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UNIVERSIDADE FEDERAL DO SUL DA BAHIA – UFSB PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENSINO E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS CARTA DE INTENÇÃO DE PESQUISA PROJETO/INTERVENÇÃO: POR QUE PRECISAMOS DE UMA ESCOLA INDÍGENA BILÍNGUE? Os desafios do Ensino de Língua Portuguesa na Escola Indígena Pataxó Barra Velha Carta de intenção de pesquisa destinada ao Processo Seletivo para ingresso no Programa de pós-graduação em Ensino e Relações Étnico-raciais do Universidade do Sul da Bahia – Campus Paulo Freire. Linha de pesquisa 01: Educação Escolar Indígena e Educação Indígena, Educação Escolar Quilombola, processos educativos de outros povos tradicionais (ciganos, ribeirinhos, caiçaras, entre outros), formação de professoras/es/xs, interculturalidade, revitalização linguística, diferença, Currículo, Gêneros, Sexualidades, Crianças, Infâncias e Juventudes. Professor Orientador: Paulo de Tássio Linha de pesquisa 02: Histórias e cultura indígenas da Bahia e do Brasil, história indígena e história da Bahia/Brasil e educação. Professor Orientador: André Rego Linha de pesquisa 03: Literaturas; Literaturas Afro-brasileiras e Indígenas; Feminismos; Gêneros; Interseccionalidade; Multidimensionalidade nos Estudos Feministas; Estudos Decolonias, Memórias, Escrevivências e Escritas de Si. Professora Orientadora: Lílian Gonçalves TEIXEIRA DE FREITAS JANEIRO/2021 POR QUE PRECISAMOS DE UMA ESCOLA INDÍGENA BILÍNGUE? Os desafios do Ensino de Língua Portuguesa na Escola Indígena Pataxó de Barra Velha Meu nome é Ednajara Pesca de Jesus Deocleciando, sendo Pesca herdado da minha mãe, De Jesus herdado do meu pai e Deocleciano adquirido após a minha união conjugal. Nasci em 22 de Dezembro de 1979, embora de registro, tenha a data sido modificada para o dia 20 de Dezembro, devido ao atraso que se tinha na época para se registrar, ocasionando assim, alterações de datas. Minha mãe se chama Benedita Francisca Pesca, indígena Pataxó nascida no Território Indígena de Coroa Vermelha e meu pai, se chama Durval Barbosa de Jesus, homem negro, nascido na região de Santa Rosa, Pau Brasil, ambos no Extremo Sul da Bahia. Morei o início da minha vida na Aldeia Coroa Vermelha, porém, quando cheguei à idade escolar me deslocava junto ao meu irmão mais velho para o município de Eunápolis, visto que a possibilidade de estudo em Coroa Vermelha era bem ausente. Quando eu tinha nove anos de idade meus pais precisaram se mudar para um povoado vizinho chamado Vera Cruz, pertencente ao município de Porto Seguro, para tentarem condições melhores de estudo para meus irmãos e eu. Minhas raízes sempre foram em Coroa Vermelha, onde meus avós maternos e parentes permaneceram. Após concluir meu processo de formação do Ensino regular, com formação em magistério, em 1999, fui exercer a docência na Aldeia Barra Velha. Nessa época o processo de escolarização na Aldeia Barra Velha estava em construção, havia apenas uma escolinha na sede e poucos professores indígenas atuando Na minha trajetória docente, pude acompanhar o longo itinerário da Educação Escolar Indígena na Aldeia. Muitas foram as dificuldades enfrentadas ao longo desse percurso, não havia energia na Aldeia Mãe e muitos dos professores atuantes na escola não eram da aldeia. Na época a escola só ofertava o ensino primário, tempos depois, por meio de lutas uma outra escola foi construída podendo então ampliar a oferta para o Ensino Fundamental II e, mais adiante, fruto da mesma luta, o Ensino Médio, por meio do regime de Alternância. Durante esse percurso, pude contribuir com a Educação Escolar Indígena de Barra Velha e no processo de formação de muitos dos parentes com os quais hoje compartilho da profissão, muitos que foram meus discentes desde o ensino primário. Na época, o Ensino superior era um sonho quase inatingível, principalmente em universidades públicas. A criação do Ensino Superior à distância tornou o acesso ao nível superior mais real. Em 1996, após bastante tempo de conclusão da minha formação inicial, pude ingressar no Ensino Superior, por meio de uma Faculdade Particular. Apesar das dificuldades de deslocamento e um suporte pedagógico bem precário, foi a oportunidade mais palpável de ter acesso ao nível superior. Cursei letras pela UNIUBE, Universidade de Uberaba, com pólo em Itamarajú e pude, enfim dar continuidade à minha formação acadêmica. Durante todo o meu processo docente, com atuação em grande parte como professora de Língua Portuguesa, compreendia a necessidade de nós indígenas termos domínio das técnicas da escrita alfabética, pois, inúmeras vezes o uso dessas técnicas foram importantes para a reinvindicação de direitos, a elaboração de documentos, a inserção de sujeitos indígenas em espaços externos à aldeia Em um longo período de atuação na Escola Indígena Pataxó de Barra Velha, desde a pré- escola até o Ensino Médio, trabalhando com alfabetização e o Ensino de Língua Portuguesa, algo que sempre fez parte das minhas inquietações fora o porquê de os estudantes indígenas lidarem com o ensino da Língua Portuguesa com grandes dificuldades. É possível estabelecermos uma relação histórica dos povos indígenas com a linguagem oral, de modo que a escrita alfabética contraria as bases culturais por meio das quais historicamente os povos se comunicaram ao longo do tempo, mas, considerando que a Língua Portuguesa dentro do processo de escolarização dos povos sempre esteve presente, se tornou cada vez mais necessário que o uso de suas técnicas passasse a fazer parte do cotidiano, principalmente como ferramenta emancipatória, no que diz respeito à autonomia dos povos indígenas em reivindicar seu espaço nos lugares de poder. O processo de colonização dos povos indígenas no Brasil tem como uma de suas fortes bases genocida e etnocida, a inserção da Língua Portuguesa e a despotencialização do uso da língua materna. A tentativa de extinção das línguas indígenas e a imposição da Língua Portuguesa fez parte das estratégias de extermínio da cultura e da identidade dos diversos povos que habitavam o Brasil à época da invasão europeia. Com o processo de catequização e de escolarização dos povos indígenas a língua do colonizador, assim como todos os outros aspectos do que eles consideravam como civilizatórios, foram conduzidos de forma forçosa ao modo de vida desses povos. A constituição de 1988 devolve aos povos indígenas, por meio de muitas reinvindicações dos próprios povos, o direito a se manifestarem em suas línguas originárias, no entanto, após séculos de colonização o processo de retomada das línguas indígenas ainda é parte das lutas dos povos por resistência. A luta dos movimentos indígenas por uma Educação específica e diferenciada constituiu um importante cenário dessas lutas por respeito às especificidades dos povos, inclusive, no que diz respeito ao uso da linguagem materna e seu ensino nas escolas indígenas, no entanto, o ensino da Língua Portuguesa sempre esteve presente nesses processos de escolarização, uma vez que, com o passar do tempo, em muitas das aldeias do Brasil, principalmente nas aldeias situadas na Bahia, ela se tornou a primeira língua falada. Durante muito tempo os povos indígenas vêm fazendo um trânsito necessário entre a Língua Portuguesa e sua língua de origem. O povo Pataxó por meio de estudos e pesquisas estão em um constante processo de reformulação da Língua Pataxó, chamada de Patxôhã e, embora muito já se tenha realizado até aqui no âmbito da língua, o Português ocupa nas escolas indígenas maior carga horária, é também a língua de fluência na comunicação falada e escrita. As ações docentes na área de Língua Portuguesa me propuseram grandes desafios, pois, com o longo período atuando nesta área, ficou notório que os estudantes indígenas demonstram grandes dificuldades na realização de produçõespor meio da escrita alfabética e que o estudo da Língua Portuguesa na escola é considerada como algo de grande complexidade. Considerando que a Língua Portuguesa ainda tem seu uso majoritário pelos povos indígenas e que as técnicas escriturais ocupam ainda um espaço de destaque em nossa sociedade grafocêntrica, como tornar o ensino desta área em um espaço de fortalecimento das práticas culturais e estabelecer um olhar de maior importância para o sentindo de uma escola bilíngue para os Pataxó? O maior desafio aqui é, sem dúvida, no contexto da produção escrita, uma vez que o uso das técnicas que a envolvem se diferem da articulação discursiva da oralidade, algo que para os Pataxó e demais povos indígenas faz parte de sua cultura, sendo o contrário quando trata-se da escrita alfabética. Desse modo, é no contexto da produção escrita que pretendo desenvolver a presente pesquisa/intervenção, embora, seja necessário salientar que os outros aspectos do Ensino da Língua Portuguesa estarão também presentes nas reflexões. Outro ponto relevante a se pensar é que o uso de ferramentas como a escrita alfabética e o domínio das técnicas de uso da Língua Portuguesa não podem nos colocar em um lugar de desvantagem. A imposição dessas técnicas ao longo do tempo criou grandes abismos que fortaleceram a posição na qual os indígenas foram colocados historicamente, às margens. O professor Dr. Gabriel Nascimento fala em seu livro intitulado de “Racismo Linguístico”, sobre as questões linguísticas às quais são submetidas o povo negro. É possível termos essa percepção também entre os povos indígenas, pois sabemos que são igualmente atingidos por esse tipo de racismo, estereótipos como o de não falar e não escrever corretamente, do ponto de vista do padrão do colonizador, também fazem parte da carga de preconceitos com a qual os povos indígenas são marcadamente tratados. O autor nos chama a atenção para refletirmos que, além de o termo negro ter sido criado como categoria discursiva e histórica, esses sujeitos também foram obrigados a utilizarem da língua do colonizador para produzir significados de defesa e sobrevivência após o processo de escravização sendo capaz inclusive de produzir transformações nessa língua. Do mesmo modo, podemos pensar no discurso do índio genérico e nas inúmeras adaptações que os grupos indígenas tiveram que fazer da língua do colonizador. Nascimento, 2019, nos propõe uma reflexão ao afirmar que: É o caso dos negros e indígenas que foram obrigados a falar o Português de Portugal como “sua” língua “primeira” no Brasil. O combate às línguas faladas pelos povos originários negros e indígenas figura como um dos primeiros atos do mito da brasilidade linguística entre nós, gerando ao mesmo tempo, epistemicídio e linguícidio (NASCIMENTO, 2019, pág. 99). As atitudes de subjugação e extermínio do conhecimento dos povos subalternizados e compulsoriamente a implantação de ideais forjados pelo branco, de nacionalidade, expõem as consequências funestas de invisibilização dessas vozes por meio de mecanismos que os colocassem nesse lugar de subalternidade e inferioridade. Ao mesmo tempo, é possível refletirmos junto ao autor, que embora a imposição da língua, pensando no contexto indígena, faça parte de um projeto assimilacionista, essa língua não se mantém estática dentro desse projeto, pois, a partir do momento que os sujeitos indígenas são atravessados por ela, também a atravessam e a ressignificam na medida em que a usam para ampliação dos ideais de resistência. Nascimento afirma ainda: Se, por um lado, o sujeito se submete à língua, por outro lado, a língua muda por meio dos sujeitos e das convenções criadas através da língua que não são autoconscientes. Por isso, as línguas têm sujeitos por trás delas. De outras formas as línguas não são neutras e sempre são atravessadas por processos de poder, como os próprios sujeitos (NASCIMENTO, 2019, pág. 200). Embora parte dessa estrutura de poder, a língua dentro dos contextos das lutas antirracistas passam a ocupar esse lugar de contra-movimento que os povos subalternizados têm usado também para produzir resistência. Como o próprio autor afirma em outro tópico de sua obra “A Língua tem cor e é uma possibilidade de luta e de resistência ao processo de racialização do pensamento moderno, que não só cria opressão, mas cria a língua como seu processo gerador primordial” (NASCIMENTO, 2019). O projeto/intervenção em tela para o qual a presente carta pretende defender, propõe refletir acerca dos desafios frente ao Ensino de Língua Portuguesa na Escola Indígena de Barra Velha, estabelecer um diálogo para pensar como o ensino e domínio de técnicas como a da escrita alfabética em Língua Portuguesa podem ser utilizados de modo a contribuírem com os movimentos de resistência e fortalecimento do povo Pataxó de Barra Velha e como é possível que a Escola Indígena possa fortalecer o ensino bilíngue que, ao mesmo tempo que fortalece a expressão linguística dos povos em sua língua materna, fortalece a pontencialização dos sujeitos Pataxó em espaços de poder, como as universidades, espaços de produção acadêmica e de formação intelectual. Proponho por meio desta pesquisa, a promoção de oficinas de produção escrita que iniciem fazendo levantamento e análises das principais dificuldades enfrentadas pelos estudantes indígenas do Ensino Médio com a disciplina, ofertando no mesmo âmbito, oficinas de produção escrita de modo a proporcionar espaços de produção que configurem em local de reflexão das práticas escriturais e os desafios inerentes a essas práticas. Como artefato resultante dessas oficinas, está a proposição da produção de uma coletânea com textos autorais elaborados pelos discentes de maneira bilíngue, valorizando as formas de expressão linguística escrita visando a construção de um material que, ao mesmo tempo que traga o protagonismo desses sujeitos indígenas como autores, possam contribuir com o fortalecimento e o respeito ao ensino bilíngue nas escolas indígenas. O Programa de Pós-graduação em relações étnico-raciais é uma oportunidade de repensar atitudes e refletir acerca da práxis pedagógica de modo a contribuir com reflexões e ações de engajamento e de possibilidade de mudança de pensamento. Embora o Ensino de Língua Portuguesa tenha ocupado um lugar de colonização utilizado para dominação dos povos, hoje ela é parte de nossos processos de comunicação e expressão de nossas epistemes, de modo que se faz importante repensarmos os modos como esse ensino possa estar provocando impactos nas escolas indígenas de maneira negativa e passemos a reconduzir esse ensino de modo que possa estabelecer uma relação de empoderamento e fortalecimento das práticas da educação Escolar Indígena e tudo que ela promove de mudança, fortalecimento e militância. Referência NASCIMENTO, Gabriel. Racismo Linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo. Letramento, Belo Horizonte, 2029.
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