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A imputação do pecado de Adão John Murray Por que somos punidos pelo pecado de Adão? A resposta pode ser encontrada em Romanos 5, e a exposição do argumento de Paulo feita por John Murray é a melhor que já vi. Murray mostra claramente o paralelo entre a imputação divina do pecado de Adão a nós e a imputação divina da justiça de Cristo a nós. Sem o pecado de Adão não haveria necessidade da cruz de Cristo. — John Frame A imputação do pecado de Adão, de John Murray, é um clássico em sua área. Fundamentado na Bíblia, claro, convincente e humilhante é historicamente fiel, intelectualmente estimulante e espiritualmente edificante. Trata-se de uma leitura obrigatória — um livro fundamental para entender por implicação a imputação da justiça de Cristo. Já era hora de o livro aparecer em português! — Joel R. Beeke O livro A imputação do pecado de Adão, de John Murray, é um clássico na tradição da teologia reformada. A exposição cuidadosa da teologia paulina do pecado feita por Murray — em especial a exegese atenciosa de Romanos 5 — nos ajuda a entender a profundidade total de nossa depravação. A doutrina não é desencorajadora; em última análise, seu caráter é esperançoso, pois a imputação também significa nossa salvação: a justiça de Cristo nos é imputada pela fé. — Philip Ryken É-nos muito fácil apresentar desculpas. Pensamos que, se nascemos perversos assim, no caminho da rebelião contra Deus — à semelhança dos demais —, como podemos ser culpados? Contudo, a Bíblia ensina que não só o pecado de Adão nos prejudica, mas também que somos responsáveis por nossa condição. De maneira semelhante, Jesus, nosso Salvador, não nos concede apenas nova vida, mas liberdade da culpa para que possamos viver com o Deus santo. Isso é vital para nossa fé, mas precisamos de ajuda concreta a fim de compreender tudo isso e sermos gratos! John Murray nos dá essa ajuda, de forma que o coração de cada um de nós transborde de gratidão repleta de alegria. — D. Clair Davis A imputação do pecado de Adão, de John Murray, é uma das obras mais importantes já escritas sobre o assunto. Ela não fornece apenas exegese bíblica sólida do material bíblico relevante, mas também excelente análise histórica e teológica. Murray mostra que Adão não é apenas um “modelo de ensino”, como algumas interpretações atuais alegam, e que a continuidade Adão-Cristo é essencial para o entendimento adequado do pecado, da redenção e da imputação. — Paul Wells Copyright @ 2019, Editora Monergismo Publicado originalmente em inglês sob o título The Imputation of Adam’s Sin pela Wm. B. Eerdmans Publishing Co., Grand Rapids, Michigan, 49505, EUA. ■ Todos os direitos em língua portuguesa reservados por EDITORA MONERGISMO 1ª edição, 2019 Tradução: Marcos Vasconcelos e William Campos da Cruz (Cap. 4) Revisão: Felipe Sabino de Araújo Neto Capa: Bárbara Lima Vasconcelos PROIBIDA A REPRODUÇÃO POR QUAISQUER MEIOS, SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE. Todas as citações bíblicas foram extraídas da versão Almeida Revista e Atualizada (ARA) salvo indicação em contrário. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Murray, John A imputação do pecado de Adão / John Murray, tradução Marcos Vasconcelos e William Campos da Cruz — Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019. Título original: The Imputation of Adam’s Sin ISBN 978-85-69980-93-3 1. Teologia 2. Antropologia 3. Novo Testamento I. Título CDD 230 Sumário Prefácio Capítulo Um Capítulo Dois Capítulo Três Capítulo Quatro Sobre o autor 12Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram. 13Porque até ao regime da lei havia pecado no mundo, mas o pecado não é levado em conta quando não há lei. 14Entretanto, reinou a morte desde Adão até Moisés, mesmo sobre aqueles que não pecaram à semelhança da transgressão de Adão, o qual prefigurava aquele que havia de vir. 15Todavia, não é assim o dom gratuito como a ofensa; porque, se, pela ofensa de um só, morreram muitos, muito mais a graça de Deus e o dom pela graça de um só homem, Jesus Cristo, foram abundantes sobre muitos. 16O dom, entretanto, não é como no caso em que somente um pecou; porque o julgamento derivou de uma só ofensa, para a condenação; mas a graça transcorre de muitas ofensas, para a justificação. 17Se, pela ofensa de um e por meio de um só, reinou a morte, muito mais os que recebem a abundância da graça e o dom da justiça reinarão em vida por meio de um só, a saber, Jesus Cristo. 18Pois assim como, por uma só ofensa, veio o juízo sobre todos os homens para condenação, assim também, por um só ato de justiça, veio a graça sobre todos os homens para a justificação que dá vida. 19Porque, como, pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores, assim também, por meio da obediência de um só, muitos se tornarão justos. Romanos 5-12-19 Prefácio O material apresentado nas páginas seguintes foi publicado em quatro edições sucessivas do The Westminster Theological Journal, XVIII, 2; XIX, 1 e 2; e XX, 1. Quero expressar minha dívida para com o editor, Rev. Professor Ned B. Stonehouse, pela generosidade de aceitar os artigos para a publicação e pelo zelo de ler e examinar os manuscritos. Sou igualmente devedor ao Supervisor Editorial, Rev. Professor Paul Wooley, por seu empenho e zelo na correção das provas tipográficas. Ao Conselho Diretor do Seminário Teológico Westminster, estendo minha cordial gratidão pela concessão de licença de trabalho durante 1955 e 1956. Foi a concessão da desobrigação de outros compromissos durante esse período que me permitiu realizar parte da pesquisa exigida para escrever este estudo. Estendo aqui meu débito de gratidão aos seguintes editores por me permitirem citações de livros com copirraite: à Muhlenberg Press, Filadelfia, Commentary on Romans (1949), de Anders Nygren; à Lutterworth Press, Londres, The Christian Doctrine of Creation and Redemption, Dogmatics II (1952), de Emil Brunner; à B. Herder Book Company, St. Louis, Canons and Decrees of the Council of Trent (1941), de H. J. Schroeder, e God the Author of Nature and the Supernatural (1934), de Joseph Pohle, Arthur Preuss (ed.); à The Macmillan Company, Nova Iorque, The Teaching of the Catholic Church (1949), de George D. Smith (ed.). — John Murray Capítulo Um A mentalidade teológica da presente era não é apenas hospitaleira à noção de solidariedade no pecado e na culpa, é também altamente consciente do fato dessa solidariedade. Ao tratar da doutrina agostiniana do pecado original, Emil Brunner disse: “Quero deixar claro desde o início minha plena concordância com o duplo objetivo de Agostinho: representar o pecado como uma força dominante, e a humanidade como associada juntamente numa solidariedade de culpa”.[1] E C. H. Dodd, comentando acerca do argumento de Paulo em Romanos 5.12-21, diz: “O que subjaz a isso é a antiga concepção de solidariedade. A unidade moral é a comunidade […] e não o indivíduo […] Dessa maneira, poder-se-ia enxergar toda a humanidade como a tribo de Adão, e o pecado de Adão era o pecado da raça. Com a crescente valorização da importância ética do indivíduo, a antiga ideia de solidariedade enfraqueceu. Ela, no entanto, correspondia a fatos reais. O isolamento do indivíduo é uma abstração”.[2] “Adão”, continua Dodd, “é para ele (Paulo) o nome da ‘personalidade corporativa’ da humanidade”.[3] Mas acerca de Romanos 5.12, eis o que também diz Brunner: “Isso não se refere à transgressão de Adão, na qual todos os seus descendentes têm parte; mas declara o fato de todos os descendentes ‘de Adão’ estarem envolvidos com a morte, pois eles próprios cometem pecado”.[4] Além disso, C. H. Dodd também pode afirmar: “Dessarte a doutrina paulina de Cristo como ‘segundo Adão’ não está tão presa ao relato da Queda como acontecimento literal que deixa de ter sentido quando não mais aceitamos esse relato. Na verdade, não devíamos assumir tão prontamenteque Paulo o aceitasse assim”.[5] Por isso vemos que o reconhecimento da ênfase dada ao pecado e culpa solidários e corporativos em nossa teologia atual não devem ser interpretados como idênticos à doutrina protestante clássica da imputação do pecado de Adão. Não é proveitoso para a causa da teologia, ou da exegese, considerar o apelo de Paulo à queda de Adão como uma mera forma mítica para expressar o fato da unidade solidária no pecado. Não seria fazer mais do que o necessário, portanto, se tratássemos uma vez mais da questão da imputação do pecado de Adão à posteridade e do estudo da passagem na qual, mais do que em qualquer outra, a doutrina se baseia. É animador descobrir em um erudito tão brilhante como Anders Nygren uma investigação tão capaz de reconhecer o lugar central que Romanos 5.12-19 ocupa nessa grandiosa epístola. O paralelismo que Paulo traça entre Adão e Cristo parece tão estranho e inimaginável que tem despertado nos estudiosos o desejo de tratarem essa seção como um parêntese. De forma mais ou menos consciente, os intérpretes têm agido baseados na suposição de que algo, que de tão estranho à mentalidade moderna parece irreal, não pode ter sido também de importância decisiva para Paulo. Para explicar como ele veio a incorrer na digressão, tem-se feito referência, por exemplo, à importante posição que a ‘especulação sobre Adão’ veio a exercer na mente rabínica […] Não devemos esquecer que Paulo leu a respeito de Adão em uma das primeiras páginas de sua Bíblia; portanto, não é necessário ir procurar fontes mais remotas da qual a ideia pode ter vindo […] Paulo não vê Cristo como um Adão redivivo. Ele situa Adão e Cristo nesse paralelo, não para confirmar a identidade deles, mas, ao contrário, para demonstrar o contraste entre eles. Quando se entende o que isso significa para Paulo, descobre-se de imediato que essa passagem não é jamais um parêntese ou uma digressão do pensamento apostólico. Ao contrário, aqui chegamos ao ponto mais alto da epístola. O ponto no qual todas as linhas do seu raciocínio convergem, tanto as dos capítulos precedentes como as dos capítulos seguintes.[6] Ao estudarmos Romanos 5.12-19, em razão de sua pertinência na questão da imputação do pecado de Adão para a posteridade, agruparemos nossa discussão nas principais subdivisões seguintes: I. A construção sintática; II. O pecado contemplado; III. A união envolvida; IV. A natureza da imputação; V. O pecado imputado. I. A CONSTRUÇÃO SINTÁTICA É quase desnecessário defender o fato de o versículo 12 ser uma comparação em que falta a parte final. Poucos intérpretes contestam essa realidade. A locução kaiV ou{twv" [ kai Joutws , também assim] no meio do versículo não tem o efeito de fechar a comparação introduzida por w}sper [ jJwsper , como]. Nesse caso, devíamos ter ou{twv" kaiV [ Joutws kai , assim também] e não kaiV ou{twv" [ kai Joutws , também assim] (cf. vs. 15, 18, 19, 21 e 6.4, 11). A locução kaiV ou{twv" [ kai Joutws ] é coordenativa ou continuativa e não significa “ainda assim”, mas “e assim” ou “e de modo semelhante” (cf. At 7.8; 28.14; 1Co 7.17, 36; 11.28; Gl 6.2). Nem mesmo Pelágio supôs algo diferente a respeito da sintaxe do versículo 12. O texto latino no qual ele baseava seus comentários era, nesse particular, fiel ao grego: et ita in omnes homines [mors] pertransiit.[7] Não é difícil descobrir a razão por que a comparação introduzida no versículo 12 tenha sido interrompida. O desenvolvimento do raciocínio de Paulo exigia um parêntese após a oração finalizadora do versículo 12. Esse parêntese começa no versículo 17. Bom seria que não considerássemos esses cinco versículos como um parêntese, mas como dois: o primeiro consistindo dos versículos 13 e 14; e o segundo, dos versículos 15-17.[8] Quanto à construção dessa porção parentética deveríamos ter a dizer que o raciocínio expresso no versículo 12, e de modo especial na última oração, impunha a necessidade de anexar de imediato os dados citados nos versículos 13 e 14, e depois, pela vez, o dado tipológico enunciado no final do versículo 14 — “quem é o tipo daquele que virá” — demandava a definição da série de similitudes, mas especialmente a definição de contrastes, instituída nos versículos 15-17. A despeito do modo como interpretarmos esses cinco versículos, como um ou dois parênteses, é por demais evidente que Paulo não retorna ao tipo de sintaxe com que começara no versículo 12, mas que fora interrompida, senão até chegarmos no versículo 18. Temos aqui o término de uma comparação provida tanto de prótase como de apódose, a primeira denotada por wJ" [ Jws, como] e a última, por ou{twv" kaiV [ Joutws kai , assim também). “Assim, pois, como por uma única transgressão veio a condenação para todos os homens, assim também por um único ato de reta justiça, veio para todos os homens a justificação para a vida.” Não é muito importante determinar se o versículo 18 é continuação ou recapitulação.[9] É bastante sabermos que Paulo não nos deixa nenhuma dúvida sobre como teria sido a apódose do versículo 12 caso tivesse sido completada nos termos da prótase suprida pelo versículo 12. As comparações dos versículos 18 e 19, quando completadas, põem acima de qualquer dúvida qual é o raciocínio que rege essa passagem, e que se apresenta nos termos do raciocínio dominante que a comparação do versículo 12 teria para ser completado. Sob exame mais acurado, o parêntesis dos versículos 13-17, que a princípio parece estranho e desconcertante, estabelece eloquentemente para nós a exata importância da oração que, afinal de contas, é a mais crucial na exegese de toda essa passagem, a saber, a última oração do versículo 12. A interpretação é determinada pelas expressivas repetições dos versículos subsequentes e, como tivemos ocasião de comentar, nenhuma consideração é mais pertinente à questão do que o fato de os versículos 13-17 estarem em forma de parêntesis. II. O PECADO CONTEMPLADO O xis da questão com relação a essa passagem é a referência da oração ejf= w{/ pavnte" h{marton [ ef ’ Jw pantes Jhmarton , porque todos pecaram] no versículo 12. Essa oração nos informa por que a morte passou a todos os homens e deveria ser traduzida como “em que todos pecaram”.[10] Em razão disso, a pergunta é: ao que Paulo se refere quando diz “todos pecaram”? Com respeito à forma, a expressão em si poderia se referir aos pecados individuais dos homens (cf. Rm 3.23). Além do mais, se Paulo tinha em mente os pecados individuais dos homens, essa seria sem dúvida a expressão que ele teria usado. Nenhuma outra seria mais adequada para expressar esse pensamento. O sentido, no entanto, não deve ser determinado pela possibilidade gramatical, mas por considerações contextuais. Há várias visões acerca da força dessa expressão. 1. A visão pelagiana Segundo essa perspectiva, a oração em questão se refere aos pecados pessoais dos homens.[11] Nesse caso, o raciocínio de Paulo seria: assim como Adão pecou e por isso morreu, assim também todos os homens morrem porque pecam. Adão é o protótipo: ele pecou e introduziu a morte no mundo. Os outros, da mesma maneira, pecam e são também afligidos com a morte. A interação entre pecado e morte, exemplificada em Adão, aplica-se a todo caso em que houver pecado. É necessário observar que a estrutura do versículo 12 não desaprova essa interpretação. Embora, segundo essa visão devíamos esperar que Paulo usasse ou{tw" kaiV [ Jout ō s kai , assim também] no meio do versículo e não kaiV ou{tw" [ kai Jout ō s , também assim], ainda assim é possível supor que Paulo estivesse traçando o paralelismo entre a entrada do pecado e da morte por meio de Adão e a transmissão do pecado e da morte por meio de todos sem concluir a comparação nos termos da analogia obtida na esfera oposta de retidão e vida. Em outras palavras, não é possível apelar à sintaxe do versículo 12 em si mesma como argumento contra a visão pelagiana. Há, no entanto, objeções conclusivas em bases factuais, exegéticas e teológicas. (i) A visão pelagiana não é de fato nem historicamenteverdadeira. Nem todos morrem porque pecam de modo concreto e intencional. Bebês morrem, mas na realidade não transgrediram à semelhança da transgressão de Adão. (ii) Nos versículos 13-14, Paulo declara o oposto da visão pelagiana. Pois aqui somos informados que a morte reinou sobre todos quantos não pecaram à semelhança da transgressão de Adão. O quê ou quem Paulo tem em vista é difícil determinar, mas é óbvio que ele está considerando a morte como exercendo seu poder sobre pessoas que não pecaram da forma como Adão pecou. É uma futilidade tentar escapar do peso imediato desse fato sobre a interpretação pelagiana. Paulo está afirmando o contrário, ou seja, que a morte reina universalmente e, portanto, domina sobre quantos estão numa categoria diferente da de Adão.[12] (iii) A refutação mais concludente da interpretação pelagiana deriva-se das repetidas e enfáticas afirmações de Paulo no contexto imediato, as quais significam que o domínio universal da condenação e da morte só pode dizer respeito ao único pecado de um único homem, Adão. Esse princípio é reafirmado em ao menos cinco ocasiões nos versículos 15-19: “pela transgressão de um muitos morreram” (v. 15, A21); “o juízo veio de uma só transgressão para a condenação” (v. 16, A21); “a morte reinou pela transgressão de um só” (v. 17, A21); “por uma só transgressão veio o julgamento sobre todos os homens para a condenação” (v. 18, A21); “pela desobediência de um só homem muitos foram feitos pecadores” (v. 19, A21). Talvez achemos que Paulo se repetiu sem necessidade, mas essa repetição estabelece sem nenhuma dúvida que o apóstolo considera que a condenação e a morte passaram a todos os homens pela transgressão única de um único homem, Adão. É um tanto impossível interpretar essa ênfase com base no único pecado de um único homem como equivalente ao pecado pessoal e intencional de incontáveis indivíduos. Não há dúvidas, portanto, que Paulo considera a universalidade da condenação e da morte como fundamentada e procedente de uma única transgressão de um único homem, Adão. A insistência pelagiana de que a morte e a condenação fundamentam-se exclusivamente no pecado intencional e pessoal dos indivíduos da raça não pode ser harmonizado com esse firme testemunho do apóstolo. (iv) A exegese pelagiana destrói toda a força da analogia instituída por Paulo nessa passagem. A doutrina que ele ilustra, com o apelo à analogia da condenação e morte advindas de Adão, é a doutrina segundo a qual os homens são justificados pela livre graça de Deus, com base na retidão e obediência de Cristo. Na parte inicial da epístola, Paulo contesta que os homens sejam justificados por suas próprias obras e estabelece a verdade de que são justificados e obtêm vida pelo que foi feito por outro, um único homem, Jesus. Quão vazio e contraditório seria apelar de alguma maneira ao paralelo tirado da relação de Adão com a raça, se a interpretação pelagiana fosse a mesma de Paulo; ou seja, que os homens morrem simplesmente por causa do próprio pecado e jamais com base no pecado de Adão! A doutrina da justificação apresentada por Paulo seria anulada se, nesse ponto, o paralelo usado por ele para a ilustrar e confirmar seguisse o modelo da interpretação pelagiana. Isso significaria que os homens são justificados por sua própria ação voluntária, da mesma maneira que caem em condenação exclusivamente por seu próprio pecado voluntário. Isso é sem dúvida doutrina pelagiana, mas é evidente na própria epístola que tal ensinamento contradiz o ensinamento de Paulo. A doutrina da justificação estabelecida por essa epístola não pode tolerar como sua analogia ou paralelo nenhuma interpretação do reino do pecado, da condenação e da morte que se assemelhe minimamente à doutrina pelagiana. Por conseguinte, a visão pelagiana tem de ser rejeitada tanto com base nesse argumento, como nos outros já mencionados. 1. A visão católica romana Não é possível sustentar que haja unanimidade entre os teólogos católicos romanos com respeito a Romanos 5.12, ou quanto à parte na qual estamos mais especificamente interessados. No período do Concílio de Trento, Ambrósio Catarino defendia posição semelhante à qual, mais adiante, deveremos propor como a visão correta. Ele sustentava que o pecado referido no trecho, “porque todos pecaram”, é a transgressão voluntária de Adão imputada a toda a posteridade em razão do relacionamento pactual firmado por ele para a raça — quando Adão pecou toda a humanidade pecou nele e com ele. Ele insistia que o pecado de cada um é ato exclusivo da transgressão de Adão, não da falta de retidão nem da concupiscência, consequências desse pecado. É esse pecado de Adão imputado à posteridade que Catarino chamou de “pecado original” sendo esse o pecado, e ele somente, sustentava ele, que Paulo tem em vista em Romanos 5.12-19.[13] Alberto Piguio, contemporâneo de Catarino, defendia a mesma posição. Ele afirmava sem rodeios que muitas vezes o apóstolo associava o reino da morte e o juízo de condenação, sob o qual todos nos achamos encerrados, ao único pecado de um único homem, Adão. Nele, portanto, não em nós, estava o pecado mediante o qual todos nós pecamos. Até mesmo crianças recém-nascidas são culpadas e pecadoras não por causa de seu próprio pecado, mas em razão do pecado e desobediência de Adão.[14] Essa posição, porém, não é o ensinamento oficial da Igreja Romana, e seus teólogos seguiram uma linha de raciocínio diferente. O Concílio de Trento em seu “Decretum de Peccato Originali” diz: “1. Se alguém não confessar que o primeiro homem, Adão, quando transgrediu a ordenança de Deus no Paraíso, perdeu de imediato a santidade e a justiça em que fora constituído, e pela transgressão dessa prevaricação incorreu na ira e indignação de Deus, e, portanto, na morte com que Deus antes lhe ameaçara, e, juntamente com a morte, no cativeiro sob o poder daquele que, desde então, teve o império da morte, qual seja: o Maligno, e que Adão, pela transgressão dessa prevaricação foi completamente mudado, em corpo e alma, para pior, seja anátema. “2. Se alguém afirmar que a transgressão de Adão prejudicou só a ele e não à sua posteridade, e que a santidade e a justiça que ele recebeu de Deus, e por ele perdidas, perdeu-as só para si mesmo e não também para nós; ou que ele, ao ser corrompido pelo pecado de desobediência, transmitiu apenas a morte e as dores do corpo para toda a raça humana, mas não também o pecado, o qual é a morte da alma, seja anátema”.[15] Por essas declarações, poder-se-ia concluir que o pecado de Adão, que é o pecado de todos, é transmitido a todos os homens por propagação. Obviamente, essa noção é bastante distinta da ideia de imputação da transgressão de Adão a todos os homens, conforme abraçadas por Catarino e Piguio. É essa direção de raciocínio, que aparece nos decretos de Trento, e que tem sido distintiva dos teólogos romanistas na formulação dessa doutrina. Não é que Roma negue de toda maneira o fato ou as consequências da transgressão de Adão. É apenas porque — na interpretação de Romanos 5.12 e do pecado em que todos estão implicados por causa do pecado de Adão — esse pecado é compreendido não como o pecado pessoal de Adão, que foi imputado, mas como o pecado habitual transmitido pela geração natural. A questão é claramente definida por Joseph Pohle: “O pecado de Adão é original em dois sentidos: (1) como ato pecaminoso pessoal (peccatum originale originans), e (2) como estado pecaminoso (peccatum originale originatum). É o estado, não o ato, que é transmitido aos descendentes de Adão”.[16] O primeiro relaciona-se com o segundo em dois aspectos. Primeiro, o ato pecaminoso pessoal trouxe à existência o estado pecaminoso; segundo, o estado pecaminoso é realmente pecaminoso “só na sua ligação lógica com a transgressão voluntária de Adão contra a ordenança divina no Paraíso”.[17] Mas é somente “o pecado habitual de Adão (habitus peccati), que ‘entrou neste mundo’ por meio dele, i.e., foi transmitido por ele a toda sua descendência”.[18] Roma reluta em definir com exatidãoaquilo em que consiste o pecado original e o habitual. Até onde se pode arriscar uma definição, concebe-se o pecado como consistindo principalmente da privação de santidade e de justiça.[19] No entanto, uma vez que a queda do homem implicou também na perda de integridade, é difícil aos teólogos romanistas excluírem a concupiscência do âmbito do pecado original. Assim, conquanto sejam enfáticos em sustentar que o pecado original não consiste de concupiscência, [20] todavia estão dispostos a conceder que a concupiscência, embora não sendo em si mesma verdadeira e propriamente pecado, está compreendida no âmbito do pecado habitual.[21] Após levar em consideração todas essas distinções e qualificações o desfecho é que na teologia romanista o pecado referido na última parte de Romanos 5.12 é o pecado habitual ou original, transmitido ou inoculado na posteridade de Adão pela geração natural e que, quanto à sua natureza, esta consiste essencialmente da privação de santidade, que pode ser classificada como pecaminosa, devido à relação lógica que mantém com a transgressão “voluntária” de Adão.[22] Em suma, o pecado de Romanos 5.12, pelo qual a morte passou a todos, é a pecaminosidade transmitida. Não nos interessa no presente momento examinar a doutrina romanista do pecado original. Sobre essa questão, a luta da Reforma foi acompanhada de perto e poderia parecer que a situação, da forma que hoje se encontra, não ofereça a mínima razão para a minimização dessa controvérsia. No entanto, nossa questão no presente não é se a doutrina de Roma sobre o pecado original está certa, mas se o que Paulo tem em mente quando diz “porque todos pecaram” é a noção de pecado original em contraposição à de pecado imputado. No que tange a isso, estamos investigando a capacidade de defesa da interpretação cogitada por alguns protestantes, bem como por Roma. Há, para essa interpretação, objeções determinantes de caráter exegético e teológico. (i) Antes de tudo, há um argumento presuntivo. Seria demasiadamente difícil ajustar a noção em questão à ideia expressa pelo aoristo h{marton [ jJ ē marton , pecaram]. O pecado original, segundo a interpretação de Roma ou, quanto a isso, dos protestantes, é transmitido sempre por geração natural. Quanto à transmissão, o processo é contínuo; quanto ao resultado, a condição é constante. Se o pecado aludido no trecho em questão for o pecado original, então tem-se em vista o processo e a condição definidores do pecado. É difícil, senão impossível, conceber a maneira como um aoristo histórico ou indefinido seria usado para denotar esse tipo de pecado. A única maneira de usar esse tempo verbal seria concentrar a atenção na inauguração histórica desses processo e condição. Mas a interpretação romanista não tanto assim o raciocínio, e caso tenha-se em mente o pecado original, não seria viável limitar o raciocínio ao começo definitivo da história. Quanto mais pensamos nessa objeção, tanto mais irrefutável ela se torna. Todavia, estamos dispostos a caracterizá-la como provável, mas não conclusiva. (ii) Mais convincente é a consideração teológica de que essa visão não se harmoniza com o paralelo ou a analogia que Paulo estabelece na passagem. A validez desse argumento assenta-se, obviamente, na rejeição categórica da visão romanista sobre a justificação. Roma considera que a justificação consiste na regeração e renovação operadas pela infusão da retidão, e seus teólogos ao lidarem com Romanos 5.12-19 recorrem a esse conceito de justificação para apoiar a forma como interpretam o versículo 12, a de que, por conta do pecado de Adão, há na justificação um óbvio paralelo entre a infusão da retidão e a transmissão do pecado original. Não podemos agora nos desviar da questão principal para refutar essa doutrina de justificação. Devemos nos satisfazer com a afirmativa de ser ela totalmente contrária ao ensino bíblico e paulino. Segundo a doutrina de Paulo, somos justificados com base na retidão de Cristo e não por alguma retidão infundida em nós nem tão pouco por alguma retidão efetuada em nós. Em sendo essa a doutrina do apóstolo, e visto que ele faz um paralelo entre a forma como a condenação e a morte passam a todos os homens e a forma como a justificação e a vida passam aos justificados, o modus operandi do último caso não pode ser considerado análogo à transfusão ou transmissão do pecado original. O paralelo exigido pela doutrina paulina da justificação tem de ser de natureza muitíssimo diferente. Por isso, resumindo, a introdução da ideia de pecado transmitido e herdado no raciocínio de Paulo nessa passagem viola as exigências da analogia proposta em vez de atendê-las. (iii) Mais decisiva é a objeção de que a interpretação em debate não é consistente com as repetidas afirmações de Paulo em Romanos 5.15-19. Já tivemos ocasião de nos referir a elas ao refutarmos a visão pelagiana. Mas é bom lembrar que Paulo, em pelo menos cinco ocasiões, em versículos sucessivos (15, 16, 17, 18, 19), refere-se ao âmbito universal da condenação e da morte relacionado à ofensa de um só homem, Adão. Essa ênfase sistemática na “unicidade” do pecado e do homem não se adequa à noção de pecado original. Apesar de a visão romanista reconhecer que o pecado original decorre da transgressão concreta de Adão, esse é o pecado que, por ser transmitido ou transfundido, pertence a todos quantos vêm por geração natural, não sendo possível considerá-lo como algo que se ajusta a essa especificação, por ser a ofensa de um só homem, Adão. O que é habitual para nós, como declaram os teólogos romanistas, dificilmente pode ser caracterizado como a ofensa de Adão. Por essas razões, temos de rejeitar essa interpretação da expressão “porque todos pecaram”. 3. A interpretação de Calvino A forma como Calvino entende o pecado original é radicalmente diferente da de Roma. Segundo ele, o pecado original transmitido por geração natural é em si mesmo, intrinsecamente, a depravação radical. A polêmica protestante direcionava-se com vigor contra a visão romanista, segundo a qual o pecado original consistia apenas da privação da retidão e integridade originais e que a concupiscência resultante da perda de integridade não era por si só real e propriamente pecaminosa. Por sua vez, a polêmica romanista direcionava-se com igual vigor contra a doutrina protestante de que o pecado original envolvia a corrupção radical de nossa natureza moral e espiritual. As respectivas polêmicas desses dois ramos da cristandade devem ser entendidas sob essa luz e a existência e qualquer possível concordância a respeito da transgressão concreta de Adão com o pecado original, que a todos faz sofrer, não deve obscurecer as diferenças acerca da própria natureza do pecado original. Embora a visão de Calvino sobre o pecado original difira tão radicalmente da de Roma, seu modo de ver a expressão crucial de Romanos 5.12, “porque todos pecaram”, é, do ponto de vista exegético, parecida com a de Roma. Pois o reformador, de modo semelhante, entende que Paulo aqui está se referindo ao pecado original. “Paulo, contudo, expressamente afirma que o pecado atingiu a todos os que sofrem o castigo devido ao pecado. Insiste de forma ainda mais enfática quando logo a seguir aponta a razão por que toda a progênie de Adão está sujeita ao domínio da morte. É porque todos nós pecamos. Pecar, como o termo é usado aqui, é ser corrupto e maligno. A depravação natural que trazemos do ventre de nossa mãe, embora não produza seus frutos imediatamente, é, não obstante, pecado diante de Deus, e merece sua punição. Isto é o que se chama pecado original. Assim como Adão, em sua criação primitiva, recebeu tanto para sua progênie quanto para si mesmo os dons da divina graça, também, ao rebelar-se contra o Senhor, inerentemente corrompeu, viciou, depravou e arruinou nossa natureza — tendo perdido a imagem de Deus, e a única semente que poderia ter produzido era aquela que traz a semelhança consigo mesmo. Portanto, todos nós pecamos, visto que nos achamos saturados da corrupção natural, e poresta razão somos ímpios e perversos”.[23] As mesmas objeções aplicadas a essa interpretação aplicam-se também à posição romanista. Embora, na verdade, Calvino não enfrente a dificuldade encontrada pelos exegetas romanistas ao necessitarem categorizar como pecado aquilo que inerentemente não cabe na definição de pecado postulada por eles mesmos, e embora a ideia do reformador sobre o pecado original seja totalmente paulina e bíblica, ainda assim, do ponto de vista exegético, ele não conseguiu analisar a ideia exata do apóstolo nessa passagem. Em outras palavras, ele não conseguiu ir além da tradição agostiniana na exposição de Romanos 5.12. 4. A interpretação protestante clássica A questão principal persiste ainda diante de nós: Que pecado Paulo tem em vista quando ele diz “porque todos pecaram”? Para chegarmos ao que acreditamos ser a visão apropriada é indispensável que as seguintes considerações sejam levadas em conta: (i) É inquestionável que o domínio universal da morte está representado no versículo 12, tendo-se como base o fato de que “todos pecaram”. Seja qual for o pecado em questão, ele é a razão por que a morte passou a todos os homens. E isso significa simplesmente que ele é a base da universalidade da morte. (ii) Nos versículos 15-19, no entanto, Paulo afirma com inequívoca clareza que o reino universal da morte firma-se na única transgressão de um único homem. “Pela ofensa de um só, morreram muitos” (v. 15); “pela ofensa de um e por meio de um só, reinou a morte” (v. 17). E, é claro, esse relacionamento referente à morte está em harmonia e em paralelo com as outras declarações de Paulo com referência à condenação. “O julgamento derivou de uma só ofensa para a condenação” (v. 16); “por uma só ofensa, veio o juízo sobre todos os homens para condenação” (v. 18). A morte e a condenação reinam sobre todos por causa da única transgressão de Adão. (iii) Será que devíamos supor que Paulo está tratando de dois fatos diferentes quando no versículo 12 ele baseia a morte de todos no pecado de todos e, nos versículos 15 e 17 ele baseia a mesma morte na transgressão singular de Adão? Deveríamos entender que no versículo 12 Paulo se refere ao pecado pessoal e individualmente universal, tanto por ação como por hábito, mas nos versículos 15-19 ele está se referindo ao pecado em sua singularidade específica como a transgressão única de um único homem, Adão? A conclusão à qual somos levados pelas considerações exegéticas é que o caso não pode ser esse, mas, ao contrário, Paulo deve ter em vista o mesmo pecado quando no versículo 12 diz “todos pecaram” e quando nos versículos 15-16 ele se refere ao pecado de um só homem. Os argumentos determinadores dessa conclusão são os seguintes. (a) A passagem inteira (Rm 5.12-19) forma uma unidade. Não podemos deixar de ver que sua estrutura central resulta da analogia entre o modus operandi do pecado, condenação e morte, por um lado, e da retidão, justificação e vida, pelo outro. Na natureza do caso, uma vez que o último trio tem o propósito de negar o primeiro, há contrastes importantes e magníficos, e Paulo raciocina com base neles. No entanto, a linha de raciocínio é o paralelismo, e até os contrastes se baseiam nessa estrutura. Por isso, somos forçados a concluir que a comparação introduzida no versículo 12 — embora interrompida e incompleta nos termos expressos em que a prótase do versículo 12 poderia sugeri e determinar — é quanto ao raciocínio essencialmente idêntica à declarada de forma completa nos versículos 18 e 19. Isso significa que o pecado ao qual se refere o versículo 12, e de modo particular na última oração, só pode ser o mesmo pecado identificado no versículo 18 como “uma só ofensa” e no versículo 19 como “desobediência de um só homem”. E se recuarmos aos três versículos precedentes (15-17), tendo em mente a unidade absoluta da passagem, só será possível concluirmos que os versículos 15 e 17 visam ao mesmo pecado, nos quais é denominado de ofensa de um só. (b) O versículo 12 é uma comparação incompleta. Só temos conhecimento de sua apódose implícita por causa dos versículos seguintes. Não dá para supor que Paulo, tratando expressamente da questão do reino universal da morte, afirmasse de forma tão explícita e repetida nos versículos subsequentes algo bem diferente do que ele afirma no que seria a introdução incompleta de seu argumento. Se o versículo 12 estivesse em um contexto exclusivamente dele, e se houvesse alguma evidência plausível da transição de uma fase do ensino para outra, então poderíamos dizer que no versículo 12 o apóstolo trata de um fato e nos versículos 15-19, de outro. Mas o fato de o versículo 12 não finalizar a comparação e depender dos versículos seguintes para substanciar essa inferência impossibilita totalmente qualquer suposição de transição de uma fase da verdade para outra. (c) No que tange ao pecado praticado pelo indivíduo, o versículo 14 exclui a possibilidade de interpretar a última oração do versículo 12 nesses termos. O versículo 12 nos apresenta a razão por que a morte passou a todos os homens. Qual seja, “todos pecaram”. Mas o versículo 14 nos diz que a morte reinou sobre aqueles que não pecaram à semelhança da transgressão de Adão. O reinado da morte no versículo 14 deve ter a mesma importância que a passagem da morte no versículo 12. Paulo, portanto, está afirmando que a morte tanto passou aos que não transgrediram pessoal e intencionalmente à semelhança de Adão, como também reinou sobre eles, e, portanto, o “todos pecaram” do versículo 12 não pode estar se referindo à transgressão pessoal individual. Por essas razões somos compelidos a inferir que, ao dizer que “todos pecaram” (v. 12) e falar na ofensa de um só homem (v. 15-19), Paulo só pode estar se referindo ao mesmo fato ou evento, de sorte que esse evento ou fato único pode ser expresso em termos tanto de singularidade como de universalidade. Se essa identidade nos confronta, como devemos explicá-la? Como é possível Paulo afirmar que “todos pecaram” e, então, que uma única pessoa pecou e isso diga respeito ao mesmo fato? Ao se tentar responder tal pergunta, há um erro específico a ser evitado. Não devemos diminuir a importância nem da singularidade nem da universalidade. Paulo usa de linguagem expressiva para as duas. A única solução é a existência obrigatória de algum tipo de solidariedade entre “um só” e “todos” de sorte que o pecado em questão seja considerado — ao mesmo tempo e com igual relevância — como o pecado de “um só” ou o pecado de “todos”. O que vem a ser essa solidariedade é o assunto da próxima parte principal de nossa defesa. Capítulo Dois III. A UNIÃO ENVOLVIDA O princípio da solidariedade está embutido e exemplificado na Escritura de muitas maneiras. Não é necessário enumerar os casos em que ele aparece. É evidente o fato de haver no governo de Deus sobre os homens as instituições da família, do Estado e da igreja nas quais predominam e funcionam relações solidárias e conjuntas. Isso quer dizer apenas que as relações de Deus com os homens e as relações dos homens uns com os outros não são exclusivamente individualistas; Deus lida com os homens nos termos desses relacionamentos grupais e os homens precisam lidar com seus relacionamentos e responsabilidades grupais. Há também a instituição do indivíduo, e não fazer caso de nossa individualidade é profanar nosso relacionamento responsável com Deus e com os homens. O princípio da solidariedade pode ser exagerado, pode tornar-se uma obseção e levar ao abuso fatalista (cf. Ez 18.2). Todo esse tipo de exagero é perverso, mas é também maligno conceber nossas relações com Deus e os homens de forma atomística, sem darmos o devido valor às entidades grupais, as quais, em grande medida, condicionam nossa vida e responsabilidade. A solidariedade funciona tanto para o bem como para o mal. É quase desnecessário lembrar das influências benéficas decorrentes da sua aplicação no âmbito da graça. O projeto, realização, aplicação e consumação da redenção foi modelado nostermos desse princípio. E, no âmbito do mal, é um fato, tanto da revelação como da observação, que Deus visita “a iniquidade dos pais nos filhos daqueles que” o odeiam (Êx 20.5). É em consonância com esses fatos da revelação bíblica e da nossa experiência humana que o princípio da solidariedade deveria alcançar sua expressão mais ampla e mais inclusiva em solidariedade racial, e não deveríamos nos surpreender por achar nesse caso a solidariedade prototípica. A solidariedade racial é a única construção possível a partir dos vários dados que a Escritura traz a nossa atenção. Paulo dá testemunho incisivo desse fato ao afirmar que “em Adão, todos morrem” (1Co 15.22), e é esse mesmo relacionamento solidário que forma o pano de fundo do pensamento do apóstolo, quando este afirma que: “O primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente. O último Adão, porém, é espírito vivificante” (1Co 15.45). Se levarmos em consideração o fato da solidariedade racial e, portanto, o relacionamento solidário que Adão mantém com a posteridade e a posteridade com ele, aceitaríamos com menos relutância, para dizer o mínimo, a proposição de que o pecado “de um só” em Adão pode muito bem ser interpretado como o “pecados de todos”. Mas o fato da solidariedade não determina para nós a questão de sua natureza. Qual é a natureza da união que existia entre Adão e a posteridade? De qualquer ponto de vista biblicamente orientado tem-se por certo que de Adão, por meio da geração natural, procederam todos os demais membros da raça humana, que Adão foi o pai natural de toda a humanidade. Afirmar que a união entre Adão e a posteridade é biológica e genealógica e que nada mais é exigido para explicar os fatos pode parecer a resposta adequada à nossa indagação. Isso quer dizer que Adão era a “raiz natural” de toda a humanidade. Levi estava nos lombos de Abraão, seu pai, quando este pagou o dízimo a Melquisedeque, podendo-se dizer, portanto, que Levi pagou dízimo a Melquisedeque (Hb 7.9, 10). De forma semelhante, todos estavam nos lombos de Adão quando ele pecou e, portanto, pode-se dizer que todos pecaram nele e caíram com ele em sua primeira transgressão. Nesse caso, não é possível alegar que o fato do relacionamento seminal é irrelevante. Não podemos supor que dizer que a solidariedade da raça com Adão — a razão de todos estarem envolvidos em seu pecado — seria verdadeira se ele não fosse o pai de toda a humanidade. Nenhum outro princípio de solidariedade que se possa supor ou estabelecer não pode ser abstraído do fato da ancestralidade biológica. Exegetas e teólogos não se contentam em explicar a solidariedade com Adão simplesmente nos termos de nossa descendência dele. Eles têm sido obrigados a postular alguma relação solidária diferente da genealógica como base necessária apropriada para o envolvimento no pecado de Adão, seja esse outra relação concebida coordenadamente com o relacionamento genealógico, ou como sendo em si mesmo a base específica da imputação do primeiro pecado de Adão. Há duas visões dessa relação dignas de serem avaliadas com seriedade, sendo talvez as únicas que possam reclamar consideração. Uma afirma que a natureza humana era numérica e especificamente uma em Adão; e a outra, que Adão era o cabeça e representante constituído para toda a raça humana. 1. A visão realista Talvez o expoente e defensor mais competente da visão de que a natureza humana era numérica e especificamente uma em Adão seja William G. T. Shedd. “A doutrina da unidade específica de Adão e sua posteridade”, diz ele, “remove as maiores dificuldades relacionadas com a imputação do pecado de Adão à sua posteridade, decorrentes da injustiça de castigar alguém por causa de um pecado em que não se teve nenhuma participação”.[24] E ao contestar a visão representativa, ele afirma: “Imputar o primeiro pecado de Adão a sua posteridade tão só e unicamente porque Adão pecou como representante em lugar dela, torna a imputação um ato arbitrário de soberania, não um ato jurídico de justiça que porta em si moralidade e justiça intrínsecos”.[25] Resumindo a posição, a natureza humana em sua unidade não individualizada existia em sua inteireza em Adão, por isso quando Adão pecou, não somente ele pecou, mas também a natureza comum existente nele em sua unidade, e, como toda pessoa vinda ao mundo é uma individualização dessa natureza humana única, cada uma como “parcela individualizada” dessa natureza comum é culpada e passível de castigo por causa do pecado cometido por essa unidade.[26] “Essa unidade comete o primeiro pecado […] Esse pecado é imputado à unidade que o cometeu, é inerente à unidade, sendo propagado por ela. Por conseguinte, todos os aspectos particulares concernentes ao pecado aplicáveis à unidade ou à natureza comum, aplica-se de forma igual e estrita a cada uma de suas parcelas individualizadas. Sócrates, individualmente, era parte fracionária da natureza humana que ‘pecou em, e caiu com, Adão em sua primeira transgressão’ […] Portanto, a comissão, imputação, inerência e propagação do pecado original adere indissoluvelmente à parte individualizada da natureza comum, da mesma maneira que ao seu todo não individualizado. A distribuição e propagação da natureza não lhe causa nenhuma alteração, exceto com respeito à forma”.[27] A visão de A. H. Strong tem quase o mesmo efeito. Ele a denomina de teoria augustiniana e afirma que “ela sustenta que Deus imputa o pecado de Adão imediatamente a toda sua posteridade, em virtude dessa unidade orgânica da humanidade, pela qual toda a raça, no momento da transgressão de Adão, existia, não individualmente, mas seminalmente nele, como o seu cabeça. Toda a vida da humanidade estava, então, em Adão; a raça, nesse momento, tinha todo o seu ser somente nele. No livre ato de Adão, a vontade da raça revoltou-se contra Deus e corrompeu a própria natureza […] O pecado de Adão é-nos imputado de imediato, portanto, não como algo externo a nós, mas porque é nosso — nós e todos os outros homens existindo como uma única pessoa moral ou como um único todo moral, em Adão, como resultado dessa transgressão, possuindo uma natureza destituída do amor de Deus e inclinada para o mal”.[28] “Houve um tempo no qual Adão era a raça, e quando ele caiu, a raça caiu. Shedd: ‘Todos existíamos em Adão em nossa substância elementar e indivisível. O Seyn de todos nós estava lá, embora o Daseyn não estivesse; o noumenom, embora não o phenomenom estava em existência’”.[29] Deve-se admitir que, se essa fosse de fato a visão correta, ela explicaria adequadamente os dois aspectos a partir dos quais o fato ou evento únicos poderiam ser vistos, ou seja, o de que “um pecou” e “todos pecaram”. A questão é se a evidência relevante serve para apoiar essa construção da relação adâmica. Ao se lidar com essa posição realista e com o debate entre seus proponentes e os defensores da visão representativa da relação entre Adão e sua posteridade, é indispensável estabelecer qual seja o ponto crucial do debate na perspectiva apropriada. Às vezes a questão fica confusa por não se reconhecer que os proponentes da representação como visão contrária à perspectiva realista não negam, antes sustentam, que Adão seja o cabeça natural da raça, bem como sua cabeça representativa. Quer dizer, eles afirmam que a raça está de forma única e seminal em Adão e que essa união representativa não é abstraída da união seminal. Francis Turretine, por exemplo, é bem explícito a esse respeito. Apesar de defender que o fundamento da imputação do pecado de Adão seja principalmente “moral e federal”, ele não deixa de levar em consideração a liderança natural, que procede da unidade de origem, e o fato de todos serem do mesmo sangue. Foi da vontade de Deus que Adão fosse “a origem e o Cabeça de toda a raça humana” e por essa razão se diz que “todos são um único homem”.[30] A questão na qual insistem os proponentes da liderança representativa de Adão é que a união natural ou seminal sozinha não é suficiente para explicar a imputação do pecado de Adão à posteridade. Nesseaspecto particular, eles concordam com os proponentes da união realista, porque esta também insiste na necessidade de mais do que unidade de origem. Além disso, os proponentes da representação não defendem apenas a união seminal, mas insistem também na comunhão de natureza. Em outras palavras, a união natural está envolvida na liderança natural da cabeça e, por isso, eles dirão que a natureza humana se corrompeu em Adão e que ela, corrompida em Adão, é transmitida à posteridade pela geração natural. Mas quanto ao termo “natureza humana”, a diferença não está em os proponentes da representação negarem a comunhão da natureza, nem em negarem também que a natureza humana corrompida em Adão propaga-se aos membros da raça. A diferença está apenas em que o realismo mantém em Adão a existência da natureza humana como entidade específica e numericamente única, e nesse aspecto os expoentes da representação discordam. Portanto, o xis da questão não é se a visão representativa não leva em conta a união seminal, a liderança natural ou a comunhão de natureza na unidade existente entre Adão e a posteridade, mas só e exclusivamente se o algo mais necessário, postulado pelas duas visões, deve ser interpretado em termos da entidade que em sua totalidade existia em Adão e está individualizada nos membros da raça, ou nos termos da representação estabelecida pela ordenação divina. É sobre essa questão específica que o debate deve se debruçar. Não há dúvida que, quanto a esse aspecto restrito, outras questões vêm à tona, mas são relativamente subordinadas e periféricas. A confusão só pode ser evitada se a questão crucial for avaliada e discutida com base nos dados pertinentes. Quando se percebe que o aspecto peculiar do realismo é o conceito da natureza humana como específica e numericamente única em Adão, o apelo dos realistas aos teólogos do passado para sustentar essa posição não é jamais tão válido quanto possa parecer. Por exemplo, A. H. Strong diz que “Calvino era essencialmente agostiniano e realista” e apela às Institutas (II.i-iii) para validar essa alegação.[31] De fato, Calvino afirma que toda a posteridade de Adão torna-se culpada devido à falta (culpa) de um único. Ele refere-se ao pecado de um só como comum.[32] Todos estão mortos em Adão, diz ele, e, portanto, comprometidos com a ruína do pecado dele. E, nesse caso, também sustenta Calvino, todos devem ser responsabilizados pela culpa da iniquidade, porque não há condenação quando não há culpa.[33] Adão imergiu toda a sua descendência nas mesmas desgraças das quais ele mesmo se tornou herdeiro. Se atribuirmos a tais expressões a mais plena abrangência e as interpretarmos como implicando que o único pecado de Adão é o pecado de todos, não há prova nenhuma que Calvino tenha concebido a união existente entre Adão e a posteridade em termos realistas. Calvino, no entanto, não nos deixa em dúvida quanto ao seu entendimento sobre o envolvimento da posteridade no pecado de Adão, ou, em outras palavras, como o pecado de Adão torna-se no pecado de todos. Calvino estava ciente da objeção levantada contra a doutrina de que o pecado de Adão envolvia a raça em ruína, ou seja, que a posteridade recebe a culpa de um pecado cometido por outrem e não da sua própria transgressão pessoal.[34] Mas ele não enfrentou essa objeção alegando que o pecado em questão não era exclusivo de Adão, mas também da específica e numericamente única natureza humana, que, em sua totalidade indivisível, existia em Adão e pertencia a cada membro da raça tanto quanto ao próprio Adão. E não deve haver dúvidas acerca da resposta positiva dada por ele à questão sobre como fomos envolvidos no pecado de Adão; ele não se cansa de repetir. É por efeito que derivamos de Adão, pela geração natural e propagação, a natureza corrompida. O conceito chave é a depravação hereditária. Adão com o seu pecado corrompeu sua própria natureza e todos nós com o nosso nascimento estamos infectados por esse contágio.[35] “Temos ouvido que a impureza dos pais é transmitida aos filhos de sorte que todos, sem nenhuma exceção, estão conspurcados desde o próprio princípio. Mas só devemos encontrar a origem dessa mácula se retrocedermos até o primeiro pai de todos, como à fonte. Portanto, é certo que Adão não era só o progenitor da natureza humana, mas era a raiz, e, por isso, a raça humana foi arruinada na corrupção dele.”[36] Adão “contaminou toda a sua semente com a corrupção na qual ele caíra”.[37] “Por isso, de uma raiz putrefata brotam ramos putrefatos, os quais transmitem a sua podridão para os outros ramos que brotam deles.”[38] A figura, obviamente, é a propagação de um contágio a partir de uma fonte corrompida. Mesmo assim Calvino toma o cuidado de afirmar que a corrupção pessoal de Adão não nos pertence; o fato é simplesmente que ele nos contamina com a depravação na qual ele havia caído.[39] Sem nenhuma dúvida, portanto, de acordo com Calvino, o pecado pelo qual a posteridade está arruinada é a depravação que foi originada do pecado de Adão, a natureza humana corrompida que é consequência da apostasia de Adão e nos é comunicada e transfundida pela reprodução. E não é sem razão de alguma importância que ele recorre a Agostinho para apoiar sua argumentação. “Por isso alguns homens bons, e acima de todos Agostinho, trabalharam ardorosamente nessa questão para mostrarem que somos corrompidos não pele perversidade adquirida, mas que trazemos a depravação inata desde o ventre da nossa mãe.”[40] Neste momento, não temos o propósito de sustentar que Calvino deu devidamente conta da relação da raça com o pecado individual de Adão. Agora, só nos interessa mostrar que a ênfase de Calvino na depravação hereditária, e na corrupção de nossa natureza que emana do pecado de Adão, não é prova de que ele defendia a concepção realista da união adâmica. A visão representativa de nossa relação com Adão insiste em adotar tudo quanto Calvino propõe acerca da propagação da depravação hereditária e o faz em termos calvinistas. Os realistas também apelam confiadamente para Agostinho como um dos proponentes da posição realista. Não temos o interesse nem a intenção de demonstrar que Agostinho entretém concepções realistas. No entanto, é indispensável mostrar que suas declarações sobre a matéria, citadas ou mencionadas pelos proponentes do realismo, não põem termo à questão. Agostinho de fato diz que “todos pecaram, já que todos eram aquele único homem”.[41] Talvez esta próxima citação dê apoio mais evidente do que qualquer outra à interpretação realista da posição de Agostinho. “Deus, autor da natureza e não de depravações, criou o homem reto, mas o homem, corrompendo-se por sua própria vontade e, condenado com justiça, gerou filhos corrompidos e condenados. Porque todos estávamos naquele único homem, pois éramos todos esse único homem, o qual caiu em pecado por conta da mulher feita a partir dele antes do pecado. Pois ainda não fora criada nem distribuída para nós a forma particular em que, como indivíduos, devíamos viver, mas ali já estava presente a natureza seminal da qual devíamos ser reproduzidos, e por estar ela corrompida pelo pecado, presa pelos grilhões da morte e justamente condenada, o homem não poderia nascer de outro homem em condição diferente. Assim, do mal uso do livre-arbítrio surge o rastilho dessa calamidade que conduz a raça humana através de uma combinação de desgraças desde sua origem corrompida, como se procedesse de uma raiz corrupta, para a destruição da segunda morte, que não tem fim, da qual se excetuam os libertados pela graça de Deus.”[42] Mas ao se examinar os contextos desse tipo de citações, notar-se-á que o supremo interesse de Agostinho, bem como o de Calvino, é negar que seja pela imitação que a ofensa de Adão aplica-se à condenação de todos, e provar que o pecado foi transmitido do primeiro homem para os outros homens por meio da reprodução.[43] Referindo-se a Paulo, ele escreve: “‘por um só homem’, ele diz, ‘entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte’. Isso fala de reprodução, nãode imitação, porque, se fosse pela imitação, ele teria dito, ‘pelo maligno’”.[44] “Assim pois, ele, em quem todos recebem vida, além de oferecer a si mesmo como exemplo de retidão para seus imitadores, dá também aos que nele creem a graça oculta de seu Espírito, a qual graça infunde em segredo até mesmo em bebês; semelhantemente, portanto, aquele em quem todos morrem, além de servir de exemplo para a imitação dos que transgridem deliberadamente o mandamento do Senhor, despojou também na própria pessoa todos quantos vêm de sua linhagem, por meio da oculta corrupção de sua própria concupiscência carnal. É inteiramente por isso, e por nenhuma outra razão, que o apóstolo afirma: ‘por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram’.”[45] Portanto, embora Agostinho afirme que todos os da posteridade de Adão sejam esse único homem, que a raça humana inteira estava no primeiro homem,[46] e que todos pecaram em Adão quando eram ali esse único homem,[47] quando ele define mais especificamente o pecado pelo qual todos pecaram em Adão e através do qual a morte passou a todos, ele o faz em termos de pecado original ou depravação hereditária transmitida de Adão à sua semente pela reprodução. A razão por que se diz que a posteridade pecou em Adão é que a “natureza seminal”,[48] a partir da qual todos devem ser reproduzidos, fora conspurcada em Adão quando existia somente nele. E, portanto, quando Agostinho faz a exegese de Romanos 5.12 e de modo particular a exegese de “em quem todos pecaram”, seu conceito mais preciso é que Adão “corrompeu […] em si mesmo pela corrupção oculta de sua concupiscência carnal todos quantos vêm de sua linhagem”[49] e que essa corrupção propaga-se pela geração natural. Quando se admite isso, a ideia de que o pensamento de Agostinho segue o padrão realista não fica tão evidente. Na última análise, ele retrocede à noção do pecado original como algo transmitido. Além disso, devemos ter em mente que o conceito de que a natureza humana foi corrompida em Adão sendo transmitida à posteridade pela reprodução não é monopólio dos realistas. Os proponentes da teoria da representação apegam-se a essa doutrina com tanta tenacidade quanto os realistas. Embora seja verdade que algumas das expressões de Agostinho se encaixariam de pronto na concepção realista da união adâmica, não há evidência clara nem conclusiva nessas citações de ele conceber a base lógica do nosso envolvimento no pecado de Adão como consistindo na participação da natureza humana, como específica e numericamente um, no pecado de Adão. Ele, sem dúvida, concebeu a natureza humana como tendo-se corrompido em Adão e como transmitida a nós, mas esses dois conceitos não são idênticos e não conseguir diferençá-los só leva à confusão e à má compreensão do status quaestionis. Se a característica distintiva do realismo foi posta em foco e se a questão em pauta foi apresentada na devida perspectiva, nós mesmos podemos agora nos voltar para examinar como o realismo se aplica ao nosso tópico. Pode-se repetir que, caso se revelasse como certo, o realismo daria a explicação adequada às duas formas como um evento único pode ser visto, isto é, o de que “um pecou” e também “todos pecaram”. No entanto, existe alguma prova capaz de sustentar essa construção do relacionamento de um para muitos? (i) W. G. T. Shedd sustenta que não é razoável considerar a união representativa de Adão e da posteridade como a base apropriada para a imputação do seu pecado, pois isso seria “um ato arbitrário de soberania”. Mas somos forçados a perguntar se a noção de natureza humana, específica e numericamente uma, como “substância invisível elementar”, alivia de alguma forma a dificuldade implicada. Porque a real questão é como os membros individuais da raça podem levar a culpa de um pecado no qual, como indivíduos, não participaram pessoal nem voluntariamente. Além disso, os realistas são obrigados a admitir que os membros individuais da raça não têm parte pessoal e voluntária no pecado dessa natureza humana, da forma como existia em sua unidade em Adão. O pecado da humanidade genérica está tão longe do pecado individual dos membros da posteridade quanto está o pecado de uma cabeça representativa e isso pela simples razão de que, como indivíduos, a posteridade ainda não existia. Em outras palavras, é tão difícil estabelecer o nexo entre o pecado da humanidade genérica e os membros da raça, quanto é estabelecer o nexo entre o pecado de Adão como cabeça representativa e os membros da raça. Afinal, a humanidade genérica, conforme existia em Adão, é natureza humana não individualizada impessoal. (ii) A analogia instituída em Romanos 5.12-19 (cf. 1Co 15.22) apresenta uma objeção formidável à construção realista. Os realistas admitem que não há união “realista” entre Cristo e os justificados. Quer dizer, não há natureza humana, específica e numericamente única, cuja unidade exista em Cristo, que se acha individualizada nos beneficiários da retidão do Salvador. No entanto, segundo as premissas realistas, deve-se supor uma disparidade radical entre o caráter da união existente entre Adão e sua posteridade, por um lado, e a união existente entre Cristo e os que lhe pertencem, por outro. Em Romanos 5.15-19, as diferenças entre o reino de pecado, condenação e morte, e o reino de retidão, justificação e vida estão em primeiro plano; elas se evidenciam tanto nas negações dos versículos 15-17 como na ênfase da superabundância predominante nas provisões da graça. Não há, porém, indicação sobre que tipo de discrepância predominaria se a distinção entre a natureza da união nos dois casos fosse tão radical quanto o realista tem de supor. Em si mesmo, esse argumento de silêncio teria pouco peso, mas o caso não é meramente questão de não existir indicação desse tipo de diferença; o paralelismo contínuo milita contra qualquer suposição dessa ordem. Adão é o tipo daquele que viria (v. 14). Adão como o “um só” está em paralelo com Cristo como o “um só” (v. 17). A transgressão do “um só” para a condenação é paralela à obediência do “um só” para a justificação (v. 18). A desobediência do “um só” é paralela à obediência do “um só” (v. 19). Essa ênfase contínua — não apenas no “um só” homem Adão e no “um só” homem Cristo, mas também no “um só pecado” e no “um só ato de justiça” — aponta para uma identidade básica com respeito ao modus operandi. Mas se, em um só caso, temos unicidade concentrada na unidade da natureza humana, conforme postula o realismo, e, no outro caso, unicidade concentrada no “um só” homem Jesus Cristo, em quem não existe tal unidade, é difícil não acreditar que a discrepância entra exatamente no ponto em que a semelhança precisa ser preservada. Pois, afinal, segundo as suposições realistas, não é a nossa união com Adão a consideração crucial do nosso envolvimento em seu pecado, mas o nosso envolvimento no pecado dessa natureza humana que existia em Adão. O que o paralelismo de Romanos 5.12-19 poderia indicar é que o “um só pecado” do “um só homem” Adão é análogo, do lado da condenação, ao “um só ato de justiça” do “um só homem” Jesus Cristo, do lado da justificação. O tipo de relacionamento que vigora em um caso vigora no outro. E como seria isso possível, se o tipo de relacionamento é tão diferente no que tange à natureza da união subsistente? Não é objeção válida ao argumento precedente sacado do paralelismo em Romanos 5.12-19 afirmar que — devido à incontestável distinção entre a relação de Adão com a raça e a relação de Cristo com os seus — não há razão para que a distinção ulterior postulada pelo realismo seja inconsistente com o paralelismo da passagem considerada. A distinção indubitável é que Adão sustenta uma relação genética com toda a raça e todos estão seminalmente unidos a ele e são derivados dele. Situações que não vigoram na relação de Cristo com o seu povo. No entanto, a razão por que essa consideração não afeta o argumento, em termos de debate entre realistase representacionistas, não é o fato da relação genética seminal que constitui o terreno específico de nosso envolvimento no “um só pecado” do “um só homem” Adão, tanto para os realistas como para os expoentes da representação. Para os realistas ela é união realista; para os representacionistas ele é união representativa. No caso de Romanos 5.12-19 é a questão da base sobre a qual o “um só pecado” de Adão se aplicar à condenação de todos e o “um só ato de justiça” de Cristo se aplicar à justificação de todos quantos são de Cristo. Nem os realistas nem os representacionistas sustentam que, no caso do pecado de Adão, a base é o fato de Adão ser o progenitor natural da raça. O interesse de ambos é a base específica da imputação do pecado de Adão, e, com respeito ao paralelo traçado em Romanos 5.12-19, a questão é se a base específica postulada pelos realistas para essa imputação é compatível com a analogia instituída pelo apóstolo entre o “um só pecado” do “um só homem” para a condenação e o “um só ato de justiça” do “um só homem” Jesus Cristo para a justificação. O caráter específico da união que serve de base específica para condenação e justificação é a questão em debate. (iii) Quando perguntamos sobre que prova a Escritura forneceu sobre existir em Adão essa “substância elementar invisível” chamada de natureza humana interpretada como específica e numericamente uma, não sabemos como achá-la. Somos verdadeiramente um com Adão, em termos de Hebreus 7.9-10 estávamos todos nos lombos de Adão, ele é o primeiro pai de toda a humanidade, e existe seminalmente a unidade de Adão e sua posteridade. Adão foi o primeiro a ser dotado de natureza humana e transmitiu essa natureza humana a toda sua descendência pela procriação natural. Tudo isso é defendido tanto por representacionistas como por realistas e acha-se apoiado na Escritura. Mas o postulado adicional da parte dos realistas, o pressuposto indispensável à sua posição distintiva, não é dos que podem apelar ao amparo da evidência bíblica. Além disso, não é um postulado indispensável à explicação dos fatos trazidos à nossa atenção na revelação bíblica. A união existente entre Adão e a posteridade é tal que pode ser interpretada em termos para os quais há evidência suficiente nos dados da revelação à nossa disposição. (iv) O argumento dos realistas, de que só a doutrina da unidade específica da raça em Adão lança, em termos de justiça, a base apropriada para a imputação do pecado de Adão à posteridade e a alegação deles de que a imputação do pecado de um representante vicário à posteridade viola a ordem da justiça[50] não leva em conta, o tanto quanto é preciso, o que nossos relacionamentos solidários ou corporativos envolvem. Os realistas admitem que seu postulado da unidade específica mostra-se verdadeiro apenas no caso de Adão e sua posteridade. Ademais, eles também precisam admitir que existem relacionamentos solidários em outras instituições nas quais nunca se faz presente a unidade específica exemplificada em Adão. Todavia, se analisarmos as responsabilidades implicadas nesses outros relacionamentos solidários e as avaliarmos em termos bíblicos, deveremos descobrir que a responsabilidade moral recai nos membros de uma entidade corporativa em virtude das ações dos representantes, ou do representante, dessa entidade.[51] Portanto, a negação da imputação do pecado vicário vai de encontro ao modo como opera o princípio da solidariedade em outras esferas. Além disso, não é válido insistir que o pecado vicário só pode ser imputado quando há a disposição voluntária para se aceitar tal imputação.[52] O relacionamento corporativo existe por instituição divina, e as responsabilidades corporativas existem e vigoram absolutamente à parte de as pessoas envolvidas as assumirem ou não de modo voluntário. É só porque ignoramos a onipresença da responsabilidade corporativa e não damos importância às implicações dessa responsabilidade que podemos estar prontos a aquiescer ao argumento de que o pecado de um representante não nos pode ser imputado. Já que o princípio é aplicável a Adão, não é difícil perceber que a imputação de pecado com base em sua posição representativa seria aplicada de forma exclusiva e universal. Isso seria apenas a ampliação para toda a raça humana, nos termos da sua solidariedade em Adão, de um princípio exemplificado muitas vezes em relacionamentos corporativos mais restritos. 2. A visão representativa Ao apresentar e defender a visão representativa é indispensável aliviá-la de algumas representações errôneas, da parte de seus oponentes, e de certa extravagância, da parte de seus proponentes. Quanto aos últimos, conforme mostrar-se-á mais tarde nesta série de estudos, a visão representativa não está presa à suposição de que a posteridade está envolvida só na poena do pecado de Adão e não, na culpa. Além disso, à visão representativa não se deve impor distinção entre reatus culpae e reatus penae, rejeitada pelos antigos teólogos reformados — caracterizada e criticada por eles como papista. Quanto à representação errônea, ou pelo menos equivocada, da parte de seus oponentes, talvez não seja desnecessário repetir que a visão representativa não nega mas, ao contrário, afirma que Adão é o cabeça natural da raça, sua união seminal com a posteridade; que todos derivam dele por geração natural uma natureza corrupta; e que, portanto, o pecado original é transmitido por procriação. W. G. T. Shedd afirma que: “Visto que a ideia da representação de Adão é incompatível com a da existência específica em Adão, é preciso decidir entre a união representativa e a união natural. Uma combinação das duas visões é ilógica”.[53] É verdade que a união natural com existência específica em Adão, segundo a definição de Shedd, não pode ser a combinação de duas ideias para explicar a imputação do pecado Adão à posteridade. Para dizer o mínimo, uma ideia torna a outra supérflua. Além disso, é também verdade que a ideia representativa tem na representação, e não na cabeça natural, a base específica da imputação do pecado de Adão. Nesse aspecto ela é similar à distinção realista, porque os realistas têm na unidade específica, e não na paternidade de Adão, a base específica da imputação do pecado de Adão. Mas é bem ilógico sustentar que na visão representativa da cabeça natural de Adão haja alguma incompatibilidade entre a cabeça natural e a união representativa. Segundo a construção representativa, a cabeça natural e a cabeça representativa são correlatas, e cada aspecto tem função própria e específica para explicar o status e condição em que os membros da raça se acham em consequência da relação deles com Adão. Portanto, é indispensável compreender que a ênfase de teólogos reformados na cabeça natural de Adão e na união seminal entre ele e sua posteridade não deve ser interpretada como a hesitação entre duas ideias incompatíveis,[54] nem que o apelo desses teólogos à cabeça natural e à relação seminal deve ser considerado como adesão à construção realista.[55] Quando chegamos à questão de evidências que apoiem a visão representativa, faz-se necessário aduzir de forma mais positiva as considerações já mencionadas na crítica ao realismo. (i) A união natural ou seminal entre Adão e a posteridade não está em questão; ela é pressuposta. Poder-se-ia alegar que isso é todo o necessário, que a Escritura não estabelece com clareza nenhum tipo extra de união, que, assim como Levi pagou o dízimo quando estava nos lombos de Abraão, assim também a posteridade pecou estando nos lombos de Adão.[56] Que mais pressupor? Algo mais, no entanto, parece ser indispensável. Talvez não se questione que haja algo gravemente singular e distinto sobre o nosso envolvimento no pecado de Adão. O pecado é o “um só pecado” de Adão. Se a relação com Adão fosse simplesmente a da união seminal, a de estar em seus lombos, isso não daria nenhuma explicação por que o pecado imputado seria apenas o primeiro pecado. Estaríamos igualmente em seus lombos quando ele cometeu outros pecados, os quaisseriam tão aplicáveis a nós como seu primeiro pecado, caso a justificativa total da imputação de seu primeiro pecado residisse no fato de que estávamos em seus lombos. Por isso é indispensável que exista algum outro fator para explicar a restrição ao “um só pecado” de Adão. À luz da narrativa de Gênesis 2 e 3 seremos obrigados a inferir que a proibição à árvore do conhecimento do bem e do mal estava associada com e exemplificava algum tipo de relacionamento especial estabelecido por instituição divina e em razão do qual o delito ou desobediência de Adão nesse particular envolvia não somente Adão, mas toda a sua posteridade por geração natural. Em outras palavras, havia um ato especial da providência que estabelecia um relacionamento especial em cujos termos devemos interpretar quais são, para a posteridade, as implicações do delito de Adão, em tomar parte do fruto proibido. (ii) Em 1 Coríntios 15.22, 45-49, Paulo nos apresenta uma das mais impactantes e significativas elucidações de toda a Escritura. Ele encerra a forma como Deus lida com os homens sob a dupla liderança dos dois Adãos. Não há ninguém antes de Adão; ele é o primeiro homem. Não há ninguém entre Adão e Cristo, porque Cristo é o segundo homem. Não há ninguém depois de Cristo; ele é o último Adão (v. 45-47). Adão e Cristo mantêm relacionamentos singulares com os homens. E o fato dessa história e destino serem determinados por esses relacionamentos é demonstrado pelo versículo 22: “assim como, em Adão, todos morrem, assim também todos serão vivificados em Cristo”. Todos quantos morrem, morrem em Adão; todos quantos são vivificados, são vivificados em Cristo. Diante dessa abrangente filosofia da história e destino humanos, e em vista dos papéis centrais e determinantes do primeiro e do último Adão, não podemos deixar de supor uma ordenação constitutiva da parte de Deus para esses relacionamentos singulares. E uma vez que a analogia instituída entre Adão e Cristo é tão conspícua, é sem dúvida necessário assumir que o tipo de relacionamento que Adão mantém com os homens segue o padrão de relacionamento que Cristo mantém com os homens. Explicando o caso pelo modo reverso, sem dúvida o tipo de relacionamento que Cristo mantém com os homens segue o padrão do que Adão mantém com os homens (cf. Rm 5.14). Mas se tudo o que conjecturarmos no caso de Adão for apenas a sua liderança ou paternidade naturais, não temos o tipo de relacionamento capaz de servir como padrão para a liderança de Cristo como o cabeça. Por isso, a analogia demandaria uma comunhão de relacionamento cuja liderança natural de Adão como cabeça não tem para oferecer. (iii) Conforme já mencionado, Romanos 5.12-19 oferece mais evidências relevantes para a questão em apreço do que qualquer outra passagem. O fato de Adão ser o tipo daquele que havia de vir (v. 14) e o paralelismo contido em todos os versículos seguintes (v. 15-19) implicam alguma similaridade de relacionamento. Mas se questionarmos que princípio comum seria esse, três coisas devem ser ditas. (a) Na relação de Adão com a posteridade, devemos pressupor mais do que a liderança natural como cabeça, pela mera razão de que, conforme vimos acima, esse tipo de união não fornece nenhuma analogia para a união existente entre Cristo e seu povo. (b) No caso de Cristo e dos justificados, sabemos que essa é uma união de representação vicária. Pelas provisões da graça, Cristo foi ordenado a agir em favor e em lugar dos beneficiários da redenção. A justiça de Cristo torna-se deles, para sua justificação e vida eterna. É uma provisão que existe por instituição divina, e todo o processo que anula o reino do pecado, condenação e morte fundamenta-se na união assim constituída. (c) O ímpeto geral da passagem, bem como seus detalhes, pode indicar a existência de um relacionamento semelhante no reino do pecado, condenação e morte. A construção da passagem toma por base, por um lado, o contraste entre o reino de pecado, condenação e morte, e por outro, o reino de retidão, justificação e vida, procedente da retidão de Cristo. Somos compelidos a reconhecer a existência de uma identidade de modus operandi, pois Adão é o tipo de Cristo. Por que razão, podemos perguntar, deveríamos ir em busca de qualquer outro princípio em termos do qual o reino do pecado, condenação e morte opera em lugar do princípio exemplificado no reino de retidão, justificação e vida? Não podemos conjecturar menos. Por que deveríamos conjecturar mais, quando não há nenhuma evidência que o exija ou lhe dê apoio? Concluímos, portanto, que é necessário mais do que liderança natural, que a liderança natural não traz em si a noção de “unidade específica” em Adão, que o algo mais exigido para explicar a imputação do primeiro pecado de Adão, e de nenhum outro, não é apresentado pela Escritura como o tipo de união defendida pelo realismo, e que, ao buscarmos descobrir a característica específica da união que servirá de alicerce à imputação do primeiro pecado de Adão, descobrimos que ela é do mesmo tipo de união análoga à união existente entre Cristo e seu povo e toma por base que a retidão de Cristo é a retidão de seu povo para a justificação e a vida eterna deles. A forma como devemos denominar esse tipo de união é uma questão de terminologia. Se a chamarmos de união representativa ou de liderança, será suficiente para os propósitos de identificação. A solidariedade foi constituída pela instituição divina, sendo ela de tal natureza que o pecado de Adão recai sobre toda a posteridade procriada naturalmente. Capítulo Três 4. A NATUREZA DA IMPUTAÇÃO Se a união existente entre Adão e sua posteridade for análoga à união existente entre Cristo e seu povo, podendo por isso ser chamada de união representativa, a questão que surge em seguida é sobre o modo como o pecado de Adão recai na conta da posteridade. A discussão dessa questão é indispensável em razão de considerações exegéticas e teológicas. particularmente pelos dados implícitos em Romanos 5.12-19. Todavia a história do debate acerca dessa questão força-nos a ter de lidar com ela, mesmo se tendêssemos a descartar ou ignorar os dados exegéticos. A história, nesse caso, como em tantos outros, determina a direção que a discussão deve tomar. Há dois pontos de vista que, em contraste mútuo, servem para pôr a questão na perspectiva que derrama um dilúvio de luz sobre a importância dos dados exegéticos. 1. A imputação mediata O nome particularmente associado à doutrina da imputação mediata é o de Josua Placaeus (Josué de la Place) da escola reformada de Saumur. Entende- se que ele ensinava que o pecado original consistia na depravação derivada de Adão e não abrangia a imputação da culpa do primeiro pecado de Adão. O 28º Sínodo das Igrejas Reformadas da França, reunido em Charenton, de 26 de dezembro de 1644 a 26 de janeiro de 1645, condenou oficialmente essa doutrina com os seguintes termos: “Relatou-se ao Sínodo da existência de certo texto, tanto impresso como manuscrito, o qual sustenta esta doutrina: toda a natureza do pecado original consiste apenas nessa corrupção, hereditária a toda a posteridade de Adão, e reside originalmente em todos os homens, e nega a imputação do seu primeiro pecado. O Sínodo condena a dita doutrina porque limita a natureza do pecado original à exclusiva corrupção hereditária da posteridade de Adão, excluindo a imputação do primeiro pecado, pelo qual ele caiu, e proíbe, sob pena de incorrer na total censura da Igreja, todo pastor, mestre, e outros que venham a tratar dessa questão, apartando-se do parecer comum recebido das Igrejas Protestantes, as quais (além dessa corrupção) todas admitem a imputação do primeiro pecado de Adão à sua posteridade”.[57] Placaeus respondeu que não negava a imputação do primeiro pecado à posteridade de Adão e, por isso, concordava totalmente com o decreto do Sínodo em não restringir o pecado original à corrupção hereditária. Ele, no entanto, defendia que a imputação do primeiro pecado de Adão era mediata, e não imediata. A imputação imediata e antecedente,
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