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A feminilidade aracnídea Tamires Reis Chagas[footnoteRef:1] [1: Licencianda do 5° período de Letras no Instituto Federal Fluminense.] O presente trabalho tem por objetivo analisar do ponto de vista da semiótica o uso da imagem de aranhas como forma de representação feminina no filme O Homem Duplicado (Enemy, 2013), baseado no livro homônimo de José Saramago. A escolha do filme se deu pela alta carga simbólica que este traz, possuindo elementos suficientes para um trabalho mais longo. Entretanto, limitaremos a análise ao símbolo aranha. Para isso serão utilizados como referenciais teóricos os textos de Pereira (2003) e Beraldo (2017). Em O Homem Duplicado somos apresentados ao personagem Adam Bell, um professor universitário de história que, apesar de seu relacionamento com a personagem Mary, leva uma vida solitária e triste. Sua aura depressiva é o que leva um colega de trabalho a recomendar um filme de comédia, onde Adam acaba por encontrar um ator secundário que é idêntico a ele, levando-o a buscar descobrir quem é o homem. Anthony Claire é quem vemos nas primeiras cenas do filme, em um bordel; casado com Helen, que está grávida de 6 meses, Anthony é um ator com a carreira fracassada que, apesar da semelhança física, demonstra possuir uma personalidade oposta a de Adam, seu duplo, o que leva o professor a querer fugir dele após o encontro em que é confirmada a semelhança. Porém, a personalidade obscura e sexual de Anthony o impele a seguir Adam e, posteriormente, sua namorada, Mary, por quem se interessa. Obrigando Adam a emprestar suas roupas e seu carro, Anthony sai com Mary para o que chama de “uma escapada romântica”, onde ela, ao perceber a marca de aliança no dedo do ator, se irrita e o obriga a levá-la de volta para casa. Durante a viagem de carro, uma discussão faz com que Anthony perca o controle do carro, causando um acidente que mata ambos. Enquanto isso, Adam está no apartamento de Anthony com Helen, com quem passa a noite. Na manhã seguinte, uma notícia na rádio sobre o acidente parece deixar Adam confortável para assumir o lugar de Anthony, vestindo suas roupas e andando pelo apartamento. Na cena final, Adam faz uma pergunta a Helen, que não responde, fazendo com que ele se dirija ao cômodo onde ela está e encontre uma tarântula gigante acuada num canto. A imagem da aranha é recorrente ao longo de todo filme e, introduzido o enredo, será nosso objeto principal de análise. Mas antes, carece desvendar a questão do duplo. Há pistas deixadas nos diálogos que permitem ao espectador inferir que Adam e Anthony são a mesma pessoa, talvez um caso psicológico de dupla personalidade ou apenas uma representação gráfica da dualidade do ser humano em conflito. Ainda assim, não deixaremos em fechado as interpretações dos signos que serão apresentados a seguir, uma vez que “um significante tem mais de um significado possível” (PEREIRA, 2003), de acordo com cada intérprete. Na conversa de Adam com sua mãe, ela diz a ele que “ devia esquecer essa fantasia de ser um ator de terceira” (1:00:46) e em seguida o manda comer os mirtilos, os quais Adam diz não gostar e Anthony, em cena anterior, diz para esposa que precisa de mirtilos orgânicos pois, segundo uma revista, são melhores do que os convencionais (43:25). A fala da mãe causa estranheza a Adam, que reage da mesma forma quando Helen pergunta se ele teve um dia bom na escola (1:19:14), pois são assuntos que misturam essas realidades separadas de Adam e Anthony. Pereira define signo como aquilo que “representa ou significa alguma coisa que é exterior a ele” (2003, p. 45). Assim, foi escolhida a aranha como signo principal a ser analisado, por ser um objeto que causa diversos efeitos no telespectador, aqui tratado como intérprete[footnoteRef:2]. [2: “(...) os signos só existem onde há inteligência presente. Onde existem seres capazes de atribuir significados às coisas, interpretar a realidade, produzir sentido.” PEREIRA, 2003, pág. 49.] Por mais psicodélico que O Homem Duplicado possa parecer, em verdade não é um filme de fantasia, onde a presença de aranhas gigantes se justifica simplesmente por uma aura mágica. Assim, podemos identificar no símbolo aranha um signo secundário, definido por Pereira (2003) como “coisas que normalmente não são signos, mas circunstancialmente adquirem um valor de representação para algum intérprete” (p. 51). Primariamente, a aranha é um signo de animal, mas no filme é utilizado para representar as mulheres da vida de Adam/Anthony, funcionando como analogia a características que mulher e animal teriam, como inteligência e elegância, mas também a de entrelaço e sufocamento (BERALDO, 2017, p. 69). Essa sensação é reforçada pelas cores presentes no filme, um tom amarelo oliva que remete a poluição da cidade grande e dá a sensação de repressão, e também pelas teias de aranha representadas em objetos do cotidiano, como fios e no vidro do carro, simbolizando a rede em que está envolvido o protagonista. As personalidades de Adam e Anthony ajudam a identificar a visão misógina que se tem sobre as mulheres; assim como o protagonista, elas são dicotômicas, ou seja, divididas em duas partes, sendo relacionadas ao sexo e prazer ou dominação e sufocamento. No primeiro grupo está Mary, a namorada de Adam, que, na verdade, não passa de uma amante escondida em um apartamento alugado. A relação, com poucos diálogos e muitos momentos sexuais, representa o “instinto” do qual o protagonista não consegue fugir para cumprir com as obrigações do casamento, sendo levado a criar uma nova identidade para vivê-lo. Nas cenas iniciais, em que Anthony está em um bordel, podemos ver uma prostituta esmagar uma aranha com um sapato de salto. Enquanto a prostituta representa esse impulso sexual que não pode ser dominado, a aranha esmagada é a outra parte da representação de mulher, aquela relacionada à repressão, a qual deve ser destruída. Interessante notar que nessa sequência, o personagem apoia as mãos no rosto como quem molda ou põe uma máscara, reforçando, assim, a ideia de que se trata da mesma pessoa, porém alternando personalidades para equilibrar suas obrigações e vontades. Outra apresentação da aranha relacionada à sexualidade ocorre no sonho que Adam tem na noite anterior ao encontro com Anthony. Nele, o personagem encontra uma mulher nua com cabeça de aranha, que passa por ele em um corredor de hotel. A forma híbrida representa os conceitos de mulher com os quais o protagonista lida. O corpo nu é atraente, adequado aos padrões estéticos de nossa sociedade, e a figura se move de maneira sedutora. Já a cabeça é macabra, pouco visível, com enormes presas afiadas. A mulher representa prazer e perigo (BERALDO, 2017, p. 71). Essa visão de mulher como objeto sexual ajuda a entender o fim destinado a Mary. Quando se recusa ao sexo, a amante deixa de ser vista como a mulher “sexualizada” e passa a representar ameaça, devendo ser, assim como a aranha do início do filme, esmagada e morta. Entretanto, as principais ameaças para Adam/Anthony são sua mãe e sua esposa. A mãe, apesar de aparecer graficamente apenas uma vez ao longo de filme, é a que possui maior poder. Sua conversa com o filho possui tom de ordenação mais do que instrução, dizendo o que ele deve fazer em relação à carreira, ao casamento, ao duplo e até a alimentação, com a ordem para que coma mirtilos. Seguida a conversa, está a imagem de uma aranha gigantesca caminhando pela cidade, representando a relação de domínio e poder que a mãe possui sobre o filho. Já sua esposa chega a aparecer, de fato, transformada em aranha, na cena final. Apesar de seu tamanho, diretamente relacionado o tanto de poder que exerce sobre Adam/Anthony, a aranha fica recuada em um canto, assustada com a visão do marido. O motivo é a visão de Anthony, o marido que mente e trai, que retorna quando Adam encontra a chave do exclusivo bordel do início do filme. Há diversos momentos em que fica clara a crise no casamento, em especial a conversa que o casal tem após a ligação de Adam (34:03), em que Helen desconfiae pergunta se Anthony está “saindo com ela de novo”. Assim, o protagonista se mostra um homem frustrado, que sente sua liberdade prejudicada pelas “leis” do casamento, que o censura por se envolver sexualmente por outras mulheres (BERALDO, 2017, p. 51). Assim como uma aranha, Helen o aprisiona na “teia” do casamento. A ideia de dominação não está presente apenas na figura das aranhas. O tema das aulas de Adam sempre gira em torno disso, sendo sobre regimes ditatoriais. Em uma delas, o professor diz: “Controle. Tudo se resume ao controle. Toda ditadura tem uma obsessão. E é esta. [...] Eles censuram qualquer meio de expressão individual. E é importante lembrar, esse é um padrão que se repete ao longo da história”. Em outra cena, ele continua: “Foi Hegel quem disse que todos os grandes eventos mundiais acontecem duas vezes, e depois Karl Marx completou, na primeira tem-se uma tragédia e na segunda uma farsa”. Há, também, a obra de arte pela qual Adam caminha ao lado após a conversa sobre o filme com o colega de trabalho (10:56), onde são representados homens em postura de referência que nos remete a símbolos históricos de repressão, totalitarismo e autoridade. Há uma notória analogia entre o tema das aulas e o tema do filme como um todo; o protagonista vive sob uma ditadura que reprime sua “expressão individual”, desde se relacionar sexualmente com diversas parceiras à seguir a carreira de ator. E o personagem sabe que não há escapatória, pois o “padrão se repete”: enquanto Helen é a tragédia, Mary é a farsa (BERALDO, 2017, p. 52). Com todo o exposto, podemos identificar o signo aranha com o significado (o aspecto inteligível) de sexualidade e/ou domínio, enquanto o referente (o objeto) é o signo mulher. Também se trata de um signo icônico, definido por Pereira como as semelhanças que se estabelecem entre signo e referente (2003, p. 53), em específico das qualidades que signo e objeto possuem. Desse modo, tanto aranhas quanto mulheres se relacionam pelos sentimentos que despertam no intérprete, não sendo uma representação fiel uma da outra. No filme, a aranha funciona como um interpretante de mulher, uma vez que para Pereira (2003) interpretante é “um outro signo, uma outra representação (equivalente) do mesmo referente” (p. 65). A ideia subjetiva que o filme pretende transmitir, do domínio e controle exercidos pelas mulheres na vida dos homens, se mostra possível por ter o interpretante aranha, do contrário, a aura de mistério ficaria comprometida, diminuindo muito da motivação do protagonista para se “duplicar”. Mesmo com todo o caminho trilhado tendo sido feito para confirmar a teoria defendida, o grau de iconicidade do signo aranha é baixíssimo. Pode-se notar essa característica por ser O Homem Duplicado um filme considerado confuso, causando dúvidas em muitos que o assistem. Os elementos constituintes, em especial o signo escolhido para esse trabalho, possuem cargas representativas altas, porém, distantes do convencional, tornando o grau de semelhança entre o significante e o referente do signo baixo (PEREIRA, 2003, p. 61). Por fim, há a relação paradigmática entre mulher e aranha. Como apontado por Pereira (2003, p. 70), trata-se uma associação mental que criamos com os aspectos que conhecemos, expostos nesse trabalho como a característica de envolvimento e controle que se associam a esses signos. Por tanto, a explicação aqui aplicada, acaba por criar uma relação sintagmática entre os signos. Referências PEREIRA, José Haroldo. Curso básico de teoria da comunicação. RJ: Quartet/UniverCidade, 2° ed. 2003. Pág. 39 - 71. BERALDO, Jana Portela. O homem duplicado e seus outros: intertextualidades em José Saramago e Denis Villeneuve. Dissertação de mestrado - UNB. Brasília, 2017. Disponível em: <https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/24282/1/2017_Jan aPortelaBeraldo.pdf>. Acesso em: 19 nov 2019. Enemy (“O Homem Duplicado”). Direção de Denis Villeneuve. Canadá-Espanha: Imagem Filmes, 2013. (93 min.). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v =Kr_w5gGqkrs&t=226s>. Acesso em: 19 nov. 2019. a questão dos duplos -caso psicológico de dupla personalidade ou apenas uma representação gráfica da dualidade do ser humano em conflito -“devia esquecer essa fantasia de ser um ator de terceira” (1:00:46) e em seguida o manda comer os mirtilos, os quais Adam diz não gostar e Anthony sim -Helen pergunta se ele teve um dia bom na escola (1:19:14) signo aranha:objeto que causa diversos efeitos no telespectador aquilo que “representa ou significa alguma coisa que é exterior a ele” intérprete: telespectador os signos só existem onde há inteligência presente. Onde existem seres capazes de atribuir significados às coisas, interpretar a realidade, produzir sentido signo secundário não é um filme de fantasia a presença de aranhas gigantes não se justifica por uma aura mágica signo de animal, mas no filme são as mulheres da vida de Adam/Anthony, analogia a características que mulher e animal teriam inteligência e elegância entrelaço e sufocamento sensação reforçada pelas cores teias de aranha no cotidiano, rede em que está envolvido o protagonista visão misógina das mulheres são dicotômicas, divididas em duas partes sexo e prazer dominação e sufocamento. amante escondida em um apartamento alugado poucos diálogos e muitos momentos sexuais “instinto” do qual o protagonista não consegue fugir cria nova identidade para vivê-lo prostituta: impulso sexual que não pode ser dominado aranha esmagada: repressão,deve ser destruída. mãos no rosto: máscara, mesma pessoa, alternando personalidades equilibrar suas obrigações e vontades. forma híbrida corpo nu é atraente, adequado aos padrões estéticos de nossa sociedade, e a figura se move de maneira sedutora. cabeça é macabra, pouco visível, com enormes presas afiadas. A mulher representa prazer e perigo fim destinado a Mary recusa ao sexo deixa de ser vista como a mulher “sexualizada” passa a representar ameaça deve ser esmagada e morta mãe maior poder tom de ordenação mais do que instrução, o que deve fazer em relação à carreira, ao casamento, ao duplo e até a alimentação aranha gigantesca caminhando pela cidade relação de domínio e poder que a mãe possui sobre o filho esposa chega a aparecer, de fato, transformada em aranha, na cena final. Apesar de seu tamanho relacionado ao tanto de poder que exerce sobre Adam/Anthony o marido que mente e trai, que retorna quando Adam encontra a chave do bordel crise no casamento “saindo com ela de novo” liberdade prejudicada pelas “leis” do casamento censura por se envolver sexualmente por outras mulheres Helen o aprisiona na “teia” do casamento. dominação tema das aulas sobre regimes ditatoriais fala do filme obra de arte pela qual Adam caminha ao lado homens em postura de referência remete a símbolos históricos de repressão, totalitarismo e autoridade analogia entre o tema das aulas e o tema do filme vive sob uma ditadura reprime sua “expressão individual” se relacionar sexualmente com diversas parceiras seguir a carreira de ator não há escapatória, pois o “padrão se repete” Helen é a tragédia, Mary é a farsa conclusão - signo aranha com o significado (o aspecto inteligível) de sexualidade e/ou domínio -referente (o objeto) é o signo mulher -signo icônico, são as semelhanças que se estabelecem entre signo e referente, em específico das qualidades que signo e objeto possuem os signos aranhas e mulheres se relacionam pelas sentimentos que despertam no intérprete, não sendo uma representação fiel uma da outra -interpretante é “um outro signo, uma outra representação (equivalente) do mesmo referente”, aranha interpretante de mulher A ideia subjetiva de domínio e controle exercidos pelas mulheres na vida dos homens, se mostra possível por ter o interpretantearanha, do contrário, a aura de mistério ficaria comprometida, diminuindo muito da motivação do protagonista para se “duplicar” -grau de iconicidade do signo aranha é baixíssimo filme considerado confuso cargas representativas altas, porém, distantes do convencional, tornando o grau de semelhança entre o significante e o referente do signo baixo -relação paradigmática: uma associação mental que criamos com os aspectos que conhecemos característica de envolvimento e controle que se associam a aranhas e mulheres
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