-letramento-na-educacao-infantil/>. Acesso em: 17 maio 2018. BUENO, R. Ivo viu a uva. 2018. Disponível em: <http://www.ivoviuauva.com.br>. Acesso em: 17 maio 2018. FERREIRO, E.; TEBEROSKY, A. 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O Brincar na Educação Infantil: Jogos, Brinquedos e Brincadeiras – ... http://revista.fundacaoaprender.org.br/?p=78?v=657879368?v=13716... 1 of 12 09/07/2020 10:08 O Brincar na Educação Infantil: Jogos, Brinquedos e Brincadeiras – ... http://revista.fundacaoaprender.org.br/?p=78?v=657879368?v=13716... 2 of 12 09/07/2020 10:08 O Brincar na Educação Infantil: Jogos, Brinquedos e Brincadeiras – ... http://revista.fundacaoaprender.org.br/?p=78?v=657879368?v=13716... 3 of 12 09/07/2020 10:08 O Brincar na Educação Infantil: Jogos, Brinquedos e Brincadeiras – ... http://revista.fundacaoaprender.org.br/?p=78?v=657879368?v=13716... 4 of 12 09/07/2020 10:08 O Brincar na Educação Infantil: Jogos, Brinquedos e Brincadeiras – ... http://revista.fundacaoaprender.org.br/?p=78?v=657879368?v=13716... 5 of 12 09/07/2020 10:08 O Brincar na Educação Infantil: Jogos, Brinquedos e Brincadeiras – ... http://revista.fundacaoaprender.org.br/?p=78?v=657879368?v=13716... 6 of 12 09/07/2020 10:08 O Brincar na Educação Infantil: Jogos, Brinquedos e Brincadeiras – ... http://revista.fundacaoaprender.org.br/?p=78?v=657879368?v=13716... 7 of 12 09/07/2020 10:08 O Brincar na Educação Infantil: Jogos, Brinquedos e Brincadeiras – ... http://revista.fundacaoaprender.org.br/?p=78?v=657879368?v=13716... 8 of 12 09/07/2020 10:08 O Brincar na Educação Infantil: Jogos, Brinquedos e Brincadeiras – ... http://revista.fundacaoaprender.org.br/?p=78?v=657879368?v=13716... 9 of 12 09/07/2020 10:08 O Brincar na Educação Infantil: Jogos, Brinquedos e Brincadeiras – ... http://revista.fundacaoaprender.org.br/?p=78?v=657879368?v=13716... 10 of 12 09/07/2020 10:08 O Brincar na Educação Infantil: Jogos, Brinquedos e Brincadeiras – ... http://revista.fundacaoaprender.org.br/?p=78?v=657879368?v=13716... 11 of 12 09/07/2020 10:08 O Brincar na Educação Infantil: Jogos, Brinquedos e Brincadeiras – ... http://revista.fundacaoaprender.org.br/?p=78?v=657879368?v=13716... 12 of 12 09/07/2020 10:08 A criatividade do professor: a relação entre o sentido subjetivo da criatividade e a pedagogia de projetos A criatividade do professor: sentido e ação Renata Fernandes Mourão Albertina Mitjáns Martínez Resumo Buscou-se compreender a relação entre o sentido subjetivo da criatividade do professor e sua prática pedagógica com projetos. Partiu-se da teoriahistórico- cultural da subjetividade desenvolvida por González Rey (1997, 1999, 2001, 2002b, 2004). O método adotado foi o estudo de caso com dois professores que trabalham com projetos de estratégia relativos ao ensino-aprendizagem em uma mesma escola. Vários instrumentos foram utilizados: a técnica de completamento de frases, redações, observação direta, análise documental e, principalmente, a entrevista como processo. Como conclusão principal, percebeu-se que se trata de uma relação recursiva. Além disso, a pesquisa demonstrou que os sentidos subjetivos de importantes aspectos contextuais – como o espaço em sala de aula – são mediadores da relação colocada sob foco. Por fim, notou-se que conflitos e contradições vividos na prática com projetos configuram-se como uma situação potencial de desenvolvimento em relação ao sentido subjetivo da criatividade e à própria prática docente. Palavras-chave: Criatividade do professor; Subjetividade; Pedagogia de projetos. Teacher’s creativity: The relation between the subjective sense of creativity and the project practice Abstract We tried to understand the relation between the teacher’s subjective sense of creativity and the project teaching practice. The historical cultural view of subjectivity provides the theoretical background through the ideas developed by González Rey. We adopted the method of case study, with two teachers that use projects as a teaching and apprenticeship strategy in the same school. Many instruments were used like the technique of completing sentences, text writing, direct observation, document analysis and – the main one - the interview as a process. As the most important conclusion, a recursive relation was found. The research also shows that the subjective sense of the contextual aspects – like the subjective sense of the classroom - is mediating the studied relation. Finally, we noted that conflicts and contradictions experienced in the project practice represent a potential situation for the development of the teacher‘s subjective sense of creativity and the teaching practice itself. Key words: Teacher‘s creativity; Subjective; Project teaching practice. Creatividad del profesor: la relación entre sentido subjetivo de la creatividad y pedagogía de proyectos Resumen Buscamos entender la relación entre el sentido subjetivo de la creatividad del profesor y su práctica pedagógica con proyectos. Se partió de la teoría histórico-cultural de la subjetividad, desarrollada por González Rey (1997, 1999, 2001, 2002b, 2004). El método adoptado fue el estudio de caso; con dos profesores que trabajan con proyectos como estrategia de enseñanza-aprendizaje en la misma escuela. Se utilizaron varios instrumentos: la técnica de completar frases, redacciones, observación directa, análisis documental y, principalmente, la entrevista como proceso. Como conclusión principal, se percibió que se trata de una relación recursiva. Además de eso, la investigación demostró que los sentidos subjetivos de importantes aspectos contextuales – como del espacio de sala de aula – son mediadores de la relación colocada sobre foco. Finalmente; se ha notado que conflictos y contradicciones vividos en la práctica con proyectos se configuran como una situación potencial de desarrollo, en relación al sentido subjetivo de la creatividad y a la propia práctica docente. Palabras-clave: Creatividad del profesor; Subjetividad; Pedagogía de proyectos. 263 A criatividade do professor: a relação entre o sentido subjetivo da criatividade e a pedagogia de projetos • Renata F. Mourão e Albertina M. Martínez264 Introdução Cada vez mais, a criatividade do professor é elemento fundamental no processo educativo devido à necessidade de atualização da escola e à demanda de uma sociedade em permanente transformação. As pesquisas têm enfatizado a importância da criatividade docente para que o estudante possa aprender e desenvolver-se criativamente (Davis, Kogan e Soliman, 1999; Fleith, 2000; Mitjáns Martínez, 2000; Sternberg e Williams, 1996; Wechesler, 1995; Woods, 1995). No entanto, o tema da criatividade do professor é relativamente pouco estudado como notam Mitjáns Martínez (2000), Santos (1995) e Woods (1995). Nosso interesse foi ajudar a preencher essa lacuna, investigando a constituição subjetiva da criatividade docente em contexto real. Inicialmente, podemos definir nosso foco de pesquisa como a relação entre o sentido da criatividade para o professor e sua prática pedagógica. Na Psicologia da Criatividade, a percepção do professor acerca da própria criatividade é objeto de estudos de suma importância. Esta linha mostra que o autoconceito e o conceito de criatividade do professor influenciam as possibilidades de ele manifestar ou desenvolver sua criatividade (Alencar, 1992; Alencar e Fleith, 2003; Alencar, Fleith e Virgolim, 1995; Fresquet, 2000). Alencar, Fleith e Virgolim (1995) assumem que a auto-imagem tende a se refletir na ação. Quanto às vivências emocionais do professor, Woods (1995) reconhece que a sensação de auto-realização relaciona-se à manifestação da criatividade. Alencar, Fleith e Virgolim (1995) e Mariani (2001) encontram relação entre o medo do erro, da crítica e do ridículo e a inibição do comportamento criativo. No que concerne ao estudo sobre a prática docente, encontramos produção escassa. Com raras exceções (Woods, 1995 e Martinelli, 2000), a criatividade do professor tem sido investigada de forma descontextualizada, assim como as iniciativas para o seu desenvolvimento (Anaruma, 1992 e Alencar, 1992) não têm se estruturado com base na prática cotidiana. Ao que parece, isso se deve a uma concepção implícita da criatividade como processo intrapsíquico (Mitjáns Martínez, 1997). A esse respeito, Alencar (1992: 82), que utilizou testes da Bateria Torrence de Pensamento Criativo num estudo interventivo, reconhece ser necessário “o uso de outras medidas que não testes de criatividade”. Nota- se uma conscientização da necessidade de compreender a criatividade em sua expressão contextualizada, muito embora tais pesquisas ainda não sejam a regra. Na literatura, a prática com projetos figura como uma estratégia criativa de ensino (Woods, 1995) e favorecedora da criatividade (Sternberg e Williams, 1996) e explica por que a escolhemos como foco de análise. Trata-se de uma prática produtiva, em que a aprendizagem dos conteúdos se dá através de projetos de trabalho (Hernández, 1998; Kleiman e Moraes, 1999; Nogueira, 2003; Zabala, 1998). Optamos por uma abordagem teórica de caráter complexo e dinâmico da relação entre sentido e ação, evitando a visão de um relacionamento meramente linear. Trata-se da teoria histórico-cultural da subjetividade desenvolvida por González Rey (1997, 1999, 2001, 2002b, 2004) que permite compreender a criatividade como processo da subjetividade constituída nas interações do sujeito em contexto social (Mitjáns Martínez, 1997, 2004). Entendemos o sentido subjetivo como “a unidade constituinte da subjetividade que integra aspectos simbólicos, significados e emoções” (González Rey, 2002b: 113). O sentido subjetivo da criatividade se relaciona à personalidade como um todo. Trata-se não de uma entidade isolada e estática mas de uma unidade sistêmica e processual constituída permanentemente da atuação do sujeito nos espaços sociais em que convive. Assim, pesquisas das percepções do professor sobre a criatividade, embora abordem representações cognitivas e até emoções que participam do sentido subjetivo, não contemplam a unidade cognitivo-afetiva dinâmica implicada nessa categoria teórica. Com a presente pesquisa pretendemos, portanto, não apenas identificar a relação, mas compreender melhor sua dinâmica. Além do sentido subjetivo da criatividade, utilizamos a categoria teórica de sistema de atividades- comunicação, esta última na abordagem da prática Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) • Volume 10 Número 2 Julho/Dezembro 2006 • 263-272 265 com projetos. O sistema de atividades-comunicaçãoé pautado nas características dos processos de comunicação e atividade desenvolvidos a partir de determinada prática social em certo contexto social (González Rey, 1995; Mitjáns Martínez, 1997). A partir dessa visão teórica geral, explica-se melhor o objetivo central da pesquisa que ora relatamos: compreender a relação entre o sentido subjetivo da criatividade do professor e sua prática pedagógica com projetos. Trata-se da relação entre a forma como o professor lida subjetivamente com a criatividade, em termos das emoções e significados que gera para esse processo, e a forma como desenvolve sua prática com projetos. Método Tendo em vista a complexidade de nosso objeto de estudo, optamos pelo estudo de caso, que “constitui um processo irregular e diferenciado que se ramifica à medida que o objeto se expressa em toda a sua riqueza” (González Rey, 2002a: 71). Da mesma forma Menga Ludke (1986: 21) indica esse método de pesquisa quando se pretende explorar a complexidade manifesta na singularidade: “o objeto estudado é tratado como único, uma representação singular da realidade que é multidimensional e historicamente situada”. Os Participantes e a Escola Os casos de dois professores, que trabalham atualmente com a pedagogia de projetos em uma mesma escola, foram estudados. Roberta1, 44 anos, é professora de História das 7ª e 8ª séries na escola de nossa pesquisa e leciona também na rede pública de ensino. Quanto a Augusto, 31 anos, é professor de Geografia do Ensino Médio na escola de nossa pesquisa, leciona em outra escola particular e em uma faculdade. A escola em questão, embora em um momento de transformações (maior incentivo à prática pedagógica com projetos, por exemplo), caracteriza- se como tradicional em função de diversos aspectos: a supervalorização da avaliação quantitativa, os conteúdos conceituais disciplinares como centro do processo de ensino-aprendizagem, o livro didático e o quadro negro como principais recursos didáticos etc. Instrumentos Utilizamos uma multiplicidade de instrumentos e preferimos instrumentos abertos e semi-abertos em que a expressão livre do sujeito fosse favorecida. Realizamos quatro entrevistas, uma aberta inicial e três semi-estruturadas. A entrevista inicial tratou de aspectos gerais significativos da vida do participante. A primeira entrevista semi-estruturada tematizou a prática profissional; a segunda, a criatividade; e a última foi personalizada para cada participante, visando a obter informações que nos permitiram esclarecer as hipóteses que, como pesquisadores, vínhamos construindo sobre nosso objeto de estudo. Utilizamos também a técnica de completamento de frases, idealizada por Rotter (1950, citado por Anastasi e Urbina, 2004) e adaptado por González Rey e Mitjáns Martínez (1989), com o objetivo de diagnóstico da personalidade. O instrumento consistiu em 73 frases incompletas. Outro instrumento utilizado foi redação. Os professores escreveram duas redações, a primeira tendo por tema ‘O sentido da minha vida’ e a segunda, ‘Minha profissão’. Houve também análise documental de projetos escritos, dos diferentes instrumentos de avaliação elaborados pelos professores, da produção dos alunos na prática com projetos e documentos admnistrativos da escola relativos a atividades de saída de estudos. Realizamos nesta pesquisa o tipo de observação estruturada (Alves-Mazzotti e Gewandsznajder, 2002), a partir de um roteiro adaptado do roteiro de observação proposto por Mitjáns Martínez (inédito). Observamos aulas, saídas de estudo e reuniões pedagógicas. Além dos instrumentos previstos, nos dois casos houve situações e atividades informais que geraram 1 Os nomes utilizados são fictícios, conforme ditam os critérios éticos da pesquisa. A criatividade do professor: a relação entre o sentido subjetivo da criatividade e a pedagogia de projetos • Renata F. Mourão e Albertina M. Martínez266 relevantes, informações como a observação do momento de intervalo dos professores, conversas informais com os participantes, com outros professores, com o diretor e a coordenadora pedagógica com os alunos, entre outras. Procedimento A pesquisa consistiu em uma situação comunicativa em que se buscou o estabelecimento, a manutenção e o aprofundamento de um diálogo contínuo entre pesquisador e pesquisado. Por isso, o principal instrumento foi entrevista, na concepção de entrevista como processo (González Rey, 1997). Foi importante o revezamento entre as entrevistas e os instrumentos escritos, pois um tipo funciona como descentralizador da dinâmica de relação promovida pelo outro e vice- versa (González Rey, 2002b). Quanto à observação, caracterizou-se como não-participante nas aulas e reuniões pedagógicas e como participante nas saídas. O local e horário da aplicação dos instrumentos foi aquele mais conveniente para os professores. As entrevistas e as aulas foram gravadas em fita micro- cassete. Análise da Informação A análise da informação consistiu em um processo construtivo-interpretativo por parte do pesquisador, fundamentado na epistemologia qualitativa proposta por González Rey (1997, 2001). O essencial, neste tipo de análise, é a produção de indicadores, em função da informação obtida através dos instrumentos utilizados. A informação obtida em cada um deles é articulada com aquela procedente dos outros instrumentos, a partir dos indicadores que emergem como relevantes. O indicador se estabelece a partir de uma ou várias informações, num processo em que “o curso da produção de informação é, simultaneamente, um processo de produção de idéias” (González Rey 2002a: 97). Nesse processo, dois critérios foram importantes na definição da relevância da informação: o vínculo afetivo com o conteúdo expressado e a elaboração personalizada da informação por parte dos sujeitos pesquisados (González Rey e Mitjáns Martínez, 1989). A geração de indicadores é, portanto, um processo de construção que integra diferentes informações a partir do pensamento do pesquisador direcionado pelos critérios de interpretação da informação mencionados pela problemática da pesquisa e pelo marco teórico adotado. Resultados Na apresentação dos resultados, procuramos descrever de modo sintético o sentido subjetivo da criatividade e o sistema de atividades-comunicação predominante na prática com projetos dos professores. Nossos resultados mostraram a relação estudada, trazendo, às vezes, informações aportadas por diferentes instrumentos apenas como um recurso ilustrativo do processo de construção e análise da informação realizada. O Caso de Roberta O sentido subjetivo da criatividade é gerado por Roberta em sua prática e está integrado por dois elementos de sentido centrais. Um deles refere-se ao estado dinâmico da necessidade de criar, animado pelo entusiasmo diante do processo criativo e pela sensação de realização de si e relacionado à significação da criatividade como um processo interativo em que a interação é vista como integrante e motivadora. O outro liga-se a um conflito emocional em que a ansiedade e o medo do fracasso vêm contrapostos à necessidade de criar, o que se relaciona a uma significação da criatividade marcada pelo senso comum, algo raro e restrito ao domínio das artes. Os aspectos do sistema de atividades mais relevantes de sua prática com projetos são a pesquisa como principal atividade dos projetos e produção artística e artesanal como principal forma de atividade produtiva, a relativa heterogeneidade das atividades, principalmente na fase de produção dos alunos, a predominância de atividades extraclasse, a atividade de estudo do professor como parte da prática pedagógica e relativização do livro-texto como principal recurso didático. O sistema de comunicação tem se estruturado principalmente com pouca negociação com os alunos a respeito do eixo temático Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) • Volume 10 Número 2 Julho/Dezembro 2006 • 263-272 267 do projeto, usando-se a produção dos alunos como objeto decomunicação entre alunos e professor e baseando-se na informalidade e precariedade da comunicação com outros professores sobre o trabalho com projetos realizados.A relação que se estabelece entre o sentido subjetivo da criatividade de Roberta e sua prática pedagógica com projetos é recursiva. Essa recursividade pode ser percebida, em dois momentos, quando da regulação da ação pedagógica. Regulação da ação pedagógica a partir do sentido subjetivo da criatividade O sentido subjetivo da criatividade participa centralmente a partir da regulação das ações da professora na própria busca pela pedagogia de projetos na prática inovadora. A valorização da produção dos alunos, tanto na comunicação como por meio da heterogeneidade de produtos (aspecto que, por sinal, não ocorre em projetos desenvolvidos por outros professores da escola) é impulsionada por sua necessidade de criar relacionada à significação de interatividade do processo criativo. Roberta quer promover a participação ativa dos alunos, pois além de representar o fruto de seu trabalho, é vista como motivadora da própria criatividade, conforme se nota na entrevista aberta: “se você parar, você não consegue acompanhar toda essa inquietude da juventude, da adolescência (...). Então se você tem essa disponibilidade de estar criando, o aluno também cria”. Há também a ansiedade e o medo do fracasso integrados no sentido subjetivo da criatividade de modo contraditório à necessidade de criar. Para minimizar a ansiedade que vivencia nos momentos do desenvolvimento do projeto em que não terá grande controle sobre o que os alunos realizam, Roberta acaba evitando a utilização do espaço de sala de aula bem como a negociação do eixo central dos projetos; este momento acaba comprometendo a qualidade na comunicação entre os professores. Assim, é importante lembrar que a produção de sentidos é um processo contextualizado e o sentido tradicional de ensino predominante na escola participa na geração dessas emoções conflitivas: “... quando eu fico preocupada é na hora da avaliação as pessoas não entenderem o que que está sendo proposto. É a minha grande preocupação. (...) O erro pra mim, eu tenho medo do erro. Sinceramente, porque... Mas eu me cerco. Eu me cerco.” (entrevista semi-estruturada III) A ansiedade e o medo do fracasso, de forma menos óbvia, também estão na base da busca por estudos que justifiquem e orientem suas iniciativas, e da promoção da pesquisa, na maioria das vezes de caráter reprodutivo, como principal atividade dos projetos. Um momento de sua expressão revela a participação desse conflito emocional na assunção do estudo como parte integrante de sua prática: “O mais difícil é também buscar o entendimento de que - se bem que já mudou muita coisa - buscar o entendimento de que pode ser uma das práticas pedagógicas muito relevantes. Buscar mais, estudar. Fazer grupos de estudo sobre isso.” (entrevista semi-estruturada I) Subjetivação da prática com projetos no sentido subjetivo da criatividade A novidade, a produção ativa e a interatividade da pedagogia de projetos têm suscitado em Roberta o entusiasmo e a sensação de realização de si, emoções motivadoras da necessidade de criar. Em entrevista, ela expressa: “O que eu preciso ainda pra fazer o meu aluno... pelo menos chegar 60% da turma estar interessado, motivado? Em pedagogia de projetos eu vejo 70, já vi 80% interessado.” (entrevista semi- estruturada I) E no completamento de frases: “Minhas melhores atitudes quando estou envolvida num projeto e que os meus alunos demonstram a sua criatividade.” Além disso, notamos que alguns aspectos da prática que implicam momentos de tensão e conflito da professora têm o potencial de contribuir para uma transformação qualitativa do sentido subjetivo da criatividade: a pesquisa, se vivida cada vez mais como atividade produtiva e problematizadora do conhecimento, o estudo da professora concomitante à prática e, talvez principalmente, uma comunicação A criatividade do professor: a relação entre o sentido subjetivo da criatividade e a pedagogia de projetos • Renata F. Mourão e Albertina M. Martínez268 de maior qualidade entre os professores. Sobre um dos poucos projetos (os mais recentes) em que a pesquisa se caracterizou como uma atividade produtiva, a professora demonstra seu entusiasmo: “Como esse povo se divertia num lugar que só tinha poeira? Teve gente que perguntou. Então cria elementos pra que o aluno tenha uma motivação pra fazer. (...) Livro nenhum de história vem isso.” (entrevista semi-estruturada I) O Caso de Augusto Identificamos três elementos centrais quanto à forma, na configuração do sentido subjetivo da criatividade de Augusto. O primeira relaciona-se ao estado dinâmico de necessidade de criar, que se integra à excitação diante do risco e do desafio e se relaciona com a significação da criatividade como espaço de definição de sua identidade e processo intuitivo, ligado à experimentação e ao improviso. O segundo, a percepção do processo criativo como processo contextualizado em que a influência social tem lugar com uma sensação de auto-realização e orgulho por si. O terceiro implica numa visão da criatividade como fonte de poder social implicando uma emoção conflitante em relação ao sentido subjetivo do outro social: desconfiança e descrédito. As principais características do sistema de atividades da prática com projetos de Augusto foram a predominância da atividade de saída de campo, a homogeneidade na produção final dos alunos, a cooperação nas saídas de campo, o espaço natural como espaço de aprendizagem e utilização informal do espaço de sala de aula para os objetivos do projeto e a superação do livro didático como principal fonte de informação em favor das experiências de campo. O sistema de comunicação se caracteriza principalmente pela falta de negociação quanto ao eixo central do projeto, pelas experiências de campo como principal objeto de comunicação e pela informalidade no exercício da liderança entre os professores. No caso de Augusto há também evidências quanto à recursividade da relação entre sua prática com projetos e o sentido subjetivo da criatividade. Faz-se a analise baseada nessas premissas. Regulação da ação pedagógica a partir do sentido subjetivo da criatividade Sua necessidade de criar está na base dos vários aspectos de sua prática com projetos. Augusto acredita, por exemplo, que a cooperação nas saídas proporciona segurança para que o grupo possa lidar com a dose de experimentação que ele faz questão de imprimir aos trajetos. Busca as experiências de campo como objeto de comunicação, a informalidade na comunicação com os professores e a utilização informal do espaço de sala de aula como forma de viver sua criatividade de maneira espontânea, construindo uma identidade profissional diferenciada. É o que indica sua expressão: “Quando você senta em um grupo de alunos, passa alguns minutos já estão falando nas saídas e aí é onde você começa a ensinar pros caras (...) E é isso que é importante, isso está gerando experiência na vida deles, de muitos ali. E é onde você vê o projeto acontecer, ou os objetivos ou os resultados.” (entrevista semi-estruturada III) “Tenho a sensação que estou à espera de algo, e por isso preciso estar me movimentando: ser dinâmico. Ser dinâmico, profissionalmente falando, é inovar. Fazer coisas diferentes (de uma outra forma).” (redação I) Ao lado disso, o elemento de sentido conflitivo relacionado à significação da criatividade como fonte de poder tem contribuído para a falta de negociação quanto ao eixo central do projeto e para a homogeneidade na produção final dos alunos. Augusto evita discutir o cerne dos projetos com seus pares, com a coordenação pedagógica ou com os alunos, pois receia ou a incompreensão de quem não reconhece o caráter prático dos projetos como sua principal característica ou a inveja de quem o vê como modelo: “Meu principal problema não ser entendido em alguns momentos; Não posso ter medo (demonstrar); Me incomodam os falsos (pessoas)” (completamentode frases) É o que também se nota na entrevista sobre criatividade: “Então essa história da criatividade também... (...) As pessoas que não são tão criativas começam a ser pressionadas porque Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) • Volume 10 Número 2 Julho/Dezembro 2006 • 263-272 269 alguém começa a te utilizar como modelo. E não é todo mundo que gosta disso não.” A subjetivação da prática com projetos no sentido subjetivo da criatividade A vivência da prática com projetos por Augusto tem sido importante relacionada à geração de seu estado dinâmico da necessidade de criar. Trata-se da sensação de realização de si que ele experimenta em suas ações voltadas para a integração da comunidade escolar em torno dos projetos, e da excitação relativa ao risco e ao desafio experimentada nas atividades de campo e também em suas tentativas de contextualizar e personalizar o discurso docente aproveitando de modo informal o espaço de sala de aula. Um momento de sua expressão que indica a geração dessas emoções motivadoras: “Pelo menos as pessoas me passam o retorno de que: olha, eu cresci. No momento que eu abro, me abro, eu estou possibilitando as pessoas a se abrirem.” (entrevista aberta) A prática com projetos tem se constituído como um espaço potencial de desenvolvimento do sentido subjetivo da criatividade para Augusto. O clima de ajuda mútua das saídas bem como a maior centralidade da comunicação dos professores em comparação com a prática tradicional permitem que ele reveja sua forma de relacionar-se com o poder, amenizando a desconfiança e o descrédito em relação ao outro. Em entrevista: “No momento em que você começa a entender o projeto como algo maior, além dos seus interesses, você começa a transportar isso pro interesse coletivo (...) trabalhar com os outros acaba sendo tão gratificante quanto... mais gratificante do que trabalhar sozinho.” (entrevista semi-estruturada I) Discussão Buscando compreender a relação entre o sentido subjetivo da criatividade do professor e sua prática com projetos, nossa pesquisa nos conduziu a três conclusões gerais relacionadas ao sentido subjetivo da criatividade do professor e sua prática pedagógica A relação entre o sentido subjetivo da criatividade do professor e sua prática pedagógica com projetos é recursiva. Ao se referir à relação entre sentido subjetivo e ação, González Rey (1997, 2002b, 2004) aponta para uma implicação e transformação mútua, sempre renovada na vida do sujeito e no curso processual de sua ação. Nossa pesquisa vem corroborar esta concepção no que concerne à criatividade do professor, reconhecendo a recursividade da relação estudada. O sentido subjetivo da criatividade participa fortemente na regulação das ações do professor em sua prática com projetos e essa prática repercute no sentido da criatividade, contribuindo para sua geração e possível transformação. Há, portanto, uma relação de regulação e não de determinação linear do sentido sobre a ação. Por exemplo, a significação da criatividade como processo interativo não implica irrestritamente a promoção dessa característica, como notamos no caso de Roberta. A professora chega a incentivar a heterogeneidade na produção dos alunos, mas, devido à ansiedade vivida no processo criativo, acaba evitando a negociação nos projetos que desenvolve. Percebeu- se a fluidez do sentido subjetivo da criatividade, que varia seus elementos integrantes no curso processual da ação como notou Mitjáns Martínez (2004). As ações implementadas no interior da prática com projetos ajudam na geração do sentido subjetivo da criatividade. Nesse processo, é importante que a subjetivação das próprias ações gere emoções que animem a necessidade de criar do professor, como o entusiasmo diante do processo criativo, a excitação diante do desafio, a satisfação e sensação de auto-realização, esta última também destacada por Woods (1995) como participante na criatividade do professor. É o caso da sensação de realização de si que Augusto experimenta na vivência da avaliação processual de seus projetos. Embora concordemos sobre a importância do papel da dimensão subjetiva nas manifestações criativas do professor (Alencar, 1992; Alencar, Fleith e Virgolim, 1995; Fresquet, 2000; Mariani, 2001), as noções de reflexo, correspondência ou mera influência são discutíveis. O reconhecimento do papel central da subjetivação da ação na geração de sentido para a A criatividade do professor: a relação entre o sentido subjetivo da criatividade e a pedagogia de projetos • Renata F. Mourão e Albertina M. Martínez270 criatividade nos faz questionar a mera influência das percepções e emoções do professor sobre a ação criativa sem o reconhecimento da recursividade dessa relação. A relação recursiva entre o sentido subjetivo da criatividade do professor e sua prática pedagógica com projetos é mediada pelo sentido subjetivo de elementos contextuais de sua prática. Esta pesquisa evidenciou, principalmente, a mediação do sentido subjetivo do outro social e do sentido subjetivo do espaço de sala de aula e confirmou que na geração da necessidade de criar, o outro social participa como sentido subjetivo enquanto “grupo a ser ultrapassado ou transcendido, como alguém do qual diferenciar-se, como alguém perante o qual se deve mostrar competência e orginalidade” (Mitjáns Martínez, 2004: 89), principalmente no caso de Augusto. Também reconhecemos a participação do sentido do outro como alguém a quem se serve e como parceiro criativo no sentido da criatividade, especialmente no caso de Roberta. A partir dos dois casos, notamos ainda que o sentido do outro como avaliador externo, e como alguém a quem controlar pode gerar emoções contraditórias à necessidade de criar quanto à desconfiança, ao descrédito ou ansiedade e ao medo do fracasso. Assim, é importante lembrar que o professor se insere em uma prática predo- minantemente individualista. Nesse sentido, a prática com projetos tem a possibilidade de trazer alguns elementos novos de experiência em relação à forma e como o professor gera o sentido subjetivo do outro social. As relações familiares, as relações de amizade na escola e em outros contextos e as relações de coleguismo, nenhuma delas é estruturada como aquelas entre professores no âmbito de um projeto de trabalho. A interação com seus pares é centralizada, o momento de significação da ação do professor e da relação com os alunos torna-se mais horizontal. Assim, a possibilidade de que o sentido subjetivo do outro social evolua a prática com projetos parece depender das características do sistema de atividades- comunicação como a negociação, a centralidade da comunicação entre os professores, a heterogeneidade na produção e a predominância de atividades cooperativas. Já o sentido subjetivo de sala de aula, relacionado ao modelo de educação reprodutivo e autoritário, é integrado por uma forte conotação de poder ligada à concepção reprodutiva do processo de ensino-aprendizagem. Este elemento pode estar presente no sentido da criatividade, contribuindo para que o professor evite o espaço de sala de aula para as atividades de projetos, como no caso de Roberta. Simultaneamente e em contrapartida, a vivência da prática pedagógica em espaços diferentes tem se configurado como uma situação potencial de desenvolvimento para os sujeitos. São situações que envolvem um outro clima emocional, de maior informalidade e cooperação, bem como envolvem a utilização de fontes variadas de informação. No caso de Augusto, notou-se como a experiência de outros espaços de aprendizagem contribui inclusive para uma vivência diferenciada do próprio espaço de sala de aula. Aspectos conflitivos do sentido subjetivo da criatividade tendem a se expressar em contradições ou conflitos na prática com projetos do professor e vice-versa, situação que pode ser de desenvolvimento para o sujeito. González Rey (1997: 124-125) afirma que “qualquer conflito em termos interativos simultaneamente estará constituído emnível da personalidade, níveis diferentes que se integram no complexo processo de desenvolvimento do conflito”. Os conflitos interpessoais entre os professores e as contradições que se verificam na estruturação da prática pedagógica muitas vezes expressam contradições vividas no sentido subjetivo da criatividade. Foi o que notamos, por exemplo, em relação à desarticulação entre as atividades de pesquisa, predominantemente reprodutivas, e as atividades de produção artística nos projetos de Roberta, em que a ansiedade e o medo do erro a impediam de ou conceber a pesquisa como uma atividade não meramente reprodutiva mas de construção do conhecimento ou estabelecer as atividades de produção artística como eixo dos projetos, articulando melhor as duas atividades. Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) • Volume 10 Número 2 Julho/Dezembro 2006 • 263-272 271 Numa concepção dialética da subjetividade, González Rey (1997, 2002b) reconhece a contradição e a oposição como momentos necessários ao desenvolvimento. Outros autores também têm compreendido o elemento conflitivo como aspecto necessário ao desenvolvimento (Valsiner e Cairns, 1992; Vygotsky, 1990). Dessa forma, a relação entre o sentido subjetivo da criatividade do professor e sua prática com projetos implica uma possível situação de desenvolvimento para o sujeito em dependência da evolução dos aspectos conflitivos que se expressam nos dois pólos. Nos casos estudados, o desenvolvimento qualitativo do sentido da criatividade dependeria da evolução dos aspectos contraditórios configurados, em relação à ansiedade e medo do fracasso, no caso de Roberta, e em relação à desconfiança e descrédito, no caso de Augusto. Considerações Finais A participação do sentido subjetivo da criatividade na regulação das ações do professor, por um lado, confirma a importância, ressaltada por Mitjáns Martínez (1997, 2000, 2004), de avançarmos na compreensão da forma em que a criatividade se constitui subjetivamente. Por outro lado, o papel da prática com projetos no sentido subjetivo da criatividade desafia a noção da ação como o momento de manifestação de um nível de criatividade que o sujeito já apresentaria a priori, visão muito relacionada à ênfase nos aspectos intrapsíquicos relacionados à criatividade. Nesse sentido, esta pesquisa demonstrou como se reconstroem elementos de sentido na ação a partir das emoções que a ação suscita. Por isso, confirmamos a necessidade de se estudar a criatividade de forma contextualizada nos espaços vivos. Além disso, ressaltamos a possibilidade de a escola se valer da prática com projetos como um sistema de atividades-comunicação favorecedor do desenvolvimento da criatividade do professor. Assim, o caráter subjetivo desse desenvolvimento deixa patente a necessidade de intervenção do psicólogo escolar, atuando mais próximo ao professor. Referências Alencar, E. M. S. (1992). 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Endereço para correspondência Albertina Mitjáns Martínez SQS 407, bloco R, apto. 206 70256 - 190 - Brasilia, DF A criatividade do professor: a relação entre o sentido subjetivo da criatividade e a pedagogia de projetos • Renata F. Mourão e Albertina M. Martínez272 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO Alex Ribeiro Nunes Uso da tecnologia na alfabetização Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Reconhecer a importância das tecnologias no processo de alfabeti- zação de crianças, jovens e adultos. Identificar em quais situações a tecnologia contribui para a alfabeti- zação de crianças, jovens e adultos. Verificar o papel dos jogos educativos digitais nos processos de alfabetização. Introdução Na alfabetização, é preciso oferecer aos sujeitos oportunidades diversas de acesso à linguagem escrita, inclusive utilizando as tecnologias como importantes aliadas. Neste capítulo, você vai reconhecer os meios tec- nológicos como facilitadores do processo alfabetizador de crianças, jovens e adultos. Assim, vai ver os principais pontos de contribuição da tecnologia, levando em consideração, principalmente, o trabalho dos jogos educativos digitais e sua pertinência nos espaços escolares. Você deve notar, sobretudo, que cabe ao alfabetizador despertar o desejo do sujeito a partir de diferentes estratégias pedagógicas, o que justifica e reforça o importante papel das tecnologias nesse contexto. O uso das tecnologias no auxílio à alfabetização de crianças, jovens e adultos Como você sabe, no contexto atual, as questões que envolvem a alfabetização de crianças, jovens e adultos estão bastante em evidência. Afi nal, com o ad- vento e a inserção das tecnologias na escola, torna-se necessário repensar os processos alfabetizadores. Além disso, há espaço para o surgimento de novas e inovadoras maneiras de ensinar e aprender. Nesse cenário, a escola continua C15_Uso_Tecnologia_atualizado.indd 1 25/05/2018 08:23:42 sendo orientada a abraçar as mais diferentes situações e, a partir de propostas inovadoras e abrangentes, tem buscado reforçar a complexa missão de oferecer uma educação plena e integral ao ser humano. Partindo dessa perspectiva, vem tentando adequar, ampliar e inovar sua proposta pedagógica curricular, inclusive no que se refere à alfabetização. Você deve ter em mente que a educação e a escola estão em constante transformação e, nesse movimento, é necessário perceber que as formas de alfabetizar também sofreram e sofrem enorme influência. Nesse sentido, considere principalmente os reflexos dos recursos e das parafernálias tecnológicas que têm ampliado o trabalho dos professores, pedagogos e demais profissionais alfabetizadores. No que se refere às crianças, Albernaz (2008) enfatiza que a ação de alfa- betizar tem ganhado importante reforço por meio dos jogos digitais educativos e programas específicos que contam com letras, símbolos, figuras, músicas, cores e outros elementos mais, tudo apresentado pela tela do computador. Já no contexto dos processos inovadores de alfabetização do jovem e do adulto, você pode considerar os ambientes virtuais de aprendizagem, que, muitas vezes, por meio da educação a distância, apresentam diferentes possibilidades a pessoas que outrora não tiveram oportunidades de estudo. Dessa forma, há um esforço para possibilitar que o conhecimento esteja acessível aos mais diversos espaços e em diferentes realidades. Vale ressaltar ainda a necessidade de reflexão permanente acerca dos pro- cessos que envolvem a alfabetização e toda a sua complexidade na sociedade contemporânea. Assim, emergem alguns questionamentos indispensáveis: o que é alfabetizar? Quais os desafios da alfabetização para crianças, jovens e adultos? Qual é a importância da utilização das tecnologias nos processos de alfabetização? A tecnologia é um tema que se discute cada vez mais nas escolas. Por isso, é necessário adequar a instituição escolar às necessidades trazidas por esse avanço. No processo de alfabetização e construção do conhecimento, é preciso discutir e repensar as demandas sugeridas pela sociedade para a adequação das escolas às mudanças promovidas pela tecnologia. Nobre et al. (2011) apontam que pensar nos processos de alfabetização mediados pelas tecnologias justifica-se pela necessidade de conceber a escola Uso da tecnologia na alfabetização 2 C15_Uso_Tecnologia_atualizado.indd 2 25/05/2018 08:23:42 como um espaço que anseia por mudanças significativas. Assim, devem ser considerados os avanços tecnológicos, a dinamicidade da sociedade e as demandas dos sujeitos. Existe uma urgência em se vislumbrar uma escola que contemple as novas formas de fazer educação/alfabetização, percebendo os mecanismos tecnológicos como aliados e facilitadores do processo de ensino-aprendizagem. Seja para crianças ou para jovens e adultos, as tecnologias nos processos educativos de alfabetização envolvem os seguintes aspectos: possibilidades de aproximação dos sujeitos para a apropriação de novos conceitos e para o auxílio na leitura e na escrita; artefatos mais atraentes que favorecem a aprendizagem (música, fotos, mapas, paisagens, desenhos, jogos, etc.); reconhecimento, compreensão e interpretação de textos, contextos e situações, dadas as possibilidades de navegação pela internet; sentimento de pertencimento ao movimento sociotecnológico, visto que sentir-se pertencente é um importante fator que favorece as aprendizagens; criação e recriação a partir de ferramentas e programas educativos específicos. Para Nobre et al. (2011), pensar em alfabetizar utilizando os recursos tec- nológicos emerge como proposta que se vincula a uma realidade social cada vez mais informatizada. Essa realidade se sustenta no uso de pressupostos pedagógicos das práticas de ensino-aprendizagem aliadas às novas tecnologias, considerando a dinamicidade e a diversidade da sociedade moderna. Portanto, aos educadores alfabetizadores, sejam de crianças ou jovens e adultos, torna-se necessário um exercício constante de reflexão acerca das possibilidades geradas pelos recursos tecnológicos na sala de aula, bem como pelos movimentos e aprendizagens produzidas nesse processo. Como alfabetizar na era digital? De acordo com Sá ([2018]), nos dias atuais, o professor e alfabetizador geral- mente está diretamente conectado às novas tecnologias da informação, seja por diversão, comunicação, trabalho, pesquisa, publicação ou uma infi nidade de outros motivos. Há, por outro lado, uma enorme contradição no que se refere ao cenário educacional, que muitas vezes recebe o aluno “tecnologizado” com ferramentas ultrapassadas ou apenas com tecnologias reduzidas às redes 3Uso da tecnologia na alfabetização C15_Uso_Tecnologia_atualizado.indd 3 25/05/2018 08:23:42 sociais. Mas não seria a escola responsável por iniciar o conhecimento sobre essas tecnologias? Não seria ela a responsável pela capacitação para o uso das ferramentas tecnológicas de aprendizagem? Não seria a escola um lugar apropriado para os alunos se familiarizarem com aquilo que é novo? Como pode o computador invadir o mundo externo à escola e nunca conseguiradentrar os seus muros ou as suas salas? Sá ([2018], documento on-line) ressalta que: Para alfabetizar um ser tecnológico temos que nos conduzir por meio de veículos tecnologizados. O alfabetizador tem que estar harmonizado com as novas tecnologias e saber fazer bom uso delas. Excelentes ferramentas estão disponíveis ao alfabetizador, desde que ele possa se formar como ser tecnologi- zado e aprender a utilizar os saberes adquiridos como produto desta formação. Portanto, é possível considerar que o sucesso da alfabetização não depende apenas da posse das novas e inovadoras ferramentas tecnológicas e sim dos profissionais alfabetizadores que fazem diariamente o uso delas. As contribuições da tecnologia para a alfabetização de crianças, jovens e adultos Como você viu até aqui, são necessárias transformações nos processos alfa- betizadores de crianças, jovens e adultos. Além disso, é preciso reinventar as formas de pensar a alfabetização e as tecnologias na escola. Para isso, é fundamental pensar, também, em uma reorganização do espaço físico, do material pedagógico e do processo didático. Assim, os sujeitos envolvidos, por meio de trocas, interações e participações, poderão se constituir, produzindo suas experiências, suas interlocuções e, portanto, seu conhecimento. É preciso que educadores e educadoras proporcionem um ambiente onde exista o estímulo à invenção e à descoberta, considerando as tecnologias como grandes aliadas. Um espaço onde o interesse e a curiosidade, pontos marcantes de quem tem sede de aprender, sejam considerados e aguçados. Para tanto, é fundamental que seja dado um leque de oportunidades para que cada pessoa (criança, jovem ou adulto) tenha a chance de transitar en- tre as possibilidades alfabetizadoras (jogos digitais, animações, imagens, sons, histórias, etc.), se desafiando e buscando suas maneiras de construir o conhecimento. É relevante, também, considerar que os professores alfa- betizadores, em suas práticas de ensino e aprendizagem, devem repensar e Uso da tecnologia na alfabetização 4 C15_Uso_Tecnologia_atualizado.indd 4 25/05/2018 08:23:42 elaborar oportunidades concebendo jogos, brinquedos, propostas adaptadas, materiais didáticos e outros artefatos como possibilitadores de encontros, de experiências e, consequentemente, de aprendizagens. Na perspectiva de pensar as tecnologias como aliadas dos processos de alfabetização, percebendo seu potencial de contribuição para o cenário edu- cativo, Sá ([2018]) traz alguns apontamentos e sugestões de ferramentas, bem como possibilidades de atividades alfabetizadoras. São elas: A partir do programa Word: criação e edição de textos com armazena- gem dos dados escritos para leituras posteriores. Os textos podem ser lidos pelos seus criadores ou compartilhados por meio da internet com usuários do mundo inteiro. À medida que a criança, jovem ou adulto se colocar em frente ao computador e utilizar um editor de textos, terá de procurar as letras corretas no teclado para formar as palavras desejadas e assim construir frases, etc. É importante você lembrar-se de que as letras no teclado estão dispostas estrategicamente, mas de forma aleatória, e à medida que o aluno digita o texto, ele também trabalha a motricidade de ambas as mãos. A partir do programa Excel: o Excel é uma ferramenta de cálculo, mas que desenvolve uma série de funções que também podem auxiliar na alfabetização. Nele, podem ser trabalhadas palavras cruzadas, caça- -palavras, labirintos, diversos jogos de raciocínio, etc. A partir do programa PowerPoint: o PowerPoint é uma ferramenta que pode ser utilizada para tornar o processo de alfabetização prazeroso e visualmente bonito. Pode-se trabalhar com slides de imagens diversas, fotografias dos próprios trabalhos em sala de aula, alfabeto animado, etc. Possibilidades da internet: como você sabe, a internet é caracterizada pela sua infinidade de recursos. Nela, o alfabetizador poderá encontrar jogos educativos, imagens, projetos, textos, livros, laboratórios virtuais e muitos outros recursos que o auxiliarão no processo alfabetizador. Todos esses recursos trazem consigo inúmeras possibilidades de ações para o professor alfabetizador. Portanto, há diversas maneiras de organizar práticas a partir do mundo digital: são novas formas de apresentar e manipular os números, as letras, os símbolos, para assim construir conhecimento. Você deve notar que a criatividade é fundamental para que esses programas e re- cursos não se resumam a meros entretenimentos. A elaboração de objetivos, o planejamento e a mediação são características essenciais para o sucesso do processo de alfabetização, seja com crianças, jovens ou adultos. 5Uso da tecnologia na alfabetização C15_Uso_Tecnologia_atualizado.indd 5 25/05/2018 08:23:42 O papel dos jogos educativos digitais nos processos de alfabetização Segundo Rabelo (2014), os desafi os lançados para os professores alfabetizadores e demais profi ssionais da educação são enormes, principalmente no que se refere ao seu processo de formação e aperfeiçoamento. Afi nal, um leque de novas formas de atuação frente à alfabetização está se abrindo, especialmente a partir do advento das tecnologias. Nesse cenário, surgem as plataformas virtuais de aprendizagem, elaboradas com atividades diversas para crianças, jovens ou adultos. Também há os aparelhos eletrônicos, os vídeos temáticos diversos e, ainda, os inúmeros jogos educativos digitais. Dessa maneira, o papel do profissional alfabetizador deve estender-se para abranger diferentes tipos de conhecimento. Entre esses novos conhecimentos, você pode considerar: reconhecimento e aptidão para manusear aparelhos tecnológicos; criatividade para elaboração de atividades a partir de vídeos educativos; e, sobretudo, conhecimento e apropriação de jogos digitais que possam ser úteis na alfabetização. Na verdade, as ações do professor alfabe- tizador devem ir além de elaborar planos, avaliar ou lecionar. Surge, então, a necessidade do desenvolvimento de novas competências e habilidades frente às tecnologias e aos jogos educativos, considerando que esses elementos se tornaram aliados do processo alfabetizador. De acordo com Aquino, citada por Lopes (2014), existe a necessidade de integrar o uso de recursos tecnológicos na escola, inclusive no processo de alfabetização. É necessário pensar que a tecnologia já está presente na forma como o sujeito (criança, jovem e adulto) lê o mundo hoje. Segundo a autora, os tablets e dispositivos móveis são ótimas ferramentas por conterem elementos visuais que incentivam a leitura e a escrita. Além disso, os games e as redes sociais educativas também ajudam a engajar e a despertar o interesse do aluno. No entanto, ao utilizar a tecnologia como aliada durante o processo de alfa- betização, o professor precisa investir muito em planejamento. Para qualquer instrumento, ele deve pensar no contexto em que irá utilizá-lo. Sobre a importância dos jogos no processo de alfabetização, vale ressaltar que: “O jogo exerce um papel importante para as crianças, entre outros de motivador, fazendo com que ela faça esforço para atingir o objetivo estipulado e, como consequência, pode ser parte do processo de aprendizagem” (GODI- NHO, 2004, p. 156). Portanto, cabe ao alfabetizador estudar, conhecer e se ocupar desses processos tecnológicos, de modo a organizar e sistematizar os diversos conhecimentos advindos dessas ações acerca dos jogos educativos Uso da tecnologia na alfabetização 6 C15_Uso_Tecnologia_atualizado.indd 6 25/05/2018 08:23:43 digitais. Deverá, ainda, construir e exercitar a responsabilidade de acompanhar as questões educacionais, visando a atingir os objetivos propostos pelos jogos. Você deve notar também que, a partir de um olhar mais técnico, os softwares educacionais, para estarem apropriados para o processo de alfabetização e aprendizagem, devem seguir determinados critérios e serem avaliados quantoa estes. De acordo com Oliveira e outros (2001 apud ALBERNAZ, 2008), as etapas que devem ser consideradas para o desenvolvimento do software educativo podem ser assim enumeradas: seleção do conteúdo; verificação dos conhecimentos prévios necessários; definição dos conceitos sobre a estrutura do conteúdo; elaboração do diagrama de fluxo; construção das telas e sua implementação (diagrama de fluxo, docu- mentação, layout e associação entre as telas); elaboração da documentação do software; uso, verificação e manutenção do software. Segundo Campos e Campos (2007 apud NOBRE et al., 2011), além desses aspectos, os jogos educativos e alfabetizadores também devem considerar outros critérios importantes: sugerir ambientes que possibilitem o aprendizado sob múltiplas perspectivas; sugerir contextos compatíveis com o conhecimento além da sala de aula; possibilitar a interpretação significativa e reflexiva; estimular o pensamento crítico; fomentar a comunicação, de modo que haja troca de ideias e análise de diferentes alternativas; prover apoio ao aluno, ao contexto da aprendizagem e ao processo. Enfim, os conhecimentos construídos pelo acesso aos jogos educativos tecnológicos podem, e muito, colaborar para os processos e as dinâmicas que envolvem a alfabetização. Afinal, essas ferramentas põem em cena diferentes características dos sujeitos (crianças, jovens ou adultos) que as manuseiam: sensações, desafios, conquistas, conflitos, disputas, angústias, aprendizagens, desejos, etc. Portanto, não há como negar a pertinência dos jogos digitais enquanto importantes ferramentas aliadas aos processos de alfabetização. 7Uso da tecnologia na alfabetização C15_Uso_Tecnologia_atualizado.indd 7 25/05/2018 08:23:43 ALBERNAZ, J. M. Jogo computacional como desencadeador da aprendizagem de ma- temática nas séries iniciais do ensino fundamental: sua avaliação por professores e alunos. 2008. Apostila. GODINHO, M. B. O papel do jogo computacional veritek na alfabetização. 2005. 81 f. Monografia (Especialização) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Facul- dade de Educação, Porto Alegre, 2005. Disponível em: <http://www.lume.ufrgs.br/ handle/10183/37199>. Acesso em: 28 mar. 2018. LOPES, M. Ferramentas interativas auxiliam na alfabetização. 2014. 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Identificar um ambiente alfabetizador como aquele que contribui para o aprendizado das crianças. Apresentar ideias práticas que auxiliem na construção de um ambiente alfabetizador na escola. Introdução Desenvolver as habilidades da leitura e da escrita é essencial para que as instituições escolares possam atingir seus objetivos maiores e preparar seus alunos para a vida social e o exercício da cidadania. Dessa forma, é necessário que você saiba o que significa um ambiente alfabetizador, que pode apresentar-se dentro e fora da escola. Esse ambiente possui características específicas que, caso sejam observadas, irão contribuir para o desenvolvimento de uma aprendizagem significativa da leitura e da escrita. Afinal, como você sabe, as interações com o meio em que essas habilidades são desenvolvidas pode contribuir diretamente com o aproveitamento e o desenvolvimento dos alunos. Ambiente alfabetizador: conceito e características Segundo Monteiro ([201-?]), foi a partir dos anos 1980, sobretudo com o avanço das ideias construtivistas no cenário pedagógico, que surgiram importantes questionamentos sobre o que seria necessário para que uma criança pudesse ser alfabetizada. Quais seriam os recursos necessários que facilitariam a aquisição dessa habilidade? Qual a implicação das metodologias utilizadas e da didática do professor para que essa alfabetização se efetivasse? Esses são Cap_10_Alfabetização_e_letramento.indd 1 08/03/2018 17:59:39 alguns dos questionamentos que levarão você à defi nição de um ambiente alfabetizador. Veja agora a citação a seguir: Com a difusão do ideário construtivista, para o qual o foco é a criança e seu processo de conceitualização da escrita, a interação da criança com esse objeto de conhecimento ganhou uma grande importância nos encaminhamentos pedagógicos. A ideia fundamental é a de que o aprendiz da língua escrita é capaz de refletir sobre o sistema de representação, apropriando-se de seus sinais gráficos e de suas regras de funcionamento, a partir do contato intenso com os materiais escritos e da participação ativa em práticas de leitura e escrita de adultos (MONTEIRO, [201-?]). Por meio dessa citação, você pode perceber que as ideias construtivistas a respeito das capacidades da criança propuseram que o contato desta com mate- riais escritos e sua participação ativa em práticas de escrita e leitura de adultos poderiam potencializar o conceito de alfabetização. E, partindo desse princípio, a necessidade de criação de um ambiente alfabetizador também se tornou evidente. Talvez seja importante você relembrar o que vem a ser o construtivismo nesse início de abordagem sobre o tema. Isso é válido principalmente para marcar que, a partir dele, se muda o foco do “ensinar” para o “aprender”, o que altera significativamente a forma de abordar a leitura e a escrita. Segundo Coll et al. (2006, p. 19, grifo nosso): A aprendizagem contribui para o desenvolvimento na medida em que apren- der não é copiar ou reproduzir a realidade. Para a concepção construtivista, aprendemos quando somos capazes de elaborar uma representação pessoal sobre um objeto da realidade ou conteúdo que pretendemos aprender. Essa elaboração implica aproximar-se de tal objeto ou conteúdo com a finalidade de apreendê-lo; não se trata de uma aproximação vazia, a partir do nada, mas a partir de experiências, interesses e conhecimentos prévios que, presumivel- mente, possam dar conta da novidade. Partindo da citação dos autores, você pode perceber que, ao tratar dos objetos de conhecimento da leitura e da escrita, também deve atentar ao conceito de representação. Esse conceito será essencial para que você possa desenvolver suas atividades como professor alfabetizador. A representação produz sentidos na criança a respeito de determinado objeto que a cerca e sobre o qual produz suas experiências. Você pode pensar que, ao estar em um mundo onde se vê cercada de sinais, símbolos gráficos e sons, a criança logo cedo irá começar a estabelecer relações entre esses elementos na tentativa de representá-los. Ima- gine a criança que, em casa, diariamente se utilize de objetos que apresentam Ambiente alfabetizador2 Cap_10_Alfabetização_e_letramento.indd 2 08/03/2018 17:59:39 escritas e desenhos. Essa experiência faz com que ela comece a realizar suas associações e combinações desses sinais buscando construir uma representação. Logo, o creme dental “X do ursinho” passa a ser o seu preferido e assim ela irá identificá-lo no mercado ao realizar as compras com a família, por exemplo. Leia mais sobre o assunto nos artigos a seguir: As múltiplas facetasda alfabetização (SOARES, 1985) https://goo.gl/nzaG4h A representação da linguagem e o processo de alfabetização (FERREIRO, 1985) https://goo.gl/NC9Fpn Considere uma criança ainda em idade pré-escolar. Ao manusear um livro de literatura infantil com muitas imagens e algumas poucas palavras escritas, a criança entende logo que aquelas palavras representam algo que se diz sobre as imagens, que ambas se complementam. Assim, a escrita passa a representar algo possível de produzir um entendimento sobre a história que vem sendo retratada na obra a partir das imagens e das palavras. Você pode considerar, então, a partir do que viu até aqui, que um am- biente alfabetizador é aquele onde o aluno se encontra imerso em sinais, símbolos, gráficos, palavras escritas, desenhos e sons que possam produzir significados e representações. Um ambiente alfabetizador também é aquele onde os alunos estão cons- tantemente sendo estimulados às práticas relacionadas ao desenvolvimento de sua autonomia e a aproximações com aspectos relacionados à pesquisa. Por meio da utilização de recursos variados encontrados nesse ambiente, os aprendizes poderão criar e desenvolver as habilidades necessárias para que a leitura e a escrita produzam sentidos e sejam apreendidas. Quando você ouve falar em recursos, pode imaginar desde as simples folhas brancas até tintas, lápis, argilas e toda sorte de materiais com os quais possam ser representadas as letras e demais signos gráficos a serem aprendidos, não é? Logo, você pode inferir que, quanto maior for a disposição desses elementos com os quais a pessoa pode interagir e vivenciar, mais facilitada será a sua alfabetização. 3Ambiente alfabetizador Cap_10_Alfabetização_e_letramento.indd 3 08/03/2018 17:59:39 Outra característica importante do ambiente alfabetizador é a capacidade de proporcionar a participação e a interação entre os alunos que se encon- tram em processo de alfabetização. Isso pode ser perseguido a partir do uso de atividades em grupo e da constante observação e acompanhamento dos diferentes níveis em que os alunos se encontram. Um ambiente alfabetizador possui a capacidade de despertar o interesse, motivar, estimular e desafiar os alunos a continuarem buscando aprender a ler e escrever. Além disso, esse ambiente vai sempre deixar claro aos alunos que a escrita e a leitura apresentam uma intenção e uma funcionalidade que muito auxiliam nas suas vidas cotidianas. É importante você notar que um ambiente alfabetizador não é somente encontrado na escola, mas ao seu redor. Afinal, a leitura e a escrita são objetos sociais necessários e presentes no cotidiano das pessoas. Considere o conceito de representação da leitura e da escrita que se desenvolve na mente dos alunos em processo de alfabetização. Você pode entendê-lo como a forma com que os símbolos gráficos que envolvem a escrita adquirem significado na mente dos alunos. Nesse sentido, é o modo como conseguem, a partir da visualização de um código escrito, entender que aquilo produz um sentido no mundo social a que pertencem. Escola: ambiente alfabetizador Com o passar dos séculos, a escola assumiu um papel central na vida em sociedade. A educação escolar passou a classifi car os indivíduos, estratifi cando socialmente aqueles que iriam exercer certos papéis sociais, galgar certas categorias profi ssio- nais, serem vistos como capazes e pessoas de sucesso. Ou seja, a educação escolar, sobretudo na contemporaneidade, é fundamental e representa um parâmetro, uma meta, um objetivo muito importante a ser perseguido por todos, caso queiram desfrutar das melhores possibilidades que a sociedade oferece. A escola, na contemporaneidade, é a instituição social que cumpre a fina- lidade de alfabetizar, ou seja, de “tornar o indivíduo capaz de ler e escrever” (SOARES, 2010, p. 31). Isso fez com que a escola procurasse criar metodo- logias e técnicas em busca de alcançar esse objetivo considerado primordial na sua própria existência. A importância da escrita é notória no interior das Ambiente alfabetizador4 Cap_10_Alfabetização_e_letramento.indd 4 08/03/2018 17:59:40 instituições escolares, em todos os níveis da educação. É a partir dela, de sua apropriação, que os alunos são inclusive classificados e avaliados. Porém, é importante que você realize a seguinte reflexão “[...] a escrita é impor- tante na escola porque é importante fora da escola, e não o inverso” (FERREIRO, 1999, p. 21). Ou seja, aprender a ler e escrever é essencial para que o indivíduo possa viver em sociedade e apropriar-se das mudanças e reconfigurações em que se encontra imerso diariamente. Logo, a capacidade de ler e escrever é um marcador social importante e que coloca o indivíduo em condições de interpretar melhor o mundo, interagir com as pessoas e exercer sua cidadania. Basta você se deter rapidamente nos pré-requisitos para seleção de profissionais para algumas vagas no mercado de trabalho que identificará tal importância. Como você viu, então, a escola se constitui como principal espaço, ainda na contemporaneidade, onde a aprendizagem da leitura e da escrita se dará. Ferreiro (1999, p. 21) complementa a ideia afirmando que: A escola (como instituição) se converteu em guardiã desse objeto social que é a língua escrita e solicita do sujeito em processo de aprendizagem uma atitude de respeito diante desse objeto, que não se propõe como um objeto sobre o qual se pode atuar, mas como um objeto a ser reproduzido fielmente sem modificá-lo. Ora, se você acompanhar o raciocínio proposto na citação, pode inferir que, por mais criativo e inovador que o professor alfabetizador se torne, ainda assim o objeto de conhecimento a ser aprendido conservará suas características, não é mesmo? Ou seja, o alfabeto existe, é real e concreto e deve ser apreendido, assi- milado e reproduzido com maestria por aqueles que aprendem. E ainda existem as normas de ortografia a serem conhecidas e também seguidas e respeitadas. Então, como professor alfabetizador, você tem um grande compromisso, no interior da escola, de torná-la o ambiente mais favorável e propício para o desenvolvimento do processo de alfabetização. Isso passa, necessariamente, pela construção de bons ambientes alfabetizadores, capazes de potencializar a aprendizagem significativa da leitura e da escrita nos alunos. A escola, ao promover um ambiente alfabetizador, estará fazendo com que os alunos possam despertar seu interesse pela leitura e pela escrita. Assim, eles são motivados a perceber que aquilo que estudam e aprendem no interior da escola possui aplicação prática e se encontra ao seu redor na sociedade. 5Ambiente alfabetizador Cap_10_Alfabetização_e_letramento.indd 5 08/03/2018 17:59:40 Construindo um ambiente alfabetizador Existem algumas questões que você deve levar em conta, como professor alfabetizador, para construir um ambiente propício à alfabetização. Agora, você vai compreender melhor esses aspectos. O primeiro aspecto a considerar é que você, como professor, deve reco- nhecer que a criança necessita perceber o caráter prático e funcional que a aprendizagem da escrita e da leitura representa na sua vida social. Reforçando essa ideia, Ferreiro (1999, p. 25) comenta que: As crianças são facilmente alfabetizáveis desde que descubram, através de contextos sociais funcionais, que a escrita é um objeto interessante que merece ser conhecido (como tantos outros objetos da realidade aos quais dedicam seus melhores esforços intelectuais). Esses contextos sociais funcionais citados pela autora podem ser compre- endidos como a capacidade de a criança entender as mensagens, traduzir ou decodificar o que aparece ao seu redor cotidianamente, ser capaz de transmitir o que pensa, escrever aquilo que ouve e fala. Outra observação importante é que “a aprendizagem da leitura e da escrita é um processo de construção pessoal do conhecimento que, no entanto, não pode acontecer sozinho. Nesse processo, a interação,a ajuda, é muito relevante” (PAUSAS et al., 2004, p. 21). Você deve considerar que a criança, ainda antes de entrar na escola, já se encontra envolta em experiências que se relacionam à escrita e à leitura, ou seja, já traz consigo uma bagagem em relação a esses objetos de conhecimento. Ao chegar na escola, porém, para que possa apropriar-se e de fato adquirir as habilidades da escrita e da leitura, é imprescindível o trabalho do professor alfabetizador. Este deverá, além de considerar o que a criança já traz consigo, entender que cada um dos alunos pode se apresentar num nível diferente na organização de suas ideias, conhecimentos e representações sobre a leitura e a escrita, o que deve ser respeitado. Aqui, é oportuno que você se lembre de Vygotsky (1979). Ele afirma que, ao estudar a linguagem, a criança nunca parte do zero para aprender algo, pois suas vivências histórico-sociais a acompanham. Cabe ao professor atuar na Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) dos alunos, estimulando o seu máximo desenvolvimento potencial. Ambiente alfabetizador6 Cap_10_Alfabetização_e_letramento.indd 6 08/03/2018 17:59:40 O conceito de ZDP foi desenvolvido por Vygotsky e simboliza o espaço em que o professor deve atuar, estimular e agir para que o aprendiz possa sair de seu desenvolvimento real e atingir o seu desenvolvimento potencial, que se encontra latente. Ou seja, existe um momento em que a criança precisará de algum apoio ou intervenção do professor alfabetizador ou de seus colegas para que dê os próximos passos na sua aprendizagem. Na Figura 1, você pode ver uma síntese de alguns aspectos que favorecerão a aprendizagem da leitura e da escrita. Figura 1. Aspectos que favorecem a aprendizagem. Fonte: Adaptado de Pausas et al. (2004). Participação Interesse Observação Interação Diversi�cação Conhecimentosprévios Agora, você vai ver cada um dos itens mostrados na Figura 1, que poderão auxiliar muito na tarefa da alfabetização escolar. Participação: a participação dos alunos é primordial. Em vez de uma sala de aula já repleta de estímulos visuais gráficos que levem ao objeto de conhecimento (alfabeto nas paredes, por exemplo), melhor seria se o alfabeto fosse sendo introduzido aos poucos, junto com os alunos. Ele deve ser trabalhado cotidianamente e, então, após isso, ir ocupando seu espaço na sala de aula. Ainda antes da entrada no alfabeto propriamente dito, por que não trabalhar os rótulos e reconhecer quais significados as crianças já possuem a respeito da leitura deles? Enfim, tudo aquilo que é realizado com a participação dos alunos se torna mais significativo, o que favorece a aprendizagem. 7Ambiente alfabetizador Cap_10_Alfabetização_e_letramento.indd 7 08/03/2018 17:59:40 Diversificação: você viu anteriormente que o professor deve estar atento aos diferentes níveis de conhecimento que seus alunos pos- suem sobre a leitura e a escrita. Logo, não seria coerente que todos, obrigatoriamente, tivessem de realizar as mesmas atividades, não é mesmo? Nesse caso, é interessante que, na sala de aula, ao montar seus cantinhos pedagógicos, os meninos e as meninas possam perceber atividades diferentes. É interessante que se apresentem escolhas a serem realizadas para trabalhar os objetos. Por exemplo, se você uti- lizar um conto, este poderá ser olhado, escutado, assistido em DVD, dramatizado com fantoches, escrito com as mais diferentes letras. Enfim, são inúmeras as possibilidades de escolha que poderão ser oferecidas para que os alunos possam optar. Conhecimentos prévios: levar em conta os conhecimentos prévios que os estudantes trazem consigo a respeito da leitura e da escrita significa entender que esses conhecimentos são objetos sociais que atuam di- retamente na vida social. Assim, são indispensáveis para acessar toda a gama de conhecimentos e educação presente na cultura e, logo, não devem ser desconsiderados. Interesse: a aprendizagem da leitura e da escrita deverá estar em sintonia com aquilo que interessa e motiva os alunos. O professor deverá mapear, descobrir quais são seus interesses reais e, a partir daí, estruturar suas atividades. Isso fará com que o engajamento seja maior e contribuirá para o desenvolvimento das atividades em sala de aula. Os cantinhos pedagógicos, também conhecidos como zonas circunscritas, são espaços muito vistos nas salas de aula da educação infantil. Neles, ficam expostos elementos variados com os quais os alunos podem interagir e, a partir dessas intera- ções, desenvolver aprendizagens diversas a serem observadas pelos professores. Os cantinhos servem também para que neles os alunos possam representar diversos papéis da vida real. Observação: o professor alfabetizador deve desenvolver a sua capa- cidade de observação, pois assim poderá identificar em quais níveis de alfabetização cada um de seus alunos se encontra. A partir disso poderá, então, propor atividades que irão ajudá-los de forma individual. Ambiente alfabetizador8 Cap_10_Alfabetização_e_letramento.indd 8 08/03/2018 17:59:41 Ou seja, a observação permite que a intervenção do professor seja feita na hora certa e com os indivíduos que realmente necessitam de seu auxílio. Também ajuda na hora de propor atividades colaborativas, em que os alunos possam ajudar a desenvolver seus colegas. Interação: outro instrumento importante para que a leitura e a escrita possam ser aprendidas em sala de aula é a interação entre alunos e profes- sor e entre os próprios colegas. Por meio do intercâmbio, da troca entre os alunos e os grupos que frequentam cotidianamente, normalmente haverá a assimilação dos níveis de conhecimento mais altos daqueles grupos. A interação favorece a atuação na zona de desenvolvimento proximal, que você viu anteriormente, apoiando aqueles que precisam para que possam ir adiante na aquisição das habilidades da leitura e da escrita. Você viu até aqui alguns aspectos que poderá considerar para que a alfabetização ocorra com maior sucesso no ambiente escolar. Os pontos que conheceu farão com que o ambiente alfabetizador possa ser estabelecido e favoreça a aprendizagem destes tão importantes e essenciais objetos de conhecimento que são a leitura e a escrita. Porém, a percepção do profes- sor, sua capacidade de observação e leitura de cada aluno e de cada grupo é imprescindível para que todos esses itens sejam aplicados. Como você sabe, cada aluno é diferente, pode ter vivido experiências sociais totalmente diversas e traz consigo uma bagagem única, que deve ser conhecida pelo professor em seus primeiros contatos e que irá definir, muitas vezes, os caminhos a seguir nas ações futuras. Assista ao vídeo disponível no link a seguir para conhecer o Projeto Alfaletrar. Esse projeto tem como objetivo oferecer a todas as crianças as condições necessárias para prosseguirem com sucesso em sua escolarização e, sobretudo, para se apropriarem de competências indispensáveis à plena inserção na vida social e profissional: as competências de leitura e de produção textual. https://goo.gl/LKY3aE Você também pode conferir uma entrevista com a idealizadora do projeto, Magda Soares. https://goo.gl/fLN1cq 9Ambiente alfabetizador Cap_10_Alfabetização_e_letramento.indd 9 08/03/2018 17:59:41 COLL, C. et al. O construtivismo em sala de aula. 6. ed. São Paulo: Ática, 2006. FERREIRO, E. Com todas as letras. 7. ed. São Paulo: Cortez, 1999. MONTEIRO, S. M. Ambiente alfabetizador. [201-?]. Disponível em: <http://www.ceale. fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/ambiente-alfabetizador>. Acesso em: 6 mar. 2018. PAUSAS, A. D. de U. et al. A aprendizagem da leitura e da escrita a partir de uma perspectiva construtivista. Porto Alegre: Artmed, 2004. SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. 4. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. VYGOTSKY, L. S. El desarrollo de los procesos psicológicos superiores. Barcelona: Crítica, 1979. Leituras recomendadas BELINTANE, C. Leitura e alfabetizaçãono Brasil: uma busca para além da polarização. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 32, n. 2, p. 261-277, maio/ago. 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/%0D/ep/v32n2/a04v32n2.pdf>. Acesso em: 6 mar. 2018. FERREIRO, E. A representação da linguagem e o processo de alfabetização. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 52, fev. 1985. Disponível em: <https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=6135820>. Acesso em: 7 mar. 2018. MORTATTI, M. do R. L. Alfabetização no Brasil: conjecturas sobre as relações entre políticas públicas e seus sujeitos privados. Revista Brasileira de Educação, v. 15, n. 44, maio/ago. 2010. Disponível em: <http://www.redalyc.org/html/275/27518764009/>. Acesso em: 6 mar. 2018. SOARES, M. B. 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