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Esta colectânea é parte integrante do projecto A Cidade como Civilização: Universo Urbanístico Português 1415-1822 que a Comissão dos Descobrimentos tem v· ndo a promover desde inícios de 1997. • A sua publicação assume significado especial dentro da cronologia e metodologia que lhe são específicas, mas não deixa de ser importante no âmbito mais vasto da cultura portuguesa. Com efeito, aqui se agrupam trabalhos que, pela sua variedade de origens, enfoques e temas, oferecem uma rara oportunidade para o conhecimento actualizado de uma das mais objectivas e perenes marcas da portugalidade no mundo. ES T U DOS PUBL I C ADOS NESTA COLE C TÃNEA A Paisagem Urbana Med ieval Portuguesa: Uma Aprox.imação AMÉLIA AGU IAR AND ltADE Urbanismo de Traçado Regular nos Do is Primeiros Séculos da Colon ização Brasi leira - O rigens PAULO ÜRM I N OO OE AZEVED O Storia della Città Come Storia dclle Uropie, da San Leucio all'Amazzon ia Pombalina G 10VANNA Rosso DEL BnENNA A Ico nografia dos Engenheiros Mili tares no Século XVII 1: Instrumento de Conhecimento e Controlo de Território BEATRI Z P. SJQUEIRA BUENO Geometria Bélica: C1rtografi a e Fortificação no Rio de Janeiro Setecentista RommT CoNou nu Urbanismo da Época Barroca em Portugal josÉ EDUARDO I-IORTA CORREIA Rural & Urbano. Espaços da Expansão Med ieval: O rigem da O rganização Espacial Ibero-Americana? CLENOA PEREIRA DA CRUZ O Início da Profissionaüzaçã.o no Exército Brasileiro: Os Corpos de Engenheiros do Século XVl I RoornTA M ,\RX DELSON (> CONTINUA NA IIAl)ANA DA \ O NTIL\CAl'A) 28 UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS aglomerados urbanos, à disponibilidade de espaço. Simultaneamente, a habitação podia servir como uma exteriorização da posição social de quem a habitava. Razões mais do que suficientes para conferirem à casa uma variabilidade extrema que tinha, necessariamente, que se repercutir no aspecto adquirido por uma rua, por uma praça ou por uma viela. Uma vez que a pedra, a telha e a madeira eram materiais de construção de boa quali- dade e por isso mais dispendiosos, era provável que fossem utilizados em maior quantida- de nas residências dos que dispunham de réditos mais significativos. Para a maioria, o recurso à madeira, à taipa devia ser regra, a qual contudo podia assumir algu- mas adaptabilidades regionais, como a que, em resultado da influência islâmica, permitia a utilização, na região a sul do rio Tejo, de tijolo para a construção de paredes e de ladrilho miúdo para pavimentar o chão. Mas, uns mais do que os outros, todos eram materiais perecíveis, mesmo no tempo curto de uma ou duas gerações. O que podia fazer de uma casa pardieiro. E assim transformava os núcleos urbanos medievais em espaços em perma- nente construção, pois era sempre preciso reparar uma parede, substituir um telhado, converter de novo um pardieiro em casa. Mas, a destruição ou apenas a deteriorização de um edifício podia ser ocasionada por outros motivos. Comum a todos os centros urbanos medievais, o fogo era o agente des- truidor mais temido, que em pouco tempo podia aniquilar completamente fiadas de imó- veis que, por serem tão compactas, se tornavam mais vulneráveis. Mas não era o fogo o único inimigo a recear. Recorde-se que muitas das cidades e vilas do Portugal medievo vizinhavam com cursos fluviais ou com o mar, o que as colocava em risco de sofrerem as consequências de periódicas inundações, por vezes demasiado violentas para serem conti- das pela presença da muralha. Mas até os próprios homens podiam ser os responsáveis pelas destruições. Quando pretendiam alterar o tecido urbano mediante a abertura ou a transformação de artérias e praças ou quando traziam para o interior do perímetro urbano os seus sempre ruinosos conflitos militares. O intramuros, tal como já foi salientado anteriormente, era um espaço limitado e na maior parte dos casos irregularmente ocupado. Por isso, as casas localizadas no seu interior apresentavam formas diversas, resultantes da sua tentativa de se adaptarem, da melhor ma- neira, às disponibilidades de terreno. Nas artérias mais concorridas, onde todos queriam viver, o espaço faltava, tornando as casas mais exíguas e fazendo da construção de novos edifícios uma raridade, geralmente só possível à custa de demolições. Os prédios eram assim obrigados a crescer em altura, podendo ter um sobrado, isto é, um andar ou até mais. Mas, como o crescimento em altura tinha, como é óbvio, limites, foi necessário re- correr a um outro estratagema: a expansão do prédio no sentido oposto ao da sua fachada, originando uma casa estreita e comprida. Esta tendência, mais acentuada nos núcleos urbanos nortenhos, originava habitações bastante compridas - podiam ser quatro ou até cinco vezes mais compridas do que largas-, que chegavam a estender-se de uma rua a outra e a ter até serventia para ambas as artérias. As traseiras, por seu lado, podiam ainda ser aproveitadas para a construção de uma outra casa, mais pequena e sem saída directa para a rua, o que permitia aumentar as possibilidades de alojamento. A PAISAGEM URBANA MEDIEVAL PORTUGUESA Mas, se o espaço abundava, as soluções empregues na construção de moradias ti- nham de ser forçosamente outras. As fachadas alargavam-se, rasgavam-se mais aberturas para o exterior e toda a habitação podia ser mais ampla. Enquanto os logradouros disponí- veis nas traseiras podiam atingir dimensões mais avantajadas, estabelecendo um forte con- traste com os das casas das artérias congestionadas, que quase sempre se reduziam a sim- ples nesgas de terreno de diminuta superfície. Aí se constituíam, verdadeiras hortas fami- liares, que chegavam até a dispor de algumas árvores de fruto, de um pombal ou de um poço. Onde se obtinham legumes frescos, frutas e por vezes flores. Onde se podiam fazer, cómoda e discretamente, os despejos familiares que forneciam a essas culturas mimosas os fertilizantes que elas tanto necessitavam. Manchas verdes que alegravam a monotonia dos tons adquiridos pelos edifícios construídos - o uso da cor nas paredes exteriores não era raridade, mas não constituía, de forma alguma, uma regra -, estas hortas e jardins, situadas na parte de trás das casas, traziam a ruralidade para o interior do espaço amuralhado. Mas tratava-se de uma ruralidade diferente da que se vislumbrava nos horizontes que se perdiam muito para além da linha de muralhas. Aprisionados entre muros e sebes, inteiramente criados pela mão do homem, ajudavam a apaziguar um pouco da alma de camponês que havia em cada citadino. Mas, tal como já foi afirmado anteriormente, a casa também servia para distinguir os homens. E para os que viviam nas cidades e vilas medievais bastava um simples olhar para reconhecer essas diferenças, resultantes de distintas disponibilidades económicas. Assim acon- tecia quando na sua construção se utilizavam maiores quantidades de materiais caros e de melhor qualidade, como a pedra e a telha. Ou quando as fachadas ganhavam individualida- de com a adição de pormenores decorativos, como uma escada, um alpendre ou um pórtico. Sinais que revelavam bolsas mais abastadas que mais não eram do que o corolário de uma adaptação melhor sucedida às exigências da economia urbana. Às vezes, essas casas tinham adossada uma torre que a aproximava, morfologicamente, do tipo de habitação utilizada pelos privilegiados, ou seja, do paço. Um acréscimo que não se destinava apenas a expressar a prosperidade e o prestígio social de quem a habitava, fazendo-o notabilizar-se perante os outros moradores, sobretudo os menos afortunados. Este aproximar ao paço trazia em si um outro desejo, que, no entanto, nem sempre era confessado: o de ombrear com os privilegiados, o de pertencer à nobreza. A,pirações que o dealbar da centúria de quinhentos veio tornar realidade, para muitos dos que conseguiram fazer parte das oligarquiasurbanas. A distintas fachadas tinham de corresponder, necessariamente, interiores também eles diferentes. Nas casas de melhor qualidade, os compartimentos eram mais numerosos e tendiam a adquirir alguma da especialização que hoje é familiar a qualquer citadino, a qual, como é sabido, passa pela atribuição de um destino específico a cada aposento. As- sim, os andares superiores, propícios ao recolhimento, reservavam-se para as câmaras ou, como se diria em linguagem actual, para quartos, enquanto o andar térreo podia albergar as áreas da casa mais abertas ao exterior, à sociabilidade. Uma diversidade que, todavia, não se encontrava com muita frequência. 29 30 UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUf:s Com efeito, o tipo mais vulgarizado de habitação medieval caracterizava-se por uma estrutura simples, pouco especializada e sem particularidades arquitectónicas exteriores. Formava-a uma casa dianteira, que na maior parte das vezes servia de oficina ou de local de venda e um compartimento traseiro, onde a família se recolhia e tomava as suas refeições. Os mais ditosos podiam ainda contar com o primeiro andar, ou seja, com o sobrado, que permitia acrescentar à casa uma ou duas divisões. A individualidade desses edifícios assen- tava por isso, muito mais, na identidade de quem a habitava e sobretudo nas actividades artesanais e comerciais qu~ aí1-inham lugar, as quais, devido à escassez de aberturas - as raras janelas, sem vidraças, apenas com portadas, eram de reduzida utilidade - e à consequente insuficiência de luz, tinham lugar, na maior parte dos casos, na soleira da porta ou em poiais e tabuleiros amovíveis, que se recolhiam quando a jornada de trabalho chegava ao fim. Isolada, a casa, sobretudo a de características mais correntes, desempenhava um pa- pel diminuto na paisagem urbana. O mesmo não acontecia com algumas construções que tendiam a emergir como protagonistas indiscutíveis de qualquer cenário urbano. Até uma criança saberia apontar e distinguir a silhueta do castelo, as torres das igrejas e de outros edifícios religiosos. Ou indicaria sem erros a localização dos açougues, da casa do concelho ou, no caso dos centros urbanos mais importantes, de alguns edifícios administrativos, dos paços que acolhiam estadias do rei e da corte ou os que eram residência permanente de grandes senhores e das suas comitivas. Construções que se distinguiam porque a sua edificação resultava, quase sempre, de necessidades colectivas, neles se expressando vigorosamente a imposição do público sobre o privado. Assim, a construção desses monumentos revestia-se de uma maior grandiosidade e pe- renidade do que a do tipo de edifício mais corrente - responsável, em certa medida, pela conservação de alguns deles até aos dias de hoje-, o que os fazia destacarem-se e constituir pontos de referência para os que habitavam no núcleo urbano, nas suas imediações e até para aqueles que, com maior ou menor regularidade, o demandavam. Se a importância das suas funções o justificava, esses edifícios podem constituir-se como pólos significativos da instala- ção humana, gerando artérias e praças que com eles se articulavam. Referências obrigatórias da paisagem urbana, a sua importância era tão evidente que chegavam a condicionar a toponímia, justificando apelações, tais como as das ruas do Castelo, diante da Igreja, do Paço do Rei ou da Alfândega, comuns à maioria das cidades e vilas medievais. A construção de edifícios - exceptuem-se os paços particulares que eram encargo dos seus proprietários -, de tal dimensão e impacto, ultrapassava e muito as disponibilidades das comunidades urbanas, mesmo quando se tratava de prósperos centros mercantis, como Lisboa ou o Porto. Os réditos urbanos, nem sempre muito volumosos, tinham quase sempre destino certo, pois as despesas correntes - manutenção de magistraturas locais, contactos e negociações com outras localidades ou instituições, conservação de pavimentos e medidas higiénicas, envio de delegações a assembleias de cortes, pagamento de festas e comemora- ções, entre outras - absorviam ou até excediam esses quantitativos. A PAISAGEM URBANA MEDIEVAL PORTUGUESA Daí os frequentes apelos ao rei, repetidos através de petições e/ou nos capítulos espe- ciais apresentados nas cortes do reino. Onde, insistentemente, acentuando a sua penúria e a urgência da obra, requeriam ajuda para construir uma igreja, um paço concelhio, um açougue, uma residência para acolherem os oficiais régios que estanciavam na sua vila ou cidade. Na verdade, sem os generosos contributos do rei, nunca conseguiriam fazer frente às despesas acrescidas resultantes da compra de materiais de qualidade, do recurso a artí- fices e artistas conceituados e até da vinda de arquitectos, como acontecia quando se reformulava ou construía uma igreja. Cuidados que valiam bem a pena. Uma vez que tinham como resultado a valorização do espaço urbano, que assim se tomava mais atracti- vo, passando a dispor de edifícios elaborados de acordo com os padrões de gosto mais difundidos e actualizados e que vinham satisfazer um conjunto diversificado de necessida- des urbanas. Associado à muralha, o castelo herdava dela a altura e o aspecto fortificado que lhe conferia uma imagem de autoridade, aparato bélico, bem como a certeza, por todos intuída, de protecção certa e segura nos momentos de perigo. Na maioria dos casos, com efeito, tinha acompanhado, desde sempre, os bons e os maus momentos vividos pela comunida- de instalada a seus pés - reservava-se para o castelo o ponto mais elevado do sítio da instalação urbana-, podendo até ter funcionado como factor de origem da vila ou cida- de. Mas, o castelo, onde se acolhia o alcaide nomeado pelo rei para seu guardião e defen- sor, constituía ainda um sinal da presença tutelar do monarca sobre as gentes que ocupa- vam o espaço amuralhado. E que adquiria uma valor simbólico espacial em regiões de forte implantação senhorial como era o caso do Entre Douro e Minho. Mas se o castelo se impunha pela sua situação elevada e pelas suas grossas paredes, os templos e mosteiros faziam anunciar a sua presença através das altas torres que se erguiam, como que em prece, em direcção ao céu. Edifícios que expressavam não só a procura de protecção divina por parte dos homens e mulheres que tinham promovido a sua constru- ção mas também a sua prosperidade económica, traduzindo-se esta última em dádivas que permitiam tornar essas igrejas e cenóbios em algo de belo, como hoje ainda é comprovado pela admiração fascinada dos visitantes. Porque seguiram um estilo novo, que na sua busca das alturas, na sua maior riqueza decorativa, parecia ser o mais adequado para revelar não só vaidades urbanas como para atingir a proximidade de Deus. Remetendo para o passado esses templos mais despojados e menos elaborados que se disseminavam pelos campos e que combinavam melhor com a austeridade e simplicidade do mundo rural. A presença mais ou menos numerosa destes locais de culto, vigorosamente anunciada pelo som dos sinos a marcarem as horas de Deus, fornecia ainda um índice claro, sobretudo para foras- teiros e viajantes, do dinamismo demográfico das localidades. Em associação com estes templos e/ou mosteiros formavam-se áreas abertas, os adros, onde não era raro encontrar-se um cemitério. Correntemente demandados pelas popula- ções, sobretudo pelas que viviam nas redondezas, estes locais assumiam-se como espaços primordiais de convívio. Muitos deles, com o correr do tempo, com maior ou menor 31 32 UNIVERSO URBANfSTICO PORTUGUÊS espontaneidade, transformaram-se em praças. Onde se podiam encontrar tendas e boticas, alpendres, e até edifícios de uso colectivo, como a casa do concelho ou o paço de audiência dos tabeliães. Espaço, múltiplas funções'; tinha o seu ponto de convergência no templo, onde a comunidade dos vivos se sentia mais próxima dos seus mortos, dos seus antepassados.Aí podiam ter lugar negócios e actividades artesanais ou escrever-se um longo documento recheado de depoimentos de iariadas testemunhas. Cenário mutável, engalanava-se para festas e procissões, e acolhPh c~'~plicadas estruturas efémeras de madeira, com que se cele- bravam as entradas dos reis e as visitas dos bispos. Recebia forasteiros e era pouso de marginais e pedintes esperançados numa esmola mais generosa. Nessas praças, por vezes acanhadas para os padrões actuais, onde se sobrepunham espaços e se cruzavam vidas, sedimentavam-se solidariedades nascidas das vivências colectivas que aí tinham lugar. Distinguindo-se bastante menos no contexto global da paisagem urbana, os edifícios destinados ao paço do concelho, à audiência dos almotacés, dos tabeliães ou dos juízes, bem como os açougues ou as residências-armazéns destinados aos que, em nome do rei, cobravam direitos e impostos, adquiriam relevância, não por características arquitectóni- cas específicas, mas devido a serem frequentados, por vezes com certa regularidade, por muitos moradores e por um número significativo dos que se deslocavam às vilas e cidades. Conhecidas por todos, estas construções deviam seguir os padrões mais difondidos da construção corrente, adquirindo, no entanto, maior volumetria ou apresentando, sobretu- do o seu interior, algumas adaptações, às funções que desempenhava. Assim acontecia com a casa da vereação da cidade do Porto, no século XV, cujo contrato de construção continha cuidadas instruções, em que se previam não só a orgânica de funcionamento das reuniões como a necessidade de reservar espaço para a guarda de documentos (Vereaçoens. Anos de 1390-1395, pp. 254-258). Ou com o edifício medieval da alfândega dessa mesma cidade, onde se registam compartimentos de armazenagem, alpendre para pesagem e sela- gem e aposentos de habitação destinados a oficiais régios e até capazes de acolher régios visitantes (Manuel Luís Real, «Sobre o local de nascimento do infante D. Henrique», in Henrique, o navegador, Porto, 1994, pp. 161-168). Ao concentrarem-se quase sempre nas áreas centrais dos núcleos urbanos, estes edifí- cios vinham tornar mais apetecível toda a zona envolvente, o que explicava as elevadas concentrações de população que aí se pode encontrar e que ajudavam a conferir uma identidade própria à área por eles balizada. Quase sempre em conexão com as principais saídas e, consequentemente, com as vias de comunicação mais concorridas, o centro ten- dia, nas vilas e cidades ribeirinhas, a associar-se à ribeira, ou seja, a vizinhar com o rio ou com o mar, que surgiam assim como elementos fundamentais de contacto. O que lhe imprimia outro colorido, marcado pelas chegadas e partidas dos barcos, pelo carregar e descarregar das mais diversas marcadorias, pelo odor forte dos peixes e moluscos e pela presença de gentes vindas de fora, que chamavam a atenção pelos vestires diferentes e pelos falares arrevesados que muito poucos conseguiam entender. A PAISAGEM URBANA MEDIEVAL PORTUGUESA Uma multiplicidade atractiva que ajuda a compreender a avidez sempre demonstra- da pelas populações urbanas em relação às zonas centrais da localidade em que viviam e que os fazia suportar apertos e exiguidades. Na verdade, aí batia mais forte o pulsar da vida urbana. Estava-se perto de tudo, dos edifícios mais importantes, das principais actividades económicas e até dos forasteiros que tinham como itinerário obrigatório essas artérias principais. Tratava-se de ruas e praças por todos conhecidas porque as demandavam com regularidade, muitos até diariamente, e que saberiam por isso descrever com riqueza de pormenores. Viver fora do centro era um recurso, quase sempre encarado com pouco entusiasmo e apenas aceite quando se esgotava a possibilidade de alojamento nas artérias mais antigas. Assim se compreende melhor que os espaços livres de construções - os denomina- dos rossios, campos, terreiros - sejam mais frequentes nas zonas excêntricas, sobretudo no caso de cidades ou vilas que sofreram reamuralhamentos, o que gerava a existência de um número mais elevado de espaços livres. De certa maneira, constituíam áreas de reserva, susceptíveis de contribuírem para minorar os problemas de alojamento gerados pelo con- tínuo fluxo de gentes em direcção aos núcleos urbanos, tão característico das últimas centúrias medievais. Mas, habitar nas zonas periféricas podia ser um sinal de desafogo económico. Porque aí, onde o espaço abundava, se podia construir uma casa mais espaço- sa, destinada apenas a habitação, o que afastava o seu proprietário do comum dos morado- res, daqueles que precisavam de viver nas artérias centrais por necessidades económicas, numa apertada casa-oficina/loja, para poderem estar no caminho das suas clientelas. Para essas periferias podiam ainda empurrar-se as esterqueiras, esses terrenos abertos onde as populações urbanas iam fazer os seus despejos, sobretudo aqueles que não podiam recorrer à horta das traseiras da casa para esse fim. Impondo-se pelo cheiro nauseabundo que afastava as pessoas, as esterqueiras eram locais isolados, preferidos por ladrões e malfei- tores para se esconderem durante o dia, descansando antes de se lançarem nas suas depredadoras incursões nocturnas. Uma vez que estas zonas encontravam uma das suas confrontações na parede da muralha, considerava-se que eram as mais convenientes para acolherem a comunidade judaica, pois aí se podia reforçar o seu confinamento e favorecer a constituição de um bairro autónomo. Nas cidades e vilas de pequena e média dimensão, no entanto, o núme- ro de judeus que aí habitava podia não ser suficiente para gerar a formação de judiarias fechadas, o contrário do que acontecia com as cidades mais importantes, onde se desdo- bravam por uma ou mais judiarias. Bastava-lhes então apenas algumas ruas, mas dispostas sempre de maneira a serem limitadas pela presença compacta do muro. Mas em qualquer dos casos, espaços hierarquizados pela sinagoga e identificáveis, sobretudo, pela identidade dos seus habitantes. Gentes que se distinguiam pela aposição obrigatória dos sinais verme- lhos no seu vestuário, pelo uso dos chapéus cónicos, pelos nomes que recebiam de seus pais. Que tinham poço próprio, uma forma diferente de talhar a carne e até um dia dife- rente para interromper o trabalho e louvar o senhor. 33 34 UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS Desde sempre ambígua em relação a tudo o que precisava, mas que simultaneamente reprovava, a sociedade medieval procurava encontrar locais específicos para a instalação das prostitutas, que, sem as expulsar do perímetro urbano, as mantivesse concentradas num local específico, de preforência periférico. Daí que as vereações se preocupassem em determinar, com certa rigidez, as zonas onde essas mulheres podiam habitar, e que eram denominadas de mancebias ou, mais cruamente, deputarias. Uma forma de arruamento sempre recebida com protestos, uma vez que se lhe atribuíam artérias afastadas do centro, pouco propícias, na opi~iãó'tias visadas, para as suas actividades. Ao remeter-se as mulheres que faziam pelos homens para a periferia do espaço amuralhado, pretendia-se afastá-las dos olhares honestos e circunscrever as arruaças e barulhos que sempre acompanhavam os bandos masculinos que frequentavam essas zonas quentes. Mas não deixava de se estar a conferir à periferia uma acentuada marginalidade, que ajudava a transformá-la no local menos apetecido de qualquer cidade ou vila. Feita de pedra, madeira, adobe e taipa, a paisagem urbana era também, e muito, devedora dos homens que a habitavam. Porque lhe emprestavam, através dos seus quotidia- nos plenos de vida, grande parte da sua identidade. Porque com ela partilhavam a prospe- ridade e pobreza, a guerra e a paz, a alegria e a tristeza. E que tanto se revelava ostensiva como discretamente no aspecto das casas de moradas, na traça dos edifíciosnotáveis, no perfil das ruas, na grossura das paredes da muralha. A PAISAGEM URBANA MEDfEVAL PORTUGUESA FONTES IMPRESSAS E BIBLIOGRAFIA Fontes impressas Actas das Vereações de Loulé, vol. I, ed. H. Baquero MORENO, L. Miguel DUARTE e J. Alberto MACHADO, Porto, Câmara Municipal de Loulé, 1984. Chancelarias Portuguesas - Chancelaria de D. Afonso IV, cd. A. H. Oliveira MARQUES, Lisboa, INIC/Centro de Estudos Históricos da UNL, 1990. Chancelarias Portuguesas- Chancelaria de D. Pedro I (1357-67), vol. !, ed. A H. Oliveira MARQUES, Lisboa, INIC/Cemro de Estudos Históricos da UNL, 1984. Cortes Portuguesas. Reinado de D. Afonso IV (1325-51), ed. AH. Oliveira MARQUES, Lisboa, INIC/Cemro de Estudos Históricos da UNL, 1982. Cortes Portuguesas. Reinado de D. Fernando I (1367-83), vol. I, ed. AH. Oliveira MARQUES, Lisboa, INIC/ /Centro de Estudos Históricos da UNL, 1990. Cortes Portuguesm. 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Escrito em espanhol, o texto foi gentilmente traduzido pclaArq. Alejandra Hernández Mufioz e revisto pelo autor. Embora existam exemplos de cidades de traçado regular no Brasil nos dois primeiros séculos de colonização, é só a partir do Setecentos que essas cidades tiveram maior difusão no país. O contraste entre as cidades coloniais brasileiras, localizadas em sítios acidenta- dos, com ruas estreitas e sinuosas, e as cidades hispano-americanas, planas, regulares e com vias retas e largas, tem provocado uma série de especulações por parte de historiadores, geógrafos,urbanistas e arquitetos. Em geral, estes autores tenderam a considerar o urba- nismo luso-brasileiro como medieval ou «espontâneo» e, consequentemente, não planifi- cado, ao tempo que as cidades regulares, que, aliás, sempre coexistiram com as espontâ- neas, eram ignoradas ou consideradas exceções. Expressivas desta posição são as palavras do historiador Sérgio Buarque de Holanda: « ... a cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental, não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha da paisagem. Nenhum rigor, nenhum método, sempre esse significativo aban- dono que exprime a palavra 'desleixo' ... »1 Não menos radical é a posição do historiador de arte Robert Smith: «Os portugueses estabeleceram no Brasil, quase intacto, o mundo que haviam criado na Europa ... A ordem era ignorada pelos portugueses, como assinalavam deleitados os viajantes. Suas ruas, ironicamente chamadas 'direitas', eram tortas e cheias de altos e baixos, as suas praças de ordinário irregulares ... Desta sorte, em 1763, quando deixou de ser a capital do Brasil, era a Bahia uma cidade tão medie- val quanto Lisboa na véspera das grandes reformas de Pombal. Nada inventaram os portugueses no planejamento de cidades em países novos.»2 Segundo este autor, os portugueses reproduziram nas cidades do seu império ultrama- rino o urbanismo medieval da Metrópole, em especial o das cidades de Lisboa e Porto, estruturadas em dois níveis3• Deste modo, enquanto os espanhóis, nas suas colônias, realiza- 1 HOLANDA, Sérgio Buarque de, Raízes do Brasil 12.' ed., Rio de Janeiro, José Olympio Ed., 1978, p. 76. 2 SMITH, Robert, As Artes na Bahia, 1 parte, Arquitetura Colonial Salvador, Prefeitura Municipal de Salvador, 1954, pp. 11-2. 3 Esta idéia é desenvolvida pelo autor em Baroque Architeccure, in LIVERMORE, H. (ed.), Portugal and Brazil, London, Oxford Universicy Press, 1953, pp. 349-84. 41 42 UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS vam a mais importante experiência urbanística da Renascença, os portugueses, atavicamente, retornavam ao passado. O mesmo fato, a espontaneidade de nossas cidades, é interpretado de forma diametralmente oposta por autores como Luís Silveira e Paulo F. Santos. Argumen- tam eles que a razão de os portugueses não adotarem os traçados geométricos resultava da sua longa experiência na criação de cidades orgânicas, superiores como desenho à quadrícula, porque estavam sujeitas aos princípios naturais da biologia e da sociologia4. Este equívoco só começou a ser esclarecido com os trabalhos de Nestor Goulart Reis F." e, em especial, Roberta Marx belson, que mostraram ser relativamente freqüentes cidades de traçado regular no Brasil, especialmente a partir do século xvm5. Neste artigo procuraremos demonstrar que os portugueses dominavam os traçados regulares desde a Idade Média e os aplicaram durante o Ciclo dos Descobrimentos na Metrópole, nas Ilhas do Atlântico e no Oriente. O que explica sua aplicação em algumas circunstâncias e seu abandono em outras são, aparentemente, fatores de natureza sociopolítica, mais que culturais. As mesmas razões explicariam as diferenças entre o urbanismo hispano-americano e filipino. Não devemos esquecer que cidades regulares podem resultar de fatores naturais e histó- ricos e não, necessariamente, de processos de planificação, que antecedem a sua fundação. A orientação de ruas por motivos topográficos, climáticos ou religiosos; a existência de estrutu- ras fundiárias e territoriais preexistentes, relacionadas com sistemas de irrigação e circulação, podem condicionar a formação de cidades de traçado razoavelmente regular. Morris, por exem- plo, contesta que Ur (2500 a.C.), na Mesopotâmia, era uma cidade planificada6• O mesmo pode-se dizer de muitos centros cerimoniais Olmecas e Maias, na América Central. Temos que reconhecer, porém, que a grande maioria das cidades de padrão geomé- trico, especialmente em quadrícula, são cidades novas, ou sejam, fundadas para satisfaze- rem objetivos políticos bem definidos. Devido ao seu caráter artificial e, em muitos casos, localização em territórios despovoados, estas cidades requerem um plano de desenvolvi- mento prévio, com a realização de grandes investimentos públicos e oferecimento de van- tagens e privilégios a novos moradores, que lhes permitam atingir uma dimensão mínima, em pouco tempo, tornando-se viáveis e irreversíveis. A satisfação de todas essas condições exige que as cidades novas sejam apoiadas em uma decisão política muito forte, sem a qual elas não vingam. Galantay enumera quatro motivações básicas para as cidades novas7: 4 SILVEIRA, Luís, Ensaio de Iconografia dt1s Cidades Portuguesas do Ultrmnm: Lisboa, s.d., v. 4. Na mesma linha coloca-se Paulo F. Santos, em Formação de Cidades no Brasil Colonial, in V Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros. Coimbra, 1968 (separata), pp. 6-9. O autor faz a apologia do urbanismo informal da Idade Média citando em seu apoio Gallion, Saarinen e Munford. 5 O tema da planificação de cidades no período colonial é natado de forma genérica por REIS FILHO, Nestor Goularc, em Evolução urbana do Bmsil. São Paulo, Pioneira/USP, 1968, e desenvolvido em profundidade por DELSON, Roberta Marx, em New Tinuns for Colonial Brasil: Spatial a11 Social Planing of the Eighteenth Century. Michigan, University Microfilms International, Ann Arbor, 1979. 6 MORRIS, A. E. J., History ofurban jórm, London, Geo Goldwin, 1972. 7 GAIANTAY, Erwin, Nuevas Ciudades, de laAntigiiedad a 1,ue,tros dias. Barcdona, Gustavo Gili, 1977, pp. 15-9 e 21-118. Consulte-se, também, LAVEDAN, Pierre, Histoire de l'Urbanisme. Paris, Henri Laurcns, pp. 1926-52, 3 v.; MUMFORD, Lewis, La Ciudad en la Historia. Buenos Aires, Ed. Infinito. URBANISMO DE TRAÇADO REGULAR 1. Construção de novas capitais em conseqüência da criação de um novo estado ou da busca de um símbolo ou centro de equilíbrio nacional. Os mais antigos exem- plos de cidades novas são capitais, como Akhetaton (El Amarna) (1745-1358 a.C.). No outro extremo temos Brasília que, apesar de sua modernidade, repete uma motivação antiqüissima. 2. Coloni:zaç:ão externa ou interna com propósitos geopolíticos ou econômicos. São exemplos das primeiras, as colônias gregas fundadas na Magna Grécia e na Sicília, e das segundas, as «bastides» francesas e inglesas, na Gasconha (século xm). 3. Descongestionamento de grandes metrópoles, com a criação de cidades satélites, como as «garden cities» e «new towns» inglesas, fenômeno característico do século atual. 4. Cid11des industriais criadas, a partir do século passado, para maximizar a explo- ração de recursos naturais, fontes energéticas e acessibilidade a certos mercados. A esta relação devemos agregar uma quinta categoria, constituída pelas cidades reconstruídas ou transladadas em conseqüência de catástrofes naturais, como a Lisboa pombalina, ou por razões de segurança ou acessibilidade, como Carcassone, na França. Mas a grande maioria das cidades novas são cidades resultantes de programas de colonização. Assim ocorreu na Antigüidade, com a expansão da Grécia e de Roma; na China, durante a dinastia Chou; na Idade Média, com as bastides, e durante os séculos XVI e XVII, com a colonização hispano-americana. Tudo indicava que o mesmo processo qeve- ria repetir-se na colonização do Brasil. Seu não cumprimento põe em dúvida o próprio caráter da colonização brasileira. O descobrimento do Brasil não revelou, de imediato, nenhuma grande riqueza e os produtos exportados, durante o primeiro meio século, resumiam-se a madeiras e animais exóticos, como o pau-brasil, macacos e papagaios. O país servia mais como ponto de apoio à rota da Índia que como provedor de produtos de exportação. Durante trinta anos não houve nenhuma tentativa de colonização por parte da Coroa portuguesa. Em 1530, uma primeira expedição colonizadora, comandada por Martim Afonso deSouza, funda São Vicente, no atual estado de São Paulo, onde se fazem os primeiros experimentos de plan- tação de cana-de-açúcar. Quatro anos mais tarde, D. João III, reconhecendo as dificuldades de ocupar um território tão grande e despovoado, abdica de seu direito e dever de colonizador e o delega a particulares, através do sistema de capitanias hereditárias. Os donatários tinham, entre outras atribuições, as de criar vilas, fazer a defesa e administrar a justiça. Mas seus titulares, membros de uma nobreza empobrecida, já não tinham condições de exercer tais atribui- ções e muitos deles não chegaram a tomar posse de suas terras. «A política portuguesa para o Brasil, em meados do século xvr, procurava utili- zar ao máximo os recursos de particulares - colonos e donatários - sem pre- judicar os programas das Índias, que ocupavam então o melhor de seus esforços. 43 44 UNIVERSO URBANfSTICO PORTUGUÊS Pode-se afirmar que o estabelecimento do regime das Capitanias, estimulando a fixação de europeus nas novas terras, visava alcançar não somente sua ocupação como também a urbanização, como a solução mais eficaz de colonização e do- mínio ... Como resultado dessa política, das trinta e sete povoações, entre vilas e cidades, fundadas entre 1532 e 1650, apenas cerca de sete o seriam por conta da Coroa, correspondendo as demais aos donatários e seus colonos ... », afirma Nestor Goulart Reis Filho8• Atribuída a particulares, sem uma vontade política que a respaldasse, a colonização se transformaria em um processo de ocupação espontâneo, onde não havia lugar para cidades novas, tal como foram conceituadas anteriormente. Mas, mesmo nos séculos XVI e xvn, nas poucas vezes que a Coroa decidiu intervir na colónia para garantir a integridade territorial, o resultado foi o aparecimento de cidades regulares, como veremos adiante. A partir do século xvm, quando Portugal revê sua política com relação ao Brasil, em conseqüência da descoberta do ouro em Minas Gerais e do declínio do comércio com o Oriente, os exem- plos de cidades regulares se multiplicam na colónia. Antes, porém, de discutir estes casos, queremos demostrar que não foi por falta de conhecimento e experiência prévia que não se aplicou, de forma generalizada, o traçado geométrico nas vilas e cidades brasileiras. Antecedentes portugueses Portugal medieval tinha uma história urbanística muito semelhante à da Espanha, com duas grandes vertentes. Uma mais antiga (século vm), muçulmana, que se desenvol- veu no Sul, e uma mais recente, cristã, que se difundiu, a partir do século XII, no Norte, com a Reconquista. São duas tradições antagónicas. A primeira de cidades de traçado caprichoso, de ruas tortuosas e sem saída. A segunda tendente à regularidade e à racionalidade9• A Reconquista ofereceu oportunidades excepcionais para a criação ou reconstrução de cidades. As vilas haviam-se desorganizado durante o período visigodo, devido a obriga- ção de os nobres acompanharem o rei na guerra. Muitas vilas ficaram sem senhor, entre- gues aos servos. Por outro lado, os mouros não criaram grandes cidades em Portugal, ao contrário da Espanha, senão favoreceram, mediante o comércio, o desenvolvimento dos 8 REIS FILHO, Nestor Goularr, op. cit., pp. 66-7. 9 Sobre o assunto, ver TORRES BALBAS, Leopoldo, La Edad Media, em Resumm Histórico dei Urbanismo en Espaiia. Madrid, Instituto de Estudios de Adminisrración Local, 1968, e OLIVEIRA MARQUES, A. H. de, «Introdução à História da Cidade Medieval Portuguesa», in Bracara Augusta, 35 (79/80). Braga, 1981, pp. 367-87. URBANISMO DE TRAÇADO REGULAR velhos assentamentos romanos, como Silves, Mértola, Badajoz, Alcácer do Sal, Santarém, Lisboa e Coimbra, muitos dos quais de traçado regular 10 • Mas estes centros foram muito destruídos, em conseqüência das lutas da Reconquista, e pouco preservaram de sua fase islâmica. Segundo alguns cronistas da época, como Sebastião, bispo de Salamanca, Afonso I ao reconquistar a Galícia, o Minho, o Douro e parte da atual Beira Alta liquidou os muçul- manos e trouxe consigo para as Astúrias os cristãos que encontrou. Isto levou alguns histo- riadores a desenvolverem, talvez com certo exagero, a teoria do «ermamento», segundo a qual esses territórios ficaram desertos até serem incorporados definitivamente aos novos reinos cristãos11 • A estas condições, comuns também à Espanha, juntou-se outra, no caso português, a Independência, que além de demandar a ocupação dos territórios reconquistados aos mouros, ao Sul, exigia a definição da fronteira leste, com Castela. A ocupação do espaço reconquistado se fez com gente do Norte, não muito numerosa, acrescida de mudéjares e judeus, segregados em bairros próprios, e colonos estrangeiros, especialmente franceses e flamengos, atraídos pelos privilégios oferecidos. Imperativos militares, mais que a presença de um mercado, como acontecia no resto da Europa, são responsáveis pelo nascimento de vilas e cidades no Portugal da Reconquis- ta. Estas eram, na realidade, a aglutinação de pequenas aldeias e casarias isolados dentro de uma mesma cerca, ou a reconstrução de velhas cidades destruídas ou abandonadas durante as lutas contra os árabes. Como se pode verificar, existiam ali todos os pré-requisitos para o surgimento de cidades novas que, como veremos, vão aparecer em pontos estratégicos, nas cumeadas de colinas ou em vaus de rios, sempre vizinhas à fronteira espanhola. Segundo Orlando Ri- beiro, uma das primeiras cidades portuguesas com traçado regular é Guarda, situada a 1000 m de altitude, em um contraforte oriental da serra da Estrela. Guarda havia sido, sucessivamente, uma fortaleza de romanos, visigodos e árabes. Tomada aos mouros por Afonso Henrique, foi ampliada e fortificada por Sancho I, o Povoador, em 1119 12• Mas o grande ciclo de reconstrução e fundação de cidades em Portugal tem lugar a partir da segunda metade do século xm, quando inicia-se um longo período de coloniza- ção interna. Superado o estado de guerra constante em que viveu Portugal durante seu primeiro século, contra mouros, leoneses e castelhanos, experimenta o país um crescimen- to económico resultante da difusão da moeda, formação de novas feiras e do comércio marítimo, que se refletiria na construção e/ou ampliação de castelos, vilas e cercas. Só 10 SARAIVA, José Hermano, História concisa de Portugal. Lisboa, Publicações Europa-América, 7.ª ed., 1981, pp. 36-7. " Ibidem, pp. 39-40. 12 RIBEIRO, Orlando, Em torno das origens de Viseu. Coimbra, Fac. de Letras da Universidade de Coimbra, 1970. 45 46 UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS nesse momento, as vilas e cidades, um simples aglomerado de casas, alcançam uma certa consistência e unidade 13• Além do mais, a consolidação das vitórias militares contra os árabes e a definição da fronteira com Castela exigiam o repovoamento rápido do território, especialmente das regiões menos ocupadas e produtivas, distantes do litoral. Este período coincide com os reinados de Afonso III e seu filho D. Dinis. A fatores militares e econômicos somam-se, também, razões de ordem política, que favoreciam a criação de vilas e cidades. D. Afonso III assume o poder no âmbito de uma revolução, cujas lutas, ocorridas eni,[e f:.245 e 1247, conduziriam a uma aliança entre o Rei e o cha- mado Terceiro Estado, o povo, em oposição ao clero e à nobreza. As forças populares organizaram-se em torno dos conselhos locais e D. Afonso III (1245-1279) adota uma política de valorização do poder municipal e garantias cidadãs. Pouco depois do fim da guerra civil, o Rei convoca as cortes, com a participação de representantes das vilas e cidades, ou seja, da burguesia urbana e rural que o havia apoiado. O resultado prático desta política é a fundação ou concessão de foros e privilégios a numerosas vilas e cidades. Algumas são cidades criadas «ex-novo», como Viana do Castelo (Fig. 1), no estuário doLima, que logo transformou-se numa base para escaramuças entre portugueses e galegos. A fundação de Viana é um ato primordialmente político, destinado a prestigiar o Terceiro Estado. Seu foro, de 1258, estabeleceu privilégios que se contrapunham às prerrogativas dos grandes mosteiros e famílias nobres da região. Entre outras disposições, estabelecia que ne- nhum homem rico, como no Porto, poderia viver na vila. D. Afonso III não se intimidou com as pressões e declarou que estava decidido a dar-lhe crescimento e força, enquanto estivesse vivo 14• Sua planta, delimitada por uma cinta oval, está constituída por sete ruas orientadas no sentido leste-oeste cortadas a 90° por transversais. O largo principal, onde se situa a casa de câmara e cadeia, não está muito longe da matriz, vizinha ao centro da cidade. D. Afonso III preocupa-se também com a definição das fronteiras e, em 1267, assina em Badajoz um primeiro tratado com Castela. Inicia-se, assim, uma política de valoriza- ção das vilas de fronteira. Este trabalho é continuado e ampliado pelo seu filho, D. Dinis (1279-1325), que conclui as negociações com Espanha sobre limites territoriais, através do tratado de Alcafiices, de 1297, e inicia a fortificação da fronteira. É muito difícil precisar em que momento essas vilas e cidades receberam seu traçado regular. A concessão do foro, depois das lutas da Reconquista, correspondia, na maioria dos casos, a uma nova fundação. Mas a maior parte das povoações que recebeu foro de D. Afonso III foi fortificada pelo seu filho, D. Dinis. Alguns autores, como Jorge Gaspar, o primeiro a chamar a atenção sobre estas vilas, afirmam que a reestruturação das mesmas se deve a D. Dinis15. 13 Idem, Cidade, in Dicioudrio de História de Portugal, dirigido por Joel Serrão. Lisboa, Iniciativas Edito- riais, 1963, vol. I, pp. 574-80. " Viana do Castelo in Guia de Portugal, 2.ª parte. Lisboa, F. C. Gulbenkian, 1965, vol. 4, p. 982. 15 GASPAR, Jorge, Morfologia de padrão geométrico na Idade Média, in Revista Finistemz, Lisboa, 1969, 2(8); pp. 198-213. URBANISMO DE TRAÇADO REGULAR Vila Viçosa (Fig. 2) apresenta o mais perfeito traçado urbano deste ciclo de cidades regulares: muralha retangular com o castelo em uma extremidade, largo com igreja no meio e ruas retilíneas que se cruzam ortogonalmente. Arruinada e despovoada com a to- mada aos árabes, é repovoada por D. Afonso III, que lhe deu foro. Mas o castelo e a muralha só seriam reconstruídos por D. Dinis. Contudo, não está descartada a possibili- dade de que seu traçado seja uma reminiscência do antigo castrum romano. De qualquer modo, a vila nova (Fig. 3), criada por D. Afonso III, em 1267, junto à antiga, apresenta o mesmo traçado geométrico da primitiva 16• D. Dinis, conhecido como o Lavrador, continua a obra do seu pai. Consolida o poder régio e unifica administrativa e culturalmente o novo país; desenvolve a agricultura em regiões pouco povoadas, especialmente no Alentejo; reforma burgos arruinados e fun- da outros, concedendo privilégios, como feiras livres17 • Seu programa de governo resume- -se na colonização interna. Preocupado em recuperar zonas de pântano para a agricultura, drena uma grande extensão do Ribatejo e funda Salvaterra de Magos, outorgando-lhe foro em 1295. Esta vila com nome e forma de «bastide» é constituída por cinco ruas longitudinais, orientadas na direção norte-sul, cruzadas por quatro transversais formando um retângulo quase perfeito. A Rua Direita conduz o visitante a um largo, na extremidade sul, que tem ao centro o pelourinho e ao fundo o Paço Real. Na mesma praça situa-se a casa de câmara e cadeia. A igreja abre-se para um largo pequeno, anexo ao primeiro. Mas a maior preocupação de D. Dinis é povoar a parte oriental do Alentejo, fronteira com Castela. «Este rei en seu tempo, fez quasi de novo todas as vilas e castelos de Riba de Odiana ... E fez, de novo, e do primeiro fundamento, Vila-Real, que fazem nú- mero de quarenta e quatro vilas, castelos e fortalezas do Reino, de que algumas fez novamente, e outras reformou ... »18 Neste «fazer quase de novo», D. Dinis adeqüou as plantas daquelas vilas às exigências militares e de administração civil e religiosa, ou seja, a planos regulares. Estas vilas apresen- tam dois tipos de plantas, como observa Jorge Gaspar. Uma, onde a rua central corta a povoação ligando as duas portas opostas, como em Redondo, e outra, onde existe somente uma porta, com uma rua central que a liga ao castelo, situado na outra extremidade. 16 Vila Viçosa teve grande desenvolvimento no século XIV, sob o senhorio de Nuno Álvares Pereira. Sobre o assunto, ver: ALMEIDA, João, Roteiro dos Monumentos Militares Portugueses. Lisboa, Ed. do autor, 1984, vol. 3, pp. 269-72; BARBOSA, I. Vilhena, As Cidades e Villas ela Monarchia Portuguesa que teem Bmsão d'Aml(ls. Lisboa, T do Panorama, 1971, vol. l, pp. 170-7. 17 FERREIRA, Maria Emília Cordeiro, D. Dinis, in Diciondrio de História de Portugal, dirigido por Joel Serrão. Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1971, vol. I. 18 PINA, Rui de, Crónica ele D. Dinis. Porto, Liv. Civilização, Biblioteca (série Régia), 1945, cap. 32, pp. 322-3. 47 48 UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS À margem dessa rua está, geralmente, o largo, ponto de reunião social, mas sem as propor- ções das praças renascentistas19 • São exemplos deste último modelo os núcleos primitivos de Vila Viçosa, Alegrete e, em certa medida, Salvaterra de Magos. Um dos melhores exem- plos conservados deste tipo de.vila é Monsaraz (Fig. 4), localizada a 323 m sobre o vale do Guadiana. A vila teve foro de D. Afonso III, mas foi fortificada por D. Dinis, quando recebeu, provavelmente, a planta regular. Algumas das vilas fundadas ou fortificadas por D. Dinis encontram-se muito des- caracterizadas. Assumar lilerd¾u o castelo e a muralha, mas conserva seu traçado. Veiros só mantém a cerca. O interior foi convertido em terras de cultivo, mas a vila que se desenvolveu fora dos muros reproduz seu traçado em quadrícula. A preocupação defensiva de D. Dinis não se restringiu ao Alentejo. Chaves, ponto estratégico para o controle do Norte de Portugal, recebera foro em 1258 de D. Afonso III, mas teve sua cidadela construída por D. Dinis. Como se pode verificar, em desenho de Duarte D'Armas do final do século XV, seu perímetro era retangular e suas ruas paralelas cortadas por transversais conformam quarteirões alongados que correm em direção ao rio Tâmega20 . Também no Norte, um pequeno povoado situado no estuário do Minho, onde existira remotamente um castrum romano, é transformado em praça-forte pelo mesmo rei, recebendo foro em 1284. Caminha (Fig. 5) apresenta uma planta semelhante às das vilas do Alentejo, já descritas: muralha oval com uma porta em uma das extremidades e três ruas perfeitamente paralelas cortadas por duas transversais. Como Viana do Castelo e Salvaterra de Magos, possuía dois largos, Corpo da Guarda e Matriz, ambos de formato retangular21 • Procurando impedir o cruzamento do mesmo rio, D. Dinis funda, em 1320, pouco acima de Caminha, a Vila Nova de Cerveira, trocando terras reais por «courelas» particula- res e prometendo foro, desde que se juntassem pelo menos cem vizinhos para formá-la. Sua localização excêntrica não facilitou seu desenvolvimento. Apesar de haver mudado de sítio, não passa, ainda hoje, de uma aglomeração de umas poucas ruas22 • D. Dinis inter- vém, também, em Lisboa, dando-lhe a Rua Nova, a única obra de modernização da capi- tal, anterior à reforma pombalina, da segunda metade do século XVIII. «A Rua Nova de El Rei tinha a largura fabulosa de trinta palmos, mas ainda as mais anchas não teriam mais de oito a dez.» 23 19 GASPAR, Jorge, op. cit. 20 Chaves, in Dicionário Chronográphico de Portugal Continental e Insular, de Américo Costa. Vila do Conde, 1936, vol.5; Guía de Portugal, Tds-os-Montes e Alto Douro. Lisboa, F. C. Gulbenkian, s.d.,pp. 407-14. 21 CRUZ, Maria Alfreda, Caminha. Evolução e estrutura de uma antiga vila portuária, in Finistem1, 2 (3). Lisboa, 1967. 22 L. Lúcio de Azevedo, citado por GASPAR, Jorge, op. cit., p. 208. Ver, também, Vila Nova ele Cerveira, in Guia de Portugal. Lisboa, F. C. Gulbenkian, v. 5 e BARBOSA, I., op. cit., v. 3, p. 157. 23 Alexandre Herculano citado por COSTA LOBO, A. de Souza Silva, História da Sociedade em Portugal no século XV.Lisboa, 1903, p. 123. URBANISMO DE TRAÇADO REGULAR O último exemplo de urbanismo regular deste ciclo é Sesimbra, localizada à margem de um porto natural, perto de Lisboa. Sesimbra foi tomada aos mouros por D. Afonso Henrique, mas só elevada a vila em 1323. Um levantamento de meados do século XVII, do engenheiro militar Nicolau de Langres, revela um traçado bastante regular de ruas perpen- diculares à costa, que não se perdeu, totalmente, com a expansão da vila24 • Mas o urbanismo regular medieval não acaba com os reinados de D. Afonso III e D. Dinis. Sines, situada na costa, perto de Lisboa, elevada a vila por D. Pedro I, em 1362, apresenta um traçado típico da época, com quarteirões retangulares muito alongados. A tendência geométrica manifesta-se também na expansão de algumas cidades. São exem- plos desse fenômeno a mouraria e a judiaria de Évora. Situadas fora dos muros da cidade, seus traçados regulares denunciam, segundo Jorge Gaspar, uma planificação prévia para a instalação daquelas minorias segregadas com a dominação cristã. Outro exemplo é o bair- ro de Santana, em Lisboa, anterior à criação da cerca fernandina25 • Tal como aconteceu em Vila Viçosa, também pequenas vilas ou cidades expandem-se segundo traçado regular, como o burgo que se desenvolveu em direção à capela de Santia- go, em Estremoz (Fig. 6), e o que cresceu extramuros em Veiros (Fig. 7). O mesmo se pode dizer de Moura (Fig. 8), cuja expansão segue tramas retangulares com diferentes orienta- ções. Curiosamente são todas cidades situadas no Alentejo, próximas à fronteira com a Espanha. A, vilas e cidades portuguesas medievais de padrão geométrico são praticamente con- temporâneas às «bastides» francesas e às vilas e cidades regulares espanholas de Navarra, Levante e Biscaia. Suas influências recíprocas não estão suficientemente estudadas, mas não seria por acaso que nomes como Vila Nova, Vila Real e Salvaterra em suas respectivas línguas - designam cidades novas nos três países. É preciso que se esclareça que as cidades ibéricas de traçado regular têm risco menos rígido que as «bastides» francesas coevas, o que não significa uma inferioridade. As «bastides» são cidades construídas em terras virgens. Suas equivalentes ibéricas resultam, na maioria dos casos, de reconstruções ou fusões de aldeias e, como tal, têm compromissos com núcleos preexistentes. A peste negra de 1348, provocando uma grande queda demográfica, interrompe o processo de crescimento e expansão de vilas e cidades, tanto em Portugal, quanto no resto de Europa. Mas a expansão marítima subseqüente deflagra um período de crescimento demográfico e urbanização ligado às modificações estruturais da economia portuguesa. A desorganização da sociedade rural provocaria um processo de urbanização e inchaço, transformando profundamente os núcleos urbanos existentes. Esta é uma fase de grande centralização do poder. No período que antecede a expansão marítima, Portugal viveu uma grande crise econômica, conseqüência da guerra de D. Fernando 24 A reprodução desta planta encontra-se em MATTOS, Gastão de Mello, Nicolau de Langres e a sua obra em Portugal. Lisboa, Comissão de História Militar, 1941. 25 GASPAR, J., op. cit., p. 213. 49 50 UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS com Castela, da depreciação da moeda, da desorganização da produção rural, dos reflexos da depressão económica norte-européia associada à Guerra dos Cem Anos, e da concorrência dos mercadores italianos, que dispunham de mais capital e maior acesso aos mercados europeus. Para fazer frente a este qúadro, a Coroa opta pela centralização, tanto política, quan- to económica, encampando empresas e administrando seus lucros. O grande mercador é o Estado, através dos feitores do Rei, dos donatários das ilhas e dos capitães de fortalezas, onde se fazia o escambo dos produtos africanos. Não é por acaso que a primeira grande iniciativa expansionista~ a 1onquista de Ceuta, em 1415, rica região de cereais do Norte da África26 . Sintomaticamente, um dos mais antigos e expressivos exemplos de plano regular deste ciclo é a cidade de Tomar (Fig. 9). À sombra de um castelo do século XII, entre a colina e a margem direita do Nabão, surge, no início da segunda metade do século xv, em terreno previamente drenado, uma povoação de ruas quase perfeitamente paralelas, orien- tadas de nascente a poente, com uma praça central, que substitui um quarteirão, à mar- gem do cruzamento das duas vias mais importantes. A arquitetura também é regular, como se pode observar nas ruas dos Arcos, Estaus e Rua-de-Trás. Isto não é uma coincidência. É evidente que sua construção foi precedida de um plano. Naquele período, foi governador da Ordem de Cristo, que desde um século antes tinha sua sede no castelo, o infante D. Henrique, o grande empreendedor da expansão marítima. Foi a Ordem que lhe forneceu os recursos materiais e humanos para realizar as primeiras aventuras náuticas. De Tomar e vizinhanças sairiam não só os primeiros navegantes como os primeiros colonos para as Ilhas Atlânticas. Durante os quarenta anos de gestão da Ordem, o Infante reformou a cidadela e construiu ou ampliou muitos edifícios para os cavaleiros, cujo número crescia a cada ano. A nova vila deve ter sido projetada para acolher uma parte dos habitantes leigos que foram deslocados da cidadela e, por outra parte, abrigar populações que vinham se estabelecer sob a proteção da crescente ordem militar27 • As novas atividades ligadas ao tráfico marítimo refletir-se-iam também em Lisboa que, no final do mesmo século, já não cabia dentro da cerca fernandina. Em dezembro de 1500, D. Manuel ordena o corte das oliveiras intramuros para expansão da cidade e, na beira do Tejo, conquistava-se, a cada dia, mais espaço ao rio. Antevendo oportunidades de negócios, dois particulares, Bartolomeu de Andrade e Lopo de Atouguia, um senhor do domínio direto, o outro, do domínio útil das herdades de Bela Vista e Santa Catalina, vizinhas ao porto, as loteiam, a partir de 1513, segundo um plano de ruas ortogonais, dando origem aos atuais bairros Alto de São Roque, Santa Catalina e das Chagas (Fig. 1 O). Seus moradores são, em grande parte, a próspera gente do mar: mestres de naus, pilotos, cartógrafos e marinheiros, que ali constroem a igreja de sua confraria, em 1542. Os que compravam um terreno eram obrigados a construir casa de pedra e cal, ocupando pelo "' SARAIVA, J. H., op. cit., pp. 139-42. 27 SANTOS SIMÕES, J. M., Tomar ea suajudaria, Tomar, Museu Luso-Hebraico, 1943, pp. 28-32. URBANISMO DE TRAÇADO REGULAR menos a metade do mesmo, dentro de três anos. Desta maneira, os novos bairros são ocupados em poucas décadas28 . Estas são, tipicamente, intervenções de expansão urbana, e o traçado geométrico respondia a uma preocupação de maximização da ocupação do solo. Os quarteirões, ainda retangulares, já tendem para o quadrado e os largos, simples expansões ou convergências de ruas, no período medieval, dão lugar a praças no espírito do Renascimento. Em Braga, o arcebispo D. Diogo de Souza, vindo diretamente da Roma de Júlio II, em 1505, reforma completamente a velha cidade medieval, abrindo novas ruas, dentro e fora dos muros, inclusive a ampla Alameda de Santana. Constrói novas portas, fontes e templos e enche a cidade de esculturas, ao gosto da Renascença29 . Ilhas Atlânticas e África Desde a Antigüidade, a colonização tem sido um campo fértil para a criação de cidades novas. Portugalnão seria uma exceção. A aventura ultramarir:a substitui e continua o esforço de colonização interna, que vinha desde os primeiros anos da Monarquia Portuguesa, quan- do os traçados geométricos foram utilizados para racionalizar o processo de colonização. Mas a aplicação deste modelo não se faz de uma forma universal, no ultramar. Em alguns conti- nentes seu emprego é amplo, em outros, restringe-se a poucos exemplos. A expansão portuguesa, segundo a maioria dos historiadores, começa com a conquis- ta de Ceuta (1415), prossegue com a ocupação das Ilhas Atlânticas e o reconhecimento da costa africana, com observações geográficas, identificação de recursos naturais e busca de uma rota marítima que conduzisse ao lendário reino do Prestes João, ou Etiópia, para a formação de uma aliança contra os muçulmanos. A primeira cidade nova deste ciclo surge no arquipélago dos Açores. Em 1460, a Coroa envia à Ilha Terceira Álvaro Martins Homem, com a missão de ajudar ao primeiro donatário, o flamengo Jácome de Bruges, na colonização do arquipélago. Martins Ho- mem escolhe e drena o sítio da cidade de Angra do Heroísmo, traça as ruas e constrói os primeiros edifícios. Com o misterioso desaparecimento de Bruges, alguns anos mais tarde, a ilha é dividida em duas capitanias, sendo doada a primeira, Angra, ao marinheiro João Vaz Corte Real, e a segunda, Praia, a Álvaro Martins Homem. Corte Real prossegue a urbanização de Angra do Heroísmo, seguindo um plano de ruas perfeitamente paralelas, que correm para o mar, com transversais ortogonais. Constrói sua primeira fortificação, o Castelo de São Luís, o Hospital do Espírito Santo, a Alfândega e o Convento Franciscano30• 28 CASTILHO, Júlio de, Lisboa Antiga, o Bairro Alto, 3." ed., Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 1954. 29 Braga, in Guia de Portugal, Entre Douro e Minho, 2.a parte. Lisboa, F. C. Gulbenkian, 1965, v. 4, p. 792. 30 GYGAX, Katharina Elisabeth, Contribuição para a Geografia de Ponta Delgada, Angra do Heroísmo e Hosta (Açores), in Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira (27/28). Angra do Heroísmo, 1977, 51 52 UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS Com O estabelecimento da rota marítima para as Índias, a pequena vila expande-se rapidamente como ponto de apoio às frotas de retorno do Oriente e centro de trocas comerciais. Seu plano regular, registrado em 1589 pelo holandês Jan Huyghen van Linshoten e publicado seis anos mais tarde, mantém-se até hoje (Fig. 11). Convém lembrar que esta experiência estava intimamente relacionada com aquela de Tomar. D. Henrique, o Nave- gador, é, em última instância, o responsável pelo descobrimento e colonização dos Açores. Seus colonos são, na maioria, gente de Tomar e vizinhança. Somente a partir de 1-Zf4 l começaria a exploração da África Negra, com o tráfico de mão-de-obra escrava, complementado pelo de ouro da Guiné e pelo marfim. Os portugueses não tinham competidores na África e as trocas daqueles produtos na costa da Guiné, Congo e Moçambique por sal, tecidos e, mais tarde, fumo e cachaça do Brasil, fazia-se pacificamente com os chefes locais, intermediários do tráfico negreiro. Não se opta pela colonização, senão pela criação de pequenas fortalezas e feitorias para a troca de produtos e apoio à navegação. A rigor, Portugal só começaria a colonizar a África Negra depois que perde o Brasil. É isto o que explica por que não aparecem, também ali, cidades regulares, nos três primeiros séculos. Faltava a decisão política, a vontade ou as condições para colonizar. No Norte da África a situação não é a mesma. Os conflitos crescentes com os árabes exigem uma atitude diferente. É justamente ali que vamos encontrar o único exemplo de cidade portuguesa, com ruas largas e retas, nos três primeiros séculos de presença portu- guesa na África. Trata-se da praça-forte de Mazagão. Seu traçado, ainda que não completa- mente reticulado, deve-se a uma intervenção da Coroa visando sua modernização e refor- ço, um quarto de século depois de sua fundação. Devido às crescentes dificuldades de manter os pequenos estabelecimentos fundados na costa marroquina, D. João III decide concentrar suas forças no pequeno reduro funda- do em 1514 por Francisco de Arruda31 • Para este fim solicita ao imperador Carlos V um arquiteto à altura do empreendimento e este põe à sua disposição o italiano Benedetto di Ravena. Participam também do projeto os arquitetos Miguel de Arruda e Diogo de Torralva, num verdadeiro trabalho de equipe32 • As obras são executadas pelo mestre de obras João de Castilho, nos anos de 1541 e 1542, e consistiram em criar uma nova muralha quadrangular, com baluartes nos ângulos, mantendo o velho castelo no centro. Três lados da fortificação eram contornados por um fosso e o quarto abria-se para o mar, dentro da técnica italiana mais avançada de defesa contra as novas armas de fogo. Tratava-se de uma fortificação muito diferente das anteriormente construídas pelos portugueses no Norte da África e, inclusive, na Metrópole (Fig. 12). Além de ampliar o pp. 170-4. Sobre sua arquitetura, ver BOTTINEAU, lves, earchitecture auxAçores, du manuelin au baroque, in Colóquio-Artes, Lisboa, F. C. Gulbenkian (35), 1977. li GASPAR, Jorge, A propósito da originalidade da cidade muçulmana, in Finisterra 3 (5): 19-31. Lisboa, Centro de Estudos Geográficos, 1968. 32 MOREIRA, Rafael, A arquitetura militar do Renascimento em Portugal -A introdução da arte da Renascença na Península Ibérica, in Actas do Congresso Iutenutcional do IV Centenário da morte de João Ruão. Coimbra, Epartur, 1981, pp. 292-3. URBANISMO DE TRAÇADO REGULAR recinto fortificado, Benedetto di Ravena tratou de alargar e retificar as antigas ruas, mas fiel ao traçado preexistente, salvo na parte leste, onde apresenta maior regularidade. A despeito de seu avançado sistema defensivo, sua manutenção tornou-se insustentável. Isolada num meio hostil e longe da Metrópole, foi abandonada pelos lusos em 1769, depois de uma investida dos marroquinos. No ano seguinte, toda sua população, aproximadamente 340 famílias, foi transferida para a Amazónia brasileira, onde se constrói uma cidade nova, que recebe o nome de Nova Mazagão (Fig. 13). A velha Mazagão permaneceu abandonada meio século e uma vez repovoada pelos mouros perde seu caráter de cidade ocidental, para transformar-se numa típica cidade muçulmana de ruas sem saída, negando a famosa lei da persistência do plano. Do antigo traçado resta somente a via que ligava a Porta da Terra à Porta do Mar33. O Império Oriental Nas Ilhas Atlânticas, na África e no Brasil, que numa primeira etapa serviam fundamen- talmente como apoio à rota para a Índia e onde era inexistente ou irrelevante a resistência local, as vilas e cidades desenvolvem-se espontaneamente e só raramente são de traçado regular. No Oriente, para onde a Coroa dirige todo o esforço de conquista e colonização, o padrão geomé- trico é praticamente a norma. Chegar à Índia passa a ser um objetivo nacional, a partir de 1474, quando o herdeiro da Coroa, o futuro D. João II, assume o comando das navegações. Efetivamente, em 1488, Bartolomeu Dias contorna o cabo da Boa Esperança, descobrindo a rota marítima para a Índia e pondo em cheque o tradicional «caminho da seda», dominado pelos muçulmanos, que ligava o Oriente aos portos do mar Negro ou diretamente a Constantinopla. Pelo tratado de Alcázovas, dividiu-se o Atlântico em duas partes. Acima do paralelo das Canárias para os espanhóis; abaixo, para os lusos, o que garantia a Portugal o monopólio sobre a rota para o Oriente, de onde vinham as custosas especiarias. A intenção de D. João II de repetir a experiência africana, travando amizade com os chefes locais e desenvolvendo um comércio mutuamente proveitoso, não funcionou. Os mercadores árabes tinham profundas relações com os príncipes locais e as hostilidades se estabeleceram desde o início, na medida em que os árabes
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