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MONOGRAFIA - O QUE ELES TEM A DIZER

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WILLIAM ALEXANDRE PEIXOTO DE MAGALHAES 
 
 
 
 
 
 
O QUE ELES TEM A DIZER: 
Concepção e atuação da grande imprensa sobre a redemocratização brasileira 
 
 
 
 
 
Monografia apresentada à Universidade 
Federal Fluminense como requisito para a 
obtenção do título de bacharel em História 
 
 
 
 
 
 
 
Orientador: 
Prof. Dr. Marcus Ajuruam De Oliveira Dezemone 
 
 
 
 
 
 
 
 
Niterói, RJ 
2017 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Bibliotecário: Nilo José Ribeiro Pinto CRB-7/6348 
 
 
 
 
 
 
 
M188 Magalhães, William Alexandre Peixoto de. 
 O que eles têm a dizer: concepção e atuação da grande imprensa 
sobre a redemocratização brasileira / William Alexandre Peixoto de 
Magalhães. – 2017. 
 85 f. 
 Orientador: Marcus Ajuruam de Oliveira Dezemone. 
 Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) – 
Universidade Federal Fluminense, Instituto de História, 2017. 
 Bibliografia: f. 83-85. 
 
 1. Participação social. 2. Manifestações públicas - Brasil. 3. 
Emenda constitucional n. 5/1983. 4. Oliveira, Dante de, 1952-2006. 
5. Imprensa e política. 6. Jornais brasileiros. I. Dezemone, Marcus 
Ajuruam de Oliveira. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto 
de História. III. Título. 
 
 
 
 
 
RESUMO 
 
 
A proposta deste trabalho é retornar ao contexto da redemocratização brasileira e 
compreender como os jornais O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e 
O Globo compreenderam o desenvolvimento desse processo e tentaram influenciar a abertura 
por meio do discurso veiculado em seus editoriais. O interesse é voltado especialmente para o 
período da campanha das Diretas Já, especificamente durante seus quatro últimos meses até a 
votação da emenda Dante de Oliveira, nos quais os debates se intensificaram bastante. O 
objetivo é mostrar que, apesar das divergências apresentadas no seio da grande imprensa, é 
possível identificar um mesmo viés liberal-conservador, que serve de matriz para construção 
de um mesmo projeto de sociedade, pautada no elitismo político e na centralidade do 
Mercado. 
Palavras chave: Pensamento liberal-conservador; Grande Imprensa; Redemocratização; 
Emenda Dante de Oliveira; Campanha das Diretas Já 
 
 
 
ABSTRACT 
 
 
The purpose of this paper is to return to the context of Brazilian redemocratization and to 
understand how the newspapers O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil, Folha de São 
Paulo and O Globo understood the development of this process and tried to influence the 
opening through the discourse in their editorials. Interest has been particularly focused on the 
period of the Diretas Já campaign, specifically during its last four months until the vote on 
the Dante de Oliveira amendment, in which the debates intensified. The objective is to show 
that, despite the differences presented in the press, it is possible to identify a same liberal-
conservative view, which serves as a matrix for the construction of the same social project, 
based on political elitism and the centrality of the market. 
Keywords: Liberal-conservative thinking; Great Press; Redemocratization; Dante de Oliveira 
amendment; Diretas Já Campaign 
SUMÁRIO 
 
INTRODUÇÃO 08 
 
CAPÍTULO 1 – A CONJUNTURA DA ABERTURA, A EMENDA DANTE DE 
OLIVEIRA E AS DIRETAS JÁ 
 
1.1. O debate teórico sobre a redemocratização e as Diretas Já...............................................13 
1.2. O projeto de Geisel............................................................................................................21 
1.3. Figueiredo e o descontrole da abertura..............................................................................25 
1.4. A emenda Dante de Oliveira..............................................................................................29 
1.5. A Campanha das Diretas Já...............................................................................................33 
 
CAPÍTULO 2 – A GRANDE IMPRENSA NO BRASIL 
 
1.1. A trajetória da grande imprensa no Brasil.........................................................................37 
1.2. Breve história dos jornais Estado de São Paulo, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e 
O Globo.....................................................................................................................................42 
1.3. Estratégias diferentes e um mesmo destino.......................................................................52 
1.3. Opinião pública e opinião publicada..................................................................................54 
 
CAPÍTULO 3 – AS DIRETAS JÁ E SUCESSÃO PRESIDENCIAL NAS PÁGINAS DOS 
JORNAIS 
 
3.1. O posicionamento dos jornais diante da disputa sucessória..............................................58 
3.2. Degrau a degrau.................................................................................................................61 
3.3. Moderação e radicalismo...................................................................................................66 
3.4. Revanchismo, greve e medidas de emergência..................................................................68 
3.5. Nas mãos de poucos...........................................................................................................73 
3.6. Democracia e Mercado......................................................................................................77 
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS 80 
 
Lista de siglas e abreviações 
 
ABI – Associação Brasileira de Imprensa 
ARENA – Arena Nacional Libertadora 
CNBB – Comissão Nacional dos Bispos do Brasil 
FMI – Fundo Monetário Internacional 
MDB – Movimento Democrático Brasileiro 
MR-8 – Movimento Revolucionário Oito de Outubro 
OAB – Ordem dos Advogados do Brasil 
PCB – Partido Comunista Brasileiro 
PCdoB – Partido Comunista do Brasil 
PDS – Partido Democrático Social 
PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro 
PT – Partido dos Trabalhadores 
UDN – União Democrática Nacional 
UEE – União Estadual dos Estudantes 
UNE – União Nacional dos Estudantes 
 
 
 
Agradecimentos 
Esse estudo é fruto das minhas reflexões mas também das de todos que chegaram até mim por 
meio de um texto, uma conversa, uma observação, um gesto. Por isso não me sinto de 
nenhuma maneira proprietário de qualquer conhecimento que tenha, por ventura, ajudado a 
produzir. Toda obra é fruto do trabalho coletivo e, portanto, à humanidade pertence. 
Agradeço ao Marcus Dezemone, meu orientador, que se mostrou prestativo e paciente todas 
as vezes em que tentei retomar este trabalho até a chance derradeira. Suas contribuições 
enriqueceram demais este estudo. 
À minha mãe Ofélia, cuja admirável dedicação à prática docente me influenciou a seguir o 
mesmo caminho sem nunca o ter apontado. Ela, que fez de tudo para que seus dois filhos 
tivessem uma vida digna e proporcionou a ambos a chance de cursar uma universidade, 
infelizmente não estará aqui para acompanhar este momento. Onde estiver, que esteja em paz. 
A meu grande amigo Walter Alves, que compartilhou da mesma angústia de adiar esse 
momento diversas vezes e ter a sensação de ter no caminho algo que nos impede de avançar. 
Iniciamos juntos, caminhamos juntos e agora superamos juntos esse obstáculo. 
A Amanda Fará, grande amiga que a vida me trouxe, companhia de ótimas conversas, 
coroados por cerveja e toda sorte de comida. Se fez presente nos momentos decisivos dessa 
jornadae se torna cada vez mais uma irmã para mim. 
A Lara Sartorio, por todo aprendizado e companheirismo que me proporcionou pelo tempo 
que passamos juntos. Sem ela certamente eu não seria a pessoa que sou hoje. O amor se 
transforma, ganha novos significados mas não acaba. 
Aos professores e funcionários desta instituição, sobretudo os terceirizados cujo trabalho, 
comumente invisibilizado pela arrogância de boa parte da academia e pela indiferença dos 
privilegiados deste país, é essencial para nossa formação. 
Por fim, agradeço a todos que lutam incansavelmente por uma sociedade mais justa, solidária 
e humana, sem preconceitos nem opressão de qualquer natureza. 
Aos explorados, humilhados e ofendidos do mundo eu dedico este trabalho, bem como 
dedicarei todos os outros que eu vier a produzir, até o fim dos meus dias. 
8 
 
INTRODUÇÃO 
 
O objetivo deste estudo é retornar ao contexto da redemocratização brasileira e 
compreender como a grande imprensa, por meio de quatro dos seus jornais mais destacados, 
compreendeu o desenvolvimento desse processo e tentou influir nele por meio do discurso 
veiculado em seus editoriais. O interesse é direcionado ao período da campanha das Diretas 
Já, especificamente durante seus quatro últimos meses até a votação da emenda Dante de 
Oliveira, nos quais os debates se intensificaram bastante. Nos primeiros meses de 1984, 
campanha das Diretas Já foi responsável por reunir milhões de pessoas, que saíram às ruas do 
país para expressar seus desejos, insatisfações e, sobretudo, para reivindicar o direito de 
eleger o próximo presidente da república. 
Hoje essa bandeira não tem o mesmo impacto que há três décadas nem parece ter o 
potencial de alcançar o status de consenso nacional que atingiu àquele momento, mesmo 
assim ela surgiu em meio aos protestos contra o impeachmente da presidente Dilma Roussef. 
Obviamente, se tratam de conjunturas bem diferentes, mas é curioso que num momento de 
grande turbulência política se recorra ao passado, e um momento muito particular dele, onde a 
população unida em torno de um direito fez frente ao poder do Estado. Na memória nacional, 
o Brasil perdeu aquela batalha política no momento em que a emenda das diretas foi barrada, 
mas ganhou a batalha moral que derrubaria a ditadura. Assim, há várias maneiras pelas quais 
presente e o passado se amarram, produzindo continuidades no processo histórico. 
É notável em ambos os casos a forma intensa como a imprensa – particularmente a 
grande imprensa – participa dos debates, conflitos e, eventualmente, das próprias 
mobilizações populares, convocando pessoas a saírem às ruas e se manifestarem. Ela não 
apenas registra fatos, levanta questões e emite opinião como, de certa forma, define o terreno 
em que se dará a disputa, estabelecendo sua dinâmica e lhe impondo limites. Numa estrutura 
democrática liberal, que pouco permite aos seus cidadãos uma participação efetiva na 
construção dos projetos coletivos, a grande imprensa é, de certa maneira, a janela através da 
qual a população em geral enxerga a cena política. E, tal como uma janela, permite ao sujeito 
ver o que passa num ambiente em que ele não está, enquanto esconde dele o que está para 
além de suas bordas. Assim, ela possui a natureza contraditória de revelar e ocultar a realidade 
num mesmo movimento. 
9 
 
Obviamente não podemos falar de grande imprensa como um bloco homogêneo que 
atua, em todos os espaços de disputa pelo poder, como sujeito fazendo frente a outros sujeitos 
– o Estado, os partidos, os sindicatos. A grande imprensa é um conjunto contraditório de 
sujeitos – as empresas jornalísticas – que podem apresentar interesses gerais e visões de 
mundo em comum, mas que possuem suas próprias estratégias e objetivos particulares, pelos 
quais buscam o apoio em várias fontes de poder e legitimação perante a sociedade, ou parte 
dela. Poderíamos dizer que os sujeitos da grande imprensa trabalham no sentido de determinar 
de antemão o horizonte de possibilidades da luta política mais geral enquanto, nos círculos 
mais restritos do poder, disputam entre si e em meio aos vários outros sujeitos os rumos do 
projeto nacional. 
A razão de a análise ser restringida à grande imprensa, e não à imprensa em geral, se 
justifica pelas suas próprias características: sua estrutura empresarial, o alcance nacional, a 
capacidade de concentrar recursos financeiros e o volume altíssimo de impressões não podem 
ser comparados aos da chamada “imprensa alternativa”. Esta, refém de recursos escassos, 
extremamente dependente do dinheiro da venda dos exemplares e do trabalho por vezes 
voluntário das pessoas envolvidas em sua produção, acaba sendo tragada pelo poder 
econômico da grande imprensa. A ética capitalista da busca pelo lucro que orienta e estrutura 
a grande imprensa é, portanto, condição sine qua non para uma ação política suficientemente 
relevante ao ponto de influenciar as decisões do Estado. 
Como contrapartida, as empresas que compõem a grande imprensa precisam 
apresentar em seus posicionamentos um considerável nível de correspondência com os setores 
da sociedade que visa atingir, particularmente com o seu público leitor. Os sujeitos 
confrontam a influência que recebem de várias outras instituições sociais, como a família e a 
religião por exemplo, e é no embate entre as várias visões que lhes são apresentadas e suas 
próprias experiências que formam seus valores e opiniões. E a imprensa deve se manter 
receptiva à influência de seus leitores, não apenas para registrar a pluralidade de seu público, 
mas porque a ideologia é, em parte, fruto de uma negociação. Em outras palavras, a 
dominação social não se dá apenas pela coerção, mas também pelo consenso dos dominados, 
nos termos de Gramsci. 
A intenção desse trabalho não é mostrar que os meios de comunicação da grande 
imprensa são filiados ao pensamento liberal-conservador, já que essa não é nenhuma grande 
revelação e as empresas assim se definem sem qualquer constrangimento. O que interessa 
10 
 
saber é como esses valores que a orientam, estruturam a ideia de democracia que eles 
propagam. Mas para além de apontá-la simplesmente como um meio de divulgação de um 
ideário produzido fora dela pela intelectualidade burguesa, trata-se de entender como a grande 
imprensa “não só assimila interesses e projetos de diferentes forças sociais, mas muito 
frequentemente é, ela mesma, espaço privilegiado da articulação desses projetos.” (Cruz & 
Peixoto, 2007: 258-259). Ou seja, parto da premissa de que a ideologia da classe dominante é 
construída no processo histórico e é o resultado dialético do embate entre as várias forças 
sociais. 
O período da redemocratização brasileira, e especialmente a disputa sucessória que 
tomou conta dos anos finais do governo do general João Batista Figueiredo, constitui um 
momento chave dessa luta. Naquele momento, a intenção do governo de controlar o processo 
de transição, os projetos pessoais de lideranças políticas, as exigências reformistas do 
empresariado e as reivindicações de várias categorias profissionais se encontraram num 
terreno de crise econômica e de contestação da legitimidade do regime, que fora instaurado 
em 1964 com um golpe. Numa brecha que se abriu nas eleições de 1982, o deputado federal 
eleito pelo PMDB do Mato Grosso, Dante de Oliveira, apresentou uma proposta de emenda 
constitucional que restabeleceria a eleição direta para o próximo presidente. Em torno dela as 
oposições organizaram o movimento que serviria de base para a construção dos conceitos de 
cidadania e democracia que dominaram o imaginário popular com bastante vigor até 2013. 
Com o objetivo de verificar como tudo isso foi representado pela grande imprensa, 
optei por analisar os quatro jornais impressos de maior circulação à época, quais sejam, a 
Folha de São Paulo, o Estado de São Paulo, o Jornal do Brasil e o O Globo. Embora os dois 
primeirossejam radicados em São Paulo e os dois últimos no Rio de Janeiro, todos já tinham 
abrangência nacional à época. A razão da escolha por esses veículos como fonte passa 
também pela facilidade de acessar seus acervos completos através dos respectivos sítios 
eletrônicos; outra razão é a frequência de suas publicações, que torna possível acompanhar a 
evolução diária dos discursos, detectando suas continuidades e variações; por fim, o fato de os 
quatro se apresentarem num mesmo formato, permite o uso de uma mesma metodologia de 
análise. Examinarei os editoriais das publicações uma vez que, como ressalta Alzira Alves de 
Abreu, esse é um espaço reservado para o jornal expressar seu posicionamento político-
ideológico e orientar seus leitores em questões diversas (Abreu, 2002: 20). 
11 
 
No primeiro capítulo resgato o debate teórico sobre a redemocratização, questionando 
dois pontos presentes em algumas obras que tratam da temática. O primeiro é visão muito 
institucionalista do processo, o que redunda na caracterização da transição como sendo o 
resultado do embate entre lideranças do governo e da oposição partidária, ofuscando a 
importância de outros sujeitos influentes no processo. O segundo é a superficialidade de 
análises que atribuem ao período de transição o significado de “reconquista da cidadania” e de 
“volta da democracia”, sem levar em conta que tipo de cidadania e de democracia se estava 
criando. 
Também ali reconstituo o panorama sociopolítico vivido pelo Brasil no período de 
Redemocratização até o momento da ascensão da campanha, como forma de compreender 
melhor o cenário em que se travam as disputas e sobre o qual os jornais intervém. Essa 
contextualização é fundamental dado que os jornais não atuam paralelamente ao processo 
histórico, como se fossem meros observadores do cenário que descrevem. 
No segundo capítulo faço um resgate das trajetórias particulares de cada um dos 
jornais desde a fundação, de maneira a identificar a lógica (se há) dos seus projetos editoriais, 
preocupação muito bem colocada por Heloísa de Faria Cruz e Maria do Rosário da Cunha 
Peixoto no artigo Na oficina do historiador: conversas sobre a história da imprensa. 
Profundamente alinhado com a perspectiva das autoras, enxergo a imprensa como “uma força 
ativa da história do capitalismo e não como mero depositório de acontecimentos nos diversos 
processos e conjunturas” e que, por isso, “suas articulações mais amplas com a história do 
capitalismo se estabelece como princípio norteador e ponto de partida da pesquisa” (Cruz & 
Peixoto, 2007, p.257). 
As linhas editoriais são uma resposta à conjuntura e, por essa razão, sofrem alterações 
de tempos em tempos. Seus posicionamentos são condicionados pela dinâmica da luta política 
e pelas opiniões e valores dos proprietários, dos jornalistas e de seu público leitor. As 
concepções expressas pelos jornais no período analisado são o fruto de uma identidade 
constituída ao longo de cada trajetória particular, mas também das possibilidades concretas 
observadas no horizonte em função da correlação de força dada em cada momento. 
No terceiro capítulo faço a análise dos editoriais dos quatro meses que antecederam a 
votação da emenda Dante de Oliveira no Congresso, contrastando os quatro periódicos. A 
análise tem três objetivos: a) observar, a partir das estratégias e bandeiras adotadas pelos 
12 
 
jornais, como eles compreendiam o momento político, a correlação de forças sociais e as 
possibilidades de intervenção na realidade; b) comparar os editoriais das quatro publicações 
no intuito de identificar divergências e aproximações; c) verificar se há, na forma como o 
processo sucessório e a Campanha das Diretas são apresentados ao seu público leitor, 
elementos que indiquem alguma identidade comum que confirme a hipótese de que a grande 
imprensa é estruturada por uma matriz ideológica liberal-conservadora. 
 
13 
 
CAPÍTULO 1 – A CONJUNTURA DA ABERTURA, A EMENDA DANTE DE 
OLIVEIRA E AS DIRETAS JÁ! 
 
 
1.1. O debate teórico sobre a redemocratização e as Diretas Já 
 
 A redemocratização brasileira não foi determinante apenas do ponto de vista 
estritamente político-institucional, de restabelecimento da chamada “normalidade 
democrática” e dos direitos políticos suprimidos ao longo da ditadura civil-militar. Esse 
período definiu, de certa forma, o modelo de sociedade, de subjetividade política e de 
Democracia que vigoravam até os anos mais recentes, quando começaram a entrar em 
colapso. O tema atraiu a atenção de diversas áreas das ciências sociais: da ciência política e da 
sociologia, buscando compreender os fatores determinantes para o processo, o nível de 
aprofundamento e o déficit democrático legados às décadas posteriores; do jornalismo, ávido 
por narrar os acontecimentos e revelar os detalhes de bastidores; e da historiografia, que vai 
encontrando nos dilemas atuais a ponte para acessar um passado bastante recente e, de muitas 
formas, ainda presente. 
Nos anos 80 surgiu uma série de obras que se debruçaram os processos de 
democratização que vinham ocorrendo em várias partes do mundo desde a década anterior – 
iniciadas com a queda do salazarismo em Portugal em 1974 e o fim da ditadura no Equador 
em 1979. Os autores filiados a essa corrente buscavam estabelecer um novo paradigma de 
análise de períodos de transição entre a ditadura e a democracia, que ficaria conhecida como 
“transitologia”. Nessa literatura, a transição é apreendida como “o período, de duração 
extremamente variável e de conteúdo altamente incerto, que transcorre entre a queda de um 
regime político e a completa tomada do controle das rédeas do poder por parte do regime que 
vem substituí-lo” (Vitullo, 2005, p.16). 
Embora seja um campo vasto, que guarda suas diferenças internas, existem algumas 
características compartilhadas pelos trabalhos orientados por esse paradigma. O primeiro 
ponto diz respeito à origem dessa corrente, que nasce da crítica ao estruturalismo que 
dominava a academia até então, e que se dedicou a analisar a instauração de regimes 
14 
 
autoritários. Os autores deslocaram o foco de análise para elites políticas, levando em 
consideração estratégias, negociações e pactos firmados entre os líderes político-partidários 
mais destacados. Nessa ótica, a reconstrução de instituições democráticas não derivaria de 
fatores macro-estruturais, mas essencialmente das habilidades, atitudes e condutas dos “atores 
mais relevantes” (Vitullo, 2005, p.17). 
Considera-se que a celebração de pactos entre os condutores do regime autoritário e as 
lideranças do regime político emergentes ampliaria as chances de sucesso da transição 
democrática – ainda que isso se faça, paradoxalmente, por vias não democráticas, uma vez 
que os pactos normalmente são negociados por um pequeno grupo de participantes, excluindo 
os demais da tomada de decisões. Como argumenta Santiso (1993 apud Vitullo, 2005, p.17), 
“o espaço qualitativo fundamental, em cujo interior podem se dar os processos de 
democratização, fica assim definido pelos atores e pelas ações e os caminhos que eles 
escolham e já não mais pelas grandes questões econômicas ou sociais”. Isso implica que as 
lideranças do novo regime não apenas deveriam manter aberto o diálogo com as lideranças do 
regime autoritário, como seria desejável que com elas dividissem o protagonismo ao longo do 
processo. Isso supostamente amenizaria o conflito e contribuiria com a consolidação das 
instituições democráticas (Vitullo, 2005, p.47). 
Essa mudança epistemológica é acompanhada do argumento de um necessário 
“excepcionalismo metodológico”. Argumenta-se que as ciências sociais, nas décadas 
anteriores, haviam sido formuladas para analisar períodos de estabilidades e, por essa razão, 
não seriam adequadas para apreciar as mudanças de regime, transições ou etapas de crise 
agudas. Esses momentos, marcados por indefinições eincertezas demandariam um olhar 
diferente: “as transições são apresentadas como situações políticas extremamente 
imprevisíveis, momentos históricos abertos, períodos com alto grau de indeterminação, nos 
quais a direção que assumirá a mudança dependerá, essencialmente, das eleições e estratégias 
adotadas pelos principais agentes políticos” (Vitullo, 2005, p.19). 
Também é muito comum encontrar nesses estudos um campo semântico próprio de 
expressões culturais como o esporte e as artes, sendo recorrentes expressões como “jogo”, 
“jogadas”, “atores”, “cena política”, entre outras (Vitullo, 2005, p.20). O uso dessa 
terminologia ter o duplo efeito de abrandar a gravidade do momento, retirando-lhe o peso de 
expressões que remeteriam à guerra, como “luta”, “enfrentamento”, “estratégia”, e de sugerir 
que houvesse um consenso implícito em torno das regras e da dinâmica a ser seguida, o que 
15 
 
deslegitimaria os sujeitos que buscassem a disputa por meio do conflito ou da contestação da 
própria lógica do processo. Poderíamos questionar se essa postura analítica não refletiria uma 
compreensão ingênua sobre a política, cujos rumos não determinariam as vidas das pessoas, 
mas as vitórias e derrotas dos sujeitos diretamente envolvidos nas disputas e os sentimentos 
dos que apenas acompanham como espectadores. 
Outra característica da transitologia é a concepção gradualista sobre o processo de 
redemocratização, ou seja, a pressuposição de existem etapas a serem cumpridas antes que se 
possa avançar a outros desafios. Inspirados em processos tidos como ideais, como o caso 
espanhol, considera-se que a moderação das lideranças políticas deveria conduzir à paulatina 
transformação das instituições, evitando atropelos e minimizando as chances de retrocesso 
(Vitullo, 2005, p.21). Subjaz a essa ideia uma separação entre a democracia política e a 
democracia social, muito influenciada pela estrutura de cidadania proposta por Thomas 
Marshall. 
O sociólogo britânico concebe a cidadania como uma reunião de três esferas de 
direito: os direitos civis, relacionados com a liberdade individual, tal como o direito de ir e vir, 
acesso à justiça e liberdade de pensamento; os direitos políticos, relacionados à participação 
no exercício do poder político, como o direito ao voto; os direitos sociais, relacionados à 
garantia de um mínimo de bem estar social, como acesso aos serviços educacionais. Em 
Cidadania, Classe Social e Status, Marshall argumenta que na Inglaterra esses direitos foram 
conquistados de forma sucessiva – primeiro os civis, em seguida os políticos e, por fim, os 
sociais – e que a conquista de um criava condições para a reivindicação de outro (Marshall, 
1967, p.66 et seq.). 
José Murilo de Carvalho, em Cidadania no Brasil – O longo caminho, considera que 
esse processo se deu no Brasil na ordem inversa: os direitos sociais teriam sido 
implementados por Vargas, durante o Estado Novo, ao mesmo tempo em que se suprimiram 
os direitos políticos e os civis foram reduzidos; os direitos políticos, também de forma 
paradoxal, teriam sua maior expansão durante a ditadura civil-militar, na qual a representação 
política foi transformada em peça decorativa do regime; os direitos civis viriam por último e, 
à época de sua análise, permaneciam inacessíveis à maioria da população (Carvalho, 2008, 
p.219 et seq.). 
16 
 
A questão é que esse entendimento particionado de cidadania levaria os transitólogos a 
recomendar que os líderes políticos de oposição mais proeminentes agissem com precaução e 
“realismo”, evitando jogadas arriscadas. As negociações deveriam, portanto, ser pautadas pela 
cooperação com as lideranças “moderadas” do regime em vigor e pelo estabelecimento de 
metas politicamente viáveis, marginalizando reivindicações que não pudessem ser efetivadas: 
“Com frequência há uma marcada exaltação, nestes escritos, da necessidade de cautela, de 
prudência, de moderação e de celebração de compromissos e das vantagens de fazer sentir aos 
brandos do regime que ainda contam com capacidade de iniciativa política” (Vitullo, 2005, 
p.45) 
 Tanto o foco nas ações dos “atores relevantes” quanto a visão etapista do processo de 
democratização estão apoiados numa visão minimalista de democracia, muito influenciada 
por pensadores de orientação liberal-conservadora. As análises orientadas pelo paradigma da 
transitologia tendem a ignorar o debate sobre o aprofundamento dos princípios democráticos e 
a extensão para os âmbitos econômico e social. Propostas em favor de transformações mais 
radicais costumam ser vistas como ameaça à estabilidade e à consolidação das instituições das 
instituições democráticas, como avalia Vitullo: 
“Efetivamente, pode-se afirmar que há, nas análises sobre a transição e a 
consolidação democrática, uma exagerada ênfase nas idéias de ordem e estabilidade; 
ênfase muito presente em (...) obras já clássicas que fazem parte do paradigma 
hegemônico da ciência política e da sociologia política contemporâneas. Em todas 
elas é defendida incisivamente a idéia de que a estabilidade exige um relativo 
isolamento das estruturas políticas perante as pressões da sociedade e, em especial, 
dos setores populares.” (Vitullo, 2005, p.48) 
 Essa visão se mostra bastante alinhada ao pensamento de Joseph Schumpeter, autor de 
uma das teorias mais influentes do século XX. O economista austríaco concebe a democracia 
como um arranjo institucional similar ao mercado, no qual grupos e indivíduos disputam entre 
si os votos dos eleitores, tal como empresas e empresários competem pelos consumidores. Ele 
refuta as teorias políticas do século XVIII, que se assentavam sobre os princípios do “bem 
comum” e da “vontade do povo”, e estabelece a ideia de “método democrático”, segundo o 
qual a participação popular se limita à escolha de lideranças. A democracia, segundo seu 
entendimento, seria uma disputa competitiva entre elites pelos votos da população, 
desinteressada das questões políticas e intelectualmente incapaz de compreendê-las, posto que 
lhe faltaria a racionalidade adequada (Matos, 1999, p. 47). 
17 
 
 Outra grande influência no século XX – e aparentemente também na transitologia – é 
o cientista político estadunidense, Robert Dahl. Em 1953, o autor apresenta o conceito de 
“poliarquia”
1
 (governo de muitos) encontraste a formas não democráticas de governo, a 
monarquia (governo de um) e a oligarquia ou aristocracia (governo de poucos). O governo 
poliárquico seria caracterizado pela disputa entre uma porcentagem relativamente pequena de 
indivíduos, que estariam submetidos a algum controle da população, visto que é nela que 
buscariam o apoio necessário para serem eleitos. Para Dahl, sete instituições seriam 
imprescindíveis para a poliarquia, quais sejam: 1) Funcionários eleitos e constitucionalmente 
investidos do controle político das decisões governamentais; 2) Eleições livres, justas e 
regulares; 3) Sufrágio estendido a praticamente todos os adultos; 4) Direito de concorrer a 
cargos eletivos; 5) Liberdade de expressão; 6) Direito dos cidadãos a buscar soluções 
alternativas de informação; 7) Autonomia associativa. (Pereira, 2014, p.8) 
 Na esteira desse pensamento aparecem outros autores, como o florentino Giovanni 
Sartori, para quem a democracia é um governo das elites que competem entre si pelo voto dos 
eleitores. A participação popular, para ele, se restringiria “apenas à participação no processo 
eleitoral, que, através de pressão e controle, influencia a atividade política” (Matos, 1999, 
p.48). Igualmente para Seymour Martin Lipset, que define a democracia em sociedades 
complexas como “um sistema político que fornece oportunidades constitucionais regulares 
para a mudança dos funcionários governantes, e um mecanismo social que permite a uma 
parte – a maior possível – da população influir entre os contendores para cargos públicos” 
(Lipset, 1967, p.45, apud. Matos, 1999, p.48).É possível enxergar essa influência em autores como Thomas Skidmore e Guilhermo 
O’Donnell, que consideram que a redemocratização brasileira foi obra dos militares 
moderados, como Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva. Skidmore afirma que o governo 
de Geisel tinha como meta o retorno à democracia, porém a uma variedade indefinida dela. 
Para ele, Geisel estaria sendo “fiel à visão de Castelo Branco: a Revolução de 1964 devia, 
após um limitado período governamental de emergência, conduzir a um pronto retorno à 
democracia representativa” (Skidmore, 1988, p.320-321, apud Nery, 2012, p.15). Também 
para O’Donnell, dessa vez com Schmitter, a iniciativa do processo podia ser atribuída aos 
militares, que o conduziram com a finalidade de redemocratização do país, ainda que 
alterando as regras do jogo quando entendiam necessário. Dado que o objetivo maior estava 
 
1
 Dahl considerava as democracias então existentes como pobres aproximações do ideal democrático, por isso 
utiliza o termo “poliarquia” para a “democracia real”, e democracia para a “democracia ideal”. 
18 
 
sendo perseguido, era essencial que a oposição mantivesse a moderação, atitude que evitaria 
retrocessos. 
Alcançada a democracia política, poder-se-ia passar ao processo de socialização, o que 
significaria buscar a “democracia social”, elevando os membros da comunidade a“cidadãos-
atores”, iguais em direitos e obrigações. Da socialização também faria parte a busca pela 
“democracia econômica”, ou seja, “a garantia de iguais benefícios à população, em termos 
dos bens e serviços gerados pela sociedade” (O’Donnell & Schmitter, 1988, p. 21, apud Nery, 
2012, p.16). Essa visão fragmentada de democracia, a qual seria conquistada em etapas, só 
pode redundar numa visão altamente institucionalista do conceito de democracia, como fica 
claro em trecho destacado por Vanderley Nery: 
“(...) uma espécie de mínimo procedural que os autores contemporâneos 
consentiriam em considerar elementos necessários da democracia política. Voto 
secreto, sufrágio universal, eleições regulares, competição interpartidária, 
reconhecimento das associações voluntárias e responsabilidade executiva dos 
governantes são elementos desse consenso no mundo contemporâneo” (O’Donnell 
& Schmitter, 1988, p. 25, apud Nery, 2012, p.16). 
 Bolivar Lamounier também considera “a disposição inicial do governo Geisel de 
implantar um projeto de liberalização controlada, que encontrava resistências nos setores mais 
intransigentes do regime” (Lamounier, 1988. 122, apud Nery, 2012, p.17). Lamounier 
considerava que era preciso resgatar os componentes liberais presentes na sociedade 
brasileira, e encontra nas eleições um elemento essencial. A despeito da manipulação 
realizada pelo governo, a manutenção do calendário eleitoral cumpriria papel importante 
porque garantiu o meio pelo qual se expressaram os descontentamentos com o regime e o 
apoio à oposição. Segundo o autor, foram conquistas eleitorais da oposição no período da 
abertura que reconfiguraram o jogo político, permitindo uma negociação que geraria ganhos 
políticos a ambos os lados: a Lei da Anistia, o fim do AI 5 e o retorno ao pluripartidarismo 
para a oposição, e reconquista da “autoridade” dos governos de Geisel e Figueiredo, na 
medida em que estes teriam sido identificados como agentes do projeto de normalização 
(Nery, 2012, p.18). 
 A historiografia brasileira das duas últimas décadas, influenciada pela terceira geração 
da Escola dos Annales, também se tornaria terreno fértil para a aparição de características do 
paradigma da transitologia. A renovação da História Política, com o revalorização da 
19 
 
narrativa e a receptividade em relação a contribuições de outras disciplinas, incorpora o 
vocabulário suavizado, a visão superficial e fragmentada de democracia e, em certa medida, o 
excepcionalismo metodológico, pois tende a ignorar determinações estruturais em benefício 
de uma avaliação mais centrada nos elementos conjunturais. O interesse pela prática dos 
sujeitos – as esquerdas, os militares, os partidos, os trabalhadores – é motivada pela pretensão 
de compreender a cultura desses grupos. 
 Um bom exemplo é o artigo de Américo Freire, A via partidária na transição política 
brasileira, de Américo Freire que, partindo da premissa de Lamounier de que a transição 
brasileira foi uma abertura regulada pelo calendário eleitoral e não um mero arranjo 
oligárquico, analisa a atuação dos partidos envolvidos nas disputas eleitorais após a reforma 
partidária de 1979. A escolha de Freire pela análise dos partidos segue a lógica de enfocar as 
ações dos “atores relevantes”, como o próprio autor deixa claro em determinado momento do 
texto: “no meu modo de ver, [os partidos] terminaram por assumir um papel de centralidade 
no enfrentamento da crise que resultou no advento do governo civil, em 1985” (Freire, 2014, 
p.10). 
 Francisco da Silva, que produz uma narrativa até interessante, ilustrando a não 
linearidade do processo de transição, se deixa levar por deslizes graves ao reproduzir termos 
carregados de significado sem problematizá-los. Como quando se refere aos setores mais 
extremistas do regime como “os radicais, porém sinceros” ou ao ex-governador de Minas 
Gerais, Magalhães Pinto de “líder revolucionário de 1964”. A terminologia lúdica e a 
desconsideração das estruturas sociais brasileiras também ficam claro quando o autor expõe 
seu foco analítico: 
“Vemos, assim, desde já os principais atores em presença no longo jogo político 
denominado abertura: a pressão exterior, representada principalmente pelo governo 
Carter e, também, os condicionantes da economia mundial; o projeto de abertura do 
poder militar, traduzido na estratégia Geisel-Golbery, e a ação autônoma, porém 
condicionada, da oposição.” (Silva, 2007, p.247) 
 Lucília Delgado, em artigo entitulado Diretas-Já: vozes da cidade, também sucumbe à 
superficialidade analítica ao exaltar a “festa cívica” promovida pela população brasileira ao 
longo da campanha. A historiadora considera que “no horizonte vislumbrava-se a 
consolidação da democracia e a eleição não só para presidente da República, mas também 
para uma Assembleia Constituinte” (Delgado, 2012, p.420). Ou seja, à visão de democracia 
20 
 
exposta pela autora vai além da ideia de um sistema de disputa entre elites, mas não consegue 
ultrapassar a mera formalidade das reformas na legislação. Não desconsidero a importância da 
constituição na construção de uma sociedade democrática, mas ela é um meio, e não a fim a 
ser alcançado. A visão fragmentada da autora sobre a ideia de democracia e sua compreensão 
etapista do processo podem ser notadas em outras passagens, como por exemplo: 
“Transformações [na dinâmica da vida política brasileira] que poderiam começar com o 
retorno da democracia eleitoral e se desdobrar, posteriormente, em mudanças expressivas nas 
políticas institucionais do Brasil.” (Delgado, 2012, p.412). 
 Já as obras jornalísticas produzidas sobre o período são voltadas para a reconstituição 
dos acontecimentos e, nesse intuito, os autores se valem de fontes variadas: a série de Élio 
Gaspari, composta de 5 volumes, possui uma narrativa dinâmica, veiculando memórias e 
conversas de bastidores e apresenta um bom panorama geral de todo o período ditatorial; 
Ricardo Kotscho, repórter da Folha de São Paulo à época da campanha das diretas, apresenta 
uma coletânea de textos escritos no calor do momento em Explode um novo Brasil e, por isso 
mesmo, investido de bastante emoção, como o próprio declara em vários momentos; Em 
Diretas Já – 15 meses que abalaram a ditadura
2
; Dante de Oliveira e Domingos de Oliveira 
narram os bastidores da campanha a partir de entrevistas e de suas próprias memórias, já que 
ambos exerciam mandato de deputado federal à época. Embora nenhuma delas seja 
propriamente analítica,apresentam uma narrativa que acaba refletindo a influência do 
paradigma transitológico ou dos valores que o sustentam. 
 Seja na ciência política, na historiografia ou no jornalismo, a reconstrução dos 
acontecimentos é realizada por meio das memórias dos sujeitos e das matérias de jornais. Em 
poucos casos o discurso jornalístico é problematizado enquanto uma escrita que possui 
determinações muito particulares e, por mais objetivas e imparciais que tentem ser, 
constituem representações dos fatos e com eles não se confundem. Portanto, a intenção desta 
análise é exatamente identificar essas determinações e saber para onde o campo semântico 
construído nos editoriais nos leva. Em seguida, resgatarei a conjuntura do período de 
redemocratização, que se inicia em 1974 com a posse do general Ernesto Geisel, até 1983 
quando seu sucessor, o general João Baptista Figueiredo, anuncia em seu último 
pronunciamento oficial daquele ano que deixaria a coordenação do processo de escolha de seu 
sucessor. Naquele momento a dinâmica política ganhava um novo rumo e a campanha por 
 
2
 Apesar de os autores não possuírem formação em jornalismo, a escrita em formato de crônica e composto de 
muitas entrevistas me fez considerá-lo um texto jornalístico. 
21 
 
eleições diretas se tornava o elemento em torno do qual se reconfigurou a disputa política 
nacional. 
 
 
1.2. O projeto de Geisel 
 
“Erram — e erram gravemente, porém — os que pensam poder 
apressar esse processo pelo jogo de pressões manipuladas sobre a 
opinião pública e, através desta, contra o Governo. Tais pressões 
servirão, apenas, para provocar contrapressões de igual ou maior 
intensidade, invertendo-se o processo da lenta, gradativa e segura 
distensão, tal como se requer, para chegar-se a um clima de crescente 
polarização e radicalização intransigente, com apelo à 
irracionalidade emocional e à violência destruidora. E isso, eu lhes 
asseguro, o Governo não o permitirá.” 
(Ernesto Geisel)
3
 
 
 No início de 1974, o general Ernesto Geisel era escolhido presidente da República em 
eleição indireta, vencendo sem surpresas o “anticandidato” da oposição, Ulisses Guimarães. 
O general castelista que havia presidido a Petrobras nos cinco anos anteriores passaria o seu 
primeiro a frente do executivo federal difundindo seu conceito de “aperfeiçoamento 
democrático”, fazendo questão de apresentá-lo como uma continuidade dos ideais da 
“Revolução modernizadora de 1964”. Nenhum dos termos utilizados posteriormente em 
análises para definir aquele momento, como “abertura”, “redemocratização”, “liberalização”, 
entre outros, apareceram nos discursos oficiais do presidente naquele ano. 
“Aperfeiçoamento”, presente 16 vezes, era indubitavelmente a palavra escolhida para 
classificar o movimento de reforma executado pelo seu governo, incidindo tanto sobre o 
“regime democrático” e a “estrutura política nacional” quanto sobre “os valores morais do 
indivíduo” e “o potencial humano do homem brasileiro”
4
. 
 
3
 Cf.: Ernesto Geisel. Discursos V.I 1974. p.122. Disponível em: 
http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/publicacoes-oficiais/catalogo/geisel/discursos-vol-i-1974-1/view 
4
 Ibdem 
22 
 
 Em outras partes do mundo, o ambiente político se mostrava igualmente conturbado 
naquele ano. Em terras lusitanas a Revolução dos Cravos, liderada por militares, derrubava a 
ditadura salazarista de maneira bem menos gradual do que no Brasil e acabava com o que 
ainda existia do Império Português . Na Argentina, a morte de Juan Domingo Perón 
interrompia seu terceiro mandato presidencial, e em seu lugar assumia sua esposa, Maria 
Estela Martínez de Perón . Nos EUA, o escândalo de Watergate, que explodira dois anos 
antes, chegava ao fim com o julgamento do presidente Richard Nixon pela Suprema Corte. 
Por decisão unânime se concluiu que o republicano tinha conhecimento do esquema projetado 
para espionar a oposição e, dentro de alguns dias, Nixon se tornaria o primeiro presidente da 
história do país a renunciar ao cargo. Mas do contexto internacional, o fato que mais afetou o 
Brasil foi, sem dúvida, a guerra árabe-israelense e a consequente crise do petróleo . 
Dependente do combustível importado dos países árabes, o país conheceria as mazelas que 
corroíam as frágeis bases do progresso
5
. 
Ao contrário do seu antecessor, Geisel não foi agraciado pelo “milagre brasileiro”, e se 
viu obrigado a lidar com as consequências das escolhas mundanas do ministro Delfim Netto . 
Os fantasmas do passado retornavam para assombrar um Brasil que havia experimentado um 
clima de euforia e otimismo, com as altas taxas de crescimento e o triunfo canarinho nos 
gramados do Estádio Azteca , em plena fase mais autoritária do regime. A inflação voltava a 
crescer, o endividamento externo aumentava exponencialmente e a concentração de renda 
havia se acentuado ao invés de diminuir. Nos porões do DOI-Codi, a chamada “linha dura” 
tratava de eliminar a “ameaça subversiva”, assassinando militantes presos, como o jornalista 
Vladimir Herzog e do metalúrgico Manuel Fiel Filho, causando grande comoção popular. Os 
“moderados” a frente do governo tratavam de converter cada ato espontaneísta dos órgãos de 
segurança em instrumentos para a luta interna contra os “radicais”, que levaria ao afastamento 
de figuras importantes do governo, como o Ministro do Exército, o general Sylvio Frota
6
. 
 O projeto de Geisel sofreria o seu primeiro baque com inesperada vitória eleitoral do 
MDB nas eleições de 1974, a primeira desde a instauração da ditadura em que o governo 
permitiu a realização dos debates no rádio e na televisão. A oposição garantiu 16 das 22 vagas 
em disputa para o Senado e por pouco não alcançou a maioria na Câmara, elegendo 161 
 
5
 Cf.: Jornal do Senado Especial. Senado 74 A eleição que abalou a ditadura. 19/11/2014. Disponível em: 
https://www12.senado.leg.br/jornal/edicoes/especiais/2014/11/19/jornal.pdf 
6
 Cf.: COUTINHO, A. e GUIDO, M. C. GEISEL, Ernesto. In: FGV CPDOC. Disponível em: 
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/geisel-ernesto 
23 
 
deputados contra os 203 eleitos pela ARENA
7
. Para não perder o controle da situação, o 
governo lançaria mão da Lei Falcão, que estabelecia novas regras da propaganda de rádio e 
TV para os pleitos municipais de 1976. A apresentação dos candidatos deveria consistir 
apenas em uma menção ao nome, partido, número e currículo de cada um. Na TV se podia 
mostrar sua foto e, no máximo, a divulgação de data e local dos comícios
8
. 
 Em 1977 o governo avançava na tentativa de manter o processo sob controle, 
decretando o fechamento do Congresso e aprovando monocraticamente uma série de reformas 
constitucionais, destinadas a impedir um novo fracasso nas eleições de 1978. O “Pacote de 
Abril” , como ficou conhecido, era composto por 14 emendas, 3 artigos constitucionais, 6 
decretos-leis e estabelecia, dentre outras medidas: eleições indiretas para governadores e para 
1/3 dos senadores (estes denominados criticamente como senadores “biônicos”); a ampliação 
das bancadas dos estados menos desenvolvidos (nos quais se esperava melhor desempenho da 
ARENA); a extensão da Lei Falcão aos pleitos estaduais e federais; alterava o quorum de 2/3 
para maioria simples nas votações de emendas constitucionais pelo Congresso; a ampliação 
do mandato presidencial de cinco para seis anos. As reformas acabaram não produzindo o 
efeito que o governo esperava, servindo apenas para evitar que o MDB alcançasse a maioria 
no Senado, mas às custas de um grande desgaste político
9
. 
Ao menos a sucessão de Geisel estaria garantida, o que permitiu que ele e o general 
Golbery desativassem parte do aparato repressivo instalado ao longo da ditadura, embora ofizessem no intuito de reter o controle do processo. A interiorização dos mecanismos de 
censura pelas empresas jornalísticas é exemplar disso: desde 1975 o governo vinha 
suspendendo progressivamente a censura prévia dos veículos de comunicação e delegando às 
próprias editorias o “bom senso” na hora de julgar o que deveria ou não ser escrito. 
Alimentava-se assim a prática da autocensura, através da qual “as instituições livravam-se da 
incômoda presença dos censores residentes e da onerosa prática de submeter todo o material 
publicado à censura prévia”. À medida em que aceitavam essa condição, fosse por medo da 
intervenção do governo nas redações, da prisão de jornalistas ou da perda de empréstimos e 
 
7
 Cf.: OLIVEIRA, G. Há 40 anos, Lei Falcão reduzia campanha eleitoral na TV a 'lista de chamada'. 03/10/2016. 
Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/09/30/ha-40-anos-lei-falcao-reduzia-
campanha-eleitoral-na-tv-a-lista-de-chamada 
8
 Cf.: Cf.: Jornal do Senado Especial. Senado 74 A eleição que abalou a ditadura. 19/11/2014. Disponível em: 
https://www12.senado.leg.br/jornal/edicoes/especiais/2014/11/19/jornal.pdf 
9
 Cf.: MOTTA, Marly. Pacote de Abril. In: FGV CPDOC. Disponível em: 
http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/PacoteAbril 
24 
 
financiamentos estatais, “transformavam-se em executoras e cúmplices da Censura, das quais 
as principais vítimas eram elas próprias” (Soares, 1989, p. 38). 
Mas o fato mais significativo de Geisel foi certamente a revogação do AI-5 que, na 
opinião de alguns, caracterizaria a fase propriamente ditatorial do regime
10
. Ainda que o 
governo tenha apresentado a decisão como um ato de boa vontade dos militares castelistas, é 
impossível separá-lo da conjuntura, nacional e internacional, e das determinações estruturais 
do desenvolvimento capitalista no Brasil. 
Em 1978, o país enfrentava o momento mais grave da crise econômica, com a inflação 
atingindo 46,3%, o maior índice desde o início da ditadura (Munhoz, 1997, p.61) e a dívida 
externa superava em dez vezes a de 1969 (Lopes., 1998, p.82). A recessão econômica dava 
claros sinais de que o modelo desenvolvimentista conduzido pelo Estado estava esgotado e, 
desde 1974, parte do empresariado, capitaneado por lideranças industriais, se lançaram à 
campanha antiestatizante. Com o fracasso do II PND , as críticas se intensificaram e os 
empresários da ABDIB lançaram o Manifesto dos Oito, exigindo maior participação na 
formulação na política econômica do Estado (Nery, 2012, p.42-58). Na região do ABC 
paulista, os metalúrgicos da Scania iniciavam o movimento grevista que se espalharia pelo 
país, com diversas categorias de trabalhadores. Esses acontecimentos revelavam uma 
reconfiguração do conflito entre capital e trabalho para os anos seguintes. 
No âmbito da reconquista do espaço político perdido nos anos “anos de chumbo” e na 
luta por direitos fundamentais, a CNBB liderava o movimento de denúncia da tortura e de 
busca de informação pelos desaparecidos; o movimento pela anistia dos presos políticos e dos 
exilados crescia e ganhava adeptos na grande imprensa; além de o próprio MDB que ganhava 
força política, se permitindo desempenhar mais efetivamente seu papel de oposição (Kucinski, 
2001, p.75-88). 
No plano internacional, a eleição de Jimmy Carter nos EUA gerou uma mudança de 
perspectiva em relação às ditaduras latino-americanas, e figuras importantes no país, como 
jornalistas, políticos e intelectuais passaram a repercutir as denúncias de tortura e repressão 
promovidas pelo governo brasileiro (Gaspari, 2016, O fator Jimmy Carter). O desfecho que 
tiveram algumas ditaduras, como em Portugal e na Grécia, também provocaram nos militares 
 
10
 REIS FILHO, D. A. Daniel Aarão Reis: As conexões civis da ditadura brasileira: depoimento. [15/02/2014]. O 
Globo. Entrevista concedida a Leonardo Cazes. Disponível em: http://blogs.oglobo.globo.com/prosa/post/daniel-
aarao-reis-as-conexoes-civis-da-ditadura-brasileira-524443.html 
25 
 
“moderados” a sensação de que seria razoável realizar reformas antes que perdessem o 
controle do processo, seja para a oposição, seja para os militares da “linha dura” (Gaspari, 
2014, p.27;487). 
Fato é que, no apagar das luzes de seu governo, Geisel relegava a quem o sucederia 
um projeto de autorreforma – ou de “aperfeiçoamento democrático”, como gostava de dizer – 
ainda mais suscetível a alterações de rumo. Seu escolhido teria bastante trabalho nos 
próximos anos, enquanto o general partiria pra uma espécie de autoexílio em sua casa de 
Teresópolis, acompanhando tudo de longe mas sem interferir em nada. (Gaspari, 2016, O 
vencedor) 
 
 
1.3. Figueiredo e o descontrole da abertura 
 
“É pra abrir mesmo. E quem não quiser que abra, eu prendo e 
arrebento. A minha reação, agora, vai ser contra os que não quiserem 
abertura” 
(João Batista Figueiredo) 
11
 
 
 A escolha de João Figueiredo era vista, por Geisel e Golbery, como uma forma de 
garantir a continuidade do projeto de autorreforma do regime e assegurar o protagonismo dos 
generais castelistas diante das pressões crescentes da sociedade civil de um lado e da “linha 
dura” do outro. Mas se Geisel usufruiu ao menos da esperança de que se pudesse retomar o 
crescimento econômico e reviver os tempos de “milagre”, seu sucessor teve de lidar com a 
descrença e a indignação popular. Logo em seu primeiro ano de governo, o ex-chefe do SNI 
enfrentou os altos índices de inflação e endividamento externo, o agravamento da crise 
institucional e o aprofundamento das lutas políticas e econômicas. Não bastassem os fatores 
internos, o mundo se veria às voltas com o segundo choque do petróleo e a os primeiros sinais 
de recessão, o que afetavam diretamente a economia brasileira, cada vez mais subordinada às 
vicissitudes do mercado externo. A personalidade explosiva de Figueiredo, manifestada 
 
11
 Jornal do Brasil, 16 de outubro de 1978. 
26 
 
muitas vezes de maneira performática, não contribuiria para impor um clima harmonioso à 
abertura política. 
 Desde 1977 diversas entidades civis vinham passando por processos de reorganização 
que convergiam para a luta por redemocratização. Naquele ano a CNBB, que se destacava na 
denúncia da tortura, aprovava um documento em defesa do retorno do país à democracia, com 
eleições diretas e liberdade de organização política; a ABI lançava um manifesto em favor da 
liberdade de imprensa e contra a censura; os estudantes de retomavam as passeatas e 
reconstruíam as entidades de base, como as UEEs (Bertoncelo, 2001, p.69-76); Todos esses 
movimentos se encontrariam no movimento de luta pela “anistia ampla, geral e irrestrita”, que 
se tornou uma das principais bandeiras da redemocratização e seria finalmente aprovada em 
agosto de 1979, fortalecida pelo apoio dos sindicatos e até mesmo da grande imprensa. É 
importante salientar que a versão final da anistia impedia a punição dos agentes do Estado 
responsáveis direta ou indiretamente pelos casos de tortura e desaparecimento de presos 
políticos. (Kucinski, 2001, p.73-88) 
Seguindo a lógica de atuação de Geisel e reconhecendo que a oposição ganhava 
terreno, o governo tentou dividi-la por meio da reforma partidária. Através da Lei 6.767, 
Figueiredo extinguia os dois partidos criados em 1965 pelo AI-2, instituindo novas regras 
para a criação de legendas e mantendo a proibição aos partidos comunistas. Elaborado por 
Golbery, então chefe do gabinete civil, o plano objetivava manter a maior parte dos membros 
da Arena, que mudaria de nome para PDS; e fragmentar o MDB, pois se esperava que parte 
dele acompanharia Leonel Brizola na refundação do PTB, e outros se juntariam aos egressos 
da Arena num partido “de centro”, que acabariasendo criado por Tancredo Neves
12
. 
Duas outras alterações na legislação seriam realizadas para as eleições seguintes: em 
novembro de 1980, o Congresso Nacional aprovava por unanimidade a emenda do governo 
que restabelecia a eleição direta para os próximos governadores dos Estados. A emenda 
também extinguia a figura do senador biônico, preservando no cargo os 22 escolhidos em 
1978. A oposição recebeu com desconfiança a iniciativa do governo, posto que em setembro 
ele havia conseguido aprovar o cancelamento das eleições municipais daquele ano, 
prorrogando por mais dois anos os mandatos em vigor de vereadores e prefeitos. A aposta era 
adiar o confronto nas urnas para 1982 e modificar a legislação para favorecer o PDS
1314
. 
 
12
 Cf.: http://memorialdademocracia.com.br/card/reforma-coloca-fim-a-arena-e-ao-mdb 
13
 Cf.: http://memorialdademocracia.com.br/card/eleicao-nos-estados-volta-a-ser-direta; 
27 
 
A alteração das regras eleitorais seria anunciada no final de 1981 contendo as 
seguintes determinações: 1) voto vinculado: o eleitor era obrigado a votar em candidatos do 
mesmo partido, de vereador a governador, ou seu voto seria considerado nulo; 2) proibição 
das coligações: os partidos de oposição não poderiam fazer alianças nas eleições para 
governador, senador e prefeito; 3) sublegenda para o Senado: partidos podiam lançar até três 
candidatos ao cargo e somar a votação total, o que permitia acomodar as dissidências no PDS; 
4) chapa completa: os partidos tinham de lançar candidatos em todos os níveis, de governador 
a vereador, exigência que só o partido do governo podia cumprir. Esse conjunto de mudanças 
atribuía maior importância às eleições municipais, nas quais o partido do governo levava 
vantagem em relação à oposição, e aumentava as chances do PDS de eleger os próximos 
governadores de Estados. Rejeitadas por todos os partidos de oposição e com maioria 
insuficiente na Câmara, o governo utilizou o mecanismo do decurso de prazo para aprová-las 
– em 10 de janeiro de 1982, a emenda constitucional do “Pacote de Novembro” entraria em 
vigor sem ter sido submetida à votação no Congresso
15
. 
Enquanto investia na estratégia de dividir a oposição partidária e limitar seu 
crescimento eleitoral, o governo não conseguia manter sua própria coesão interna. Após a 
posse de Geisel, os setores mais extremistas das Forças Armadas se concentraram nos 
aparelhos repressivos e na comunidade de informação. Inconformados com o projeto de 
abertura, eles passaram a realizar uma série de atentados contra militantes e entidades pró-
democratização. Em 27 de agosto de 1980 uma carta-bomba explodia na sede da OAB, 
matando Lyda Monteiro, secretária da instituição; outra vitimava fatalmente José Ribamar e 
feria quatro pessoas no gabinete de um vereador do PMDB; uma terceira bomba era detonada 
na redação do jornal do PCdoB, a Tribuna da Luta Operária (Gaspari, 2016, Bombas na rua). 
O governo pouco se mobilizava para investigar os casos e punir os responsáveis. No 
ano seguinte, mais um atentado ocorria no estacionamento do Riocentro durante um show 
comemorativo do Dia do Trabalhador. Dessa vez a bomba explodiu acidentalmente dentro de 
um carro, matando um sargento e ferindo gravemente um capitão do exército, que planejavam 
criar pânico nos presentes e responsabilizar os grupos de esquerda pelo ato. O fato abriu uma 
grande crise política no governo, que tentou acobertar os responsáveis num inquérito 
fraudulento. Depois da explosão do Riocentro, cessou a onda de atentados terroristas iniciada 
no ano anterior (Gaspari, 2016, Riocentro). 
 
14
 Cf.: http://almanaque.folha.uol.com.br/brasil_14nov1980.htm 
15
 Cf.: http://memorialdademocracia.com.br/card/novo-pacote-tenta-fazer-o-pds-vencer 
28 
 
No âmbito das instituições políticas, a situação também não se encontrava tão 
favorável para o governo. O economista Mário Henrique Simonsen, que assumiu o Ministério 
do Planejamento no governo de Figueiredo após o segundo choque do petróleo em 1979, 
pediria demissão apenas cinco meses após assumir o cargo, em razão de divergências com o 
então Ministro da Agricultura, Delfim Netto (Gaspari, 2016, Teerã e Washington). Dias após 
o Réveillon de 1980 falecia o Ministro da Justiça, Petrônio Portella, um dos possíveis 
candidatos a sucessor de Figueiredo na presidência. Das lideranças mais proeminentes do 
governo só restava Golbery, que se mostrava insatisfeito com os rumos que o governo vinha 
tomando. Irritado com a conivência do presidente com a tentativa do general Octávio 
Medeiros, chefe do SNI, de acobertar os militares no episódio do Riocentro, deixaria 
definitivamente o governo em 1981 (Gaspari, 2016, Um novo país; Riocentro). Assim, às 
vésperas das eleições mais importantes da “abertura política”, o governo perdia 
gradativamente o controle do processo. 
À conturbada conjuntura política nacional somava-se a crise econômica mundial que 
impactava diretamente a economia brasileira, que experimentava o esgotamento do padrão 
estatal-desenvolvimentista praticado desde a década de 1930 e a emergência do modelo 
neoliberal. Desde 1979, o aumento no preço do petróleo e da taxa de juros no mercado 
internacional (de onde provinham os empréstimos contraídos pelo governo para financiar 
investimentos públicos) criaram desequilíbrios na balança de pagamento que dificultava as 
exportações, o que era ainda agravado pela recessão mundial. Diante desse quadro, o governo 
cedeu à pressão dos credores internacionais e recorreu a empréstimos com o FMI, com a 
condição de adotar medidas recessivas – contenção da demanda interna, desvalorização 
cambial e redução do déficit do setor público e da inflação (Nery, 2012, p.51-53; 70-75, 
Bertoncelo, 2007, p.76-91). 
Devido ao impacto negativo sobre a produção econômica interna, a estratégia 
recessiva passou a gerar enorme insatisfação entre empresários e dirigentes de empresas 
estatais, membros da aliança sociopolítica que articulada no Estado e base de sustentação 
estratégica para o regime. Em relação ao âmbito privado, havia uma oposição crescente do 
empresariado com a estratégia adotada pelo governo, que desde 1977 já se mostrava 
insatisfeito com o seu afastamento das esferas de tomada de decisões econômicas e políticas 
(Bertoncelo, 2007, p.76-91). 
29 
 
A partir de 1978 o movimento sindical, renascido nas greves dos metalúrgicos do 
interior paulista, fato que foi registrado magistralmente pelas lentes de Leon Hirszman
16
. No 
ano seguinte, o Novo Sindicalismo levaria 150 mil trabalhadores a pararem por 45 dias
17
. O 
sindicato dos metalúrgicos mais uma vez liderou um movimento nacional de greve que contou 
com a adesão de mais de 3 milhões de trabalhadores, nas 246 greves realizadas por diversas 
categorias naquele ano
18
. O governo seguia repreendendo sistematicamente os manifestantes e 
intervindo nos sindicatos mais combativos, mas o desgaste junto a população se tornara muito 
maior que nos anos anteriores. A experiência de luta acumulada em dois anos produziu um 
considerável salto organizativo, que culminara na criação do Partido dos Trabalhadores em 
1980 alguns meses após a reforma partidária
19
. 
Em meio a todo o clima de incerteza que permeava o regime, as eleições de 1982 
terminariam com o PDS mantendo o controle do Colégio Eleitoral, que indicaria o sucessor 
de Figueiredo. Considerando que as previsões do SNI apontavam para um cenário muito pior, 
é possível avaliar que as manobras do governo foram razoavelmente bem sucedidas. No 
entanto, os partidos de oposição conquistariam a maioria na Câmara e os dez maiores Estados 
do país. Resultado que tornava evidente a insatisfação da populaçãoe que era, em grande 
medida, provocada pelos problemas econômicos do país que não eram equalizados pelas 
lideranças do regime (Gaspari, 2016, O vencedor). 
 
 
1.4. A emenda Dante de Oliveira 
 
 O resultado das eleições de 1982 levou a disputa política a um novo patamar, em que a 
oposição superava definitivamente o posicionamento defensivo para adotar uma estratégia 
combativa. Tancredo Neves, eleito governador em Minas Gerais, levava o PP de volta para 
dentro do PMDB e reencontrava Ulysses Guimarães, deputado federal e presidente da 
legenda, com quem disputaria os rumos do partido até as próximas eleições, em janeiro de 
1985
20
; Franco Montoro assumia o governo de São Paulo, o maior Estado brasileiro em 
 
16
 Filme de Leon Hirszman, O ABC da greve, de 1990. 
17
 Cf.: http://memorialdademocracia.com.br/card/a-grande-greve-dos-trabalhadores-do-abc 
18
 Cf.: http://memorialdademocracia.com.br/card/greves-se-alastram-e-peoes-se-revoltam 
19
 Cf.: http://memorialdademocracia.com.br/card/das-fabricas-e-das-ruas-pt-chega-para-mudar#card-210 
20
 Cf.: http://memorialdademocracia.com.br/card/tancredo-leva-o-pp-de-volta-ao-pmdb 
30 
 
termos populacionais e econômicos; Leonel Brizola, de volta do exílio após a anistia, era 
eleito no Rio de Janeiro após o escândalo da Proconsult
21
; Luís Inácio da Silva, o Lula, 
mesmo sem mandato político era uma das figuras mais proeminentes do cenário político 
nacional, depois de surgir como grande liderança nas greves dos metalúrgicos do ABC 
(Bertoncelo, 2007, p.99-115). 
Dentro do PDS, a postura vacilante do general presidente era encarada por algumas 
lideranças do partido como uma oportunidade de ocupar os espaços vazios para lançar-se 
antecipadamente como seu sucessor. O vice-presidente civil, Aureliano Chaves, que já havia 
substituído Figueiredo por dois meses 1981, voltaria a assumir a presidência por mais um em 
1983. Durante o tempo que esteve no cargo empenhou-se em mostrar aos seus 
correligionários, e ao próprio presidente, que seria o nome ideal para a sucessão. Era apoiado 
pela maior parte da bancada mineira de deputados federais e setores do partido interessados 
em uma saída negociada (com os setores moderados da oposição). Também tinha apoio de 
setores ligados à Geisel e de boa parte da Marinha, e contava com a simpatia de um bom 
número de empresários, especialmente do setor industrial, de dirigentes de empresas estatais, 
e de parcelas do eleitorado (Bertoncelo, 2007, p.93-99). 
O Coronel Mário Andreazza era o típico tecnocrata, passou praticamente todo o 
período de ditadura ocupando cargos no Estado – no Ministério dos Transportes nos governos 
de Costa e Silva, Médici e Geisel, e no Ministério do Interior, no governo de Figueiredo. Era 
um executor de grandes obras, como a Ponte Rio-Niterói e a Transamazônica, e de projetos 
habitacionais em várias cidades do país. Andreazza tinha apoio principalmente dos 
governadores do partido interessados nos recursos do ministério controlado por ele, de setores 
do PDS leais a Figueiredo e do chefe do SNI, Octávio Medeiros. Nas forças armadas 
enfrentava oposição do setor ligado a Geisel e da alta cúpula da Marinha e na sociedade não 
tinha muita simpatia popular devido à sua proximidade com o governo (Bertoncelo, 2007, 
p.93-99). 
Por fim o ex-governador de São Paulo e deputado federal, Paulo Maluf, aliado de 
primeira hora no golpe civil-militar de 1964 e, dentre todos os possíveis candidatos a 
sucessão, a figura mais identificada com a ditadura. Tinha o apoio de setores do PDS 
excluídos das principais instâncias de poder nos níveis federal e estadual, e no governo tinha 
apoio do Ministro da Justiça, mas oposição de Figueiredo e do Ministro da Casa Civil. Dentro 
 
21
 Cf.: http://memorialdademocracia.com.br/card/brizola-desmonta-fraude-eletronica 
31 
 
das forças armadas era apoiado pelo general Golbery e pelas alas ligadas a Médici e Costa e 
Silva. Na sociedade tinha simpatia de setores empresariais (em especial nos setores comercial 
e agroexportador) favoráveis a um ajuste da economia em moldes neoliberais (Bertoncelo, 
2007, p.93-99). 
O governo que havia se concentrado em dividir a oposição, acabaria ele mesmo 
dividido entre as duas facções das Forças Armadas e entre os interesses e projetos particulares 
de suas lideranças políticas. Enquanto a oposição, fracionada entre legendas e projetos 
políticos distintos, soube de unificar em torno de questões que afetavam a maior parte da 
sociedade brasileira e deixar as disputas internas em segundo plano. Foi em meio a esse 
quadro político que o deputado peemedebista Dante de Oliveira, no primeiro dia de seu 
mandato e de forma bastante oportuna, lançaria logo uma emenda que restabeleceria a eleição 
direta para a escolha do próximo presidente (Leonelli & Oliveira, 2004, p.25-28, Bertoncelo, 
2007, p.99-105, Delgado, 2007, p.417) 
Mas além do apoio dos 199 deputados que subscreveram a apresentação da proposta, 
muitos por mero formalismo, a iniciativa não gerou tanta repercussão nos entre os partidos 
oposicionistas. O próprio PMDB tinha como prioridade estratégica, naquele momento, o foco 
em uma reforma constitucional. Os setores comunistas, ainda abrigados no PMDB devido à 
proibição de refundarem seus partidos, voltavam as críticas à política econômica do governo, 
que compreendiam ser o problema mais grave a ser enfrentado. O PTB se abstinha de aderir a 
qualquer coisa que desagradasse o governo e para o PDT a proposta também não era 
interessante, pois impediria a candidatura de Leonel Brizola, que ainda tinha dois anos à 
frente do governo do Rio de Janeiro. A Campanha das Diretas Já seria lançada oficialmente 
29 de março e o PT foi o primeiro partido a aderir a ela, mobilizando-se para as ainda tímidas 
e espontâneas manifestações (Bertoncelo, 2007, p.99-105). 
A adesão do PT se explica facilmente pela maneira como ele se formara, nas lutas de 
base que ganhavam força desde o fim da década de 1970. Em 1983, os sindicatos de diversas 
categorias se reuniam contra a submissão ao FMI e o arrocho salarial, retomando greves ainda 
mais intensas que a dos anos anteriores e que culminaram na primeira greve geral realizada 
desde o golpe civil-militar, com relevante participação dos assalariados das camadas médias e 
funcionários públicos. Em meio à greve surgia a primeira central sindical independente da 
32 
 
estrutura oficial de sindicatos e confederações, a CUT, que contou com grande protagonismo 
do partido, embora também dos dirigentes ligados ao PCB, PCdoB e MR-8
22
. 
Apesar de as primeiras manifestações não contarem com ampla mobilização 
societária, boa parte da população se mostrava bastante receptiva ao pleito direto, mesmo 
entre eleitores do PDS. Em setembro de 1983, no Rio de Janeiro, foi lançado um manifesto 
por eleições diretas que foi assinado por cerca de 80 associações e organizações sociais que 
compunham o comitê pró-diretas municipal. A mobilização desses grupos encontrava apoio 
em setores da imprensa alternativa e, no caso da grande imprensa, da Folha de São Paulo, que 
acabaria recebendo posteriormente o apelido de “Jornal das Diretas”. A oposição partidária se 
engajava gradativamente nas manifestações (Bertoncelo, 2007, p.107-115). 
A grande adesão da sociedade às manifestações levou aos setores mais à esquerda do 
PMDB a se incorporarem à sua organização, bem como os setores liderados por Ulysses 
Guimarães, que ficaria conhecido como “O Sr. Diretas” devido à sua dedicação à campanha . 
Consequentemente os setores mais à direita, liderados por Tancredo Neves, foram 
pressionados a alterar parcialmente sua estratégia de negociação com os setores moderados do 
PDS (Bertoncelo, 2007, p.99-103). Os governadores do partido, juntamente com Leonel 
Brizola, se reuniriam para subscrevero manifesto de Franco Montoro e assumir posição 
favorável ao pleito direto, dividindo as atenções que até então se concentravam no presidente 
do partido. O posicionamento dos governadores seria essencial devido aos recursos que 
podiam mobilizar, o controle sobre as polícias militares e à sua influência junto às bancadas 
estadual e federal (Bertoncelo, 2007, p.109-112). 
Até o final de 1983 prevalecia a lógica da manutenção das regras sucessórias. A 
negociação de uma candidatura de consenso via Colégio Eleitoral não tinha apoio dos 
principais setores do PDS e vinha perdendo força nas oposições desde que começaram as 
articulações para a realização da campanha popular. Diante da dificuldade de escolher seu 
sucessor numa candidatura única no PDS, o presidente Figueiredo abdicaria da coordenação 
do processo, restituindo a tarefa ao partido. O anúncio era realizado no seu último 
pronunciamento oficial do ano e alteraria completa e irreversivelmente a dinâmica da 
sucessão. A partir dali, a Campanha das Diretas Já teria o caminho livre para deslanchar. 
(Bertoncelo, 2007, p.112-115). 
 
 
22
 Cf.: http://memorialdademocracia.com.br/card/novo-sindicalismo 
33 
 
1.5. A Campanha das Diretas Já 
 
 O ano de 1984 tinha início sob as incertezas lançadas pelo pronunciamento de fim de 
ano do presidente João Figueiredo, no qual assegurava compromisso com a causa 
democrática, ao mesmo tempo em que atribuía à campanha por eleições diretas um caráter 
perturbador. O general anunciava também que, diante da dificuldade em encontrar uma 
candidatura de consenso, abria mão da prerrogativa de escolher seu sucessor e restituía a 
tarefa ao seu partido, o PDS. Decisão que lançava lideranças do governo em uma disputa por 
apoios dentro e fora do partido, e abria espaço para o avanço dos grupos oposicionistas, 
jogando ainda mais lenha na fogueira do já conturbado jogo político. (Bertoncelo, 2007, 
p.113-115). 
 O primeiro grande momento da campanha aconteceu no dia 12 de janeiro, em 
Curitiba, num comício que reuniu 50 mil pessoas na Boca Maldita, um importante espaço 
político da cidade. Superando as expectativas até dos organizadores, a manifestação se tornou 
um marco para a Campanha das Diretas por ser o primeiro daqueles que seriam identificados 
como “comícios monstro”. A animada condução do locutor esportivo Osmar Santos, a 
presença de artistas e a chuva de papel picado e confetes conferiu um tom de festa à 
manifestação (Leonelli & Oliveira, 2004, p.342-344, Nery, 2012, p.99-100). 
 O comício reuniu uma série de elementos, até então inéditos na campanha, que foram 
cruciais para o crescimento das manifestações. O primeiro deles foi o apoio prestado pelos 
governadores de oposição, o que se tornaria uma constante a partir de então. O governador do 
Paraná, José Richa, se empenhou pessoalmente em mobilizar as bases do PMDB no estado e 
convocou a população através da confecção de materiais de propaganda e veiculação de 
comerciais na TV (Leonelli & Oliveira, 2004, p.343, Muniz, 2010, p.130). Fato novo também 
foi a participação do empresariado, atrelando suas marcas à campanha e custeando 
diretamente a confecção de materiais. E pela primeira vez uma manifestação pública seria 
transmitida ao vivo pela televisão, no caso a TV Bandeirantes, com a anuência de João Saad, 
proprietário da emissora (Leonelli & Oliveira, 2004, p.349-353). 
 A campanha das Diretas se consolidava como estratégia das oposições para vencer o 
governo no Congresso e, diante desse cenário, os jornais assumiam suas posições. A Folha de 
São Paulo visava fundamentalmente o sucesso da campanha e a aprovação da Emenda Dante 
de Oliveira, que considerava como a reconquista da Democracia. O Estado de São Paulo 
34 
 
preocupava-se com a ausência de estadistas que correspondessem às dificuldades do 
momento, elemento que considerava essencial para a superação dos desafios que o país tinha 
pela frente. O Jornal do Brasil considerava que a campanha poderia levar o governo a impor 
retrocessos, colocando em risco a reforma constitucional, que considerava ser o instrumento 
capaz de levar o país de volta à democracia. Até aquele momento o O Globo praticamente 
ignorava a questão sucessória e a campanha das diretas, situação que mudaria após o Comício 
da Sé, menos por convicção que por uma imposição do mercado jornalístico. 
Alguns dias depois, o Comício da Praça da Sé levaria cerca de 300 mil pessoas às ruas 
e colocava a campanha definitivamente num patamar nacional e consolidava a cidade de São 
Paulo como seu centro irradiador. Resultado não apenas do empenho do Governador Franco 
Montoro – que já mirava os ganhos que poderia auferir do sucesso do comício –, mas da 
presença dos setores mais fortes do PMDB e do PT, e da dedicação da Folha de São Paulo, 
que publicava matérias diariamente sobre a campanha, bem como o Roteiro das Diretas, 
manifestos e declarações de apoio. Foi do comício também o mérito de estabelecer o debate 
sobre a sucessão presidencial e as manifestações populares como pauta de setores da imprensa 
que, até então lhe dedicavam pouca atenção, quando não o ignoravam completamente, como 
era o caso do jornal O Globo (Kotscho, 1994, p.31-39, Leonelli & Oliveira, 2004, p.366-373, 
Gaspari, 2016, Diretas Já, Muniz, 2010, p.130-131). 
 O mês de fevereiro começava sob uma intensa disputa sobre os rumos da campanha 
pelas diretas e do governo. Franco Montoro, que saíra vitorioso do Comício da Sé, começava 
a buscar maneiras de frear a campanha pelas diretas, de forma que pudesse se lançar ele 
mesmo como candidato do PMDB na disputa indireta. Apresentar-se como o homem a frente 
do Estado em que foi realizada a maior mobilização popular da jornada por eleições diretas 
seria um grande trunfo do governador paulista perante seus correligionários. Mas o grande 
feito dos paulistas iniciaria uma intensa disputa entre os governadores para descobrir quem 
conseguiria realizar o maior comício. 
Tancredo Neves não pretendia sair atrás na disputa e, para isso, contava com a 
mobilização de seus conterrâneos no comício marcado para Belo Horizonte. Embora 
prometesse publicamente apoiar a manifestação sem utilizar a máquina pública, nos 
bastidores se valeria de todos os recursos disponíveis para viabilizar uma manifestação ainda 
maior que a da capital paulista. E Tancredo seria de fato agraciado pela presença de 300 mil 
pessoas, o que lhe garantia créditos em sua disputa pessoal com Ulysses Guimarães. Ao 
35 
 
mesmo tempo, o governador mantinha o diálogo com os setores do governo favoráveis à 
eleição direta, em especial com o vice-presidente Aureliano Chaves, que se declarara a favor 
da mudança das regras sucessórias (Leonelli & Oliveira, 2004, p.416-420, Kotscho, 1984, 
p.81-86, Nery, 2012, p.117-123). 
O processo sucessório ocupava não apenas o centro do debate político mas o próprio 
debate público, o que ficou expresso no carnaval daquele ano, cujo tom foi dado pela temática 
das diretas. A maior festa popular do país se misturava à chamada “festa cívica” e serviria, 
particularmente no Rio de Janeiro, como aquecimento para a manifestação que ocorreria no 
dia 21 de março. Nas ruas, os manifestantes-foliões cantavam e dançavam ao som de 
marchinhas politizadas, e as tradicionais escolas cariocas desfilavam na recém-inaugurada 
Passarela do Samba embaladas pelo mote das eleições diretas (Leonelli & Oliveira, 2004, 
p.437-439). 
Mas se as ruas expressavam praticamente um consenso, no interior do governo e da 
oposição predominavam o conflito e as divergências. Do lado oposicionista, o setor 
representado por Ulysses Guimarães, Lula e entidades civis, se posicionava em favor da 
intensificação da campanha até a data da votação da emenda, em 25 de abril. Enquanto isso, 
os governadores Tancredo Neves, Franco Montoro e Leonel Brizola tentavam conter o ímpeto 
da

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