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Madame Bovary, a Paixão, o consumo

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Madame Bovary: a paixão, o consumo1 
Goiamérico Felício Carneiro dos Santos2 
 
Resumo: 
Vivendo sob o manto de um romantismo já sob depreciação pelo excesso de 
sentimentalismo e idealizações, colocando a busca da felicidade sob as premissas de um 
amor intensivamente vivido, a personagem Emma Bovary, cujo nome empresta título à sua 
obra que se constitui num marco do romance moderno, Gustave Flaubert aponta-nos as 
contradições que o capitalismo. Sob a égide das paixões, do adultério e das mentiras temos 
uma e a ânsia de tudo consumir temos uma heroína e por isso mesmo Tudo conspira 
contra a felicidade da pobre moça que emblematiza o problema que a Revolução Industrial 
apontava: o êxtase e os perigos que promete trazer a modernidade. 
 
 
Palavras-chave: 
Romantismo; Capitalismo; Paixão; Consumismo; Modernidade 
 
 
1 Trabalho apresentado ao NP 03 – Publicidade, Propaganda e marketing, do IV Encontro dos Núcleos de Pesquisa da 
Intercom. 
2 Mestre em Estudos da linguagem pela UFG e Dr. em Letras pela PUC-Rio; professor e pesquisador da Faculdade de 
Comunicação e Biblioteconomia, da Universidade Federal de Goiás, onde coordena a Pós-Graduação (Lato Sensu) em 
Assessoria em Comunicação; Prof. e pesquisador do Departamento de Letras da Universidade Católica de Goiás, onde 
coordena o Núcleo de Pesquisas em Linguagem. 
“Escrever um romance significa escrever a existência humana, levando o 
incomensurável ao paroxismo” (W. Benjamin) 
 
 
 
Num texto exemplar no qual é feita uma análise do romance em paralelo à narrativa 
épica, o autor da epígrafe acima alerta para a situação de um outro gênero que nasceu em 
crise e que permanentemente se encontra em crise3. Nascemos rodeados pelas narrativas. 
Tudo aquilo que podemos sentir no mundo, tudo aquilo que podemos compreender do 
mundo, em tudo o que somos impelidos a empreender no e pelo mundo se dá a partir das 
narrativas que herdamos e também pelos relatos daquilo que fazemos. Toda tarefa humana, 
desde os atos mais ínfimos e impensáveis, até os mais ousados, grandiosos – e por isso 
mesmo imperdoáveis – carece de narrativas. Temos uma imperiosa necessidade de relatar, 
conta ao mundo, acerca dos nossos medos, impasses, sonhos. 
Mas, conforme Benjamin, a condição do poeta épico é bem diversa e bem menos 
problemática que a situação do romancista. No poema épico o aedo, ao conclamar o auxílio 
das musas, passa a narrar numa confortável distância espacial e temporal, apresentando um 
mundo idealizado, perdido nas sendas da história, e por isso mesmo personificando nas 
ações de um herói exemplar, para depois repousar juntamente com os seus ouvintes. O 
romancista, contudo, não pode contar com esse repouso, esse distanciamento. O mundo de 
que ele trata está mais próximo. A crise não é apenas uma lembrança de algo que ocorreu 
num passado mítico ou historicamente distanciado que o narrador incumbe-se de 
presentificar para que no presente se possa construir o futuro. Para o romancista, o passado 
está perdido, o presente é uma ameaça e o futuro é uma incógnita. Eis uma diferença básica 
que podemos estabelecer entre o gênero épico e o gênero romanesco: 
“Nada contribui mais para a perigosa mudez do homem interior, nada 
mata mais radicalmente o espírito da narrativa que o espaço cada vez 
maior e cada vez mais impudente que a leitura dos romances ocupa em 
nossa existência”4. 
 
 
3 Cf. BENJAMIN, W.: 1987, 54. 
4Idem, 55. 
O romance, constituindo-se no gênero burguês por excelência, apresenta em seu 
enredo a descrição das vicissitudes humanas bem próxima daquela em que se posiciona o 
narrador. O tempo do enunciado e o tempo da enunciação aproximam-se cada vez mais, 
num processo que nos permite ver no livro presente a vida dos homens presentes. Mas, 
paradoxalmente, em nenhum tempo, o escritor pôde sentir-se mais alijado do mundo. A 
solidão aparta o escritor da matéria narrada, que está ali ao lado, mantendo-o também 
distanciado dos leitores que com ele coabita o espaço público do mundo. O leitor também 
se abandona na leitura de um livro que “ficcionaliza” a vida de quem lê a obra em busca de 
devaneios exatamente para fugir da realidade que o sufoca: 
“A matriz do romance é o indivíduo em sua solidão, o homem que não 
pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações. A quem não 
pode dar conselhos, e que não sabe dar conselhos a ninguém”5. 
 
Se podemos falar em crise do romance somos levados a crer que o gênero só 
encontrou condições objetivas e subjetivas para se consolidar, dentre outras condicionantes 
que não nos acabe aqui discutir, na medida em que o mesmo possuía a faceta de abrir um 
canal de comunicação com as novas camadas sociais ávidas por novidades que lhes 
aguçassem o espírito com o sonho, a imaginação, a fantasia. 
Assim, o gênero romance surge como resposta a uma sociedade em crise de valores 
em decorrência de mudanças de paradigmas sociais, econômicas, políticas e estéticas. Ao 
colocar em xeque os valores da sociedade burguesa ante o impasse da avassaladora 
modernidade, o romancista, como um herói anônimo em perigo desidealiza a própria ordem 
social em que se encontra desconfortavelmente se encontra quer como homem, quer na 
condição de arauto desse tempo de urgências. Insurge-se, pois, o romancista contra a 
sociedade em que se encontra e também contra o gênero literário vigente. 
“Resulta de tudo isso que toda verdadeira transformação da forma 
romanesca, toda busca fecunda nesse domínio, só pode situar-se no 
interior de uma transformação da própria noção de romance, que evolui 
de modo lento mas inevitável (todas as grandes obras do século XX estão 
aí para atestá-lo) para uma nova espécie de poesia, ao mesmo tempo 
épica e didática”6. 
 
5 Idem, 54. 
6 BUTOR, Michel: 1974, 14. 
Com isso, podemos aduzir que, quanto mais contundente for a crítica social descrita 
nos enredos, quanto maior for o desvio, a ruptura de gênero que o romancista se propõe, 
maiores poderão ser os riscos de má receptividade da obra e, por conseguinte, as sanções a 
que o autor se sujeita a incorrer. 
Ainda à distância, na condição de um leitor-crítico, no sentido de que não mais 
tenho o privilégio de ler romances tão–somente como entretenimento somos invadidos, 
enquanto leitores de Madame Bovary, a supor que, ao longo de todos esses anos, a partir da 
publicação da obra (1856), os leitores do romance que acabam rejeitando-o, ou mesmo o 
ignorando não estariam, com esse comportamento, sendo algozes de Emma Bovary? 
De resto, quase chego a deduzir que temos cada um de nós um pouco dessa pobre 
moça que desejou demais, que sonhou mais que o seu tempo permitia. Tocados pela 
poderosa estratégia narrativa em que um indiferente narrador os leitores do romance 
tornam-se indiferentes, quase cruéis para com o destino das pobres vidas daquelas 
personagens que habitam mundos periféricos, pobres de perspectivas, longe dos ventos de 
modernização. Tudo conspira para que a felicidade de Emma não se cumpra. O ambiente 
provinciano pela qual a senhora Bovary circula sem que a evasão para longe dali se 
concretize está repleto de personagens medíocres que a asfixiam, obnubilam o horizonte. 
Cada personagem da trama está ali para desempenhar um só papel: tornar a vida de 
Emma um verdadeiro inferno, um beco sem saída. Tudo conspira contra a felicidade da 
pobre moça que emblematiza o problema que a Revolução Industrial apontava: o êxtase e 
os perigos que promete trazer a modernidade. A exceção caberia talvez ao romancista 
Gustave Flaubert, o “pai” de Emma, que por ela tanto sofreu, como vemos em suas cartas 
exemplares7, constituindo-se também, enquanto escritor, em uma espécie de vítima da 
incompreensão e do arbítrio da crítica e dos leitores do seu tempo, conforme a história 
registra a recepção do seu romance.A longa e dolorosa fase de escrita do romance também trouxeram grandes martírios 
a Flaubert que ainda sofria o dissabor de viver num tempo de mediocridade, quando o 
escritor deveria “ceder” ao gosto duvidoso das massas para assim obter sucesso. A sua 
obsessão pelo melhor estilo tornava a escrita foi construída arrastada e lentamente, cheia de 
 
7 FLAUBERT, Gustave: 1993. 
supressões de frases, períodos, às vezes de páginas inteiras. O processo também levava aos 
acréscimos de palavras e páginas. Antes, o estilista preciso procedia ao trabalho de pesquisa 
bibliográfica e de campo (observação do movimento da vida lá fora – ele sempre na 
condição de observador oculto e engajado). Paralelamente, Flaubert seguia com suas 
leituras dos grandes mestres. Na fase da escrita de Madame Bovary, Dom Quixote era a 
leitura da vez. O objetivo era sempre o de encontrar a frase precisa, como que cunhando 
versos harmoniosos, lancinantes e insubstituíveis: 
“Como odisséia, a escritura flaubertiana (gostaríamos de poder aqui 
atribuir a esta palavra um sentido inteiramente ativo) limita-se portanto 
àquilo que habitualmente qualificamos de correções do estilo. Estas 
correções não são de modo algum acidentes retóricos; prendem-se ao 
primeiro código, ao da língua, levam o escritor a viver a estrutura da 
linguagem como uma paixão”8. 
 
A par disso, o escritor ainda passava pelo tormento de viver em meio à massa ignara 
dos burgueses cujo ambiente pobre e rasteiro em termos de exigências estéticas feriam 
fundo o artista moderno. Em carta de nº 75, dirigida à sua amante e confidente intelectual 
Louise Colet, quando da escritura de Madame Bovary inúmeras vezes Flaubert deixa 
escapar desabafos como esse: 
“De que é que vale para a massa a Arte, a poesia, o estilo? Ela não tem 
necessidade disto. Dêem-lhe vaudevilles, tratados sobre o trabalho na 
prisão sobre as cidades operárias e os interesses materiais do “momento” 
[grifo do romancista]. Há uma conjuração permanente contra o original, 
eis o que é preciso meter na cabeça”9. 
 
A situação histórica que vivia a Europa ocidental e na América do Norte apontava 
para uma inusitada situação em que, inusitadamente, um fenômeno que nunca antes havia 
ocorrido começava a grassar pela Europa ocidental e também na América do Norte: a rígida 
ética protestante não mais parecia entrar entrar em estado de digladiação com o espírito do 
capitalismo. Ao contrário, ambas as instâncias, a religiosa-protestante, com sua moral 
ascética e puritana e a terrenal-profana índole capitalista, na passagem do século XVII para 
o século XVIII, começavam a se irmanarem, numa atuação conjunta, cada vez mais 
 
8 BARTHES, Roland: 1974,70. 
9 FLAUBERT, Gustave: 1993, 117. 
fortalecida, em busca de propósitos então incompatíveis: a ascética moral religiosa passou a 
ser a fonte de inspiração para a acumulação de bens materiais. Buscar o lucro, assenhorar-
se de patrimônio (terras, propriedades, dinheiro); só então, seguinte, com prudência, dotar-
se de conforto para a satisfação das necessidades imediatas e também para o desfrute do 
prazer ainda na terra. Essas ações não se constituiam em pecado e luxúria até então capazes 
de levar o incauto cristão para o pecado e poor isso mesmo ao eterno inferno” 10: 
 
“Acima de tudo esse é o summum bonum dessa “ética”: ganhar ndinheiro 
e sempre mais dinheiro, no mais rigorosoresguardo de todo gozo 
imediato do dinheiro ganho, algo tão completamente despido d todos os 
pontos de vista eudemonistas ou mesmo hedonistas e pensado 
exclusivamente como fim em si mesmo, que, em comparação com a 
“felicidade” do indivíduo ou sua “utilidade”, aparece em todo caso como 
inteiramente transcendente e simplesmente irracional” 11 
 
Conforme as prédicas de Benjamin Franklin elencadas por Max Weber, isso que é 
hoje tão natural e necessário (ter uma profissão e nela se aplicar com afinco, 
especializando-se e com isso ganhar mais respeito e mais dinheiro) tornou-se uma 
característica da cultura capitalista e também a única possibilidade de sobrevivência, tanto 
para os empresários quanto para os operários, e de manutenção do sistema. 
O que propiciou toda essa revolução de costumes? Lembremos que estava em curso, 
no período uma crescente e irrefreável sociedade industrial alimentada e também 
alimentadora de uma revolução política e social consagrada pelos ideais franceses de 
liberté, igualité, fraternité. 
Nada mais sedutor, nada menos falso e enganador que esses ideais para os anseios 
daquele tempo para as classes sociais burguesas em desprestígio, vitimadas que foram pelos 
tempos de vida urbana concentrada nos grandes conglomerados urbanos. Ironicamente os 
grandes centros urbanos, notadamente as capitais, atraíam as multidões, pois as mesmas 
propiciariam a realização social e profissional como ponto de partida para a afirmação de 
classe lastreada pelo consumo. 
Nesse contexto é que se insere a nossa personagem Madame Bovary, em torno à 
qual centramos atenção na tentativa de perfazer uma possível leitura do romance. A nossa 
 
10 WEBER, Max: 2004, 46. 
11 Idem: 42-44. 
interpretação, na clave que agora nos propomos, é a de que Gustave Flaubert, munido de 
seu rancor em relação à emergente classe burguesa cada vez menos sensível e ao mesmo 
tempo cada vez mais pretensamente racional seria levada à perda, à ruína, ante os novos 
valores a que ela se agarrava instintamente. 
Assim, não por acaso, Flaubert denomina o seu romance não simplesmente 
Madame Bovary, como as descuidadas edições trazem, mas também com o subtítulo: 
Moeurs de province (acontecimentos de província). A presente leitura da obra nos remete 
a acreditar que acontecimentos como os descritos no romance de Flaubert não eram tão 
singulares, mas possivelmente cocrriqueiros. Lembremos que o enredo da obra parte de um 
tema real que chegou até o autor que tinha nas pessoas apenas a possibilidade de delas fazer 
personagens de romances.A saber, trata-se de um trágico acontecimento ocorrido no tempo 
e nas redondezas em que vivia o autor, a saber: as traições, as dissimulações, as dívidas e o 
suicídio de uma certa Delphine Couturier, depois Delamare, após casar-se com um médico 
provinciano, que deu-lhe o nome, dotado das mesmas características do fraco Charles 
Bovary que, por sua fraqueza, acaba tornando-se num algoz de Emma. 
No que concerne ao panorama de revolução dos costumes ocorrido a partir do 
século XVII, vemos que a ética protestante foi sendo substituída por uma ética romântica. 
Ou seja, a aristocracia, na órbita do consumo, ostentava cada vez mais os bens de luxo co 
os quais ela se distinguia da cada vez mais numerosa classe média burguesa. Esta, por sua 
vez, se deixou levar pelo espírito da emulação ensejando, assim, uma propensão irrefreável 
para o consumo. 
Dessa maneira, a Revolução Industrial, diferentemente do que propunham os 
historiadores econômicos, foi propulsionada muito mais pela procura de produtos pela 
classe média em busca dos bens supérfluos, notadamente objetos uso diário – artigos de 
vestuário consumidos através de uma moda continuamente alimentada pela substituição – 
que propriamente pela oferta abundante12. 
“Como de pode ver, diversos fatores são invocados para se explicar por 
que foi só em meados do século XVIII que os motivos de emulação 
devem ter-se tornado tão especialmente eficazes em estimular a procura 
do consumidor. Alguns desses, como ‘uma nova aptidão para gastar’, já 
foram enfrentados e excluídos, enquantos ‘novos produtos amplamente 
 
12 CAMPBELL, Colin: 2003 
disponíveis’ é meramente uma reafirmação da tese da da ‘procura como 
reflexo do abastecimento”13. 
 
Madame Bovary: pouco senso e muita sensibilidade 
Campbell aponta para o declínio da sensibilidadelembrando que na passagem do 
século XVIII para o século XIX, a tendência para o culto da sensibilidade, altamente em 
voga, na Inglaterra entre 1750 e 1770, já era considerado um exagero. A sensibilidade 
excessiva era tida como extemporânea e por isso tida depreciadora de uma existência que 
deveria ser pautada pelo equilíbrio de espírito e pelo comedimento das ações quer no 
cotidiano, quer nas expressões artísticas: 
“Em retrospeco, parece inevitável que uma ética que colocou tal ênfase 
na demonstração emotiva estivesse destinada, com o tempo, a degenerar 
em representação dramática e provocar, assim, o ridículo e a sátira. E 
nisso ela resultou, com a acentuada reação à sentimentalidade 
melodramática que ocorreu, tanto na vida como na arte, antes do fim do 
século XVIII e continuando nas primeiras década do XIX”14. 
 
De onde viria a rebeldia, o egocentrismo, e o apetite desmesurado de Emma Bovary 
pelas paixões? De onde viria uma tão grande determinação para enfrentar os códigos de 
conduta da província, rompendo com o seu meio familiar,com a sua classe social, num 
contínuo processo de fuga do destino a que estava condenada? Qual seria a origem da 
grande sentimentalidade de Emma? Tal ousadia não teria outra fonte que não as suas 
leituras dos romances de folhetim que lhe espandiram a imaginação, a capacidade de 
entregar-se aos devaneios de uma vida aventurosa e regada pelo amor. Ressalte-se que tais 
leituras, ao mesmo tempo em que eram abundantes eram também destituídas de aprovação 
pública e por isso realizadas furtivamente – tais leituras eram tidas mesmo como a fruta 
saborosa do paraíso que deveria a todo custo ser tão evitada quanto mais atraente fosse – e 
exatamente por isso condenáveis. Tidos como uma maldição à época, os romances de 
folhetim, acreditava-se, se lidos em execsso, provocavam a embriaguês e a cupidez, em 
decorrência do enfraquecimento da moral e dos costumes: “Rogers relata como foi 
sustentado que os romances, se devorados em ‘execesso’, agiam sobre a mente ‘como 
estimulantes embriagadores, [para] primeiro elevar e, no fim, enfraquecê-la”15. 
 
13 Idem: 36. 
14 Apud CAMPBELL, Colin: 2003, 243. 
15 Idem: 246. 
A senhorita Rouault foi praticamente oferecida a Charles Bovary, que recentmente 
se enviuvara. O arranjo seria para ele uma segunda tentativa em levar uma vida pacata, sem 
muitas ambições. Para a senhorita Rouault, filha de um lavrador em franco estado de 
degeneração econômica, tal consórcio abriria uma porta de saída da vida medíocre em que 
sempre se viu. Contudo, mal o casal instala-se em Tostes, Emma começava a sentir o 
desfastio da vida medíocre. O médico da província, que queria tão pouco da vida, supunha 
ter encontrado a felicidade eterna. Tal é sua cegueira que nem percebe o estado de 
desencanto da esposa. Ela queria mais da vida, queria mais ventura, mais amor, tudo aquilo 
que havia descoberto nos romances: 
“Antes do casamento, havia pensado que sentia amor; contudo, como a 
felicidade resultante desse amor não surgia, com certeza tinha se 
enganado, pensava ela. E buscava saber qual era, afinal, o significado 
correto, nesta vida, das palavras ‘felicidade’, ‘paixão’e ‘arrebatamento’, 
que nos livros pareciam tão bonitos”16. 
 
O narrador indicia toda uma índole de Emma para uma perfeita integração com o 
mundo em que o fausto, a grandeza, e o descontínuo de coisas, situações e acontecimentos 
novos e também com o pecado, ainda que candidamente imaginado. Ela que havia lido 
desde cedo romances, viajara com o pai para internar-se no convento já se deixa extasiar 
quando conhece a cidade e fica tocada pelo ambiente da estalagem. Mesmo no convento ela 
descobre a vida, quer ouvindo as histórias galantes do passado, já enverada-se pelos 
devaneios nos quais o erro se fazia presente, inclusive nos momentos sacros: 
“Quando ia se confessar, inventava pecadilhos, para se demorar mais 
tempo de joelhos, na sombra, com as mãos postas e o rosto colado ao 
confessionário, ouvindo o cochichar do padre. As comparações de noivo, 
de esposo, de amante celeste e de consórico eterno, que constantemente 
aparecem nos sermões, suscitavam-lhe no íntimo da alma inesperadas 
doçuras”17. 
 
Tocada pelo espírito romântico, Emma, tinha uma boa faculdade para as mudanças 
repentinas, para a instabilidade. Tudo logo a enfastia, nada obtinha qualquer lastro de 
perenidade. A rebeldia seria, pois a sua marca registrada. Tanto que as freiras do convento 
 
16 FLAUBERT, Gustave: 1993, 44. 
17 Idem, 47. 
não se enquadrava, não se deixava dominar pelas regras daquela casa. Coincidentemente, a 
curiosa Emma “sujou [grifo do meu] as mãos no pó dos velhos gabinetes de leitura. Mais 
tarde, com Walter Scott, apaixonou-se por coisas históricas, sonhou com armários, salas de 
guardas e menestréis”18 
“Aquele espírito, positivo no meio dos entusiasmos, que amava a igreja 
por causa das suas flores, a música pela letra das romanças e a literatura 
pelas suas excitações apaixonadas insurgia -se ante os mistérios da fé, 
assim como se irritava contra a disciplina, que era antipática à sua 
constituição”19. 
 
Como de resto Emma logo se entediava com tudo o que a rodeava naquele 
provinciano ambiente que não lhe prometia entrar no mundo que os romances e as revistas 
que chegavam pelo correio descortinavam. O ambiente familiar é para ela, sob todas as 
circunstâncias, um verdadeiro martírio. A presença do pai por três dias a deixou muito 
irritada. Tal era a rejeição que quando o pai finalmente vai embora ela se surpreende 
fechando a porta com “um suspiro de satisfação”. A infelicidade em que Emma se vê presa 
faz com que ela pense continuamente numa superação. Tão forte é a sua angústia que o 
próprio corpo responde com os sintomas de uma doença entrelaçada com as queixas da vida 
que levavam em Tostes. Incapaz de “curar” a esposa, Charles toma uma atitude: empreende 
a mudança de Tostes para uma aldeia “próspera”, nos arredores de Neufchâtel chamada 
Yonville-L´Abbaye, exatamente o lugar onde a tragédia de Emma, a sua tragédia terá palco. 
O lugar que a heroína queria estar não era nenhum lugar da província. Ela sonha 
com Paris, em termos objetivos, mas encontra uma válvula de escape, uma fuga, tão aos 
moldes românticos, nos livros que lê. É com as personagens das histórias nas quais se 
refugia que Emma se identifica colocando-se num plano superior às pessoas da aristocracia 
que conhecera: 
“Duraria para sempre aquela miséria? Nunca se livraria dela? Apesar 
disso, ela valia tanto como as que viviam felizes! Tinha visto duquesas, 
em Vaubyessard, com cinturas mais grossas e maneiras mais vulgares, e 
praguejava contra a injustiça de Deus; encostava a cabeça nas paredes 
para chorar; invejava as existências tumultuosas, as noites mascaradas, os 
 
18 Idem, 48. 
19 Idem, 51. 
prazeres insolentes, com todos os desvairamentos que não conhecia e que 
eles deviam provocar”20. 
 
Como se vê, com o arraigado hábito de leitura de romance, Emma desconhece o 
ascetismo puritano e se coloca numa posição de emulação com a aristocracia que passara a 
ostentar hábitos de consumo e com isso “contaminara” a burguesia para seguir tendências 
de consumo acelerando o processo de produção. A burguesia, que em certo tempo passou a 
ditar a moda impulsionou assim o hábito de consumo levando-o ao consumismo. Também 
o culto às paixões eram cultivadas mais largamente entre a nascente classe média burguesa: 
Assim, vemos que “As idéias a respeito do aumento da procura que provém de um novo 
surto de emulação social, ligada a vigorosas tentativas na manipulação das carências do 
consumidor pelos produtores”21 não indicam razões objetivas que colocam as causas e os 
efeitos em terrenos distintos. A subjetividade se faz presente, pois o consumo passa a 
integrar-se auma nova tendência cultural manifesta sub-repticiamente em toda esfera 
social. O padrão cultural era ditado pelo padrão de consumo que, por sua vez, passava pelo 
processo de contínua retroalimentação, como num processo vicioso, em decorrência das 
emulações sociais cada vez mais acentuadas. 
A felicidade seria, conforme Baudrillard22, se constituiria no mito da igualdade 
garantida pelo acesso ao consumo. Esse mito ganharia força arrasadora a partir da 
Revolução Industrial e das Revoluções ocorridas no séc. XIX. A felicidade não mais seria 
um bem comum, coletivo, mas algo inerente à individualidade. A garantia para essa 
felicidade pessoal Acabou sendo atestada pela Declaração dos Direitos do Homem e do 
Cidadão. 
Com isso somos induzidos a aceitar peremptoriamente que um princípio 
democrático que não só garante o direito à felicidade como também transfere ao indivíduo a 
responsabilidade e também uma responsabilidade inerente para que o êxito social possa ser 
obtido. No entanto, “A ´Revolução do Bem-Estar´ é a herdeira, a testamenteira da 
 
20 FLAUBERT, Gustave: 1993, 82. 
21 CAMPBELL, Colin: 2003, 57. 
 
22 BAUDRILLARD, Jean: 1995. 
Revolução Burguesa ou simplesmente de toda revolução que erige em princípio a igualdade 
dos homens sem a poder (ou sem a conseguir realizar a fundo”23. 
Foi nesse quadro social que Madame Bovary se encontrou e também acabou se 
perdendo. Entregue ao ócio, às paixões e à necessidade de atingir os seus objetivos de viver 
em meios aos prazeres, a infeliz deixou-se enredar pelo romantismo anacrônico que põe a 
sensibilidade e as paixões acima de tudo. Como podemos ver, 
“o romantismo incorporou a maior parte das idéias e atitudes que 
caracterizaram o sentimentalismo, enquanto modificava e ampliava com 
meios significativos, representando assim uma evolução posterior 
daquela corrente de sentimento essencialmente pietista que remontamos 
ao puritanismo”24. 
 
A paixão que tudo devora 
Madame Bovary seria então o protótipo ideal da heroína que conseguiu encarnar 
todas as contradições do seu tempo ao mesmo tempo em que se apresenta como uma 
precursora desses tempos modernos. De uma certa forma, através de suas peripécies o 
narrador expõe a pequenez e a crueldade de um mundo que herdaríamos. Ela se entrega às 
paixões mais avassaladoras, à lascívia e ao hedonismo como que desafiando o seu tempo e 
o seu meio – elementos opressores que dela afasta as possibilidades de realização. A tarefa 
a que se propôs era superior às suas forças. 
Ao entregar-se ao consumo, locupletando-se de objetos de uso que tanto 
destinavam-se à sua casa quanto para o uso próprio – alguns desses produtos nem tinham 
razão de desejo, não teriam qualquer utilidade para ela –, Emma parece tentar preencher a 
sua falta, as suas carências, o seu vazio existencial. Se ela não resistiu às suas paixões 
certamente foi pelo fato de que suas forças foram maiores que as paixões que a moveram 
em atos que a levaram à destruição. Percebe-se que a personagem Emma até que tentou, 
numa fase de sua romanesca existência, enquadrar-se na cena doméstica; até que tentou 
mudar de comportamento. Assim, passou ela a aprender italiano, a ler breviários, dentre 
outros índices. Mas logo esses projetos foram abandonados. A paixão, no caso de Emma 
Bovary, cumpriu-se como propôs Condillac, um desejo que não permite ter outros, ou que, 
 
23 Idem, 48. 
24 Idem, 251. 
pelo menos, é o mais dominante25. Como romântica que é, Emma enquadra-se 
perfeitamente no conceito romântico da paixão elaborado pelos moralistas franceses e 
herdada de Kant. A diferença é que a paixão, segundo Kant, deve ser repelida, enquanto os 
românticos a exaltavam ao extremo: A paixão não é uma emoção ou estado afetivo 
particular, mas o domínio total e profundo que um estado afetivo exerce sobre a 
personalidade (ou “subjetividade”) do indivíduo26. 
Por isso, todas as ações de Madame Bovary, que na busca de realização amorosa, 
quer nas compras que extrapolam a sua capacidade de pagamento são regidas pelo mesmo e 
único signo: paixão. 
Nada mais fácil seria então o trabalho do inescrupuloso L´Heureux. Ao entrar em 
cena, esse representante do mais sórdido capitalismo já tem em mente tomar tudo aquilo 
que possui Emma para deixá-la cada vez mais presa às redes da paixão. Para a paixão e 
para o consumo – um sentimento não pode ser dissociado do outro, Emma tem limites. Para 
ela, a paixão acaba sendo também uma mercadoria, um produto: 
“É nesse sentido que podemos designar o aspecto ´duplamente´ 
simbólico das mercadorias nas sociedades ocidentais contemporâneas: o 
simbolismo não se evidencia apenas no design e no imaginário embutido 
nos processos de produção e marketing; as associações simbólicas das 
mercadorias podem ser utilizadas e renegociadas para enfatizar 
diferenças de estilo de vida demarcando as relações sociais”27. 
 
Nesses termos, Madame Bovary tem no consumo não os sentidos primeiramente 
instituídos, como o de desperdício, destruir, gastar, esgotar. Inserida na nova ordem 
burguesa, Emma não nutria o hábito de ficar na escassez, acumular, disciplinar-se numa 
postura de sacrifício momentâneo para usufruir aquilo que acumulou ao longo de uma 
limitada e parca existência. 
De uma certa forma, Madame Bovary, com a sua ânsia e a sua conseqüente 
fatalidade apresenta-se como a heroína, ou a vítima dos nossos tempos. Melhor dizendo, 
Emma acaba antecipando as agruras que passaríamos a viver sob a égide do capitalismo: 
estaremos sempre na falta, tentando preencher com mais e mais produtos o nosso vazio a 
 
25 Cf. ABBAGNANO, Nicola: verbete Paixão. 
26 Idem, ibidem. 
27 Apud: FEATHERSTONE, Mike: 1995, 41. 
que nunca nos aventuramos perscrutar. Constituindo-se em precursora de nós mesmos, 
poderíamos dizer que em Emma estão muitos dos nós que ainda hoje não conseguimos 
desatar. 
Dessa feita, como não dizer também que Madame Bovary, de alguma maneira, 
somos nós? 
 
“... É preferível ser desafortunado e sábio, a ser afortunado e tolo; na prática, é melhor que um bom 
projeto não chegue a bom termo, do que chegue a ter êxito um projeto mau” 
(Epicuro – Carta sobre a felicidade ) 
 
 
Bibliografia 
BARTHES, Roland. Novos ensaios críticos: o grau zero da escritura. Tradução de 
Heloysa de Lima Dantas e Anne Arnichand e Álvaro Lorencini. São Paulo: Cultrix, 1974. 
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. 3ª ed. 
Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987. 
CAMPBELL, Colin. A ética romântica e o espírito do consumismo moderno. Tradução 
de Mauro Gama. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. 
FEARTHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. Tradução de Júlio 
Assis Simões. São Paulo: Nobel, 1995. 
FLAUBERT, Gustave. Cartas exemplares. Organização, prefácio e notas: Duda Machado. 
Rio de Janeiro: Imago, 1993. 
____. Madame Bovary. Tradução de Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2002. 
LHOSA, Mário Vargas. A orgia perpétua: Flaubert e Madame Bovary. Tradução de 
Remy Gorga Filho. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979. 
WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Tradução de José 
Carlos Mariani de Macedo. Revisão técnica, revisão de texto, apresentação, glossário e 
correspondência vocabular e índice remissivo: Antônio Flávio Pieruci. São Paulo: Cia das 
Letras, 2004

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