Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
2019 Manual das Sucessões 6ª edição revista, atualizada e ampliada 00_A_sucessoes_iniciais.indd 3 16/07/2019 16:17:02 1 DIREITO DAS SUCESSÕES Sumário: 1.1. Origem – 1.2. Aspectos históricos – 1.3. No Brasil – 1.4. Tentativa conceitual – 1.5. Viés constitucional – Leitura complementar Referências legais: CR 5.º XXX e XXXI, 155 § 1.º I; LINDB 10; CC 6.º a 9.º, 22 a 39, 56 parágrafo único, 133, 202 IV, 204, 270, 276, 415, 497 I, 498, 507, 520, 550, 553 parágrafo único, 560, 561, 577, 607, 626, 637, 674, 682 II, 685, 689, 690, 691, 702, 719, 792 parágrafo único, 793, 794, 797, 836, 865, 917 § 2.º, 965 I, III e IV, 1.027, 1.028, 1.032, 1.050, 1.056 § 1.º, 1.206, 1.207, 1.320 § 2.º, 1.372, 1.410 I, 1.429, 1.489 II a IV, 1.523 I e II, 1.555, 1.571 I e § 1.º, 1.597 II, 1.601 parágrafo único, 1.606, 1.635 I, 1.645, 1.650, 1.652, 1.668 I, 1.675, 1.676, 1.685, 1.686, 1.691 parágrafo único, II, 1.693 III e IV, 1.700, 1.721 parágrafo único, 1.729 parágrafo único, 1.730, 1.733 § 1.º, 1.754 IV, 1.759, 1.784 a 2.027; CPC 75, VI e VII, 110, 778 § 1º II, 610 a 673; Lei 5.172/1866 (Código Tributário Na- cional – CTN), 35 parágrafo único, 41; Lei 8.971/1994; Lei 9.278/1996. 1.1. ORIGEM Sem entrar na controvérsia de quando começa a vida, o certo é que ninguém quer que ela acabe com a morte. O desejo de transcender para além da existência corpórea encontra respostas nas religiões que, inva- riavelmente, prometem a continuação da vida em dimensões outras. A ideia de perenidade da vida está muito ligada à questão sucessória, que se afirma como complemento natural à perpetuação da família. A mesma cadeia ininterrupta que une as gerações constitui o nexo sucessório civil. A continuidade da vida implica logicamente continuidade no gozo dos bens necessários à existência e ao desenvolvimento do indivíduo.1 1. Carlos Maximiliano, Direito das Sucessões, v. 1, 21. Dias-Manual das Sucessoes-6ed.indb 43 10/07/2019 15:47:54 MANUAL DAS SUCESSÕES • Maria Berenice Dias44 Nas sociedades organizadas em bases capitalistas, o direito sucessório surge com o reconhecimento natural da propriedade privada.2 Está ligado à continuação do culto familiar que, desde os tempos remotos, advém da ideia de propriedade.3 O patrimônio e a herança nascem do instinto de con- servação e melhoramento.4 A manutenção dos bens no âmbito da família é um eficiente meio de preservação da propriedade privada, pois todos os seus membros acabam defendendo os bens comuns. Nas sociedades onde não existe direito de propriedade nem interesse na preservação da família não existem direitos sucessórios. Fundamentos de origem biológica e antropológica ligados à heredi- tariedade são invocados para justificar a transmissão hereditária de bens.5 O filho herda não só as qualidades da espécie e da raça, mas também as particularidades da família. Herda as características físicas, psíquicas e morais e, como afirma Carlos Maximiliano, a lei deve reconhecer o que existe naturalmente.6 A hereditariedade existe em toda a natureza. Ao se assegurar o direito de transmitir bens aos entes caros, mantém-se perpétuo o estímulo ao trabalho e à economia, ao aperfeiçoamento e à constância do esforço útil.7 Daí a naturalização da ideia de que a transferência do patrimônio aos descendentes, além de estimular a poupança, o trabalho e a economia, consolida a estrutura familiar, como fator de proteção, coesão e perpetuidade da família.8 O interesse pelo futuro e pelo bem-estar da prole é instintivo. O homem, por afeto e bondade, leva adiante o seu labutar, até conseguir iguais vantagens para os entes que o cercam, auxiliam e estimam.9 A solidariedade humana não se reduz unicamente ao espaço, tem, necessariamente, que abranger o tempo. Este é o fundamento social da transmissão das obrigações causa mortis. Mas há também um fundamento jurídico: não permitir que a morte converta o patrimônio de alguém em res derelicta, isto é, coisa sem dono. O patrimônio individual constituiu-se 2. Lia Pallazzo Rodrigues, Direito sucessório do cônjuge sobrevivente, 121. 3. Sílvio Venosa, Direito Civil, v. 7. 4. Carlos Maximiliano, Direito das Sucessões, v. 1, 29. 5. Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil brasileiro, v. 6, 5. 6. Carlos Maximiliano, Direito das Sucessões, v. 1, 21. 7. Idem, 28. 8. Giselda Hironaka, Direito das Sucessões, 5. 9. Carlos Maximiliano, Direito das Sucessões, v. 1, 22. Dias-Manual das Sucessoes-6ed.indb 44 10/07/2019 15:47:54 Cap. 1 • DIREITO DAS SUCESSÕES 51 viveram ao falecido.27 É o patrimônio composto de ativo e passivo deixado pelo falecido por ocasião de seu óbito, a ser recebido por seus herdeiros.28 Os sucessores passam a ter a mesma situação jurídica do falecido – chamado de autor da herança –, quer com relação aos direitos, quer quanto aos seus bens. A herança constitui uma universalidade de direitos (CC 91): complexo de relações jurídicas dotadas de valor econômico. Até a partilha, a herança é indivisível (CC 1.791 parágrafo único), os bens não podem ser fracionados (CC 88). Também por força da lei é considerada bem imóvel (CC 80, II). O acervo hereditário, no âmbito judicial, recebe o nome de espólio. Não tem personalidade jurídica, mas tem capacidade jurídica para de- mandar e ser demandado (CPC 75, VII). Trata-se de universalidade de bens de existência transitória. Não dispõe de patrimônio próprio e tem proprietários conhecidos. São bens provisoriamente reunidos que perten- cem aos herdeiros em condomínio. 1.5. VIÉS CONSTITUCIONAL Tanto o direito de propriedade (CR 5.º XXII) como o direito sucessório (CR 5.º XXX) dispõem de assento constitucional. Ambos estão consagrados como direitos fundamentais. O campo sucessório é terreno fecundo para o reconhecimento de garantias e direitos fundamentais. No entanto, ao ser eleita a dignidade humana como valor máximo do sistema normativo, houve uma mudança na noção dos poderes individuais da propriedade, trazendo a ideia da sua função social (CR 5.º XXIII). A função social é incompatível com a noção de direito absoluto, oponível a todos, em que se admite apenas a limitação externa negativa. Importa em limitação interna, positiva, condicionando o exercício do próprio direito.29 Como refere Luiz Edson Fachin, mudaram os poderes clássicos do proprietário, substituindo a antiga crença pela ideia de função social. A fruição do proprietário se vê funcionalizada pela Lei Maior. Há uma intervenção do interesse público na esfera jurídica privada, antes intocável.30 27. Sílvio Venosa, Direito Civil, v. 7, 6. 28. Claudia Nogueira, Direito das Sucessões, 7. 29. Paulo Lôbo, Constitucionalização do Direito Civil, 106. 30. Luiz Edson Fachin, Teoria crítica do Direito Civil, 313. Dias-Manual das Sucessoes-6ed.indb 51 10/07/2019 15:47:54 2 PARENTESCO Sumário: 2.1. Características – 2.2. Classificação – 2.3. Linha – 2.4. Grau – 2.5. Estirpe – 2.6. Afinidade – 2.7. Adoção – 2.8. Filiação socioafetiva e multiparentalidade – 2.9. Adoção póstuma e reconhecimento da filiação socioafetiva post mortem – 2.10 Falecimento do pai antes do nascimento do filho – Leitura complementar. Referências legais: CR 227 § 6.º; CC 12 parágrafo único, 1.591 a 1.619; CNJ – Provimento 63/20187. 2.1. CARACTERÍSTICAS Quando morre alguém, seus bens – com o nome herança – transmi- tem-se a seus parentes. Esta é uma regra de direito sucessório que todo mundo conhece. Claro que não é só isso, mas basicamente é. A escolha dos parentes que irão suceder pressupõe que o desejo das pessoas é contemplar os mais chegados. Por isso a transmissão é feita segundo os laços familia- res. A lei elege os herdeiros que serão chamados em ordem decrescente de afetividade, de graus de parentesco, de afinidade, de proximidade.1 Assim, não dá para pensar em sucessão sem saber quem é herdeiro de quem. Daí a indispensabilidade de identificar os vínculos parentais, que se submetem a várias modalidades classificatórias. As relações de parentesco se esgotam no rollegal. Mas, socialmente, o conceito é bastante distendido, envolvendo todos os que têm um elo familiar comum. O fato de a lei estabelecer limites ao parentesco não quer dizer que os demais deixam de ser parentes. Só que a eles o direito não socorre: não 1. Fabrício Castagna Lunardi, A concorrência do cônjuge..., 18. Dias-Manual das Sucessoes-6ed.indb 57 10/07/2019 15:47:55 MANUAL DAS SUCESSÕES • Maria Berenice Dias62 Na relação de parentesco em linha reta descendente, olha-se a partir do pai (A) frente ao filho (B) e o neto (C). Visualizando-se o parentesco pela linha de ascendência, parte-se do neto (C), subindo-se ao pai (B) até o avô (A), e assim sucessivamente. A ascendência gera duas linhas de parentesco, pois todos descendem de duas pessoas. A linha de ascendência bifurca-se sucessivamente entre os ascendentes paternos e maternos. Chama-se linha paterna o parentesco de alguém (A) com o pai (B) e com os seus ascendentes: avós (D e E) e bisavós paternos (H, I, J e K), sem qualquer limite. O parentesco em linha reta ascendente materna se constitui com a mãe (C), os avós (F e G) e os bisavós maternos (L, M, N e O). Dias-Manual das Sucessoes-6ed.indb 62 10/07/2019 15:47:55 4 UNIÃO ESTÁVEL Sumário: 4.1. Distinção inconstitucional – 4.2. Meação – 4.3. Companheiro como herdeiro necessário – 4.4. Concorrência sucessória – 4.5. Direito real de habitação – 4.6. Aspectos pro- cessuais – Leitura complementar. Referências legais: CR 201 V, 226 § 3.º; CC 793, 1.723 a 1.727, 1.790, 1.797 I, 1.801 I, 1.802 parágrafo único, 1.814 I e II, 1.844, 1.963 III; CPC, 616 I e IX, 617 I, e II, 620 II, 626, § 1.º, 648 III, 649, 653 I a, 672 II, 740 § 6.º, 741 § 3.º; Lei 8.971/1994, 2.º, II; Lei 9.278/1996, 7.º; Lei 12.195/2010. 4.1. DISTINÇÃO INCONSTITUCIONAL Ainda que a sucessão ocorra prioritariamente entre parentes, não só eles integram a ordem de vocação hereditária – também cônjuges e com- panheiros desfrutam da qualidade de herdeiro. Inclusive a lei lhes concede situação privilegiada, ainda que, de forma absolutamente desarrazoada, o tratamento deferido ao viúvo é bem mais vantajoso do que o concedido ao companheiro sobrevivente. As diferenças são de diversas ordens. Um é herdeiro necessário. O outro não. Ambos têm direito de concorrência su- cessória, mas em bases diferentes. O companheiro sempre em desvantagem. Mesmo com o advento da norma constitucional, que reconheceu a união estável como entidade familiar (CR 226 § 3.º), a jurisprudência resistiu em conceder direito sucessório ao companheiro. Somente com a regulamentação da união estável foi reconhecido aos companheiros direitos sucessórios iguais ao casamento (L 8.971/94 e 9.278/96). No entanto, O Código Civil, ao tratar do direito sucessório na união estável, ao menos em cinco aspectos, trouxe inegável prejuízo ao compa- nheiro sobrevivente: – não o reconhece como herdeiro necessário; – não lhe assegura quota mínima; Dias-Manual das Sucessoes-6ed.indb 99 10/07/2019 15:47:56 MANUAL DAS SUCESSÕES • Maria Berenice Dias100 – o insere no quarto lugar na ordem de vocação hereditária, depois dos colaterais; – limita o direito concorrente aos bens adquiridos onerosamente durante a união; – não lhe confere direito real de habitação; e – só recebe a totalidade da herança se não existir nenhum herdeiro: um irmão, um tio, um sobrinho, um tio-avô, um sobrinho-neto ou um primo sequer. O companheiro nem foi incluído na ordem de vocação hereditária (CC 1.829). O seu direito encontra-se previsto entre as disposições da sucessão em geral, em um único artigo com quatro incisos (CC 1.790). Este tratamento diferenciado não é somente perverso. É flagrantemente inconstitucional, por afrontar ao princípio da igualdade. A união estável é reconhecida como entidade familiar (CR 226 § 3.º), que não concedeu tratamento diferenciado a qualquer das formas de cons- tituição da família. Conforme Zeno Veloso, o art. 1.790 merece censura e crítica severa porque é deficiente e falho, em substância. Significa um retro- cesso evidente, representa um verdadeiro equívoco.1 Como alerta Rodrigo da Cunha Pereira, não há dúvida que este artigo representa um grande retrocesso para a união estável, vez que colocou o companheiro em posição muito inferior ao cônjuge. Ao que parece, retomou-se a mentalidade de que a união estável é uma “família de segunda classe” e não uma outra espécie de família, nem melhor nem pior do que o casamento, apenas diferente.2 Mais do que isso, a norma é materialmente inconstitucional, porquanto, no lugar de dar especial proteção à família fundada no companheirismo, retira direitos e vantagens anteriormente existentes em favor dos companheiros.3 Em face da equiparação entre casamento e união estável, não pode a lei limitar direitos consagrados em sede constitucional e assegurados na legislação pretérita. Tal postura afronta um dos princípios fundamentais que rege o direito das famílias, que veda o retrocesso social. Ressalta Le- nio Streck que nenhum texto proveniente do constituinte originário pode sofrer retrocesso que lhe dê alcance jurídico social inferior ao que tinha originariamente, proporcionando retrocesso ao estado pré-constituinte.4 1. Zeno Veloso, Do Direito sucessório dos companheiros, 231. 2. Rodrigo da Cunha Pereira, Comentários ao Código Civil, 188. 3. Arnoldo Wald, O novo Direito das Sucessões, 97. 4. Lenio Luiz Streck, Hermenêutica jurídica e(m) crise, 97. Dias-Manual das Sucessoes-6ed.indb 100 10/07/2019 15:47:56 5 UNIÃO HOMOAFETIVA Sumário: 5.1. A omissão do legislador – 5.2. Avanços jurispru- denciais – 5.3. Aspectos processuais – Leitura complementar. Referências legais: CR 226; Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) 2.º e 5.º parágrafo único; Lei 12.852/2013 (Estatuto da Juventude) 17, II e 18, III; Lei 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) 18 § 4º VI; PECs 110 e 111/2011; PLS 134/2018 – Estatuto da Diversidade Sexual e de Gênero; Resolução 2.168/2017 do CFM – Conselho Federal de Medicina; Dec. 8.243, de 23/05/2014, art. 3º, III; Resolução 175/2013 do CNJ; Provimento 63/2017 do CNJ; Provimento 73/2018 do CNJ. 5.1. A OMISSÃO DO LEGISLADOR As uniões de pessoas do mesmo sexo – agora chamadas de uniões homoafetivas34 – ainda não mereceram qualquer regulamentação legal. A omissão é injustificável e afronta escancaradamente um punhado de prin- cípios constitucionais: de respeito à dignidade, da liberdade, da igualdade, para citar apenas alguns. A Constituição da República, ao elencar as entidades familiares, faz referência ao casamento, à união estável entre homem e mulher e à famí- lia monoparental (CR 226 § 3.º). Apesar da omissão, não há como deixar as uniões homoafetivas fora do atual conceito de família. Como sustenta Paulo Lôbo, a referência constitucional é uma norma de inclusão, que não permite deixá-las ao desabrigo do conceito de família, que dispõe de um significado plural.35 34. O neologismo foi criado por mim na primeira edição da obra Homoafetividade e os direitos LGBTI. 35. Paulo Lôbo, Entidades familiares constitucionalizadas:..., 95. Dias-Manual das Sucessoes-6ed.indb 115 10/07/2019 15:47:57 10 PRINCÍPIO DE SAISINE Sumário: 10.1. Conceito e características – 10.2. Delação e renúncia – Leitura complementar. Referências legais: CC 1.784. 10.1. CONCEITO E CARACTERÍSTICAS No momento da morte ocorre a sucessão hereditária. Independente- mente de qualquer formalidade, o acervo patrimonial do falecido trans- mite-se aos herdeiros (CC 1.784). Esse movimento é chamado de princí- pio de saisine, palavra de origem francesa que significa agarrar, prender, apoderar-se. Princípio de saisine representa uma apreensão possessória.1 Nada mais do que a faculdade de alguém entrar na posse do patrimônio alheio. Isso tudo para que bens, direitos e obrigações não se extingam com a morte de seu titular. São inegáveis as vantagens da adoção do princípio da saisine: evita o estado de acefaliado patrimônio, a jazer sem titular; dispensa a ficção jurídica de emprestar personalidade jurídica ao espólio; propicia a qualquer herdeiro o manejo das ações possessórias.2 Dito princípio consagra uma ficção: a imediata transferência de pleno direito dos bens do falecido para os seus herdeiros quando da abertura da sucessão. Como os dogmas de fé, esta é uma verdade que se tem de aceitar sem discutir. Morto o titular, seu patrimônio – com o nome de herança – 1. Sílvio Venosa, Direito Civil, v. 7, 14. 2. Luiz Felipe Silveira Difini, Direito de saisine, 251. Dias-Manual das Sucessoes-6ed.indb 153 10/07/2019 15:47:58 14 ORDEM DA VOCAÇÃO HEREDITÁRIA Sumário: 14.1. Quem herda? – 14.2. Descendentes: 14.2.1. Multiparentalidade; 14.2.2. Direito de representação – 14.3. Ascendentes – 14.4. Cônjuge – 14.5. Companheiro – 14.6. Colaterais – 14.7. Estado – Leitura complementar. Referências legais: CC 1.790, 1.829 a 1.844; Dec.-Lei 3.438/1941; Lei 8.049/1990. 14.1. QUEM HERDA? Quando uma pessoa falece, seus bens, direitos, encargos e obrigações precisam ser transmitidos a outrem. Para quem é transferida a titularidade do acervo patrimonial do de cujus? O legislador parte do pressuposto de que existe maior vínculo com os parentes mais chegados. Baseia-se na presunção de afeto com os familiares. Também nos deveres decorrentes do poder familiar, dos pais com relação aos filhos, e o vínculo de solida- riedade com os demais parentes. Por isso os descendentes são convocados antes dos ascendentes e os últimos chamados são os colaterais.1 O critério da afetividade presumida inclui o cônjuge e o companheiro. Assim, a lei institui uma ordem de prioridade na escolha de quem vai ganhar a herança. É o que se chama ordem de vocação hereditária. Vocação vem do latim vocare e significa chamar. A ordem é excludente. Somente são chamados os herdeiros mais dis- tantes quando não existem parentes mais próximos. A identificação de quem tem direito à herança caminha pelas linhas do parentesco: reta e colateral. Na linha reta, em primeiro lugar a busca do herdeiro primeiro desce para depois ascender. Não encontrados filhos, netos ou bisnetos e nem pais avós ou bisavôs, indaga-se a existência de cônjuge ou companheiro sobrevivente. 1. Frederico de Ávila Miguel, A sucessão do cônjuge sobrevivente..., 28. Dias-Manual das Sucessoes-6ed.indb 193 10/07/2019 15:48:00 Cap. 14 • ORDEM DA VOCAÇÃO HEREDITÁRIA 199 II – D IR EI TO S U CE SS Ó RI O Mesmo que não sobreviva nenhum dos avós de uma mesma linha, não importa, a divisão é igual: metade para a linha materna e metade para a paterna. O único sobrevivente da linha materna recebe a metade e a outra metade fica para a linha paterna. Cada um dos avós paternos recebe 1/4 da herança. Dias-Manual das Sucessoes-6ed.indb 199 10/07/2019 15:48:01 Cap. 16 • CONCORRÊNCIA DO CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO 225 II – D IR EI TO S U CE SS Ó RI O possível excluir o companheiro da sucessão. O cônjuge pode ser deserdado, mas a causa precisa ser declarada no testamento e confirmada em juízo. 16.2.1. Concorrência com os descendentes Na concorrência sucessória com os descendentes, cônjuges e compa- nheiros fazem jus à fração dos bens particulares como se filhos fossem. A meação do falecido é dividida somente entre os descendentes. A divisão é feita por cabeça entre o sobrevivente e os herdeiros. As- sim, sendo um filho, os bens são divididos com o seu genitor. Sendo dois os filhos, eles ficam com dois terços, e o cônjuge ou o companheiro com um terço. O mesmo ocorre se forem três os filhos: cada um recebe uma quarta parte. 1 filho 2 filhos 3 filhos Se o número dos herdeiros for superior a quatro, o cônjuge tem direito a uma quota mínima de 1/4 dos bens particulares, recebendo quinhão maior que seus filhos. Assim, se o casal tinha cinco filhos, o cônjuge recebe 25% dos bens particulares, e cada um dos filhos 15%. Esta fração mínima é assegurada também na união estável, uma vez que o artigo que contempla tal direito (CC, 1.832) faz expressa referência ao inciso I do art. 1.829, que o STF determinou que se aplicasse ao com- panheiro sobrevivente. União estável Cônjuge ou Companheiro Dias-Manual das Sucessoes-6ed.indb 225 10/07/2019 15:48:02 24 TRANSMISSÃO DA HERANÇA Sumário: 24.1. Benefício de inventário – 24.2. Teoria da disregard – 24.3. Morte, indignidade e deserdação: 24.3.1. Morte; 24.3.2. Indignidade e deserdação – Leitura complementar. Referências legais: CR 155 I; CC 11, 50, 80 II, 426, 836, 943, 1.784, 1.791 a 1.797, 1.801, 1.805 § 2.º, 1.997; CPC 75 VII, 613, 614, 615, 616, V, 672 e 796. Quando da morte, ocorre o que se chama de abertura da sucessão. Com o falecimento do titular do patrimônio, a universalidade de seus bens e direitos recebe o nome de herança: acervo patrimonial que é transmitido aos herdeiros, quer legítimos, quer instituídos por testamento. É o que diz a lei (CC 1.784): Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários. A transmissão é uma transferência de direitos e obrigações da esfera jurídica de um titular para a de outro. A transmissão traz ínsita a ideia de uma perda e de uma aquisição derivada.1 A transmissão não depende de ato formal nem da manifestação de vontade dos sucessores, que até podem desconhecer sua condição de herdeiro. A morte de alguém é o fato gerador ou determinante da aquisição de bens pelos sucessíveis.2 A transferência imediata é da essência do princípio de saisine. Nada mais do que uma ficção que visa assegurar a continuidade dominial de bens, direitos e obrigações sem que sobre espaço entre esses dois acontecimentos. São pressupostos à transferência da herança: (a) a morte, provada pelo registro do óbito; (b) a existência e sobrevivência de herdeiro, que 1. Carlos Pamplona Corte-Real, Direito da Família e das Sucessões, v. 2, 19. 2. Idem, 18. Dias-Manual das Sucessoes-6ed.indb 315 10/07/2019 15:48:06 MANUAL DAS SUCESSÕES • Maria Berenice Dias320 sobrevir ao herdeiro pela confusão de seu patrimônio com o do heredi- tando.13 Esta distinção, que parece evidente, tem desdobramentos. Previne a confusão dos patrimônios do falecido e do herdeiro. Sendo o herdeiro deve- dor ou credor do de cujus, não se embaralham seus débitos e créditos com os ônus do espólio. Persistem separados os dois patrimônios. O herdeiro conserva os direitos e as obrigações que tinha para com o falecido, como qualquer credor ou devedor, não se extinguindo, pela confusão, créditos ou débitos.14 Pagas as dívidas e verificada a existência de saldo favorável ao espólio é que se procede à partilha.15 24.2. TEORIA DA DISREGARD A lei garante aos herdeiros necessários metade dos bens do seu titular. Também assegura a igualdade de quinhões entre todos os her- deiros de uma mesma classe. Para evitar excessos e garantir o respeito a tais direitos existem mecanismos. Simplesmente a lei rotula de ineficaz tudo que exceder os limites do possível. Quando o testador deixa em testamento mais do que podia legar, invadindo a legítima dos herdeiros, o que exceder não vale. É obrigatória a redução das disposições testa- mentárias (CC 1.967). Da mesma forma, tudo que for doado a herdeiros necessários em vida precisa ser compensado quando da morte do doador. Os beneficiados precisam informar o que receberam. É o que se chama de trazer à colação. A omissão faz com que simplesmente o herdeiro perca o que recebeu, pois os bens recebidos e não informados no inventário são identificados como sonegados (CC 1.992). Ainda assim, de forma cada vez mais recorrente são utilizados meios fraudulentos para contornar os parâmetros legais. Com preocupante frequ- ência, pessoas jurídicas têm servido como instrumento de fraude. A forma societária está se prestando para desviar o preceito de ordem pública da absoluta intangibilidade da legítima. O uso abusivo da sociedade acaba desobedecendo ao limite de disposiçãoda parte disponível. A máscara societária tem permitido substituir o herdeiro necessário pelo sócio empre- 13. Clovis Bevilaqua, Direito das Sucessões, 46. 14. Orlando Gomes, Sucessões, 25. 15. Arnoldo Wald, O novo Direito das Sucessões, 29. Dias-Manual das Sucessoes-6ed.indb 320 10/07/2019 15:48:06 29 INDIGNIDADE Sumário: 29.1. Características – 29.2. Natureza jurídica – 29.3. Indignidade, incapacidade e ilegitimidade – 29.4. Sujeito ativo – 29.5. Sujeito passivo – 29.6. Causas – 29.7. Efeitos: 29.7.1. Quanto aos terceiros; 29.7.2. Quanto ao cônjuge ou compa- nheiro; 29.7.3. Quanto aos descendentes; 29.7.4. Quanto aos herdeiros testamentários e legatários; 29.7.5. Adiantamento de legítima; 29.7.6. Partilha em vida; 29.7.7. Fideicomisso – 29.8. Reabilitação – 29.9. Aspectos processuais – Leitura comple- mentar. Referências legais: CC 1.814 a 1.818, 1.827 parágrafo único, 1.939 IV, 1.941, 1.943, 1.971 e 2.008; CPC 618 VI, 640. 29.1. CARACTERÍSTICAS Cada vez mais se prestigia a dignidade humana, princípio maior da Constituição da República. Assim, por elementar razão de ordem ética, quem desrespeita a dignidade do outro merece ser punido. Quando a afronta ocorre entre pessoas que têm vínculo familiar e afetivo tão estreito, a ponto de a lei atribuir a eles a condição de herdeiros, a forma encontrada para inibir tais ações é de natureza patrimonial. Simplesmente é subtraído o direito à herança. Duas modalidades podem levar herdeiros a serem excluídos da sucessão: a indignidade e a deserdação. Ambas precisam ser declaradas judicialmente. O prazo para a propositura das ações é igual: quatro anos. As consequências são idênticas. As causas são praticamente as mesmas, apesar de haver um leque maior de possibilidades para a de- serdação. Porém, nada permite confundir os dois institutos. O instituto da indignidade é a privação do direito hereditário assegura- do por lei, a quem cometeu certos atos ofensivos à pessoa ou aos interesses Dias-Manual das Sucessoes-6ed.indb 411 10/07/2019 15:48:10 29 INDIGNIDADE Sumário: 29.1. Características – 29.2. Natureza jurídica – 29.3. Indignidade, incapacidade e ilegitimidade – 29.4. Sujeito ativo – 29.5. Sujeito passivo – 29.6. Causas – 29.7. Efeitos: 29.7.1. Quanto aos terceiros; 29.7.2. Quanto ao cônjuge ou compa- nheiro; 29.7.3. Quanto aos descendentes; 29.7.4. Quanto aos herdeiros testamentários e legatários; 29.7.5. Adiantamento de legítima; 29.7.6. Partilha em vida; 29.7.7. Fideicomisso – 29.8. Reabilitação – 29.9. Aspectos processuais – Leitura comple- mentar. Referências legais: CC 1.814 a 1.818, 1.827 parágrafo único, 1.939 IV, 1.941, 1.943, 1.971 e 2.008; CPC 618 VI, 640. 29.1. CARACTERÍSTICAS Cada vez mais se prestigia a dignidade humana, princípio maior da Constituição da República. Assim, por elementar razão de ordem ética, quem desrespeita a dignidade do outro merece ser punido. Quando a afronta ocorre entre pessoas que têm vínculo familiar e afetivo tão estreito, a ponto de a lei atribuir a eles a condição de herdeiros, a forma encontrada para inibir tais ações é de natureza patrimonial. Simplesmente é subtraído o direito à herança. Duas modalidades podem levar herdeiros a serem excluídos da sucessão: a indignidade e a deserdação. Ambas precisam ser declaradas judicialmente. O prazo para a propositura das ações é igual: quatro anos. As consequências são idênticas. As causas são praticamente as mesmas, apesar de haver um leque maior de possibilidades para a de- serdação. Porém, nada permite confundir os dois institutos. O instituto da indignidade é a privação do direito hereditário assegura- do por lei, a quem cometeu certos atos ofensivos à pessoa ou aos interesses Dias-Manual das Sucessoes-6ed.indb 411 10/07/2019 15:48:10 Cap. 29 • INDIGNIDADE 415 II – D IR EI TO S U CE SS Ó RI O não perde a qualidade de herdeiro, mas a qualidade de sucessor, isto é, perde o direito de ser contemplado com o quinhão que lhe era reservado.11 Cabe trazer, em forma de tabela, a diferença entre indignidade e falta de legitimidade, elaborada por Giselda Hironaka.12 Exclusão por indignidade Falta de legitimidade A pessoa recebe a coisa e a perde. A pessoa nunca a recebe, pois não tem legitimidade para tanto. É uma pena civil aplicada ao herdeiro ou legatário pela prática de determinados atos de ingratidão. É uma inaptidão para receber a herança, por motivos de ordem geral, indepen- dentemente de seu mérito ou demérito. O indigno existe para a sucessão e perde a herança havida, ou seja, o direito existiu até a declaração de indignidade. O ilegítimo não existe para a sucessão, portanto, não tem o direito de suceder. Os descendentes do indigno recebem a parte que lhe caberia, por direito de representação, como se o indigno fosse morto anteriormente ao autor da heran- ça, uma vez que a pena não pode passar da pessoa do culpado para atingir tercei- ros, seus herdeiros, prejudicando-os. Os herdeiros do não legitimado não rece- bem em seu lugar, a menos que tenham legitimidade própria. Obstaculiza a conservação da herança. Impede que surja o direito à sucessão. 29.4. SUJEITO ATIVO Identifica a lei as pessoas cujo agir indevido pode excluí-las da sucessão (CC 1.814): herdeiros legítimos ou testamentários e legatários. Todos os eventuais beneficiários da herança que agirem contra o seu titular podem ser reconhecidos como indignos. Quando o ato for cometido pelo cônju- ge ou pelo companheiro, pode levar à perda do direito de concorrência sucessória. Afinal, recebem parte da herança como herdeiros, ainda que não herdeiros exclusivos. Assim, mesmo que haja descendentes ou ascen- dentes, o cônjuge ou o companheiro podem ser excluídos por indignidade. A exclusão, no entanto, não afeta o direito à meação que pertence a eles 11. Arnaldo Rizzardo, Direito das Sucessões, 88. 12. Giselda Hironaka, Deserdação e exclusão da sucessão, 370. Dias-Manual das Sucessoes-6ed.indb 415 10/07/2019 15:48:10 68 DICIONÁRIO1 1. Claro que a expressão correta seria “glossário”, mas esta é uma palavra que também precisaria integrar o dicionário, que nada mais é do que uma tentativa de familia- rizar o leitor que deseja enfrenta a árdua tarefa de procurar entender o direito das sucessões. Ab intestato – expressão latina que indica que uma pessoa faleceu sem deixar testamento. Abertura da sucessão – acontece no momento da morte de alguém. Aberta a sucessão, a herança trans- fere-se automaticamente aos her- deiros. Aceitação da herança – equivoca- da expressão que busca identificar alguma manifestação do herdeiro sinalizando que não vai renunciar à herança. De qualquer modo, o herdeiro recebe a herança e não precisa aceitá-la. No entanto, pode renunciar à herança. Quedando-se em silêncio, persiste na condição de herdeiro. Acervo hereditário – a integralida- de dos bens, direitos e obrigações deixados por alguém quando de sua morte. Quando não há bens e somente dívidas, não há herança. Chama-se de acervo hereditário passivo. Adiantamento de legítima – a do- ação feita em vida pelos ascenden- tes aos descendentes ou a doação de um cônjuge ao outro (CC 544). Quando se trata de união estável, não, porque o companheiro sobre- vivente não é herdeiro necessário. Pode existir é adiantamento de direito de concorrência. Os bens doados devem ser trazidos à cola- ção: o herdeiro precisa acusar o que recebeu em vida, quando da morte do doador. Os bens recebidos são compensados na hora da partilha para igualar o quinhão de todos os herdeiros necessários. Adjudicação – é a aquisição da he- rança por um único herdeiro. Não precisa haver inventário, basta o herdeiro requerer a adjudicação, o que pode ocorrer até extrajudicial- mente, se ele for maior e capaz. Administrador provisório – a pes- soa que estava na posse dos bens antes da morte de seu titular con- tinua na administração da heran- ça, na condição de administrador provisório, até a nomeação do in-ventariante. Dias-Manual das Sucessoes-6ed.indb 901 10/07/2019 15:48:41 MANUAL DAS SUCESSÕES • Maria Berenice Dias902 Aquestos – assim são chamados os bens adquiridos durante o casa- mento ou a união estável. De um modo geral, a cada um do par per- tence a metade dos aquestos, o que se chama de meação. Tudo depende do regime de bens. Arrolamento comum ou sim- ples – quando o acervo sucessório é de pequeno valor, a forma de par- tilha é abreviada, mesmo havendo herdeiros incapazes ou mesmo ine- xistindo acordo quanto à divisão dos bens (CPC 664). Arrolamento sumário – proce- dimento mais ágil de partilha de bens, em que são dispensadas mui- tas formalidades. É necessário que todos os herdeiros sejam capazes e haja consenso na partilha (CPC 659 a 667). Auto de aprovação – elaborado testamento cerrado, é necessário que seja aprovado pelo tabelião, que lavra o auto de aprovação. Autor da herança – ou de cujus, as- sim é chamada a pessoa que falece. Benefício de inventário – limita- ção da responsabilidade dos her- deiros às forças da herança. Eles não respondem por encargos supe- riores ao valor dos quinhões here- ditários que receberam (CC 1.997). Bens confitados – recebe este nome os bens sujeitos a fideicomis- so: quando o testador deixa bens em favor de um herdeiro (fiduci- ário) para serem transmitidos ao filho de alguém que ainda não foi concebido quando da abertura da sucessão (fideicomissário). Bens ereptícios – bens que os herdeiros deixam de herdar e são devolvidos aos demais herdeiros. A devolução ocorre tanto quando o herdeiro renuncia como quando é excluído por indignidade ou de- serdação. Bens fideicometidos – são assim chamados os bens deixados em fi- deicomisso e que passarão de um herdeiro (fiduciário) a outro (fidei- comissário). Bens fungíveis – bens identifica- dos pela qualidade e quantidade. Assim, podem ser substituídos por outros. O exemplo é o dinheiro, bem fungível por excelência. Bens vagos – falecendo alguém sem herdeiros conhecidos, seu pa- trimônio é recolhido como herança jacente, sem dono, e submetido a processo judicial. Declarados va- gos, os bens passam ao município onde se situam, como herança va- cante. Caducidade – uma palavra para lá de antiga, que significa perda da capacidade de produzir efeitos por fato alheio à vontade do testador. O testamento, ainda que válido, está sujeito a condição suspensiva. Produz efeito somente quando da morte do autor da herança. Elen- ca a lei as hipóteses que levam à caducidade do legado (CC 1.939). Dias-Manual das Sucessoes-6ed.indb 902 10/07/2019 15:48:42
Compartilhar