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Madame Bovary: a paixão, o consumo1 Goiamérico Felício Carneiro dos Santos2 Resumo: Vivendo sob o manto de um romantismo já sob depreciação pelo excesso de sentimentalismo e idealizações, colocando a busca da felicidade sob as premissas de um amor intensivamente vivido, a personagem Emma Bovary, cujo nome empresta título à sua obra que se constitui num marco do romance moderno, Gustave Flaubert aponta-nos as contradições que o capitalismo. Sob a égide das paixões, do adultério e das mentiras temos uma e a ânsia de tudo consumir temos uma heroína e por isso mesmo Tudo conspira contra a felicidade da pobre moça que emblematiza o problema que a Revolução Industrial apontava: o êxtase e os perigos que promete trazer a modernidade. Palavras-chave: Romantismo; Capitalismo; Paixão; Consumismo; Modernidade 1 Trabalho apresentado ao NP 03 – Publicidade, Propaganda e marketing, do IV Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom. 2 Mestre em Estudos da linguagem pela UFG e Dr. em Letras pela PUC-Rio; professor e pesquisador da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia, da Universidade Federal de Goiás, onde coordena a Pós-Graduação (Lato Sensu) em Assessoria em Comunicação; Prof. e pesquisador do Departamento de Letras da Universidade Católica de Goiás, onde coordena o Núcleo de Pesquisas em Linguagem. “Escrever um romance significa escrever a existência humana, levando o incomensurável ao paroxismo” (W. Benjamin) Num texto exemplar no qual é feita uma análise do romance em paralelo à narrativa épica, o autor da epígrafe acima alerta para a situação de um outro gênero que nasceu em crise e que permanentemente se encontra em crise3. Nascemos rodeados pelas narrativas. Tudo aquilo que podemos sentir no mundo, tudo aquilo que podemos compreender do mundo, em tudo o que somos impelidos a empreender no e pelo mundo se dá a partir das narrativas que herdamos e também pelos relatos daquilo que fazemos. Toda tarefa humana, desde os atos mais ínfimos e impensáveis, até os mais ousados, grandiosos – e por isso mesmo imperdoáveis – carece de narrativas. Temos uma imperiosa necessidade de relatar, conta ao mundo, acerca dos nossos medos, impasses, sonhos. Mas, conforme Benjamin, a condição do poeta épico é bem diversa e bem menos problemática que a situação do romancista. No poema épico o aedo, ao conclamar o auxílio das musas, passa a narrar numa confortável distância espacial e temporal, apresentando um mundo idealizado, perdido nas sendas da história, e por isso mesmo personificando nas ações de um herói exemplar, para depois repousar juntamente com os seus ouvintes. O romancista, contudo, não pode contar com esse repouso, esse distanciamento. O mundo de que ele trata está mais próximo. A crise não é apenas uma lembrança de algo que ocorreu num passado mítico ou historicamente distanciado que o narrador incumbe-se de presentificar para que no presente se possa construir o futuro. Para o romancista, o passado está perdido, o presente é uma ameaça e o futuro é uma incógnita. Eis uma diferença básica que podemos estabelecer entre o gênero épico e o gênero romanesco: “Nada contribui mais para a perigosa mudez do homem interior, nada mata mais radicalmente o espírito da narrativa que o espaço cada vez maior e cada vez mais impudente que a leitura dos romances ocupa em nossa existência”4. 3 Cf. BENJAMIN, W.: 1987, 54. 4Idem, 55. O romance, constituindo-se no gênero burguês por excelência, apresenta em seu enredo a descrição das vicissitudes humanas bem próxima daquela em que se posiciona o narrador. O tempo do enunciado e o tempo da enunciação aproximam-se cada vez mais, num processo que nos permite ver no livro presente a vida dos homens presentes. Mas, paradoxalmente, em nenhum tempo, o escritor pôde sentir-se mais alijado do mundo. A solidão aparta o escritor da matéria narrada, que está ali ao lado, mantendo-o também distanciado dos leitores que com ele coabita o espaço público do mundo. O leitor também se abandona na leitura de um livro que “ficcionaliza” a vida de quem lê a obra em busca de devaneios exatamente para fugir da realidade que o sufoca: “A matriz do romance é o indivíduo em sua solidão, o homem que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações. A quem não pode dar conselhos, e que não sabe dar conselhos a ninguém”5. Se podemos falar em crise do romance somos levados a crer que o gênero só encontrou condições objetivas e subjetivas para se consolidar, dentre outras condicionantes que não nos acabe aqui discutir, na medida em que o mesmo possuía a faceta de abrir um canal de comunicação com as novas camadas sociais ávidas por novidades que lhes aguçassem o espírito com o sonho, a imaginação, a fantasia. Assim, o gênero romance surge como resposta a uma sociedade em crise de valores em decorrência de mudanças de paradigmas sociais, econômicas, políticas e estéticas. Ao colocar em xeque os valores da sociedade burguesa ante o impasse da avassaladora modernidade, o romancista, como um herói anônimo em perigo desidealiza a própria ordem social em que se encontra desconfortavelmente se encontra quer como homem, quer na condição de arauto desse tempo de urgências. Insurge-se, pois, o romancista contra a sociedade em que se encontra e também contra o gênero literário vigente. “Resulta de tudo isso que toda verdadeira transformação da forma romanesca, toda busca fecunda nesse domínio, só pode situar-se no interior de uma transformação da própria noção de romance, que evolui de modo lento mas inevitável (todas as grandes obras do século XX estão aí para atestá-lo) para uma nova espécie de poesia, ao mesmo tempo épica e didática”6. 5 Idem, 54. 6 BUTOR, Michel: 1974, 14. Com isso, podemos aduzir que, quanto mais contundente for a crítica social descrita nos enredos, quanto maior for o desvio, a ruptura de gênero que o romancista se propõe, maiores poderão ser os riscos de má receptividade da obra e, por conseguinte, as sanções a que o autor se sujeita a incorrer. Ainda à distância, na condição de um leitor-crítico, no sentido de que não mais tenho o privilégio de ler romances tão–somente como entretenimento somos invadidos, enquanto leitores de Madame Bovary, a supor que, ao longo de todos esses anos, a partir da publicação da obra (1856), os leitores do romance que acabam rejeitando-o, ou mesmo o ignorando não estariam, com esse comportamento, sendo algozes de Emma Bovary? De resto, quase chego a deduzir que temos cada um de nós um pouco dessa pobre moça que desejou demais, que sonhou mais que o seu tempo permitia. Tocados pela poderosa estratégia narrativa em que um indiferente narrador os leitores do romance tornam-se indiferentes, quase cruéis para com o destino das pobres vidas daquelas personagens que habitam mundos periféricos, pobres de perspectivas, longe dos ventos de modernização. Tudo conspira para que a felicidade de Emma não se cumpra. O ambiente provinciano pela qual a senhora Bovary circula sem que a evasão para longe dali se concretize está repleto de personagens medíocres que a asfixiam, obnubilam o horizonte. Cada personagem da trama está ali para desempenhar um só papel: tornar a vida de Emma um verdadeiro inferno, um beco sem saída. Tudo conspira contra a felicidade da pobre moça que emblematiza o problema que a Revolução Industrial apontava: o êxtase e os perigos que promete trazer a modernidade. A exceção caberia talvez ao romancista Gustave Flaubert, o “pai” de Emma, que por ela tanto sofreu, como vemos em suas cartas exemplares7, constituindo-se também, enquanto escritor, em uma espécie de vítima da incompreensão e do arbítrio da crítica e dos leitores do seu tempo, conforme a história registra a recepção do seu romance.A longa e dolorosa fase de escrita do romance também trouxeram grandes martírios a Flaubert que ainda sofria o dissabor de viver num tempo de mediocridade, quando o escritor deveria “ceder” ao gosto duvidoso das massas para assim obter sucesso. A sua obsessão pelo melhor estilo tornava a escrita foi construída arrastada e lentamente, cheia de 7 FLAUBERT, Gustave: 1993. supressões de frases, períodos, às vezes de páginas inteiras. O processo também levava aos acréscimos de palavras e páginas. Antes, o estilista preciso procedia ao trabalho de pesquisa bibliográfica e de campo (observação do movimento da vida lá fora – ele sempre na condição de observador oculto e engajado). Paralelamente, Flaubert seguia com suas leituras dos grandes mestres. Na fase da escrita de Madame Bovary, Dom Quixote era a leitura da vez. O objetivo era sempre o de encontrar a frase precisa, como que cunhando versos harmoniosos, lancinantes e insubstituíveis: “Como odisséia, a escritura flaubertiana (gostaríamos de poder aqui atribuir a esta palavra um sentido inteiramente ativo) limita-se portanto àquilo que habitualmente qualificamos de correções do estilo. Estas correções não são de modo algum acidentes retóricos; prendem-se ao primeiro código, ao da língua, levam o escritor a viver a estrutura da linguagem como uma paixão”8. A par disso, o escritor ainda passava pelo tormento de viver em meio à massa ignara dos burgueses cujo ambiente pobre e rasteiro em termos de exigências estéticas feriam fundo o artista moderno. Em carta de nº 75, dirigida à sua amante e confidente intelectual Louise Colet, quando da escritura de Madame Bovary inúmeras vezes Flaubert deixa escapar desabafos como esse: “De que é que vale para a massa a Arte, a poesia, o estilo? Ela não tem necessidade disto. Dêem-lhe vaudevilles, tratados sobre o trabalho na prisão sobre as cidades operárias e os interesses materiais do “momento” [grifo do romancista]. Há uma conjuração permanente contra o original, eis o que é preciso meter na cabeça”9. A situação histórica que vivia a Europa ocidental e na América do Norte apontava para uma inusitada situação em que, inusitadamente, um fenômeno que nunca antes havia ocorrido começava a grassar pela Europa ocidental e também na América do Norte: a rígida ética protestante não mais parecia entrar entrar em estado de digladiação com o espírito do capitalismo. Ao contrário, ambas as instâncias, a religiosa-protestante, com sua moral ascética e puritana e a terrenal-profana índole capitalista, na passagem do século XVII para o século XVIII, começavam a se irmanarem, numa atuação conjunta, cada vez mais 8 BARTHES, Roland: 1974,70. 9 FLAUBERT, Gustave: 1993, 117. fortalecida, em busca de propósitos então incompatíveis: a ascética moral religiosa passou a ser a fonte de inspiração para a acumulação de bens materiais. Buscar o lucro, assenhorar- se de patrimônio (terras, propriedades, dinheiro); só então, seguinte, com prudência, dotar- se de conforto para a satisfação das necessidades imediatas e também para o desfrute do prazer ainda na terra. Essas ações não se constituiam em pecado e luxúria até então capazes de levar o incauto cristão para o pecado e poor isso mesmo ao eterno inferno” 10: “Acima de tudo esse é o summum bonum dessa “ética”: ganhar ndinheiro e sempre mais dinheiro, no mais rigorosoresguardo de todo gozo imediato do dinheiro ganho, algo tão completamente despido d todos os pontos de vista eudemonistas ou mesmo hedonistas e pensado exclusivamente como fim em si mesmo, que, em comparação com a “felicidade” do indivíduo ou sua “utilidade”, aparece em todo caso como inteiramente transcendente e simplesmente irracional” 11 Conforme as prédicas de Benjamin Franklin elencadas por Max Weber, isso que é hoje tão natural e necessário (ter uma profissão e nela se aplicar com afinco, especializando-se e com isso ganhar mais respeito e mais dinheiro) tornou-se uma característica da cultura capitalista e também a única possibilidade de sobrevivência, tanto para os empresários quanto para os operários, e de manutenção do sistema. O que propiciou toda essa revolução de costumes? Lembremos que estava em curso, no período uma crescente e irrefreável sociedade industrial alimentada e também alimentadora de uma revolução política e social consagrada pelos ideais franceses de liberté, igualité, fraternité. Nada mais sedutor, nada menos falso e enganador que esses ideais para os anseios daquele tempo para as classes sociais burguesas em desprestígio, vitimadas que foram pelos tempos de vida urbana concentrada nos grandes conglomerados urbanos. Ironicamente os grandes centros urbanos, notadamente as capitais, atraíam as multidões, pois as mesmas propiciariam a realização social e profissional como ponto de partida para a afirmação de classe lastreada pelo consumo. Nesse contexto é que se insere a nossa personagem Madame Bovary, em torno à qual centramos atenção na tentativa de perfazer uma possível leitura do romance. A nossa 10 WEBER, Max: 2004, 46. 11 Idem: 42-44. interpretação, na clave que agora nos propomos, é a de que Gustave Flaubert, munido de seu rancor em relação à emergente classe burguesa cada vez menos sensível e ao mesmo tempo cada vez mais pretensamente racional seria levada à perda, à ruína, ante os novos valores a que ela se agarrava instintamente. Assim, não por acaso, Flaubert denomina o seu romance não simplesmente Madame Bovary, como as descuidadas edições trazem, mas também com o subtítulo: Moeurs de province (acontecimentos de província). A presente leitura da obra nos remete a acreditar que acontecimentos como os descritos no romance de Flaubert não eram tão singulares, mas possivelmente cocrriqueiros. Lembremos que o enredo da obra parte de um tema real que chegou até o autor que tinha nas pessoas apenas a possibilidade de delas fazer personagens de romances.A saber, trata-se de um trágico acontecimento ocorrido no tempo e nas redondezas em que vivia o autor, a saber: as traições, as dissimulações, as dívidas e o suicídio de uma certa Delphine Couturier, depois Delamare, após casar-se com um médico provinciano, que deu-lhe o nome, dotado das mesmas características do fraco Charles Bovary que, por sua fraqueza, acaba tornando-se num algoz de Emma. No que concerne ao panorama de revolução dos costumes ocorrido a partir do século XVII, vemos que a ética protestante foi sendo substituída por uma ética romântica. Ou seja, a aristocracia, na órbita do consumo, ostentava cada vez mais os bens de luxo co os quais ela se distinguia da cada vez mais numerosa classe média burguesa. Esta, por sua vez, se deixou levar pelo espírito da emulação ensejando, assim, uma propensão irrefreável para o consumo. Dessa maneira, a Revolução Industrial, diferentemente do que propunham os historiadores econômicos, foi propulsionada muito mais pela procura de produtos pela classe média em busca dos bens supérfluos, notadamente objetos uso diário – artigos de vestuário consumidos através de uma moda continuamente alimentada pela substituição – que propriamente pela oferta abundante12. “Como de pode ver, diversos fatores são invocados para se explicar por que foi só em meados do século XVIII que os motivos de emulação devem ter-se tornado tão especialmente eficazes em estimular a procura do consumidor. Alguns desses, como ‘uma nova aptidão para gastar’, já foram enfrentados e excluídos, enquantos ‘novos produtos amplamente 12 CAMPBELL, Colin: 2003 disponíveis’ é meramente uma reafirmação da tese da da ‘procura como reflexo do abastecimento”13. Madame Bovary: pouco senso e muita sensibilidade Campbell aponta para o declínio da sensibilidadelembrando que na passagem do século XVIII para o século XIX, a tendência para o culto da sensibilidade, altamente em voga, na Inglaterra entre 1750 e 1770, já era considerado um exagero. A sensibilidade excessiva era tida como extemporânea e por isso tida depreciadora de uma existência que deveria ser pautada pelo equilíbrio de espírito e pelo comedimento das ações quer no cotidiano, quer nas expressões artísticas: “Em retrospeco, parece inevitável que uma ética que colocou tal ênfase na demonstração emotiva estivesse destinada, com o tempo, a degenerar em representação dramática e provocar, assim, o ridículo e a sátira. E nisso ela resultou, com a acentuada reação à sentimentalidade melodramática que ocorreu, tanto na vida como na arte, antes do fim do século XVIII e continuando nas primeiras década do XIX”14. De onde viria a rebeldia, o egocentrismo, e o apetite desmesurado de Emma Bovary pelas paixões? De onde viria uma tão grande determinação para enfrentar os códigos de conduta da província, rompendo com o seu meio familiar,com a sua classe social, num contínuo processo de fuga do destino a que estava condenada? Qual seria a origem da grande sentimentalidade de Emma? Tal ousadia não teria outra fonte que não as suas leituras dos romances de folhetim que lhe espandiram a imaginação, a capacidade de entregar-se aos devaneios de uma vida aventurosa e regada pelo amor. Ressalte-se que tais leituras, ao mesmo tempo em que eram abundantes eram também destituídas de aprovação pública e por isso realizadas furtivamente – tais leituras eram tidas mesmo como a fruta saborosa do paraíso que deveria a todo custo ser tão evitada quanto mais atraente fosse – e exatamente por isso condenáveis. Tidos como uma maldição à época, os romances de folhetim, acreditava-se, se lidos em execsso, provocavam a embriaguês e a cupidez, em decorrência do enfraquecimento da moral e dos costumes: “Rogers relata como foi sustentado que os romances, se devorados em ‘execesso’, agiam sobre a mente ‘como estimulantes embriagadores, [para] primeiro elevar e, no fim, enfraquecê-la”15. 13 Idem: 36. 14 Apud CAMPBELL, Colin: 2003, 243. 15 Idem: 246. A senhorita Rouault foi praticamente oferecida a Charles Bovary, que recentmente se enviuvara. O arranjo seria para ele uma segunda tentativa em levar uma vida pacata, sem muitas ambições. Para a senhorita Rouault, filha de um lavrador em franco estado de degeneração econômica, tal consórcio abriria uma porta de saída da vida medíocre em que sempre se viu. Contudo, mal o casal instala-se em Tostes, Emma começava a sentir o desfastio da vida medíocre. O médico da província, que queria tão pouco da vida, supunha ter encontrado a felicidade eterna. Tal é sua cegueira que nem percebe o estado de desencanto da esposa. Ela queria mais da vida, queria mais ventura, mais amor, tudo aquilo que havia descoberto nos romances: “Antes do casamento, havia pensado que sentia amor; contudo, como a felicidade resultante desse amor não surgia, com certeza tinha se enganado, pensava ela. E buscava saber qual era, afinal, o significado correto, nesta vida, das palavras ‘felicidade’, ‘paixão’e ‘arrebatamento’, que nos livros pareciam tão bonitos”16. O narrador indicia toda uma índole de Emma para uma perfeita integração com o mundo em que o fausto, a grandeza, e o descontínuo de coisas, situações e acontecimentos novos e também com o pecado, ainda que candidamente imaginado. Ela que havia lido desde cedo romances, viajara com o pai para internar-se no convento já se deixa extasiar quando conhece a cidade e fica tocada pelo ambiente da estalagem. Mesmo no convento ela descobre a vida, quer ouvindo as histórias galantes do passado, já enverada-se pelos devaneios nos quais o erro se fazia presente, inclusive nos momentos sacros: “Quando ia se confessar, inventava pecadilhos, para se demorar mais tempo de joelhos, na sombra, com as mãos postas e o rosto colado ao confessionário, ouvindo o cochichar do padre. As comparações de noivo, de esposo, de amante celeste e de consórico eterno, que constantemente aparecem nos sermões, suscitavam-lhe no íntimo da alma inesperadas doçuras”17. Tocada pelo espírito romântico, Emma, tinha uma boa faculdade para as mudanças repentinas, para a instabilidade. Tudo logo a enfastia, nada obtinha qualquer lastro de perenidade. A rebeldia seria, pois a sua marca registrada. Tanto que as freiras do convento 16 FLAUBERT, Gustave: 1993, 44. 17 Idem, 47. não se enquadrava, não se deixava dominar pelas regras daquela casa. Coincidentemente, a curiosa Emma “sujou [grifo do meu] as mãos no pó dos velhos gabinetes de leitura. Mais tarde, com Walter Scott, apaixonou-se por coisas históricas, sonhou com armários, salas de guardas e menestréis”18 “Aquele espírito, positivo no meio dos entusiasmos, que amava a igreja por causa das suas flores, a música pela letra das romanças e a literatura pelas suas excitações apaixonadas insurgia -se ante os mistérios da fé, assim como se irritava contra a disciplina, que era antipática à sua constituição”19. Como de resto Emma logo se entediava com tudo o que a rodeava naquele provinciano ambiente que não lhe prometia entrar no mundo que os romances e as revistas que chegavam pelo correio descortinavam. O ambiente familiar é para ela, sob todas as circunstâncias, um verdadeiro martírio. A presença do pai por três dias a deixou muito irritada. Tal era a rejeição que quando o pai finalmente vai embora ela se surpreende fechando a porta com “um suspiro de satisfação”. A infelicidade em que Emma se vê presa faz com que ela pense continuamente numa superação. Tão forte é a sua angústia que o próprio corpo responde com os sintomas de uma doença entrelaçada com as queixas da vida que levavam em Tostes. Incapaz de “curar” a esposa, Charles toma uma atitude: empreende a mudança de Tostes para uma aldeia “próspera”, nos arredores de Neufchâtel chamada Yonville-L´Abbaye, exatamente o lugar onde a tragédia de Emma, a sua tragédia terá palco. O lugar que a heroína queria estar não era nenhum lugar da província. Ela sonha com Paris, em termos objetivos, mas encontra uma válvula de escape, uma fuga, tão aos moldes românticos, nos livros que lê. É com as personagens das histórias nas quais se refugia que Emma se identifica colocando-se num plano superior às pessoas da aristocracia que conhecera: “Duraria para sempre aquela miséria? Nunca se livraria dela? Apesar disso, ela valia tanto como as que viviam felizes! Tinha visto duquesas, em Vaubyessard, com cinturas mais grossas e maneiras mais vulgares, e praguejava contra a injustiça de Deus; encostava a cabeça nas paredes para chorar; invejava as existências tumultuosas, as noites mascaradas, os 18 Idem, 48. 19 Idem, 51. prazeres insolentes, com todos os desvairamentos que não conhecia e que eles deviam provocar”20. Como se vê, com o arraigado hábito de leitura de romance, Emma desconhece o ascetismo puritano e se coloca numa posição de emulação com a aristocracia que passara a ostentar hábitos de consumo e com isso “contaminara” a burguesia para seguir tendências de consumo acelerando o processo de produção. A burguesia, que em certo tempo passou a ditar a moda impulsionou assim o hábito de consumo levando-o ao consumismo. Também o culto às paixões eram cultivadas mais largamente entre a nascente classe média burguesa: Assim, vemos que “As idéias a respeito do aumento da procura que provém de um novo surto de emulação social, ligada a vigorosas tentativas na manipulação das carências do consumidor pelos produtores”21 não indicam razões objetivas que colocam as causas e os efeitos em terrenos distintos. A subjetividade se faz presente, pois o consumo passa a integrar-se auma nova tendência cultural manifesta sub-repticiamente em toda esfera social. O padrão cultural era ditado pelo padrão de consumo que, por sua vez, passava pelo processo de contínua retroalimentação, como num processo vicioso, em decorrência das emulações sociais cada vez mais acentuadas. A felicidade seria, conforme Baudrillard22, se constituiria no mito da igualdade garantida pelo acesso ao consumo. Esse mito ganharia força arrasadora a partir da Revolução Industrial e das Revoluções ocorridas no séc. XIX. A felicidade não mais seria um bem comum, coletivo, mas algo inerente à individualidade. A garantia para essa felicidade pessoal Acabou sendo atestada pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Com isso somos induzidos a aceitar peremptoriamente que um princípio democrático que não só garante o direito à felicidade como também transfere ao indivíduo a responsabilidade e também uma responsabilidade inerente para que o êxito social possa ser obtido. No entanto, “A ´Revolução do Bem-Estar´ é a herdeira, a testamenteira da 20 FLAUBERT, Gustave: 1993, 82. 21 CAMPBELL, Colin: 2003, 57. 22 BAUDRILLARD, Jean: 1995. Revolução Burguesa ou simplesmente de toda revolução que erige em princípio a igualdade dos homens sem a poder (ou sem a conseguir realizar a fundo”23. Foi nesse quadro social que Madame Bovary se encontrou e também acabou se perdendo. Entregue ao ócio, às paixões e à necessidade de atingir os seus objetivos de viver em meios aos prazeres, a infeliz deixou-se enredar pelo romantismo anacrônico que põe a sensibilidade e as paixões acima de tudo. Como podemos ver, “o romantismo incorporou a maior parte das idéias e atitudes que caracterizaram o sentimentalismo, enquanto modificava e ampliava com meios significativos, representando assim uma evolução posterior daquela corrente de sentimento essencialmente pietista que remontamos ao puritanismo”24. A paixão que tudo devora Madame Bovary seria então o protótipo ideal da heroína que conseguiu encarnar todas as contradições do seu tempo ao mesmo tempo em que se apresenta como uma precursora desses tempos modernos. De uma certa forma, através de suas peripécies o narrador expõe a pequenez e a crueldade de um mundo que herdaríamos. Ela se entrega às paixões mais avassaladoras, à lascívia e ao hedonismo como que desafiando o seu tempo e o seu meio – elementos opressores que dela afasta as possibilidades de realização. A tarefa a que se propôs era superior às suas forças. Ao entregar-se ao consumo, locupletando-se de objetos de uso que tanto destinavam-se à sua casa quanto para o uso próprio – alguns desses produtos nem tinham razão de desejo, não teriam qualquer utilidade para ela –, Emma parece tentar preencher a sua falta, as suas carências, o seu vazio existencial. Se ela não resistiu às suas paixões certamente foi pelo fato de que suas forças foram maiores que as paixões que a moveram em atos que a levaram à destruição. Percebe-se que a personagem Emma até que tentou, numa fase de sua romanesca existência, enquadrar-se na cena doméstica; até que tentou mudar de comportamento. Assim, passou ela a aprender italiano, a ler breviários, dentre outros índices. Mas logo esses projetos foram abandonados. A paixão, no caso de Emma Bovary, cumpriu-se como propôs Condillac, um desejo que não permite ter outros, ou que, 23 Idem, 48. 24 Idem, 251. pelo menos, é o mais dominante25. Como romântica que é, Emma enquadra-se perfeitamente no conceito romântico da paixão elaborado pelos moralistas franceses e herdada de Kant. A diferença é que a paixão, segundo Kant, deve ser repelida, enquanto os românticos a exaltavam ao extremo: A paixão não é uma emoção ou estado afetivo particular, mas o domínio total e profundo que um estado afetivo exerce sobre a personalidade (ou “subjetividade”) do indivíduo26. Por isso, todas as ações de Madame Bovary, que na busca de realização amorosa, quer nas compras que extrapolam a sua capacidade de pagamento são regidas pelo mesmo e único signo: paixão. Nada mais fácil seria então o trabalho do inescrupuloso L´Heureux. Ao entrar em cena, esse representante do mais sórdido capitalismo já tem em mente tomar tudo aquilo que possui Emma para deixá-la cada vez mais presa às redes da paixão. Para a paixão e para o consumo – um sentimento não pode ser dissociado do outro, Emma tem limites. Para ela, a paixão acaba sendo também uma mercadoria, um produto: “É nesse sentido que podemos designar o aspecto ´duplamente´ simbólico das mercadorias nas sociedades ocidentais contemporâneas: o simbolismo não se evidencia apenas no design e no imaginário embutido nos processos de produção e marketing; as associações simbólicas das mercadorias podem ser utilizadas e renegociadas para enfatizar diferenças de estilo de vida demarcando as relações sociais”27. Nesses termos, Madame Bovary tem no consumo não os sentidos primeiramente instituídos, como o de desperdício, destruir, gastar, esgotar. Inserida na nova ordem burguesa, Emma não nutria o hábito de ficar na escassez, acumular, disciplinar-se numa postura de sacrifício momentâneo para usufruir aquilo que acumulou ao longo de uma limitada e parca existência. De uma certa forma, Madame Bovary, com a sua ânsia e a sua conseqüente fatalidade apresenta-se como a heroína, ou a vítima dos nossos tempos. Melhor dizendo, Emma acaba antecipando as agruras que passaríamos a viver sob a égide do capitalismo: estaremos sempre na falta, tentando preencher com mais e mais produtos o nosso vazio a 25 Cf. ABBAGNANO, Nicola: verbete Paixão. 26 Idem, ibidem. 27 Apud: FEATHERSTONE, Mike: 1995, 41. que nunca nos aventuramos perscrutar. Constituindo-se em precursora de nós mesmos, poderíamos dizer que em Emma estão muitos dos nós que ainda hoje não conseguimos desatar. Dessa feita, como não dizer também que Madame Bovary, de alguma maneira, somos nós? “... É preferível ser desafortunado e sábio, a ser afortunado e tolo; na prática, é melhor que um bom projeto não chegue a bom termo, do que chegue a ter êxito um projeto mau” (Epicuro – Carta sobre a felicidade ) Bibliografia BARTHES, Roland. Novos ensaios críticos: o grau zero da escritura. Tradução de Heloysa de Lima Dantas e Anne Arnichand e Álvaro Lorencini. São Paulo: Cultrix, 1974. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. 3ª ed. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987. CAMPBELL, Colin. A ética romântica e o espírito do consumismo moderno. Tradução de Mauro Gama. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. FEARTHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. Tradução de Júlio Assis Simões. São Paulo: Nobel, 1995. FLAUBERT, Gustave. Cartas exemplares. Organização, prefácio e notas: Duda Machado. Rio de Janeiro: Imago, 1993. ____. Madame Bovary. Tradução de Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2002. LHOSA, Mário Vargas. A orgia perpétua: Flaubert e Madame Bovary. Tradução de Remy Gorga Filho. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979. WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Tradução de José Carlos Mariani de Macedo. Revisão técnica, revisão de texto, apresentação, glossário e correspondência vocabular e índice remissivo: Antônio Flávio Pieruci. São Paulo: Cia das Letras, 2004
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