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CAPÍTULO 3 – BREVE HISTÓRIA E ALGUNS DESAFIOS DA PSICOLOGIA SOCIAL COMUNITÁRIA Lilian Rodrigues da Cruz Maria de Fátima Quintal de Freitas Juliana Amoretti O presente capítulo propõe-se a fazer um resgate histórico do surgimento da Psicologia Social Comunitária, enfocando, prioritariamente, o Brasil. Abordaremos a trajetória dessa disciplina, os principais aportes teóricos e metodológicos, bem como seus conceitos centrais. Após a Guerra Fria, nos anos de 1950 e 1960, o compromisso social e político dos intelectuais, bem como o papel da universidade na formação de profissionais foram fortemente questionados e exigidos. Neste contexto adquire visibilidade a insatisfação com o fazer psicológico dirigido à maioria da população. Esses questionamentos apontavam para a busca de práticas diferentes das tradicionais que haviam se constituído nos alicerces da criação desta profissão em nosso país (Andery,1983), no início dos anos 1960, assim como tais modelos tradicionais eram predominantes na formação dos psicólogos. Mesmo assim, diante desta forte hegemonia dos modelos individualistas e elitistas presentes no trabalho psicológico, durante o processo de formação das primeiras turmas de psicólogos no Brasil, em meados dos anos 1960, 76 já encontramos uma espécie de "minoria ativa" na Psicologia -constituída por professores, estudantes de psicologia e psicólogos em centros como São Paulo e Porto Alegre - que intentavam desenvolver trabalhos junto aos setores desfavorecidos da população, na busca da construção de um fazer psicológico menos elitista e mais comprometido com os rumos da realidade social (Freitas, 1998a; Montero, 1994). E neste clima que encontramos as bases para aquilo que, quase três décadas depois, iríamos conhecer como sendo a emergência e consolidação do que denominamos, hoje, de Psicologia Social Comunitária. Assim, podemos dizer que, em parte, esta inquietude com os diferentes fazeres da Psicologia, ao lado da preocupação em buscar uma prática diferenciada, voltada para a maioria da população, costumeiramente, alijada dos serviços psicológicos, foi um forte elemento que impulsionou, desde a década de 1960, a construção da trajetória da Psicologia Social Comunitária, com características latino- americanas distintivas. Na conjuntura histórica e política da América Latina, o clima de terror e a perda dos direitos humanos básicos, a violência manifestada e impingida em diversos contextos e dinâmicas sociais, mesmo os mais privados, a exclusão social dos serviços básicos como moradia, saúde, educação e emprego, ao lado de uma constante opressão e submissão, como marcas indeléveis do sistema ditatorial, configuravam um processo social que não poderia ser simplesmente negado. Tratava-se de uma realidade silenciosa e perversamente vivida pela maioria dos brasileiros e latino-americanos, mesmo porque sua divulgação era proibida (Betto, 2000; Freire, 1977). Mesmo assim, a vida das pessoas e o sofrimento vêm à tona, acompanhados pela riqueza cultural dos diferentes segmentos da população que trazia consigo, potencialmente, muitas alternativas. É neste cenário de questionamentos sobre o compromisso social e político dos intelectuais e Profissionais que emerge um movimento de dentro da Psicologia, ao lado de outros campos, explicitando a responsabilidade dos profissionais para com as transformações sociais, objetivando lutar contra as relações injustas, indignas e, até sub-humanas, presentes nos sistemas de governos autoritários. Intentava-se uma Psicologia que rompesse com a dualidade entre social e individual, que eliminasse a visão individualista e psicologizante, que propusesse trabalhar com grupos, que refletisse sobre as questões e problemáticas emergentes das próprias comunidades, reconhecendo as necessidades desses setores para, através da partilha de práticas e saberes, potencializar estas comunidades rumo à autonomia no cotidiano das relações. Podemos dizer que o período histórico que viveu a América Latina reuniu condições de possibilidades para que emergisse um novo olhar psicológico comprometido com a realidade do cotidiano dessas populações, maximizando a saúde dos cidadãos, que só pode ser alcançada com acesso à educação, à cultura, à habitação, ao lazer e ao saneamento, buscando relações mais dignas e igualitárias. Este novo olhar vai ganhando força através dos anos, acompanhado de uma diferenciada postura dos profissionais, que defendiam que não seria possível ser feliz sem a possibilidade de ter emprego, moradia, educação, saúde e lazer (Freitas, 1996; Martin-Baro, 1987). Esta perspectiva teórica da construção psicossocial do homem (em que a sua posição dialética como produto e produtor da sua própria história e do seu cotidiano passa a ter relevância) acaba significando um recorte epistemológico em termos de uma nova concepção de homem e concepção do que seja o fenómeno psicológico (Freitas, 2001; Montero, 1996; Martin-Baró, 1987). Neste sentido, os referidos autores afirmam que a abordagem teórico-metodológica representada pela Psicologia Social Comunitária, ao longo das últimas décadas, implica em uma espécie de enfrentamento epistemológico com a Psicologia tradicional, cuja postura era a de legitimar a ordem social, servindo de instrumento de dominação. Sobre a disciplina Em termos de pressupostos teóricos e conceituais verifica-se que as origens deste campo se localizam no âmbito da Psicologia Social, especificamente ligada às tradições históricas e políticas do continente latino-americano. Neste contexto e a partir da constatação de que estudar os seres humanos apartados da sociedade reforça uma visão fragmentada e a-histórica dos fenómenos psicossociais é que a Psicologia Social vai ocupando, cada vez mais, espaços de investigação e análise, inclusive dentro das tradicionais formas de trabalho, colocando a interação/relação entre indivíduo e sociedade como objeto de estudo prioritário (Guareschi, 1996; Sandoval, 2000). Diferentes autores (Serrano-García et ai, 1992; Lane, 1983; dentre outros) ao longo destas últimas décadas, preocupando-se em construir uma Psicologia mais comprometida com a realidade, retomam ou explicitam a discussão sobre a falsa dicotomia que se estabelece entre o indivíduo e a sociedade, como se aquele pudesse prescindir desta para a sua constituição e estabelecimento como sujeito - ator e autor da sua história pessoal e coletiva, ao mesmo tempo em que a sociedade, por sua vez, só se constituiria como uma organização societária a partir das forças dialéticas decorrentes das interações. A discussão sobre esta suposta dicotomia constitui-se em um ponto de permanente tensão, não só na prática dos trabalhos, mas também nas análises teóricas a respeito dos fenómenos psicossociais. Para Serrano-Garcia et al (1992), enquanto a Psicologia Social entender o funcionamento social como uma concepção limitada e individual da prática humana e utilizar-se do método experimental das ciências naturais, não poderá compreender a complexidade das relações sociais. Contudo, é importante apontar que a Psicologia não era o único campo do conhecimento preocupado em procurar alternativas para melhorar as condições de vida das pessoas e a buscar entender a complexidade das relações sociais. A Sociologia e a Educação também trabalharam nessa direção, comprometendo-se com a transformação social (Cedeno, 1999). A autora salienta que os primeiros trabalhos comunitários1 (final dos anos 1950 e década de 1960) caracterizaram-se pela realização de práticas meio clandestinas - ou muito discretas -, razão pela qual foram surgindo de forma simultânea, porém isoladas. O caráter de clandestinidade possibilitava que estes continuassem sendo realizados, garantindo uma certa segurança uma vez que, ao não serem publicados, minimizavam a identificação de seus autores. Freitas (1996) apontaduas principais vertentes como subsidiando o campo de ação das práticas psicossociais em comunidade: uma vinda da Educação e, outra, decorrente das reflexões ocorridas no campo sociológico. Na primeira, "verifica-se que a inserção e a participação do psicólogo em comunidade acontecera tendo como proposta contribuir para a formação de uma consciência política na população" (p. 70). Desta forma, "a cultura e a educação passam a ser entendidas como veículos através dos quais podem ser forjados os processos de conscientização" (p. 71). O chamado Paradigma da Educação Popular pode ser considerado uma expressiva corrente de apoio aos trabalhos comunitários, englobando um conjunto de ideias políticas e filosóficas que nasceram com os Movimentos de Educação de Base e Cultura Popular no final da década de 1950 e início dos anos 1960 e que cresceram no interior da resistência popular nos anos 1970 e início dos 1980. Nesse período, a Educação Popular coloca-se a serviço da sociedade, objetivando um processo de conscientização sobre os problemas que dificultam ao cidadão o exercício digno da cidadania, de forma coletiva e democrática. Não podemos deixar de destacar que, ao longo dos anos, integrando o contexto do saber popular, a arte surge como importante aliado ao desenvolvimento dos trabalhos comunitários em nosso continente, na medida em que é forjada na própria dinâmica popular (Pereira, 2001). Assim, saber popular e a arte têm sido dois aspectos, também, relevantes no contexto histórico onde surgem a Educação Popular e as formas de conscientização da população. A arte pode, então, ser considerada como expressão do livre, como potência de ideias, ideais e desejos². Segundo Une (1996), já na década de 1940 existiam no Brasil - e em outros países da América Latina - programas de trabalho comunitário, mas eram majontariamente orientados por uma postura positivista de sociedade, que levava a intervenções paternalistas. A influência da Sociologia Rural nos trabalhos comunitários, denominada de segunda vertente por Freitas (1996, p. 71), aparece como uma alternativa aos modelos tradicionais vigentes, revelando uma "insatisfação com o positivismo e adoção da pesquisa participante. Esta provém das críticas que, a partir dos anos 50, começaram a ser feitas no campo das Ciências Sociais", principalmente quanto à rigidez desta área do conhecimento, uma vez que considerava "como uma fonte de erro para a pesquisa científica qualquer prática que implicasse em transformação da rea-lidade"3 (p. 71). Esta posição levava à dicotomia entre teoria e prática, e à defesa de uma postura de neutralidade e de isenção político-social para o profissional e para o seu trabalho. Entretanto, tal concepção não podia mais se sustentar, no mínimo por conta dos próprios trabalhos desenvolvidos no campo comunitário, tendo a participação de diversos profissionais, oriundos de campos distintos. As fortes críticas dirigidas às formas tradicionais de trabalhar em Psicologia decorrem do fato de que seus modelos explicativos "se apoiavam no positivismo lógico e no empirismo estrito, não dando mais conta nem de explicar essas situações da realidade latina, e muito menos de indicar caminhos para transformá-las" (Freitas, 1996, p. 71/72). É neste clima de forte crítica ao caráter supostamente neutro da prática psicológica que grupos de intelectuais se engajaram nas lutas populares em prol de unir a atividade científica aos processos de transformação social. A partir deste cenário de discussões surgem os primeiros trabalhos em contextos comunitários, com o objetivo de facilitar a formação de consciência crítica e participação política. Estes passam a ter maior visibilidade através de diversos eventos e simpósios que passaram a ser realizados, especialmente pela ABRAPSO (Associação Brasileira de Psicologia Social), tendo como eixo norteador a preocupação de aproximação e comprometimento da Psicologia para com a realidade. O Congresso Interamericano sobre Psicologia Comunitária, realizado em Havana, em 1980, pode ser considerado como um dos primeiros e importantes fóruns de fomento aos debates relativos aos paradigmas dominantes no campo das práticas da Psicologia em comunidade, abordando as exigências teóricas e metodológicas. Segundo Nascimento (2001), nesse evento foram identificadas visões de homem e, portanto, diversos tipos de intervenções na comunidade, tendo estado presentes, também, trabalhos com práticas paternalistas e assistencialistas. Tal diversidade, já presente no início dos anos 1980, apontava para a necessidade de serem demarcados os aspectos teóricos/metodológicos de uma Psicologia Social Crítica, mostrando um tipo de atuação que passou, mais tarde, a ser conhecida como Psicologia Social Comunitária (Nascimento, 2001; Freitas, 1998a). Transformar a realidade é buscar formas na vida concreta que "maximizem uma saúde melhor para a população e está saúde emana diretamente das possibilidades reais que esta população possa ter para estudar, comer, morar, fazer cultura, e, pelo menos, para transformar as coisas do seu cotidiano, ou seja, para trabalhar. Ao poder fazer isto, a vida das pessoas e suas relações -consigo mesmas, com o outro e com o mundo que as cerca - poderão se tornar mais dignas, mais solidárias e eticamente humanas, considerando-se uma perspectiva psicossocial de compreensão da realidade humana" (Freitas, 1996, p. 65). Da Psicologia Social à Psicologia Social Comunitária A discussão sobre os liames que existem e podem existir entre alguns finalizada sobre as interferências entre tais campos, consideramos relevante recuperar alguns elementos já apontados por estudiosos da área. Encontramos em Campos e Guareschi (2000) a indicação de haver, no século XX, três demarcações importantes que contribuíram para definir a Psicologia Social atual, incluindo, aí a Psicologia Social Comunitária. A primeira refere-se à proposta da Psicologia das Multidões, nascida na Europa do início do século apontado, como uma resposta específica às indagações colocadas sobre os movimentos sociais urbanos nas sociedades capitalistas modernas. Em segundo lugar, aparece o Modelo da Psicologia da Opinião Pública, derivado das questões colocadas pelo funcionamento das democracias modernas baseadas na síntese de milhares de pontos de vista individuais. E, por fim, o Modelo da Psicologia Social Comunitária, baseado no pluralismo cultural e na ética igualitária que se impôs no final do século XX. Neste último modelo encontramos uma parte considerável da produção contemporânea em Psicologia Social na América Latina, como se verifica nos Congressos realizados pela Sociedade Interamericana de Psicologia (SIP), em que pelo menos desde 1992 observa-se uma expressiva participação dos trabalhos subscritos na área de Psicologia Comunitária. A partir destes, Montero (1996) propõe o que passou a ser denominado de Paradigma da Psicologia Social latino-americana, que nas palavras de Campos e Guareschi (2000, p. 9) é "o paradigma da construção e da transformação crítica, caracterizado pela relação dialógica4 entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa e pela ênfase na aplicação da ciência à transformação social". Dentre os demarcadores desta Psicologia Social Comunitária latino-americana encontramos o seu caráter ativo e construtor dos "influjos sociales" (Martín-Baró, 1989), tendo a referência histórica, crítica e social para as ações a serem implementadas (Freitas, 1998b; Lane, 1995; Guareschi, 1996), assim como a explicitação dos determinantes políticos (Montero, 2000; Lane, 1995). Há uma reconhecida influência do construcionismo social de Berger e Luckmann (1996) para as concepções relativas à produção humana e formas societárias de existência, presentes na obra A Construção Social da Realidade, que apresenta a ideia do ser humano como produto e produtordo meio social, transformando a realidade ao mesmo tempo em que é transformado por ela, sendo uma produção societária e, ao mesmo tempo, fazendo da sociedade uma produção humana. O campo da Psicologia Social Comunitária tem utilizado, também, a perspectiva crítica e dialógica dirigida à reflexão, revelando uma influência do materialismo histórico e da Escola de Frankfurt. A ideia de dialogismo ou polifonia foi construída pelo escritor Mikhail Bakhtin, a partir de 1920, no campo da teoria literária e da filosofia da linguagem. O autor sustenta que a linguagem e o mundo social são, fundamentalmente, dialógicos, isto é, são caracterizados pela interação entre diferentes perspectivas e pontos de vista. A abordagem dialógica possibilita, assim, incluir a questão da alteridade na discussão em torno das Ciências Humanas, quanto ao método, rigor e cientificidade (Amorim, 2001). Através desta combinação, não somente o aspecto construtor da ação, mas também a desconstrução das análises de causa e efeito têm aparecido em diferentes trabalhos neste campo. Este aspecto aparece, mais recentemente, em Montero (2000) enfatizando que, para isso, "é necessário incorporar a ação e a reflexão a novos atores e ouvir as vozes daqueles que vivem os problemas e a quem se destinam os programas sociais" (p. 75). Destacamos, também, que a originalidade da Psicologia Social na perspectiva latino- americana localiza-se no interesse pelo coletivo e pelas comunidades, no posicionamento social a favor das minorias oprimidas e dos movimentos sociais, na práxis, visando a transformação social e individual, na incorporação das culturas populares, bem como na participação social (Massimi, 2000). A necessidade do enfrentamento de uma realidade política, cultural e social marcada por conflitos, exploração, injustiça social, exclusão e miséria do contexto latino-americano definiu os alicerces sobre os quais desenvolveu-se a Psicologia Social Comunitária. A conjuntura política ditatorial, entre 1960 e 1980, em vários países da América Latina, assim como a reprodução da Psicologia norte-americana, levou a uma ampla revisão crítica das teorias desenvolvidas até então (Martins, 2001), buscando a construção de uma Psicologia que considera as particularidades nacionais e o momento histórico pelo qual passavam esses países. Com um eixo baseado no estreitamento da relação entre teoria e prática, o contexto social passou a ser referência obrigatória. Atualmente, a inserção e a prática da Psicologia Social Comunitária têm sido reconhecidas como nunca aconteceu em sua história de construção, desde o início da década de 1960 (Freitas, 2001). Tomando-se como referência as conceituações deste campo, observam-se várias formas de se conceituar a Psicologia Social Comunitária. Uma das primeiras definições que foi amplamente divulgada é a de Montero, afirmando que está disciplina constitui a área da Psicologia cujo objeto é o estudo dos fatores psicossociais que permitem desenvolver, fomentar e manter o controle e poder que os indivíduos podem exercer sobre seu ambiente individual e social, para solucionar problemas que os afetam e lograr mudanças nestes ambientes e na estrutura social (1982, p. 16). Outra definição utilizada é a de Góis (1993), para quem a Psicologia Social Comunitária é uma área da Psicologia Social que se interessa pela atividade do psiquismo decorrente do modo de vida no lugar/comunidade. Na visão desse autor, o objetivo da intervenção psicológica é o desenvolvimento da consciência dos sujeitos, concebendo-os como históricos e comunitários. Para tal, trabalha de forma interdisciplinar, facilitando o fortalecimento e o desenvolvimento das pessoas, dos grupos e da comunidade. Além disto, Montero (2000) salienta que a Psicologia Social Comunitária versa sobre formas específicas de relação entre as pessoas unidas por laços de identidade construídos em relações historicamente estabelecidas, que por sua vez constroem e delimitam um campo: a comunidade (p. 79). Serrano-García et al. (1992) indicam que a Psicologia Social Comunitária se propõe a investigar as formas de integração do ser humano em sociedade e as formas que esta integração têm se alterado ou podem se alterar. Para as autoras, as formas de integração do ser humano em sociedade não devem ser entendidas 86 como unicamente individuais. A integração deve ocorrer coletivamente, em grupos. Enfim, em uma visão abrangente, podemos dizer que a Psicologia Social Comunitária trata de um campo de trabalho interdisciplinar comprometido política e socialmente com o desenvolvimento de saberes e práticas que possibilitem o estabelecimento de relações igualitárias e emancipatórias através da dialógica (Campos, 1996). Em diferentes autores (Freitas, 1998; Montero, 2000; Wiesenfeld, 1994; Serrano- García et al. 1992, entre outros) verifica-se que a interdisciplinaridade é um elemento fundamental, pois a disciplina utiliza-se dos conhecimentos da Psicologia, Sociologia, Antropologia, Serviço Social, dentre outros, que estejam a serviço da comunidade e que considerem o saber popular. O encontro dos saberes Como se dá a produção do conhecimento é uma das questões que a Psicologia Social Comunitária, ao lado de outros campos, também busca responder. Scarparo e Bernardes (2000) afirmam que a produção do conhecimento acontece a partir do diálogo entre o saber o popular e o académico, bem como no contexto nos quais estes se inscrevem. Para Montero (2000): entre sujeito e objeto não há distância, visto que compõem uma mesma realidade e não se tratam de entidades separadas. O sujeito constrói uma realidade, que por sua vez o transforma, o limita e o impulsiona. Ambos estão sendo construídos e desconstruídos continuamente, em um processo dinâmico, em constante movimento (p. 75/76). Jovchelovitch (2000) aprofunda a discussão acerca da construção dos saberes sociais fundamentado-se na Teoria das Representações Sociais. Esta teoria está principalmente preocupada em saberes produzidos no e pelo cotidiano e, desta forma, são apresentadas três dimensões constitutivas de qualquer saber social: o significado, a comunidade e a cultura. A construção simbólica é essencial para entender a sociedade na qual vivemos, completamente mediada, midiada e dependente do simbólico – de uma forma fundamentalmente diferente do que dependia há 50 anos atrás. A autora salienta que a dimensão da comunidade pode ser uma grande sociedade, uma instituição, um grupo ou uma vila, mas que de qualquer forma é delimitada pela cultura, importante elemento que considera os símbolos, as tradições, os comportamentos, as regras, os modos de viver e fazer as coisas como constitutivos da identidade dos grupos humanos. Considerando-se os aspectos relativos aos significados da comunidade, assim como a complexidade da vida contemporânea, é que encontramos também os trabalhos da Psicologia Social Comunitária que objetivam implicar-se com a comunidade, incorporando seus membros em todas as etapas do trabalho comunitário e desenvolvendo as diferentes propostas de intervenção. Montero (2000) lembra que, desta forma, o conhecimento produzido é relativizado, no sentido de ser específico ao contexto particular do qual emerge, respondendo ao momento e espaço determinados, uma vez que é historicamente produzido e está marcado por seu caráter social. Neste sentido, também há consonância com as matrizes teóricas de Marx e Gramsci, que se constituem em norteadores para as práticas de intervenção comunitária, quebrando com a noção de comunidade passiva e estática. Constatamos, assim, a forte influência da Pedagogia, oriunda da Educação Popular, uma vez que a temática central da Psicologia Social Comunitária é a conscientização da comunidade. Logo, consideramos oportuno resgatar os conceitos de participação e consciência. A participação pode ser compreendidacomo fenómeno indicador de transformação psicossocial. Segundo Montero (1996), mediante a participação, o fenómeno do qual participamos passa a ser parcialmente nosso, gerando uma relação peculiar do fenômeno com o sujeito participante, de tal modo que o participante transforma o objeto ou o acontecimento do qual participa, e da mesma maneira é por ele, também, modificado. O nível da participação entre os membros da comunidade irá depender do grau de identificação e compromisso que as pessoas vão estabelecendo com determinado projeto (Hernandez, 1996). Para autora, conforme o envolvimento, a participação pode significar uma assistência, uma participação permanente ou ainda uma participação orgânica. Assistência seria o grau de participação da maioria dos membros de um projeto ou de uma comunidade e não é caracterizada pelo comprometimento efetivo. A participação permanente exige que se assume alguma responsabilidade, implicando um trabalho em equipe. A participação orgânica seria o maior grau de participação, próprio das pessoas que se identificam com o programa ou projeto e o assumem como seus, participando do planejamento à implementação, passando por avaliações e assim por diante. A participação da comunidade em atividades políticas, culturais, familiares, de bairro etc., produz mobilização da consciência a respeito de circunstâncias de vida, transmite padrões de comportamentos e novas formas de aprender estas circunstâncias, o que Montero (1996) denomina de ação conscientizadora e socializante. Assim, a consciência é, por um lado, captação a nível individual da experiência social e pessoal do ser humano e, por outro, é a captação da consciência e da ação de um grupo ou classe social (Serrano-García et al, 1992). O desenvolvimento da consciência requer um investimento. A consciência política, por exemplo, e em especial, requer uma formação contínua, sistemática e permanente, dentro de um compromisso de ação para transformar a realidade. Desta forma, se assume o desafio da mudança pessoal em função das metas que se tem e a pessoa se converte em um sujeito político (Hernandez, 1996). Serrano- García et al. (1992) acrescentam para a importância do psicólogo social comunitário fazer uma compreensão dos fatores que determinam a consciência e as possibilidades de captação de um projeto social por parte dos grupos. Aspectos relativos ao método e técnicas A intervenção psicossocial exige reconhecer a heterogeneidade e a dinâmica social, aproveitar e fortalecer as experiências existentes, promover uma descentralização de recursos e necessidades da comunidade, planejar a participação de organismos públicos e privados locais e trabalhar não apenas a nível local, mas também contemplando o âmbito global (Hernandez, 1996). A própria comunidade, apropriando-se de sua história e reconhecendo suas necessidades, tem condições de encontrar internamente recursos e participar das soluções para enfrentar sua problemática. A articulação da população e dos técnicos potencializa os resultados desejados no trabalho em comunidade, implicando amadurecimento, esforço e compreensão. Esta interação é um processo que pode ocorrer com mais ou menos obstáculos, mas favorece o desenvolvimento local, bem como o desenvolvimento subjetivo de todas as pessoas que participam. Nesse sentido, o espaço para o desenvolvimento local constitui-se na medida em que a comunidade for compreendida como âmbito de participação (Hernandez, 1996). O processo de inserção do psicólogo na comunidade depende de contatos, agentes intermediários, tentativas de conquistar espaço e confiança. O processo contínuo de interações inclui entrevistas, conversas informais, visitas, registros de observações, recuperação da história, resgate de documentos e encontros. As estratégias têm o objetivo de coletar informações, identificar necessidades do cotidiano da população, detectar modos alternativos de enfrentamento e resolução da comunidade em relação a seus problemas, discutir coletivamente estratégias e avaliar continuamente o trabalho com a comunidade, estando aberto para reformulações (Freitas, 1998). O psicólogo inicia com grandes incertezas e desafios e aos poucos visualiza o potencial da comunidade, percebendo que a comunidade tem padrões diferentes do saber técnico-científico, mas este saber popular tem igualmente a capacidade de assumir uma postura dialógica de comunicação e propositiva de ações e estratégias para executá-las. A Psicologia Social Comunitária utiliza, prioritariamente, a pesquisa participante, "na qual o pesquisador e os sujeitos da pesquisa trabalham juntos na busca de explicações para os problemas colocados, bem como no planejamento e execução de programas de transformação da realidade vivida" (Campos, 1996, p. 11). Acreditamos que as necessidades da população são os aspectos que devem orientar os caminhos para a prática do psicólogo, implicando na construção conjunta de alternativas e ações, de forma que a população aproprie-se de seu cotidiano, da sua problemática e do processo de lidar com ela. Os processos sustentados em relações participativas, solidárias e éticas contribuem para o desenvolvimento de uma consciência crítica e da autonomia da comunidade. A trajetória de constituição deste campo de atuação propiciou um enfrentamento filosófico e metodológico com grande parte das perspectivas psicológicas tradicionais, fundadas em cosmovisões individualistas, com ênfase na suposta neutralidade científica. Este enfrentamento aponta para a proposição de uma Psicologia Social Crítica e Histórica: falar do fenómeno psicológico implica falar da sociedade, historicamente construída (Martín-Baró, 1989; Montero, 1996). Embora o campo da Psicologia Social Comunitária, nos aspectos teórico- metodológicos, tenha conquistado importante espaço na atualidade, dentro e fora da academia, o que podemos afirmar é que esta prática se encontra em processo de consolidação, inclusive junto às políticas públicas dos diversos setores. Lembremos que a possibilidade de plena participação da sociedade civil na gestão das políticas públicas ainda é recente no país. Se tomarmos como exemplo a Constituição Federal de 1988 veremos que está também trouxe mudança para a concepção de Assistência Social, uma vez que esta passa a constituir, juntamente com a Saúde e a Previdência Social, a base da Seguridade Social, notadamente inspirada na noção de Estado de Bem-Estar Social. Neste sentido, se a articulação entre políticas públicas de saúde e psicologia é recente, o território da assistência social está se constituindo e, embora o psicólogo pouco tenha participado das discussões, centradas no profissional do serviço social, o profissional da psicologia está previsto na equipe mínima dos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) onde a ação principal desenvolve-se através do Programa de Atenção Integral à Família (PAIF), principal estratégia do Sistema Único da Assistência Social (SUAS). Este é endereçado para as famílias em situação de vulnerabilidade social e tem como perspectiva o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. Se a assistência social é uma política pública de proteção social articulada a outras políticas voltadas à garantia de direitos e de condições dignas de vida, então um território de atuação para o psicólogo está instituído nesse campo, embora não contemos com estudos5 que analisem as práticas dos psicólogos nos CRAS. Neste sentido, um dos desafios da Psicologia Social Comunitária seja avançar na produção de conhecimento, tomando a práxis dos psicólogos na assistência social como lócus de investigação e problematização. Um alerta importante está no documento intitulado "Parâmetros para atuação de assistentes sociais e psicólogos (as) na Política de Assistência Social" (2007): "as práticas psicológicas não devem categorizar, patologizare objetificar a classe trabalhadora, mas buscar compreender os processos estudando as particularidades e circunstâncias em que ocorrem" (p. 23). No sentido propositivo consta a promoção da autonomia das famílias e seus membros, além de salientar que o profissional da psicologia tem a contribuir à medida que foi partícipe da Reforma Psiquiátrica e aponta o Código de Ética profissional para destacar que "toda profissão se define a partir de um corpo de práticas que busca atender demandas sociais" (p. 31). Para reiterar tal compromisso são elencadas as diretrizes nacionais curriculares para a formação em Psicologia. Para finalizar, trazermos para este cenário a nossa prática da docência. Vemos que a formação académica, muitas vezes, ainda privilegia o conhecimento técnico-científico, utilizando-se de concepções e práticas avaliativas e adaptacionistas. Trabalhar com políticas públicas exige pensar a partir do lugar do outro, e não apenas reproduzir conhecimentos ou aprender técnicas; implica em sensibilizar para tópicos (pouco contemplados na academia) como assistência social, direitos humanos, cidadania, movimentos sociais e entidades de classe. O desafio é articular a dimensão política na formação académica e, consequentemente, nas práticas profissionais, pois são indissociáveis. Na área da psicologia encontramos uma tese e uma dissertação. Na primeira, Botarelli (2008) analisou a inserção dos psicólogos em políticas de proteção social, utilizando-se de aporte teórico e metodológico da Psicologia Social Crítica. Na segunda, a partir do referencial psicanalítico, Scarparo (2008) instigou a reflexão sobre os aspectos clínicos, sociais e institucionais envolvidos na especificidade do atendimento à família na assistência social.