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FLAP INTERNACIONAL 65 FLAP INTERNACIONAL 64 A Ilha Grande é vista como um local turístico de rara beleza onde não existem nem mesmo pistas de pouso para aviões. Mas há 60 anos foi palco de um pouso forçado de um DC-6 que poderia ter se transformado numa tragédia. O POUSO HEROICO DE UM DC-6 NA ILHA GRANDE Texto: Mario Sampaio Ilu st ra çã o: G IN O M AR C O M IN I FLAP INTERNACIONAL 66 FLAP INTERNACIONAL 67 No dia 10 de junho de 1958 um quadri- motor Douglas DC-6 da Aerolineas Argentinas fez um pouso forçado no mar em frente à Ilha Grande, no litoral sul do Estado do Rio de Ja- neiro. O comandante R. Merelle, após a pane sucessiva de dois motores (um dos quais não pôde ser totalmente embandeirado), perdeu altitude rapidamente e não teve alternativa se- não amerissar o avião. Felizmente os passageiros puderam ser evacuados sem problemas pelos tripulantes, apesar de alguns apresentarem ferimentos e de a maioria estar profundamente aconteciam com mais frequência. Consideran- do-se apenas aviões que serviam linhas inter- nacionais passando pelo Brasil, entre agosto de 1957 e junho de 1958 três pousaram no mar. Inicialmente, um L-1049 G Super Constellation (PP-VDA) da Varig sem passageiros fez um pouso de emergência no mar em 16 de agosto de 1957, em frente a Puerto Plata, República Dominicana, tendo falecido um comissário. Em 4 de novembro de 1957, um Douglas DC-4 da Real (PP-AXS) decolou de São Paulo e, após um forte incêndio num motor, pousou no mar com 38 pessoas a bordo em frente a São Sebastião (SP), sem vítimas. Finalmente em 10 de junho de 1958 houve o pouso do DC-6 ao largo da Ilha Grande, também com passageiros e feliz- mente sem vítimas. O DC-6 havia decolado do Rio aproxi- madamente às 10h50 e rumou para Buenos Aires, como parte de uma viagem iniciada em Amsterdã e que fi zera escalas em Londres, Paris, Madri, Lisboa, Dacar e Natal. Cerca de uma hora depois (segundo o comandante), ao passar pelo través de Ubatuba, litoral norte de São Paulo, o avião estava a 16.000 pés de altitude e a 480 quilômetros/hora, com a tripulação composta do comandante Rogelio E. Merelle (36 anos), co- piloto Ricardo Baldan, mecânico de voo Ramon Guarino, radioperador José Militano, comissário T. Bone e comissária Dora Saenz. Subitamente, na altitude de cruzeiro, hou- ve um disparo de hélice do motor número 4. O aumento de rotações para 3.500 RPM foi sentido pelos passageiros, mas o comandante controlou bem a situação, conseguindo em pou- cos instantes desligar o motor e embandeirar a hélice. A tripulação enviou uma mensagem de rádio para o Rio informando o problema e imediatamente iniciou o retorno ao Aeroporto do Galeão, que se encontrava há menos de 200 quilômetros de distância. Mas cinco minutos depois o motor número 2 perdeu potência e não foi possível embandeirá-lo inteiramente. A perda de altitude, que começara com uma razão de 500 pés/minuto, tornou-se muito mais abalada psicologicamente. O feito do coman- dante Merelle comprovou sem dúvida alto profi ssionalismo e mereceu destaque limitado da imprensa na época. Em 15 de janeiro de 2009, o comandante Chesley B. Sullemberger (Sully), após choque com pássaros com um A320, perdeu potência em duas turbinas e conseguiu pousar em pleno Rio Hudson, em frente a Nova Iorque, e todos a bordo puderam sobreviver com traumas leves. O comandante Sully se tornou famoso por sua ação, foi muito reconhecido profi ssionalmente e hoje integra o quadro do NTSB como consultor de segurança. Mas na época dos aviões com motores a pistão as máquinas voadoras eram muito menos confi áveis e as panes eram bem mais constantes. Pousos de emergência no mar Antes da chegada dos jatos, o DC-6 era o principal equipamento da Aerolineas Argentinas para voos de longo curso. Esta foto mostra como era a tripulação típica para voos desse quadrimotor, bem mais numerosa na época, pois, além do piloto e copiloto de reserva, tinha o navegador e o mecânico de voo. Embarque de passageiros no DC-6 da Aerolineas acidentado, ainda com a pintura antiga. Este mapa original da Aerolineas Argentinas dos anos 1950 mostra a rota a ser percorrida pelo avião. FLAP INTERNACIONAL 70 FLAP INTERNACIONAL 68 FLAP INTERNACIONAL 69 acentuada, pois o motor não embandeirado agia como um freio, de acordo com relato do comandante. Na opinião dele, a situação se equiparava a um voo monomotor. Ficou claro que seria impossível alcançar o Galeão. Os con- tatos via rádio haviam sugerido um pouso na Base Aérea de Santa Cruz, a pista pavimentada mais próxima da aeronave. A cerca de 40 quilômetros da Ilha Gran- de, a velocidade do DC-6 diminuíra para 230 quilômetros/hora e a Restinga da Marambaia podia ser vista, mas ela parecia um ponto longe demais para ser atingido. E a Base de Santa Cruz estava defi nitivamente fora do alcance da aeronave, gravemente avariada. O LV-ADV, com dois motores em pane e um sem estar bem embandeirado, era mantido no ar com difi culdade. Foi passado mais um rádio pelo avião, desta vez a 15 milhas da Ilha Gran- de, informando que devido à impossibilidade de alcançar uma pista seria feita uma ameris- sagem, isto é, um pouso no mar. A pedido do comandante, os comissários deram as instru- ções de segurança aos passageiros e todos se prepararam para o choque com o oceano, de consequências imprevisíveis. Naquele momento uma das preocupações principais do coman- dante, além de controlar o DC-6, era transmitir calma para os passageiros através de ordens precisas. Eles se encontravam naturalmente muito temerosos diante da iminência de um pouso no mar. Apesar de estar agora próximo da Ilha Grande, não seria possível tentar um pouso de emergência numa das praias. A ilha tem uma topografi a acidentada, com montanhas de até 1.030 metros de altitude, e as praias existentes são de curta extensão, têm faixa de areia estrei- ta e sempre morros de cerca de 50 metros de altura nas extremidades. Na verdade, a largura da areia era em geral menor que a envergadura do DC-6 (35,8 metros). Uma aterrissagem numa praia nessas condições era impossível e a opção de Merelle de amerissar era a mais correta para aquele momento. E o melhor era escolher a parte externa da ilha, de acesso mais fácil para o avião no rumo em que ele vinha. O dia estava claro e o mar estava calmo, aumentando as chances de sucesso. No fi m do voo o avião vinha a cerca de 150 quilômetros/hora, quando o comandante baixou os fl aps, colocou o DC-6 em proa quase paralela à praia do Sul e fez uma aproximação final. A aeronave avançou voando rasante sobre a água, bateu no mar pela primeira vez, quicou devido à velocidade, sofreu um segundo impacto bem mais forte e o terceiro solavanco indicou que o avião tocara de novo a superfície líquida e estava agora deslizando e perdendo aceleração. O LV-ADV correu uma distância relativamente curta sobre as pequenas vagas e fi nalmente parou com a asa esquerda sobre a faixa de areia da praia do Sul e a direita sobre uma parte rasa do mar azul da Ilha Grande. Uma posição quase perfeita para a saída de todos. 7068706870 O ADV foi o primeiro a utilizar o novo esquema de pintura da Aerolineas Argentinas. Um folheto promocional da Aerolineas Argentinas por ocasião da introdução desses aviões em sua rota. O DC-6 possuía camas escamoteáveis na cabine traseira. Os DC-6 da Aerolineas tinham no início serviço de primeira classe como mostrado na foto. Os jornais brasileiros e argentinos da época noticiaram com grande destaque esse acidente. FLAP INTERNACIONAL 70 A emergência até ali não tinha grandes contratempos, mas o DC-6, ao tocar no mar, estourara os radiadores de óleo colocados sob as carenagens dos motores, o líquido em alta temperatura se espalhou e iniciou um incêndio nos motores 3 e 4, logo seguido nos outros dois na asa esquerda. Os comissários abriram a porta principal e chefi aram a saída dos passageiros. E, como a portaestava virada para o lado da areia e a distância para o solo sem trem de pouso era de cerca de 1 metro, foi relativamente fácil evacuar o avião. Por outro lado, a profundidade do mar era muito pequena e foi possível sair pulando sobre alguns centímetros de água salgada. O comandante escapou pouco depois por uma das janelas de emergência, também do lado esquerdo. Mas o estado de nervos da maioria dos passageiros não era bom, pois os momentos de medo, apesar de curtos, haviam sido muito intensos. E havia alguns com escoriações, cortes e fraturas. Os 16 passageiros e seis tripulantes aban- donaram o avião antes que o fogo se alastrasse muito. Todos já haviam se afastado cerca de 200 metros quando os tanques de combustível foram atingidos e houve uma primeira forte explosão, seguida de outras menos intensas. O fogo e as explosões destruíram a fuse- lagem, restando apenas uma parte pequena da cabine de comando e do nariz, a cauda quase inteira e alguns metais retorcidos. A asa direita (dos motores 3 e 4) foi consumida pelo fogo apesar de estar quase toda sobre o mar. Enquanto do lado direito, apenas a parte externa e a ponta da asa foram poupadas pelo incêndio. Mas visto de cima era possível reco- nhecer um DC-6. O comandante, caminhando pela praia, de- senhou diversas vezes as letras SOS para chamar a atenção do socorro. Apesar de ter passado o perigo, os passageiros continuavam muito ner- vosos. As perdas tinham sido apenas materiais (incluindo bagagens, joias e até o projeto de compra de um avião militar) e diante do suce- dido eram pequenas, mas o susto fora muito grande. Poucos minutos depois um avião da Pan American localizou e sobrevoou os restos do LV-ADV e passou um rádio sobre a localização, informando que o mesmo se encontrava numa praia e não no mar, como se pensava após a úl- tima comunicação do DC-6. Dois T-6 e um C-45 da FAB chegaram quase imediatamente ao lugar do sinistro e este último lançou uma mensagem informando que a ajuda estava a caminho. Um C-47 que viera carregado de salva-vidas chegou minutos depois, sem ser necessário lançar sua ajuda já que todos estavam em local seco. A Base Aérea de Santa Cruz, que se man- tivera em contato com o DC-6, agora estava ciente do local exato em que se encontravam passageiros e tripulantes e enviou três helicóp- teros do Serviço de Salvamento com ofi ciais, trou grande efi ciência e solidariedade. No dia seguinte o comandante, já bastante descontraído, deu entrevista à imprensa num hotel de Copacabana, contando detalhes do ocorrido. E em seguida os passageiros e tripu- lantes foram levados do Rio para Buenos Aires num DC-4 especialmente enviado pela Aeroli- neas. Ao chegarem a seu destino, tiveram uma grande recepção no aeroporto por parte da empresa aérea, parentes e da imprensa. Técnicos da FAB e depois da Aerolineas examinaram os destroços para encontrar indí- cios das panes ocorridas que permitissem uma investigação mais apurada do acidente. E dois dias depois um jornal do Rio informou que o avião trazia de Londres isótopos radioativos e que toda a área do acidente fora isolada porque estaria contaminada por radiação. Os radioisó- topos de uso medicinal foram recuperados sem maiores problemas por técnicos da FAB e foram feitos exames sobre radioatividade do local, que deram resultados negativos. E foi explicado que a área havia sido isolada simplesmente para im- pedir que curiosos desfi zessem a cena do pouso forçado e eventualmente roubassem peças (o que realmente ocorreu em larga escala) que poderiam auxiliar as investigações. E a matéria jornalística sobre a possível radioatividade do local foi desmentida em sua totalidade pelas au- toridades. Os restos calcinados do avião na Ilha Grande foram em parte retirados por técnicos e os metais restantes foram levados como suvenir por moradores ou corroídos pela maresia. O DC-6 LV-ADV tinha cerca de dez anos de uso quando ocorreu o acidente (entregue em 2 de setembro de 1948) e foi o quinto avião recebido como parte de uma encomenda de seis feita pela Flota Aérea Mercante Argentina (Fama) à Douglas Aircraft Corp. A Fama era uma empresa com participação estatal minoritária (33%) encarregada de efetuar ligações aéreas intercontinentais. Os DC-6 foram empregados inicialmente em rotas para a Europa, substituin- do os lentos DC-4 e os barulhentos e pouco confi áveis Avro York. Em 1949, as autoridades argentinas promoveram a fusão de todas as cinco empresas aéreas locais em que tinham pequena participação numa única em que o Estado passou a ser majoritário. Surgiu assim a Aerolineas Argentinas, que recebeu as frotas das empresas menores, inclusive os DC-6. E em 1950 a Aerolineas passou a voar com DC-6 também para os Estados Unidos. Hoje quem visita a praia do Sul, parte de uma reserva biológica, vê apenas uma areia branca, muito fi na, a água transparente e sen- te uma imensa sensação de paz. É impossível imaginar que há 60 anos um avião estivera em emergência e pousara exatamente naquele local, vindo a parar sobre a areia. Não existem sinais daquele acidente e felizmente a praia está perfeitamente preservada e certamente pouco difere daquela existente em 1958. que coordenaram os trabalhos de resgate. Os ocupantes do LV-ADV receberam os primeiros socorros e começaram a ser evacuados de he- licóptero. Em poucas horas estavam todos na base da FAB, onde foram examinados e medi- cados. Posteriormente foram sendo liberados e transferidos de avião para o Aeroporto Santos Dumont. Alguns passageiros apresentavam con- tusões variadas, cortes, algumas queimaduras leves e houve um único caso de fratura de cos- telas e vértebras, que exigiu hospitalização por menos de um dia. Mas o problema mais sério foi ainda o lado emocional dos passageiros, alguns deles bastante traumatizados. Do momento da primeira pane até a ame- rissagem foram decorridos cerca de 15 minutos, segundo o comandante, mas o tempo demorou a passar, a situação foi de extrema gravidade e a tensão a bordo foi muito grande. Dentro do quadro apresentado de panes seguidas de incêndio, o fi nal não poderia ter sido mais favorável. E o pouso mais perfeito. A Aerolineas Argentinas e o comandante Merelle agradeceram posteriormente a atuação da FAB, que realmente foi muito rápida e mos- ILHA GRANDE Neste diagrama, a parte escura representa a área em que as chamas se propagaram, já no solo. O local do pouso forçado na praia de Ilha Grande. FLAP INTERNACIONAL 71 Este acidente, apesar de ter envolvido situações dramáticas e alto desempenho dos tri- pulantes, recebeu pouca cobertura da imprensa brasileira naquela época. O local era de difícil acesso e as notícias eram algumas vezes levadas por terceiros que de alguma maneira tiveram acesso à ilha e em geral chegavam atrasadas. E infelizmente em 1958 acidentes aéreos eram constantes e só os que envolviam mortes tinham maior repercussão. Poucos dias depois o Brasil ganhou seu primeiro campeonato mundial de futebol, o que passou a ser definitivamente a grande manchete dos jornais. O comandante Merelle conseguiu salvar todos os passageiros e tripulantes com grande habilidade técnica, mas nunca ganhou o destaque devido por seu feito como sucedeu com Sully muitas décadas depois. Talvez um sinal dos tempos. O Douglas DC-6 O DC-6 foi lançado pela Douglas Aircraft Corp. como um desenvolvimento do DC-4/C-54 e com desempenho muito melhorado. O melhor avião comercial em 1946 era seguramente o Constellation, também desenvolvido durante a guerra, que era pressurizado, conseguia ser cerca de 100 quilômetros/hora mais rápido que o DC-4 e tinha maior alcance. E as empresas aéreas que operavam este avião não podiam concorrer com o produto da Lockheed. A Douglas sabia que necessitava criar um produto competitivo e partiu do projeto DC-4, comprovado em condições difíceis e que demonstrava grandes possibilidades de desenvolvimento. A fuselagem foi alongadaem 2,06 metros, foi instalado um sistema de pressurização, os motores originalmente de 1.450 hp foram trocados pelos Pratt & Whitney PW-2800 CA 15 de 2.100 hp, foram adotadas novas ligas de alumínio mais resistentes, as asas foram reforçadas, receberam flaps de fenda dupla e maiores tanques de combustível, entre outras melhorias. A nova cabine de passageiros podia receber de 48 a 54 pessoas em primeira classe e foi dividida em duas partes, contando ainda com grandes janelas retangulares, que se tornaram um atrativo especial. A pressurização permitia voos em maiores altitudes, reduzindo o incômodo das turbulências e diminuindo o consumo de combustível. Como resultado de todos esses aperfeiçoa- mentos, o DC-6 tinha uma performance melhor do que a do Constellation L-049 e a Douglas conseguiu expandir suas vendas rapidamente. As entregas do DC-6 foram iniciadas a partir de fins de 1946 para grandes empresas aéreas americanas e a Fama no ano seguinte passou a ter um instrumento para concorrer de igual para igual com a Panair e empresas europeias que utilizavam aviões modernos. O DC-6 pas- sou por uma séria provação em 1947, quando dois acidentes se sucederam e o certificado de aeronavegabilidade foi suspenso por quatro meses. A aeronave foi modificada e retomou sua carreira comercial com grande sucesso. Após o DC-6, foi lançado em 1951 o DC-6B, novamente com fuselagem mais longa, maior capacidade de passageiros, motores PW R-2800 CB 17 de 2.500 hp e maior alcance. O DC-6B foi o avião com motores a pistão que obteve mais alta confiabilidade técnica em sua época e reconheci- damente os melhores resultados econômicos. As vendas da família DC-6, DC-6A (cargueiro), DC-6C (conversível) e DC-6B totalizaram 704 unidades (incluindo vendas militares), um recorde para os anos 1950. Nesta rara foto, o LV-ADV recém-chegado da fábrica da Douglas em Santa Mônica, ainda com o esquema de pintura antigo da Aerolineas Argentinas. FLAP INTERNACIONAL 72
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