Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
WILLIAM ALEXANDRE PEIXOTO DE MAGALHAES O QUE ELES TEM A DIZER: Concepção e atuação da grande imprensa sobre a redemocratização brasileira Monografia apresentada à Universidade Federal Fluminense como requisito para a obtenção do título de bacharel em História Orientador: Prof. Dr. Marcus Ajuruam De Oliveira Dezemone Niterói, RJ 2017 Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá Bibliotecário: Nilo José Ribeiro Pinto CRB-7/6348 M188 Magalhães, William Alexandre Peixoto de. O que eles têm a dizer: concepção e atuação da grande imprensa sobre a redemocratização brasileira / William Alexandre Peixoto de Magalhães. – 2017. 85 f. Orientador: Marcus Ajuruam de Oliveira Dezemone. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de História, 2017. Bibliografia: f. 83-85. 1. Participação social. 2. Manifestações públicas - Brasil. 3. Emenda constitucional n. 5/1983. 4. Oliveira, Dante de, 1952-2006. 5. Imprensa e política. 6. Jornais brasileiros. I. Dezemone, Marcus Ajuruam de Oliveira. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de História. III. Título. RESUMO A proposta deste trabalho é retornar ao contexto da redemocratização brasileira e compreender como os jornais O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e O Globo compreenderam o desenvolvimento desse processo e tentaram influenciar a abertura por meio do discurso veiculado em seus editoriais. O interesse é voltado especialmente para o período da campanha das Diretas Já, especificamente durante seus quatro últimos meses até a votação da emenda Dante de Oliveira, nos quais os debates se intensificaram bastante. O objetivo é mostrar que, apesar das divergências apresentadas no seio da grande imprensa, é possível identificar um mesmo viés liberal-conservador, que serve de matriz para construção de um mesmo projeto de sociedade, pautada no elitismo político e na centralidade do Mercado. Palavras chave: Pensamento liberal-conservador; Grande Imprensa; Redemocratização; Emenda Dante de Oliveira; Campanha das Diretas Já ABSTRACT The purpose of this paper is to return to the context of Brazilian redemocratization and to understand how the newspapers O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo and O Globo understood the development of this process and tried to influence the opening through the discourse in their editorials. Interest has been particularly focused on the period of the Diretas Já campaign, specifically during its last four months until the vote on the Dante de Oliveira amendment, in which the debates intensified. The objective is to show that, despite the differences presented in the press, it is possible to identify a same liberal- conservative view, which serves as a matrix for the construction of the same social project, based on political elitism and the centrality of the market. Keywords: Liberal-conservative thinking; Great Press; Redemocratization; Dante de Oliveira amendment; Diretas Já Campaign SUMÁRIO INTRODUÇÃO 08 CAPÍTULO 1 – A CONJUNTURA DA ABERTURA, A EMENDA DANTE DE OLIVEIRA E AS DIRETAS JÁ 1.1. O debate teórico sobre a redemocratização e as Diretas Já...............................................13 1.2. O projeto de Geisel............................................................................................................21 1.3. Figueiredo e o descontrole da abertura..............................................................................25 1.4. A emenda Dante de Oliveira..............................................................................................29 1.5. A Campanha das Diretas Já...............................................................................................33 CAPÍTULO 2 – A GRANDE IMPRENSA NO BRASIL 1.1. A trajetória da grande imprensa no Brasil.........................................................................37 1.2. Breve história dos jornais Estado de São Paulo, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e O Globo.....................................................................................................................................42 1.3. Estratégias diferentes e um mesmo destino.......................................................................52 1.3. Opinião pública e opinião publicada..................................................................................54 CAPÍTULO 3 – AS DIRETAS JÁ E SUCESSÃO PRESIDENCIAL NAS PÁGINAS DOS JORNAIS 3.1. O posicionamento dos jornais diante da disputa sucessória..............................................58 3.2. Degrau a degrau.................................................................................................................61 3.3. Moderação e radicalismo...................................................................................................66 3.4. Revanchismo, greve e medidas de emergência..................................................................68 3.5. Nas mãos de poucos...........................................................................................................73 3.6. Democracia e Mercado......................................................................................................77 CONSIDERAÇÕES FINAIS 80 Lista de siglas e abreviações ABI – Associação Brasileira de Imprensa ARENA – Arena Nacional Libertadora CNBB – Comissão Nacional dos Bispos do Brasil FMI – Fundo Monetário Internacional MDB – Movimento Democrático Brasileiro MR-8 – Movimento Revolucionário Oito de Outubro OAB – Ordem dos Advogados do Brasil PCB – Partido Comunista Brasileiro PCdoB – Partido Comunista do Brasil PDS – Partido Democrático Social PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro PT – Partido dos Trabalhadores UDN – União Democrática Nacional UEE – União Estadual dos Estudantes UNE – União Nacional dos Estudantes Agradecimentos Esse estudo é fruto das minhas reflexões mas também das de todos que chegaram até mim por meio de um texto, uma conversa, uma observação, um gesto. Por isso não me sinto de nenhuma maneira proprietário de qualquer conhecimento que tenha, por ventura, ajudado a produzir. Toda obra é fruto do trabalho coletivo e, portanto, à humanidade pertence. Agradeço ao Marcus Dezemone, meu orientador, que se mostrou prestativo e paciente todas as vezes em que tentei retomar este trabalho até a chance derradeira. Suas contribuições enriqueceram demais este estudo. À minha mãe Ofélia, cuja admirável dedicação à prática docente me influenciou a seguir o mesmo caminho sem nunca o ter apontado. Ela, que fez de tudo para que seus dois filhos tivessem uma vida digna e proporcionou a ambos a chance de cursar uma universidade, infelizmente não estará aqui para acompanhar este momento. Onde estiver, que esteja em paz. A meu grande amigo Walter Alves, que compartilhou da mesma angústia de adiar esse momento diversas vezes e ter a sensação de ter no caminho algo que nos impede de avançar. Iniciamos juntos, caminhamos juntos e agora superamos juntos esse obstáculo. A Amanda Fará, grande amiga que a vida me trouxe, companhia de ótimas conversas, coroados por cerveja e toda sorte de comida. Se fez presente nos momentos decisivos dessa jornadae se torna cada vez mais uma irmã para mim. A Lara Sartorio, por todo aprendizado e companheirismo que me proporcionou pelo tempo que passamos juntos. Sem ela certamente eu não seria a pessoa que sou hoje. O amor se transforma, ganha novos significados mas não acaba. Aos professores e funcionários desta instituição, sobretudo os terceirizados cujo trabalho, comumente invisibilizado pela arrogância de boa parte da academia e pela indiferença dos privilegiados deste país, é essencial para nossa formação. Por fim, agradeço a todos que lutam incansavelmente por uma sociedade mais justa, solidária e humana, sem preconceitos nem opressão de qualquer natureza. Aos explorados, humilhados e ofendidos do mundo eu dedico este trabalho, bem como dedicarei todos os outros que eu vier a produzir, até o fim dos meus dias. 8 INTRODUÇÃO O objetivo deste estudo é retornar ao contexto da redemocratização brasileira e compreender como a grande imprensa, por meio de quatro dos seus jornais mais destacados, compreendeu o desenvolvimento desse processo e tentou influir nele por meio do discurso veiculado em seus editoriais. O interesse é direcionado ao período da campanha das Diretas Já, especificamente durante seus quatro últimos meses até a votação da emenda Dante de Oliveira, nos quais os debates se intensificaram bastante. Nos primeiros meses de 1984, campanha das Diretas Já foi responsável por reunir milhões de pessoas, que saíram às ruas do país para expressar seus desejos, insatisfações e, sobretudo, para reivindicar o direito de eleger o próximo presidente da república. Hoje essa bandeira não tem o mesmo impacto que há três décadas nem parece ter o potencial de alcançar o status de consenso nacional que atingiu àquele momento, mesmo assim ela surgiu em meio aos protestos contra o impeachmente da presidente Dilma Roussef. Obviamente, se tratam de conjunturas bem diferentes, mas é curioso que num momento de grande turbulência política se recorra ao passado, e um momento muito particular dele, onde a população unida em torno de um direito fez frente ao poder do Estado. Na memória nacional, o Brasil perdeu aquela batalha política no momento em que a emenda das diretas foi barrada, mas ganhou a batalha moral que derrubaria a ditadura. Assim, há várias maneiras pelas quais presente e o passado se amarram, produzindo continuidades no processo histórico. É notável em ambos os casos a forma intensa como a imprensa – particularmente a grande imprensa – participa dos debates, conflitos e, eventualmente, das próprias mobilizações populares, convocando pessoas a saírem às ruas e se manifestarem. Ela não apenas registra fatos, levanta questões e emite opinião como, de certa forma, define o terreno em que se dará a disputa, estabelecendo sua dinâmica e lhe impondo limites. Numa estrutura democrática liberal, que pouco permite aos seus cidadãos uma participação efetiva na construção dos projetos coletivos, a grande imprensa é, de certa maneira, a janela através da qual a população em geral enxerga a cena política. E, tal como uma janela, permite ao sujeito ver o que passa num ambiente em que ele não está, enquanto esconde dele o que está para além de suas bordas. Assim, ela possui a natureza contraditória de revelar e ocultar a realidade num mesmo movimento. 9 Obviamente não podemos falar de grande imprensa como um bloco homogêneo que atua, em todos os espaços de disputa pelo poder, como sujeito fazendo frente a outros sujeitos – o Estado, os partidos, os sindicatos. A grande imprensa é um conjunto contraditório de sujeitos – as empresas jornalísticas – que podem apresentar interesses gerais e visões de mundo em comum, mas que possuem suas próprias estratégias e objetivos particulares, pelos quais buscam o apoio em várias fontes de poder e legitimação perante a sociedade, ou parte dela. Poderíamos dizer que os sujeitos da grande imprensa trabalham no sentido de determinar de antemão o horizonte de possibilidades da luta política mais geral enquanto, nos círculos mais restritos do poder, disputam entre si e em meio aos vários outros sujeitos os rumos do projeto nacional. A razão de a análise ser restringida à grande imprensa, e não à imprensa em geral, se justifica pelas suas próprias características: sua estrutura empresarial, o alcance nacional, a capacidade de concentrar recursos financeiros e o volume altíssimo de impressões não podem ser comparados aos da chamada “imprensa alternativa”. Esta, refém de recursos escassos, extremamente dependente do dinheiro da venda dos exemplares e do trabalho por vezes voluntário das pessoas envolvidas em sua produção, acaba sendo tragada pelo poder econômico da grande imprensa. A ética capitalista da busca pelo lucro que orienta e estrutura a grande imprensa é, portanto, condição sine qua non para uma ação política suficientemente relevante ao ponto de influenciar as decisões do Estado. Como contrapartida, as empresas que compõem a grande imprensa precisam apresentar em seus posicionamentos um considerável nível de correspondência com os setores da sociedade que visa atingir, particularmente com o seu público leitor. Os sujeitos confrontam a influência que recebem de várias outras instituições sociais, como a família e a religião por exemplo, e é no embate entre as várias visões que lhes são apresentadas e suas próprias experiências que formam seus valores e opiniões. E a imprensa deve se manter receptiva à influência de seus leitores, não apenas para registrar a pluralidade de seu público, mas porque a ideologia é, em parte, fruto de uma negociação. Em outras palavras, a dominação social não se dá apenas pela coerção, mas também pelo consenso dos dominados, nos termos de Gramsci. A intenção desse trabalho não é mostrar que os meios de comunicação da grande imprensa são filiados ao pensamento liberal-conservador, já que essa não é nenhuma grande revelação e as empresas assim se definem sem qualquer constrangimento. O que interessa 10 saber é como esses valores que a orientam, estruturam a ideia de democracia que eles propagam. Mas para além de apontá-la simplesmente como um meio de divulgação de um ideário produzido fora dela pela intelectualidade burguesa, trata-se de entender como a grande imprensa “não só assimila interesses e projetos de diferentes forças sociais, mas muito frequentemente é, ela mesma, espaço privilegiado da articulação desses projetos.” (Cruz & Peixoto, 2007: 258-259). Ou seja, parto da premissa de que a ideologia da classe dominante é construída no processo histórico e é o resultado dialético do embate entre as várias forças sociais. O período da redemocratização brasileira, e especialmente a disputa sucessória que tomou conta dos anos finais do governo do general João Batista Figueiredo, constitui um momento chave dessa luta. Naquele momento, a intenção do governo de controlar o processo de transição, os projetos pessoais de lideranças políticas, as exigências reformistas do empresariado e as reivindicações de várias categorias profissionais se encontraram num terreno de crise econômica e de contestação da legitimidade do regime, que fora instaurado em 1964 com um golpe. Numa brecha que se abriu nas eleições de 1982, o deputado federal eleito pelo PMDB do Mato Grosso, Dante de Oliveira, apresentou uma proposta de emenda constitucional que restabeleceria a eleição direta para o próximo presidente. Em torno dela as oposições organizaram o movimento que serviria de base para a construção dos conceitos de cidadania e democracia que dominaram o imaginário popular com bastante vigor até 2013. Com o objetivo de verificar como tudo isso foi representado pela grande imprensa, optei por analisar os quatro jornais impressos de maior circulação à época, quais sejam, a Folha de São Paulo, o Estado de São Paulo, o Jornal do Brasil e o O Globo. Embora os dois primeirossejam radicados em São Paulo e os dois últimos no Rio de Janeiro, todos já tinham abrangência nacional à época. A razão da escolha por esses veículos como fonte passa também pela facilidade de acessar seus acervos completos através dos respectivos sítios eletrônicos; outra razão é a frequência de suas publicações, que torna possível acompanhar a evolução diária dos discursos, detectando suas continuidades e variações; por fim, o fato de os quatro se apresentarem num mesmo formato, permite o uso de uma mesma metodologia de análise. Examinarei os editoriais das publicações uma vez que, como ressalta Alzira Alves de Abreu, esse é um espaço reservado para o jornal expressar seu posicionamento político- ideológico e orientar seus leitores em questões diversas (Abreu, 2002: 20). 11 No primeiro capítulo resgato o debate teórico sobre a redemocratização, questionando dois pontos presentes em algumas obras que tratam da temática. O primeiro é visão muito institucionalista do processo, o que redunda na caracterização da transição como sendo o resultado do embate entre lideranças do governo e da oposição partidária, ofuscando a importância de outros sujeitos influentes no processo. O segundo é a superficialidade de análises que atribuem ao período de transição o significado de “reconquista da cidadania” e de “volta da democracia”, sem levar em conta que tipo de cidadania e de democracia se estava criando. Também ali reconstituo o panorama sociopolítico vivido pelo Brasil no período de Redemocratização até o momento da ascensão da campanha, como forma de compreender melhor o cenário em que se travam as disputas e sobre o qual os jornais intervém. Essa contextualização é fundamental dado que os jornais não atuam paralelamente ao processo histórico, como se fossem meros observadores do cenário que descrevem. No segundo capítulo faço um resgate das trajetórias particulares de cada um dos jornais desde a fundação, de maneira a identificar a lógica (se há) dos seus projetos editoriais, preocupação muito bem colocada por Heloísa de Faria Cruz e Maria do Rosário da Cunha Peixoto no artigo Na oficina do historiador: conversas sobre a história da imprensa. Profundamente alinhado com a perspectiva das autoras, enxergo a imprensa como “uma força ativa da história do capitalismo e não como mero depositório de acontecimentos nos diversos processos e conjunturas” e que, por isso, “suas articulações mais amplas com a história do capitalismo se estabelece como princípio norteador e ponto de partida da pesquisa” (Cruz & Peixoto, 2007, p.257). As linhas editoriais são uma resposta à conjuntura e, por essa razão, sofrem alterações de tempos em tempos. Seus posicionamentos são condicionados pela dinâmica da luta política e pelas opiniões e valores dos proprietários, dos jornalistas e de seu público leitor. As concepções expressas pelos jornais no período analisado são o fruto de uma identidade constituída ao longo de cada trajetória particular, mas também das possibilidades concretas observadas no horizonte em função da correlação de força dada em cada momento. No terceiro capítulo faço a análise dos editoriais dos quatro meses que antecederam a votação da emenda Dante de Oliveira no Congresso, contrastando os quatro periódicos. A análise tem três objetivos: a) observar, a partir das estratégias e bandeiras adotadas pelos 12 jornais, como eles compreendiam o momento político, a correlação de forças sociais e as possibilidades de intervenção na realidade; b) comparar os editoriais das quatro publicações no intuito de identificar divergências e aproximações; c) verificar se há, na forma como o processo sucessório e a Campanha das Diretas são apresentados ao seu público leitor, elementos que indiquem alguma identidade comum que confirme a hipótese de que a grande imprensa é estruturada por uma matriz ideológica liberal-conservadora. 13 CAPÍTULO 1 – A CONJUNTURA DA ABERTURA, A EMENDA DANTE DE OLIVEIRA E AS DIRETAS JÁ! 1.1. O debate teórico sobre a redemocratização e as Diretas Já A redemocratização brasileira não foi determinante apenas do ponto de vista estritamente político-institucional, de restabelecimento da chamada “normalidade democrática” e dos direitos políticos suprimidos ao longo da ditadura civil-militar. Esse período definiu, de certa forma, o modelo de sociedade, de subjetividade política e de Democracia que vigoravam até os anos mais recentes, quando começaram a entrar em colapso. O tema atraiu a atenção de diversas áreas das ciências sociais: da ciência política e da sociologia, buscando compreender os fatores determinantes para o processo, o nível de aprofundamento e o déficit democrático legados às décadas posteriores; do jornalismo, ávido por narrar os acontecimentos e revelar os detalhes de bastidores; e da historiografia, que vai encontrando nos dilemas atuais a ponte para acessar um passado bastante recente e, de muitas formas, ainda presente. Nos anos 80 surgiu uma série de obras que se debruçaram os processos de democratização que vinham ocorrendo em várias partes do mundo desde a década anterior – iniciadas com a queda do salazarismo em Portugal em 1974 e o fim da ditadura no Equador em 1979. Os autores filiados a essa corrente buscavam estabelecer um novo paradigma de análise de períodos de transição entre a ditadura e a democracia, que ficaria conhecida como “transitologia”. Nessa literatura, a transição é apreendida como “o período, de duração extremamente variável e de conteúdo altamente incerto, que transcorre entre a queda de um regime político e a completa tomada do controle das rédeas do poder por parte do regime que vem substituí-lo” (Vitullo, 2005, p.16). Embora seja um campo vasto, que guarda suas diferenças internas, existem algumas características compartilhadas pelos trabalhos orientados por esse paradigma. O primeiro ponto diz respeito à origem dessa corrente, que nasce da crítica ao estruturalismo que dominava a academia até então, e que se dedicou a analisar a instauração de regimes 14 autoritários. Os autores deslocaram o foco de análise para elites políticas, levando em consideração estratégias, negociações e pactos firmados entre os líderes político-partidários mais destacados. Nessa ótica, a reconstrução de instituições democráticas não derivaria de fatores macro-estruturais, mas essencialmente das habilidades, atitudes e condutas dos “atores mais relevantes” (Vitullo, 2005, p.17). Considera-se que a celebração de pactos entre os condutores do regime autoritário e as lideranças do regime político emergentes ampliaria as chances de sucesso da transição democrática – ainda que isso se faça, paradoxalmente, por vias não democráticas, uma vez que os pactos normalmente são negociados por um pequeno grupo de participantes, excluindo os demais da tomada de decisões. Como argumenta Santiso (1993 apud Vitullo, 2005, p.17), “o espaço qualitativo fundamental, em cujo interior podem se dar os processos de democratização, fica assim definido pelos atores e pelas ações e os caminhos que eles escolham e já não mais pelas grandes questões econômicas ou sociais”. Isso implica que as lideranças do novo regime não apenas deveriam manter aberto o diálogo com as lideranças do regime autoritário, como seria desejável que com elas dividissem o protagonismo ao longo do processo. Isso supostamente amenizaria o conflito e contribuiria com a consolidação das instituições democráticas (Vitullo, 2005, p.47). Essa mudança epistemológica é acompanhada do argumento de um necessário “excepcionalismo metodológico”. Argumenta-se que as ciências sociais, nas décadas anteriores, haviam sido formuladas para analisar períodos de estabilidades e, por essa razão, não seriam adequadas para apreciar as mudanças de regime, transições ou etapas de crise agudas. Esses momentos, marcados por indefinições eincertezas demandariam um olhar diferente: “as transições são apresentadas como situações políticas extremamente imprevisíveis, momentos históricos abertos, períodos com alto grau de indeterminação, nos quais a direção que assumirá a mudança dependerá, essencialmente, das eleições e estratégias adotadas pelos principais agentes políticos” (Vitullo, 2005, p.19). Também é muito comum encontrar nesses estudos um campo semântico próprio de expressões culturais como o esporte e as artes, sendo recorrentes expressões como “jogo”, “jogadas”, “atores”, “cena política”, entre outras (Vitullo, 2005, p.20). O uso dessa terminologia ter o duplo efeito de abrandar a gravidade do momento, retirando-lhe o peso de expressões que remeteriam à guerra, como “luta”, “enfrentamento”, “estratégia”, e de sugerir que houvesse um consenso implícito em torno das regras e da dinâmica a ser seguida, o que 15 deslegitimaria os sujeitos que buscassem a disputa por meio do conflito ou da contestação da própria lógica do processo. Poderíamos questionar se essa postura analítica não refletiria uma compreensão ingênua sobre a política, cujos rumos não determinariam as vidas das pessoas, mas as vitórias e derrotas dos sujeitos diretamente envolvidos nas disputas e os sentimentos dos que apenas acompanham como espectadores. Outra característica da transitologia é a concepção gradualista sobre o processo de redemocratização, ou seja, a pressuposição de existem etapas a serem cumpridas antes que se possa avançar a outros desafios. Inspirados em processos tidos como ideais, como o caso espanhol, considera-se que a moderação das lideranças políticas deveria conduzir à paulatina transformação das instituições, evitando atropelos e minimizando as chances de retrocesso (Vitullo, 2005, p.21). Subjaz a essa ideia uma separação entre a democracia política e a democracia social, muito influenciada pela estrutura de cidadania proposta por Thomas Marshall. O sociólogo britânico concebe a cidadania como uma reunião de três esferas de direito: os direitos civis, relacionados com a liberdade individual, tal como o direito de ir e vir, acesso à justiça e liberdade de pensamento; os direitos políticos, relacionados à participação no exercício do poder político, como o direito ao voto; os direitos sociais, relacionados à garantia de um mínimo de bem estar social, como acesso aos serviços educacionais. Em Cidadania, Classe Social e Status, Marshall argumenta que na Inglaterra esses direitos foram conquistados de forma sucessiva – primeiro os civis, em seguida os políticos e, por fim, os sociais – e que a conquista de um criava condições para a reivindicação de outro (Marshall, 1967, p.66 et seq.). José Murilo de Carvalho, em Cidadania no Brasil – O longo caminho, considera que esse processo se deu no Brasil na ordem inversa: os direitos sociais teriam sido implementados por Vargas, durante o Estado Novo, ao mesmo tempo em que se suprimiram os direitos políticos e os civis foram reduzidos; os direitos políticos, também de forma paradoxal, teriam sua maior expansão durante a ditadura civil-militar, na qual a representação política foi transformada em peça decorativa do regime; os direitos civis viriam por último e, à época de sua análise, permaneciam inacessíveis à maioria da população (Carvalho, 2008, p.219 et seq.). 16 A questão é que esse entendimento particionado de cidadania levaria os transitólogos a recomendar que os líderes políticos de oposição mais proeminentes agissem com precaução e “realismo”, evitando jogadas arriscadas. As negociações deveriam, portanto, ser pautadas pela cooperação com as lideranças “moderadas” do regime em vigor e pelo estabelecimento de metas politicamente viáveis, marginalizando reivindicações que não pudessem ser efetivadas: “Com frequência há uma marcada exaltação, nestes escritos, da necessidade de cautela, de prudência, de moderação e de celebração de compromissos e das vantagens de fazer sentir aos brandos do regime que ainda contam com capacidade de iniciativa política” (Vitullo, 2005, p.45) Tanto o foco nas ações dos “atores relevantes” quanto a visão etapista do processo de democratização estão apoiados numa visão minimalista de democracia, muito influenciada por pensadores de orientação liberal-conservadora. As análises orientadas pelo paradigma da transitologia tendem a ignorar o debate sobre o aprofundamento dos princípios democráticos e a extensão para os âmbitos econômico e social. Propostas em favor de transformações mais radicais costumam ser vistas como ameaça à estabilidade e à consolidação das instituições das instituições democráticas, como avalia Vitullo: “Efetivamente, pode-se afirmar que há, nas análises sobre a transição e a consolidação democrática, uma exagerada ênfase nas idéias de ordem e estabilidade; ênfase muito presente em (...) obras já clássicas que fazem parte do paradigma hegemônico da ciência política e da sociologia política contemporâneas. Em todas elas é defendida incisivamente a idéia de que a estabilidade exige um relativo isolamento das estruturas políticas perante as pressões da sociedade e, em especial, dos setores populares.” (Vitullo, 2005, p.48) Essa visão se mostra bastante alinhada ao pensamento de Joseph Schumpeter, autor de uma das teorias mais influentes do século XX. O economista austríaco concebe a democracia como um arranjo institucional similar ao mercado, no qual grupos e indivíduos disputam entre si os votos dos eleitores, tal como empresas e empresários competem pelos consumidores. Ele refuta as teorias políticas do século XVIII, que se assentavam sobre os princípios do “bem comum” e da “vontade do povo”, e estabelece a ideia de “método democrático”, segundo o qual a participação popular se limita à escolha de lideranças. A democracia, segundo seu entendimento, seria uma disputa competitiva entre elites pelos votos da população, desinteressada das questões políticas e intelectualmente incapaz de compreendê-las, posto que lhe faltaria a racionalidade adequada (Matos, 1999, p. 47). 17 Outra grande influência no século XX – e aparentemente também na transitologia – é o cientista político estadunidense, Robert Dahl. Em 1953, o autor apresenta o conceito de “poliarquia” 1 (governo de muitos) encontraste a formas não democráticas de governo, a monarquia (governo de um) e a oligarquia ou aristocracia (governo de poucos). O governo poliárquico seria caracterizado pela disputa entre uma porcentagem relativamente pequena de indivíduos, que estariam submetidos a algum controle da população, visto que é nela que buscariam o apoio necessário para serem eleitos. Para Dahl, sete instituições seriam imprescindíveis para a poliarquia, quais sejam: 1) Funcionários eleitos e constitucionalmente investidos do controle político das decisões governamentais; 2) Eleições livres, justas e regulares; 3) Sufrágio estendido a praticamente todos os adultos; 4) Direito de concorrer a cargos eletivos; 5) Liberdade de expressão; 6) Direito dos cidadãos a buscar soluções alternativas de informação; 7) Autonomia associativa. (Pereira, 2014, p.8) Na esteira desse pensamento aparecem outros autores, como o florentino Giovanni Sartori, para quem a democracia é um governo das elites que competem entre si pelo voto dos eleitores. A participação popular, para ele, se restringiria “apenas à participação no processo eleitoral, que, através de pressão e controle, influencia a atividade política” (Matos, 1999, p.48). Igualmente para Seymour Martin Lipset, que define a democracia em sociedades complexas como “um sistema político que fornece oportunidades constitucionais regulares para a mudança dos funcionários governantes, e um mecanismo social que permite a uma parte – a maior possível – da população influir entre os contendores para cargos públicos” (Lipset, 1967, p.45, apud. Matos, 1999, p.48).É possível enxergar essa influência em autores como Thomas Skidmore e Guilhermo O’Donnell, que consideram que a redemocratização brasileira foi obra dos militares moderados, como Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva. Skidmore afirma que o governo de Geisel tinha como meta o retorno à democracia, porém a uma variedade indefinida dela. Para ele, Geisel estaria sendo “fiel à visão de Castelo Branco: a Revolução de 1964 devia, após um limitado período governamental de emergência, conduzir a um pronto retorno à democracia representativa” (Skidmore, 1988, p.320-321, apud Nery, 2012, p.15). Também para O’Donnell, dessa vez com Schmitter, a iniciativa do processo podia ser atribuída aos militares, que o conduziram com a finalidade de redemocratização do país, ainda que alterando as regras do jogo quando entendiam necessário. Dado que o objetivo maior estava 1 Dahl considerava as democracias então existentes como pobres aproximações do ideal democrático, por isso utiliza o termo “poliarquia” para a “democracia real”, e democracia para a “democracia ideal”. 18 sendo perseguido, era essencial que a oposição mantivesse a moderação, atitude que evitaria retrocessos. Alcançada a democracia política, poder-se-ia passar ao processo de socialização, o que significaria buscar a “democracia social”, elevando os membros da comunidade a“cidadãos- atores”, iguais em direitos e obrigações. Da socialização também faria parte a busca pela “democracia econômica”, ou seja, “a garantia de iguais benefícios à população, em termos dos bens e serviços gerados pela sociedade” (O’Donnell & Schmitter, 1988, p. 21, apud Nery, 2012, p.16). Essa visão fragmentada de democracia, a qual seria conquistada em etapas, só pode redundar numa visão altamente institucionalista do conceito de democracia, como fica claro em trecho destacado por Vanderley Nery: “(...) uma espécie de mínimo procedural que os autores contemporâneos consentiriam em considerar elementos necessários da democracia política. Voto secreto, sufrágio universal, eleições regulares, competição interpartidária, reconhecimento das associações voluntárias e responsabilidade executiva dos governantes são elementos desse consenso no mundo contemporâneo” (O’Donnell & Schmitter, 1988, p. 25, apud Nery, 2012, p.16). Bolivar Lamounier também considera “a disposição inicial do governo Geisel de implantar um projeto de liberalização controlada, que encontrava resistências nos setores mais intransigentes do regime” (Lamounier, 1988. 122, apud Nery, 2012, p.17). Lamounier considerava que era preciso resgatar os componentes liberais presentes na sociedade brasileira, e encontra nas eleições um elemento essencial. A despeito da manipulação realizada pelo governo, a manutenção do calendário eleitoral cumpriria papel importante porque garantiu o meio pelo qual se expressaram os descontentamentos com o regime e o apoio à oposição. Segundo o autor, foram conquistas eleitorais da oposição no período da abertura que reconfiguraram o jogo político, permitindo uma negociação que geraria ganhos políticos a ambos os lados: a Lei da Anistia, o fim do AI 5 e o retorno ao pluripartidarismo para a oposição, e reconquista da “autoridade” dos governos de Geisel e Figueiredo, na medida em que estes teriam sido identificados como agentes do projeto de normalização (Nery, 2012, p.18). A historiografia brasileira das duas últimas décadas, influenciada pela terceira geração da Escola dos Annales, também se tornaria terreno fértil para a aparição de características do paradigma da transitologia. A renovação da História Política, com o revalorização da 19 narrativa e a receptividade em relação a contribuições de outras disciplinas, incorpora o vocabulário suavizado, a visão superficial e fragmentada de democracia e, em certa medida, o excepcionalismo metodológico, pois tende a ignorar determinações estruturais em benefício de uma avaliação mais centrada nos elementos conjunturais. O interesse pela prática dos sujeitos – as esquerdas, os militares, os partidos, os trabalhadores – é motivada pela pretensão de compreender a cultura desses grupos. Um bom exemplo é o artigo de Américo Freire, A via partidária na transição política brasileira, de Américo Freire que, partindo da premissa de Lamounier de que a transição brasileira foi uma abertura regulada pelo calendário eleitoral e não um mero arranjo oligárquico, analisa a atuação dos partidos envolvidos nas disputas eleitorais após a reforma partidária de 1979. A escolha de Freire pela análise dos partidos segue a lógica de enfocar as ações dos “atores relevantes”, como o próprio autor deixa claro em determinado momento do texto: “no meu modo de ver, [os partidos] terminaram por assumir um papel de centralidade no enfrentamento da crise que resultou no advento do governo civil, em 1985” (Freire, 2014, p.10). Francisco da Silva, que produz uma narrativa até interessante, ilustrando a não linearidade do processo de transição, se deixa levar por deslizes graves ao reproduzir termos carregados de significado sem problematizá-los. Como quando se refere aos setores mais extremistas do regime como “os radicais, porém sinceros” ou ao ex-governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto de “líder revolucionário de 1964”. A terminologia lúdica e a desconsideração das estruturas sociais brasileiras também ficam claro quando o autor expõe seu foco analítico: “Vemos, assim, desde já os principais atores em presença no longo jogo político denominado abertura: a pressão exterior, representada principalmente pelo governo Carter e, também, os condicionantes da economia mundial; o projeto de abertura do poder militar, traduzido na estratégia Geisel-Golbery, e a ação autônoma, porém condicionada, da oposição.” (Silva, 2007, p.247) Lucília Delgado, em artigo entitulado Diretas-Já: vozes da cidade, também sucumbe à superficialidade analítica ao exaltar a “festa cívica” promovida pela população brasileira ao longo da campanha. A historiadora considera que “no horizonte vislumbrava-se a consolidação da democracia e a eleição não só para presidente da República, mas também para uma Assembleia Constituinte” (Delgado, 2012, p.420). Ou seja, à visão de democracia 20 exposta pela autora vai além da ideia de um sistema de disputa entre elites, mas não consegue ultrapassar a mera formalidade das reformas na legislação. Não desconsidero a importância da constituição na construção de uma sociedade democrática, mas ela é um meio, e não a fim a ser alcançado. A visão fragmentada da autora sobre a ideia de democracia e sua compreensão etapista do processo podem ser notadas em outras passagens, como por exemplo: “Transformações [na dinâmica da vida política brasileira] que poderiam começar com o retorno da democracia eleitoral e se desdobrar, posteriormente, em mudanças expressivas nas políticas institucionais do Brasil.” (Delgado, 2012, p.412). Já as obras jornalísticas produzidas sobre o período são voltadas para a reconstituição dos acontecimentos e, nesse intuito, os autores se valem de fontes variadas: a série de Élio Gaspari, composta de 5 volumes, possui uma narrativa dinâmica, veiculando memórias e conversas de bastidores e apresenta um bom panorama geral de todo o período ditatorial; Ricardo Kotscho, repórter da Folha de São Paulo à época da campanha das diretas, apresenta uma coletânea de textos escritos no calor do momento em Explode um novo Brasil e, por isso mesmo, investido de bastante emoção, como o próprio declara em vários momentos; Em Diretas Já – 15 meses que abalaram a ditadura 2 ; Dante de Oliveira e Domingos de Oliveira narram os bastidores da campanha a partir de entrevistas e de suas próprias memórias, já que ambos exerciam mandato de deputado federal à época. Embora nenhuma delas seja propriamente analítica,apresentam uma narrativa que acaba refletindo a influência do paradigma transitológico ou dos valores que o sustentam. Seja na ciência política, na historiografia ou no jornalismo, a reconstrução dos acontecimentos é realizada por meio das memórias dos sujeitos e das matérias de jornais. Em poucos casos o discurso jornalístico é problematizado enquanto uma escrita que possui determinações muito particulares e, por mais objetivas e imparciais que tentem ser, constituem representações dos fatos e com eles não se confundem. Portanto, a intenção desta análise é exatamente identificar essas determinações e saber para onde o campo semântico construído nos editoriais nos leva. Em seguida, resgatarei a conjuntura do período de redemocratização, que se inicia em 1974 com a posse do general Ernesto Geisel, até 1983 quando seu sucessor, o general João Baptista Figueiredo, anuncia em seu último pronunciamento oficial daquele ano que deixaria a coordenação do processo de escolha de seu sucessor. Naquele momento a dinâmica política ganhava um novo rumo e a campanha por 2 Apesar de os autores não possuírem formação em jornalismo, a escrita em formato de crônica e composto de muitas entrevistas me fez considerá-lo um texto jornalístico. 21 eleições diretas se tornava o elemento em torno do qual se reconfigurou a disputa política nacional. 1.2. O projeto de Geisel “Erram — e erram gravemente, porém — os que pensam poder apressar esse processo pelo jogo de pressões manipuladas sobre a opinião pública e, através desta, contra o Governo. Tais pressões servirão, apenas, para provocar contrapressões de igual ou maior intensidade, invertendo-se o processo da lenta, gradativa e segura distensão, tal como se requer, para chegar-se a um clima de crescente polarização e radicalização intransigente, com apelo à irracionalidade emocional e à violência destruidora. E isso, eu lhes asseguro, o Governo não o permitirá.” (Ernesto Geisel) 3 No início de 1974, o general Ernesto Geisel era escolhido presidente da República em eleição indireta, vencendo sem surpresas o “anticandidato” da oposição, Ulisses Guimarães. O general castelista que havia presidido a Petrobras nos cinco anos anteriores passaria o seu primeiro a frente do executivo federal difundindo seu conceito de “aperfeiçoamento democrático”, fazendo questão de apresentá-lo como uma continuidade dos ideais da “Revolução modernizadora de 1964”. Nenhum dos termos utilizados posteriormente em análises para definir aquele momento, como “abertura”, “redemocratização”, “liberalização”, entre outros, apareceram nos discursos oficiais do presidente naquele ano. “Aperfeiçoamento”, presente 16 vezes, era indubitavelmente a palavra escolhida para classificar o movimento de reforma executado pelo seu governo, incidindo tanto sobre o “regime democrático” e a “estrutura política nacional” quanto sobre “os valores morais do indivíduo” e “o potencial humano do homem brasileiro” 4 . 3 Cf.: Ernesto Geisel. Discursos V.I 1974. p.122. Disponível em: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/publicacoes-oficiais/catalogo/geisel/discursos-vol-i-1974-1/view 4 Ibdem 22 Em outras partes do mundo, o ambiente político se mostrava igualmente conturbado naquele ano. Em terras lusitanas a Revolução dos Cravos, liderada por militares, derrubava a ditadura salazarista de maneira bem menos gradual do que no Brasil e acabava com o que ainda existia do Império Português . Na Argentina, a morte de Juan Domingo Perón interrompia seu terceiro mandato presidencial, e em seu lugar assumia sua esposa, Maria Estela Martínez de Perón . Nos EUA, o escândalo de Watergate, que explodira dois anos antes, chegava ao fim com o julgamento do presidente Richard Nixon pela Suprema Corte. Por decisão unânime se concluiu que o republicano tinha conhecimento do esquema projetado para espionar a oposição e, dentro de alguns dias, Nixon se tornaria o primeiro presidente da história do país a renunciar ao cargo. Mas do contexto internacional, o fato que mais afetou o Brasil foi, sem dúvida, a guerra árabe-israelense e a consequente crise do petróleo . Dependente do combustível importado dos países árabes, o país conheceria as mazelas que corroíam as frágeis bases do progresso 5 . Ao contrário do seu antecessor, Geisel não foi agraciado pelo “milagre brasileiro”, e se viu obrigado a lidar com as consequências das escolhas mundanas do ministro Delfim Netto . Os fantasmas do passado retornavam para assombrar um Brasil que havia experimentado um clima de euforia e otimismo, com as altas taxas de crescimento e o triunfo canarinho nos gramados do Estádio Azteca , em plena fase mais autoritária do regime. A inflação voltava a crescer, o endividamento externo aumentava exponencialmente e a concentração de renda havia se acentuado ao invés de diminuir. Nos porões do DOI-Codi, a chamada “linha dura” tratava de eliminar a “ameaça subversiva”, assassinando militantes presos, como o jornalista Vladimir Herzog e do metalúrgico Manuel Fiel Filho, causando grande comoção popular. Os “moderados” a frente do governo tratavam de converter cada ato espontaneísta dos órgãos de segurança em instrumentos para a luta interna contra os “radicais”, que levaria ao afastamento de figuras importantes do governo, como o Ministro do Exército, o general Sylvio Frota 6 . O projeto de Geisel sofreria o seu primeiro baque com inesperada vitória eleitoral do MDB nas eleições de 1974, a primeira desde a instauração da ditadura em que o governo permitiu a realização dos debates no rádio e na televisão. A oposição garantiu 16 das 22 vagas em disputa para o Senado e por pouco não alcançou a maioria na Câmara, elegendo 161 5 Cf.: Jornal do Senado Especial. Senado 74 A eleição que abalou a ditadura. 19/11/2014. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/jornal/edicoes/especiais/2014/11/19/jornal.pdf 6 Cf.: COUTINHO, A. e GUIDO, M. C. GEISEL, Ernesto. In: FGV CPDOC. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/geisel-ernesto 23 deputados contra os 203 eleitos pela ARENA 7 . Para não perder o controle da situação, o governo lançaria mão da Lei Falcão, que estabelecia novas regras da propaganda de rádio e TV para os pleitos municipais de 1976. A apresentação dos candidatos deveria consistir apenas em uma menção ao nome, partido, número e currículo de cada um. Na TV se podia mostrar sua foto e, no máximo, a divulgação de data e local dos comícios 8 . Em 1977 o governo avançava na tentativa de manter o processo sob controle, decretando o fechamento do Congresso e aprovando monocraticamente uma série de reformas constitucionais, destinadas a impedir um novo fracasso nas eleições de 1978. O “Pacote de Abril” , como ficou conhecido, era composto por 14 emendas, 3 artigos constitucionais, 6 decretos-leis e estabelecia, dentre outras medidas: eleições indiretas para governadores e para 1/3 dos senadores (estes denominados criticamente como senadores “biônicos”); a ampliação das bancadas dos estados menos desenvolvidos (nos quais se esperava melhor desempenho da ARENA); a extensão da Lei Falcão aos pleitos estaduais e federais; alterava o quorum de 2/3 para maioria simples nas votações de emendas constitucionais pelo Congresso; a ampliação do mandato presidencial de cinco para seis anos. As reformas acabaram não produzindo o efeito que o governo esperava, servindo apenas para evitar que o MDB alcançasse a maioria no Senado, mas às custas de um grande desgaste político 9 . Ao menos a sucessão de Geisel estaria garantida, o que permitiu que ele e o general Golbery desativassem parte do aparato repressivo instalado ao longo da ditadura, embora ofizessem no intuito de reter o controle do processo. A interiorização dos mecanismos de censura pelas empresas jornalísticas é exemplar disso: desde 1975 o governo vinha suspendendo progressivamente a censura prévia dos veículos de comunicação e delegando às próprias editorias o “bom senso” na hora de julgar o que deveria ou não ser escrito. Alimentava-se assim a prática da autocensura, através da qual “as instituições livravam-se da incômoda presença dos censores residentes e da onerosa prática de submeter todo o material publicado à censura prévia”. À medida em que aceitavam essa condição, fosse por medo da intervenção do governo nas redações, da prisão de jornalistas ou da perda de empréstimos e 7 Cf.: OLIVEIRA, G. Há 40 anos, Lei Falcão reduzia campanha eleitoral na TV a 'lista de chamada'. 03/10/2016. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/09/30/ha-40-anos-lei-falcao-reduzia- campanha-eleitoral-na-tv-a-lista-de-chamada 8 Cf.: Cf.: Jornal do Senado Especial. Senado 74 A eleição que abalou a ditadura. 19/11/2014. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/jornal/edicoes/especiais/2014/11/19/jornal.pdf 9 Cf.: MOTTA, Marly. Pacote de Abril. In: FGV CPDOC. Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/PacoteAbril 24 financiamentos estatais, “transformavam-se em executoras e cúmplices da Censura, das quais as principais vítimas eram elas próprias” (Soares, 1989, p. 38). Mas o fato mais significativo de Geisel foi certamente a revogação do AI-5 que, na opinião de alguns, caracterizaria a fase propriamente ditatorial do regime 10 . Ainda que o governo tenha apresentado a decisão como um ato de boa vontade dos militares castelistas, é impossível separá-lo da conjuntura, nacional e internacional, e das determinações estruturais do desenvolvimento capitalista no Brasil. Em 1978, o país enfrentava o momento mais grave da crise econômica, com a inflação atingindo 46,3%, o maior índice desde o início da ditadura (Munhoz, 1997, p.61) e a dívida externa superava em dez vezes a de 1969 (Lopes., 1998, p.82). A recessão econômica dava claros sinais de que o modelo desenvolvimentista conduzido pelo Estado estava esgotado e, desde 1974, parte do empresariado, capitaneado por lideranças industriais, se lançaram à campanha antiestatizante. Com o fracasso do II PND , as críticas se intensificaram e os empresários da ABDIB lançaram o Manifesto dos Oito, exigindo maior participação na formulação na política econômica do Estado (Nery, 2012, p.42-58). Na região do ABC paulista, os metalúrgicos da Scania iniciavam o movimento grevista que se espalharia pelo país, com diversas categorias de trabalhadores. Esses acontecimentos revelavam uma reconfiguração do conflito entre capital e trabalho para os anos seguintes. No âmbito da reconquista do espaço político perdido nos anos “anos de chumbo” e na luta por direitos fundamentais, a CNBB liderava o movimento de denúncia da tortura e de busca de informação pelos desaparecidos; o movimento pela anistia dos presos políticos e dos exilados crescia e ganhava adeptos na grande imprensa; além de o próprio MDB que ganhava força política, se permitindo desempenhar mais efetivamente seu papel de oposição (Kucinski, 2001, p.75-88). No plano internacional, a eleição de Jimmy Carter nos EUA gerou uma mudança de perspectiva em relação às ditaduras latino-americanas, e figuras importantes no país, como jornalistas, políticos e intelectuais passaram a repercutir as denúncias de tortura e repressão promovidas pelo governo brasileiro (Gaspari, 2016, O fator Jimmy Carter). O desfecho que tiveram algumas ditaduras, como em Portugal e na Grécia, também provocaram nos militares 10 REIS FILHO, D. A. Daniel Aarão Reis: As conexões civis da ditadura brasileira: depoimento. [15/02/2014]. O Globo. Entrevista concedida a Leonardo Cazes. Disponível em: http://blogs.oglobo.globo.com/prosa/post/daniel- aarao-reis-as-conexoes-civis-da-ditadura-brasileira-524443.html 25 “moderados” a sensação de que seria razoável realizar reformas antes que perdessem o controle do processo, seja para a oposição, seja para os militares da “linha dura” (Gaspari, 2014, p.27;487). Fato é que, no apagar das luzes de seu governo, Geisel relegava a quem o sucederia um projeto de autorreforma – ou de “aperfeiçoamento democrático”, como gostava de dizer – ainda mais suscetível a alterações de rumo. Seu escolhido teria bastante trabalho nos próximos anos, enquanto o general partiria pra uma espécie de autoexílio em sua casa de Teresópolis, acompanhando tudo de longe mas sem interferir em nada. (Gaspari, 2016, O vencedor) 1.3. Figueiredo e o descontrole da abertura “É pra abrir mesmo. E quem não quiser que abra, eu prendo e arrebento. A minha reação, agora, vai ser contra os que não quiserem abertura” (João Batista Figueiredo) 11 A escolha de João Figueiredo era vista, por Geisel e Golbery, como uma forma de garantir a continuidade do projeto de autorreforma do regime e assegurar o protagonismo dos generais castelistas diante das pressões crescentes da sociedade civil de um lado e da “linha dura” do outro. Mas se Geisel usufruiu ao menos da esperança de que se pudesse retomar o crescimento econômico e reviver os tempos de “milagre”, seu sucessor teve de lidar com a descrença e a indignação popular. Logo em seu primeiro ano de governo, o ex-chefe do SNI enfrentou os altos índices de inflação e endividamento externo, o agravamento da crise institucional e o aprofundamento das lutas políticas e econômicas. Não bastassem os fatores internos, o mundo se veria às voltas com o segundo choque do petróleo e a os primeiros sinais de recessão, o que afetavam diretamente a economia brasileira, cada vez mais subordinada às vicissitudes do mercado externo. A personalidade explosiva de Figueiredo, manifestada 11 Jornal do Brasil, 16 de outubro de 1978. 26 muitas vezes de maneira performática, não contribuiria para impor um clima harmonioso à abertura política. Desde 1977 diversas entidades civis vinham passando por processos de reorganização que convergiam para a luta por redemocratização. Naquele ano a CNBB, que se destacava na denúncia da tortura, aprovava um documento em defesa do retorno do país à democracia, com eleições diretas e liberdade de organização política; a ABI lançava um manifesto em favor da liberdade de imprensa e contra a censura; os estudantes de retomavam as passeatas e reconstruíam as entidades de base, como as UEEs (Bertoncelo, 2001, p.69-76); Todos esses movimentos se encontrariam no movimento de luta pela “anistia ampla, geral e irrestrita”, que se tornou uma das principais bandeiras da redemocratização e seria finalmente aprovada em agosto de 1979, fortalecida pelo apoio dos sindicatos e até mesmo da grande imprensa. É importante salientar que a versão final da anistia impedia a punição dos agentes do Estado responsáveis direta ou indiretamente pelos casos de tortura e desaparecimento de presos políticos. (Kucinski, 2001, p.73-88) Seguindo a lógica de atuação de Geisel e reconhecendo que a oposição ganhava terreno, o governo tentou dividi-la por meio da reforma partidária. Através da Lei 6.767, Figueiredo extinguia os dois partidos criados em 1965 pelo AI-2, instituindo novas regras para a criação de legendas e mantendo a proibição aos partidos comunistas. Elaborado por Golbery, então chefe do gabinete civil, o plano objetivava manter a maior parte dos membros da Arena, que mudaria de nome para PDS; e fragmentar o MDB, pois se esperava que parte dele acompanharia Leonel Brizola na refundação do PTB, e outros se juntariam aos egressos da Arena num partido “de centro”, que acabariasendo criado por Tancredo Neves 12 . Duas outras alterações na legislação seriam realizadas para as eleições seguintes: em novembro de 1980, o Congresso Nacional aprovava por unanimidade a emenda do governo que restabelecia a eleição direta para os próximos governadores dos Estados. A emenda também extinguia a figura do senador biônico, preservando no cargo os 22 escolhidos em 1978. A oposição recebeu com desconfiança a iniciativa do governo, posto que em setembro ele havia conseguido aprovar o cancelamento das eleições municipais daquele ano, prorrogando por mais dois anos os mandatos em vigor de vereadores e prefeitos. A aposta era adiar o confronto nas urnas para 1982 e modificar a legislação para favorecer o PDS 1314 . 12 Cf.: http://memorialdademocracia.com.br/card/reforma-coloca-fim-a-arena-e-ao-mdb 13 Cf.: http://memorialdademocracia.com.br/card/eleicao-nos-estados-volta-a-ser-direta; 27 A alteração das regras eleitorais seria anunciada no final de 1981 contendo as seguintes determinações: 1) voto vinculado: o eleitor era obrigado a votar em candidatos do mesmo partido, de vereador a governador, ou seu voto seria considerado nulo; 2) proibição das coligações: os partidos de oposição não poderiam fazer alianças nas eleições para governador, senador e prefeito; 3) sublegenda para o Senado: partidos podiam lançar até três candidatos ao cargo e somar a votação total, o que permitia acomodar as dissidências no PDS; 4) chapa completa: os partidos tinham de lançar candidatos em todos os níveis, de governador a vereador, exigência que só o partido do governo podia cumprir. Esse conjunto de mudanças atribuía maior importância às eleições municipais, nas quais o partido do governo levava vantagem em relação à oposição, e aumentava as chances do PDS de eleger os próximos governadores de Estados. Rejeitadas por todos os partidos de oposição e com maioria insuficiente na Câmara, o governo utilizou o mecanismo do decurso de prazo para aprová-las – em 10 de janeiro de 1982, a emenda constitucional do “Pacote de Novembro” entraria em vigor sem ter sido submetida à votação no Congresso 15 . Enquanto investia na estratégia de dividir a oposição partidária e limitar seu crescimento eleitoral, o governo não conseguia manter sua própria coesão interna. Após a posse de Geisel, os setores mais extremistas das Forças Armadas se concentraram nos aparelhos repressivos e na comunidade de informação. Inconformados com o projeto de abertura, eles passaram a realizar uma série de atentados contra militantes e entidades pró- democratização. Em 27 de agosto de 1980 uma carta-bomba explodia na sede da OAB, matando Lyda Monteiro, secretária da instituição; outra vitimava fatalmente José Ribamar e feria quatro pessoas no gabinete de um vereador do PMDB; uma terceira bomba era detonada na redação do jornal do PCdoB, a Tribuna da Luta Operária (Gaspari, 2016, Bombas na rua). O governo pouco se mobilizava para investigar os casos e punir os responsáveis. No ano seguinte, mais um atentado ocorria no estacionamento do Riocentro durante um show comemorativo do Dia do Trabalhador. Dessa vez a bomba explodiu acidentalmente dentro de um carro, matando um sargento e ferindo gravemente um capitão do exército, que planejavam criar pânico nos presentes e responsabilizar os grupos de esquerda pelo ato. O fato abriu uma grande crise política no governo, que tentou acobertar os responsáveis num inquérito fraudulento. Depois da explosão do Riocentro, cessou a onda de atentados terroristas iniciada no ano anterior (Gaspari, 2016, Riocentro). 14 Cf.: http://almanaque.folha.uol.com.br/brasil_14nov1980.htm 15 Cf.: http://memorialdademocracia.com.br/card/novo-pacote-tenta-fazer-o-pds-vencer 28 No âmbito das instituições políticas, a situação também não se encontrava tão favorável para o governo. O economista Mário Henrique Simonsen, que assumiu o Ministério do Planejamento no governo de Figueiredo após o segundo choque do petróleo em 1979, pediria demissão apenas cinco meses após assumir o cargo, em razão de divergências com o então Ministro da Agricultura, Delfim Netto (Gaspari, 2016, Teerã e Washington). Dias após o Réveillon de 1980 falecia o Ministro da Justiça, Petrônio Portella, um dos possíveis candidatos a sucessor de Figueiredo na presidência. Das lideranças mais proeminentes do governo só restava Golbery, que se mostrava insatisfeito com os rumos que o governo vinha tomando. Irritado com a conivência do presidente com a tentativa do general Octávio Medeiros, chefe do SNI, de acobertar os militares no episódio do Riocentro, deixaria definitivamente o governo em 1981 (Gaspari, 2016, Um novo país; Riocentro). Assim, às vésperas das eleições mais importantes da “abertura política”, o governo perdia gradativamente o controle do processo. À conturbada conjuntura política nacional somava-se a crise econômica mundial que impactava diretamente a economia brasileira, que experimentava o esgotamento do padrão estatal-desenvolvimentista praticado desde a década de 1930 e a emergência do modelo neoliberal. Desde 1979, o aumento no preço do petróleo e da taxa de juros no mercado internacional (de onde provinham os empréstimos contraídos pelo governo para financiar investimentos públicos) criaram desequilíbrios na balança de pagamento que dificultava as exportações, o que era ainda agravado pela recessão mundial. Diante desse quadro, o governo cedeu à pressão dos credores internacionais e recorreu a empréstimos com o FMI, com a condição de adotar medidas recessivas – contenção da demanda interna, desvalorização cambial e redução do déficit do setor público e da inflação (Nery, 2012, p.51-53; 70-75, Bertoncelo, 2007, p.76-91). Devido ao impacto negativo sobre a produção econômica interna, a estratégia recessiva passou a gerar enorme insatisfação entre empresários e dirigentes de empresas estatais, membros da aliança sociopolítica que articulada no Estado e base de sustentação estratégica para o regime. Em relação ao âmbito privado, havia uma oposição crescente do empresariado com a estratégia adotada pelo governo, que desde 1977 já se mostrava insatisfeito com o seu afastamento das esferas de tomada de decisões econômicas e políticas (Bertoncelo, 2007, p.76-91). 29 A partir de 1978 o movimento sindical, renascido nas greves dos metalúrgicos do interior paulista, fato que foi registrado magistralmente pelas lentes de Leon Hirszman 16 . No ano seguinte, o Novo Sindicalismo levaria 150 mil trabalhadores a pararem por 45 dias 17 . O sindicato dos metalúrgicos mais uma vez liderou um movimento nacional de greve que contou com a adesão de mais de 3 milhões de trabalhadores, nas 246 greves realizadas por diversas categorias naquele ano 18 . O governo seguia repreendendo sistematicamente os manifestantes e intervindo nos sindicatos mais combativos, mas o desgaste junto a população se tornara muito maior que nos anos anteriores. A experiência de luta acumulada em dois anos produziu um considerável salto organizativo, que culminara na criação do Partido dos Trabalhadores em 1980 alguns meses após a reforma partidária 19 . Em meio a todo o clima de incerteza que permeava o regime, as eleições de 1982 terminariam com o PDS mantendo o controle do Colégio Eleitoral, que indicaria o sucessor de Figueiredo. Considerando que as previsões do SNI apontavam para um cenário muito pior, é possível avaliar que as manobras do governo foram razoavelmente bem sucedidas. No entanto, os partidos de oposição conquistariam a maioria na Câmara e os dez maiores Estados do país. Resultado que tornava evidente a insatisfação da populaçãoe que era, em grande medida, provocada pelos problemas econômicos do país que não eram equalizados pelas lideranças do regime (Gaspari, 2016, O vencedor). 1.4. A emenda Dante de Oliveira O resultado das eleições de 1982 levou a disputa política a um novo patamar, em que a oposição superava definitivamente o posicionamento defensivo para adotar uma estratégia combativa. Tancredo Neves, eleito governador em Minas Gerais, levava o PP de volta para dentro do PMDB e reencontrava Ulysses Guimarães, deputado federal e presidente da legenda, com quem disputaria os rumos do partido até as próximas eleições, em janeiro de 1985 20 ; Franco Montoro assumia o governo de São Paulo, o maior Estado brasileiro em 16 Filme de Leon Hirszman, O ABC da greve, de 1990. 17 Cf.: http://memorialdademocracia.com.br/card/a-grande-greve-dos-trabalhadores-do-abc 18 Cf.: http://memorialdademocracia.com.br/card/greves-se-alastram-e-peoes-se-revoltam 19 Cf.: http://memorialdademocracia.com.br/card/das-fabricas-e-das-ruas-pt-chega-para-mudar#card-210 20 Cf.: http://memorialdademocracia.com.br/card/tancredo-leva-o-pp-de-volta-ao-pmdb 30 termos populacionais e econômicos; Leonel Brizola, de volta do exílio após a anistia, era eleito no Rio de Janeiro após o escândalo da Proconsult 21 ; Luís Inácio da Silva, o Lula, mesmo sem mandato político era uma das figuras mais proeminentes do cenário político nacional, depois de surgir como grande liderança nas greves dos metalúrgicos do ABC (Bertoncelo, 2007, p.99-115). Dentro do PDS, a postura vacilante do general presidente era encarada por algumas lideranças do partido como uma oportunidade de ocupar os espaços vazios para lançar-se antecipadamente como seu sucessor. O vice-presidente civil, Aureliano Chaves, que já havia substituído Figueiredo por dois meses 1981, voltaria a assumir a presidência por mais um em 1983. Durante o tempo que esteve no cargo empenhou-se em mostrar aos seus correligionários, e ao próprio presidente, que seria o nome ideal para a sucessão. Era apoiado pela maior parte da bancada mineira de deputados federais e setores do partido interessados em uma saída negociada (com os setores moderados da oposição). Também tinha apoio de setores ligados à Geisel e de boa parte da Marinha, e contava com a simpatia de um bom número de empresários, especialmente do setor industrial, de dirigentes de empresas estatais, e de parcelas do eleitorado (Bertoncelo, 2007, p.93-99). O Coronel Mário Andreazza era o típico tecnocrata, passou praticamente todo o período de ditadura ocupando cargos no Estado – no Ministério dos Transportes nos governos de Costa e Silva, Médici e Geisel, e no Ministério do Interior, no governo de Figueiredo. Era um executor de grandes obras, como a Ponte Rio-Niterói e a Transamazônica, e de projetos habitacionais em várias cidades do país. Andreazza tinha apoio principalmente dos governadores do partido interessados nos recursos do ministério controlado por ele, de setores do PDS leais a Figueiredo e do chefe do SNI, Octávio Medeiros. Nas forças armadas enfrentava oposição do setor ligado a Geisel e da alta cúpula da Marinha e na sociedade não tinha muita simpatia popular devido à sua proximidade com o governo (Bertoncelo, 2007, p.93-99). Por fim o ex-governador de São Paulo e deputado federal, Paulo Maluf, aliado de primeira hora no golpe civil-militar de 1964 e, dentre todos os possíveis candidatos a sucessão, a figura mais identificada com a ditadura. Tinha o apoio de setores do PDS excluídos das principais instâncias de poder nos níveis federal e estadual, e no governo tinha apoio do Ministro da Justiça, mas oposição de Figueiredo e do Ministro da Casa Civil. Dentro 21 Cf.: http://memorialdademocracia.com.br/card/brizola-desmonta-fraude-eletronica 31 das forças armadas era apoiado pelo general Golbery e pelas alas ligadas a Médici e Costa e Silva. Na sociedade tinha simpatia de setores empresariais (em especial nos setores comercial e agroexportador) favoráveis a um ajuste da economia em moldes neoliberais (Bertoncelo, 2007, p.93-99). O governo que havia se concentrado em dividir a oposição, acabaria ele mesmo dividido entre as duas facções das Forças Armadas e entre os interesses e projetos particulares de suas lideranças políticas. Enquanto a oposição, fracionada entre legendas e projetos políticos distintos, soube de unificar em torno de questões que afetavam a maior parte da sociedade brasileira e deixar as disputas internas em segundo plano. Foi em meio a esse quadro político que o deputado peemedebista Dante de Oliveira, no primeiro dia de seu mandato e de forma bastante oportuna, lançaria logo uma emenda que restabeleceria a eleição direta para a escolha do próximo presidente (Leonelli & Oliveira, 2004, p.25-28, Bertoncelo, 2007, p.99-105, Delgado, 2007, p.417) Mas além do apoio dos 199 deputados que subscreveram a apresentação da proposta, muitos por mero formalismo, a iniciativa não gerou tanta repercussão nos entre os partidos oposicionistas. O próprio PMDB tinha como prioridade estratégica, naquele momento, o foco em uma reforma constitucional. Os setores comunistas, ainda abrigados no PMDB devido à proibição de refundarem seus partidos, voltavam as críticas à política econômica do governo, que compreendiam ser o problema mais grave a ser enfrentado. O PTB se abstinha de aderir a qualquer coisa que desagradasse o governo e para o PDT a proposta também não era interessante, pois impediria a candidatura de Leonel Brizola, que ainda tinha dois anos à frente do governo do Rio de Janeiro. A Campanha das Diretas Já seria lançada oficialmente 29 de março e o PT foi o primeiro partido a aderir a ela, mobilizando-se para as ainda tímidas e espontâneas manifestações (Bertoncelo, 2007, p.99-105). A adesão do PT se explica facilmente pela maneira como ele se formara, nas lutas de base que ganhavam força desde o fim da década de 1970. Em 1983, os sindicatos de diversas categorias se reuniam contra a submissão ao FMI e o arrocho salarial, retomando greves ainda mais intensas que a dos anos anteriores e que culminaram na primeira greve geral realizada desde o golpe civil-militar, com relevante participação dos assalariados das camadas médias e funcionários públicos. Em meio à greve surgia a primeira central sindical independente da 32 estrutura oficial de sindicatos e confederações, a CUT, que contou com grande protagonismo do partido, embora também dos dirigentes ligados ao PCB, PCdoB e MR-8 22 . Apesar de as primeiras manifestações não contarem com ampla mobilização societária, boa parte da população se mostrava bastante receptiva ao pleito direto, mesmo entre eleitores do PDS. Em setembro de 1983, no Rio de Janeiro, foi lançado um manifesto por eleições diretas que foi assinado por cerca de 80 associações e organizações sociais que compunham o comitê pró-diretas municipal. A mobilização desses grupos encontrava apoio em setores da imprensa alternativa e, no caso da grande imprensa, da Folha de São Paulo, que acabaria recebendo posteriormente o apelido de “Jornal das Diretas”. A oposição partidária se engajava gradativamente nas manifestações (Bertoncelo, 2007, p.107-115). A grande adesão da sociedade às manifestações levou aos setores mais à esquerda do PMDB a se incorporarem à sua organização, bem como os setores liderados por Ulysses Guimarães, que ficaria conhecido como “O Sr. Diretas” devido à sua dedicação à campanha . Consequentemente os setores mais à direita, liderados por Tancredo Neves, foram pressionados a alterar parcialmente sua estratégia de negociação com os setores moderados do PDS (Bertoncelo, 2007, p.99-103). Os governadores do partido, juntamente com Leonel Brizola, se reuniriam para subscrevero manifesto de Franco Montoro e assumir posição favorável ao pleito direto, dividindo as atenções que até então se concentravam no presidente do partido. O posicionamento dos governadores seria essencial devido aos recursos que podiam mobilizar, o controle sobre as polícias militares e à sua influência junto às bancadas estadual e federal (Bertoncelo, 2007, p.109-112). Até o final de 1983 prevalecia a lógica da manutenção das regras sucessórias. A negociação de uma candidatura de consenso via Colégio Eleitoral não tinha apoio dos principais setores do PDS e vinha perdendo força nas oposições desde que começaram as articulações para a realização da campanha popular. Diante da dificuldade de escolher seu sucessor numa candidatura única no PDS, o presidente Figueiredo abdicaria da coordenação do processo, restituindo a tarefa ao partido. O anúncio era realizado no seu último pronunciamento oficial do ano e alteraria completa e irreversivelmente a dinâmica da sucessão. A partir dali, a Campanha das Diretas Já teria o caminho livre para deslanchar. (Bertoncelo, 2007, p.112-115). 22 Cf.: http://memorialdademocracia.com.br/card/novo-sindicalismo 33 1.5. A Campanha das Diretas Já O ano de 1984 tinha início sob as incertezas lançadas pelo pronunciamento de fim de ano do presidente João Figueiredo, no qual assegurava compromisso com a causa democrática, ao mesmo tempo em que atribuía à campanha por eleições diretas um caráter perturbador. O general anunciava também que, diante da dificuldade em encontrar uma candidatura de consenso, abria mão da prerrogativa de escolher seu sucessor e restituía a tarefa ao seu partido, o PDS. Decisão que lançava lideranças do governo em uma disputa por apoios dentro e fora do partido, e abria espaço para o avanço dos grupos oposicionistas, jogando ainda mais lenha na fogueira do já conturbado jogo político. (Bertoncelo, 2007, p.113-115). O primeiro grande momento da campanha aconteceu no dia 12 de janeiro, em Curitiba, num comício que reuniu 50 mil pessoas na Boca Maldita, um importante espaço político da cidade. Superando as expectativas até dos organizadores, a manifestação se tornou um marco para a Campanha das Diretas por ser o primeiro daqueles que seriam identificados como “comícios monstro”. A animada condução do locutor esportivo Osmar Santos, a presença de artistas e a chuva de papel picado e confetes conferiu um tom de festa à manifestação (Leonelli & Oliveira, 2004, p.342-344, Nery, 2012, p.99-100). O comício reuniu uma série de elementos, até então inéditos na campanha, que foram cruciais para o crescimento das manifestações. O primeiro deles foi o apoio prestado pelos governadores de oposição, o que se tornaria uma constante a partir de então. O governador do Paraná, José Richa, se empenhou pessoalmente em mobilizar as bases do PMDB no estado e convocou a população através da confecção de materiais de propaganda e veiculação de comerciais na TV (Leonelli & Oliveira, 2004, p.343, Muniz, 2010, p.130). Fato novo também foi a participação do empresariado, atrelando suas marcas à campanha e custeando diretamente a confecção de materiais. E pela primeira vez uma manifestação pública seria transmitida ao vivo pela televisão, no caso a TV Bandeirantes, com a anuência de João Saad, proprietário da emissora (Leonelli & Oliveira, 2004, p.349-353). A campanha das Diretas se consolidava como estratégia das oposições para vencer o governo no Congresso e, diante desse cenário, os jornais assumiam suas posições. A Folha de São Paulo visava fundamentalmente o sucesso da campanha e a aprovação da Emenda Dante de Oliveira, que considerava como a reconquista da Democracia. O Estado de São Paulo 34 preocupava-se com a ausência de estadistas que correspondessem às dificuldades do momento, elemento que considerava essencial para a superação dos desafios que o país tinha pela frente. O Jornal do Brasil considerava que a campanha poderia levar o governo a impor retrocessos, colocando em risco a reforma constitucional, que considerava ser o instrumento capaz de levar o país de volta à democracia. Até aquele momento o O Globo praticamente ignorava a questão sucessória e a campanha das diretas, situação que mudaria após o Comício da Sé, menos por convicção que por uma imposição do mercado jornalístico. Alguns dias depois, o Comício da Praça da Sé levaria cerca de 300 mil pessoas às ruas e colocava a campanha definitivamente num patamar nacional e consolidava a cidade de São Paulo como seu centro irradiador. Resultado não apenas do empenho do Governador Franco Montoro – que já mirava os ganhos que poderia auferir do sucesso do comício –, mas da presença dos setores mais fortes do PMDB e do PT, e da dedicação da Folha de São Paulo, que publicava matérias diariamente sobre a campanha, bem como o Roteiro das Diretas, manifestos e declarações de apoio. Foi do comício também o mérito de estabelecer o debate sobre a sucessão presidencial e as manifestações populares como pauta de setores da imprensa que, até então lhe dedicavam pouca atenção, quando não o ignoravam completamente, como era o caso do jornal O Globo (Kotscho, 1994, p.31-39, Leonelli & Oliveira, 2004, p.366-373, Gaspari, 2016, Diretas Já, Muniz, 2010, p.130-131). O mês de fevereiro começava sob uma intensa disputa sobre os rumos da campanha pelas diretas e do governo. Franco Montoro, que saíra vitorioso do Comício da Sé, começava a buscar maneiras de frear a campanha pelas diretas, de forma que pudesse se lançar ele mesmo como candidato do PMDB na disputa indireta. Apresentar-se como o homem a frente do Estado em que foi realizada a maior mobilização popular da jornada por eleições diretas seria um grande trunfo do governador paulista perante seus correligionários. Mas o grande feito dos paulistas iniciaria uma intensa disputa entre os governadores para descobrir quem conseguiria realizar o maior comício. Tancredo Neves não pretendia sair atrás na disputa e, para isso, contava com a mobilização de seus conterrâneos no comício marcado para Belo Horizonte. Embora prometesse publicamente apoiar a manifestação sem utilizar a máquina pública, nos bastidores se valeria de todos os recursos disponíveis para viabilizar uma manifestação ainda maior que a da capital paulista. E Tancredo seria de fato agraciado pela presença de 300 mil pessoas, o que lhe garantia créditos em sua disputa pessoal com Ulysses Guimarães. Ao 35 mesmo tempo, o governador mantinha o diálogo com os setores do governo favoráveis à eleição direta, em especial com o vice-presidente Aureliano Chaves, que se declarara a favor da mudança das regras sucessórias (Leonelli & Oliveira, 2004, p.416-420, Kotscho, 1984, p.81-86, Nery, 2012, p.117-123). O processo sucessório ocupava não apenas o centro do debate político mas o próprio debate público, o que ficou expresso no carnaval daquele ano, cujo tom foi dado pela temática das diretas. A maior festa popular do país se misturava à chamada “festa cívica” e serviria, particularmente no Rio de Janeiro, como aquecimento para a manifestação que ocorreria no dia 21 de março. Nas ruas, os manifestantes-foliões cantavam e dançavam ao som de marchinhas politizadas, e as tradicionais escolas cariocas desfilavam na recém-inaugurada Passarela do Samba embaladas pelo mote das eleições diretas (Leonelli & Oliveira, 2004, p.437-439). Mas se as ruas expressavam praticamente um consenso, no interior do governo e da oposição predominavam o conflito e as divergências. Do lado oposicionista, o setor representado por Ulysses Guimarães, Lula e entidades civis, se posicionava em favor da intensificação da campanha até a data da votação da emenda, em 25 de abril. Enquanto isso, os governadores Tancredo Neves, Franco Montoro e Leonel Brizola tentavam conter o ímpeto da
Compartilhar