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EAD POLÍTICA DE INCLUSÃO SOCIAL Eva Aparecida Pilom POLÍTICAS DE INCLUSÃO SOCIAL Apresentação A presente disciplina busca discutir, de modo introdutório, a pertinência da noção de exclusão social para analisar os fenômenos a que se refere; a origem e o desenvolvimento do conceito (quando proposto como tal), em suas relações com noções afins como marginalidade, exército industrial de reserva e underclass. No entanto é necessário que antes ocorra uma profunda reflexão sobre os conceitos da dignidade humana; para isso são estudados os fundamentos alternativos de uma fundamentação do princípio da dignidade da pessoa humana, recorrendo à noção filosófica da alteridade, ou da responsabilidade pelo outro, na qual a ética é entendida como filosofia primeira e a subjetividade é percebida como sensibilidade. Em um segundo momento, de cunho eminentemente teórico, são apresentadas reflexões sobre a afirmação dos direitos humanos presentes nas diferentes Constituições brasileiras do período republicano, em especial a Constituição de 1988. Questões éticas são problematizadas, assim como as contradições que marcam esses discursos. Constata-se que há uma contradição de base na Constituição brasileira, a qual se objetiva na grande distância entre a afirmação dos direitos fundamentais ali preconizados e a realidade social, assim como na distância entre os muitos discursos em defesa de uma suposta ética e as práticas sociais efetivamente comprometidas com a superação das desigualdades sociais. Como enfrentar as condições estruturais adversas da economia que levam à exclusão social, vedando aos pobres o acesso ao mercado de trabalho, à moradia decente e aos serviços coletivos de saúde, educação e lazer. Este estudo propõe, com base em conceitos de cidadania e sobretudo de Direitos Humanos, expor como os limites das políticas públicas inclusivas, mesmo com os avanços significativos na legislação, apresentam ausência de uma efetiva política, pois saber e fazer constituem duas dimensões complementares e interdependentes que permeiam todas as nossas atividades. Postulamos a busca contínua de conhecimentos e sua tradução em ações construtivas, sempre ancoradas na compaixão, na ética da responsabilidade e do compromisso com o bem-estar coletivo e a justiça social. Nesse sentido, faz-se jus ressaltar o quanto a Educação, enquanto eficaz instrumento de mobilidade social, incorpora possibilidades para que políticas inclusivas compensatórias corrijam as lacunas deixadas pelas insuficiências das políticas universalistas. Com isso se pretende equilibrar uma situação em que elas atendam à dimensão de uma inserção profissional mais qualificada e com isso ancoram em uma base maior de inteligência o desenvolvimento científico e tecnológico do país. De posse ao acesso de todos no ambiente escolar, com efetivas políticas públicas de inclusão na área educacional, acredita-se que pelo viés da Educação, onde perpassa o “saber”, estudos e debates dos grandes temas da sociedade contemporânea transmitam e refletiam a dinâmica da criação e recriação permanente da cultura e seus impactos na formação da personalidade dos membros da sociedade. Enfim, a interação entre Educação de qualidade e inclusão social expressa também a interação entre Cidadania e Direitos Humanos. No mundo globalizado e capitalista as injustiças sociais proporcionam aos indivíduos a exclusão, a ausência de identidade. Para tanto, a Educação pode ser a força motriz, um dos instrumentos para nortear por uma ética que preconize o bem comum da coletividade, em contrapartida da ideologia, ora transmitida pelo sistema vigente. Profª- Eva Aparecida Pilom Ementa: Direitos humanos e direitos fundamentais. Exclusão social e políticas de inclusão. Grupos excluídos e políticas de inclusão. Uma análise crítica a partir da perspectiva das minorias. Compreendendo a dignidade da pessoa humana e a questão da alteridade. Fundamentos para uma teoria da exclusão social: a intolerância. A função inclusivo-exclusiva do direito: uma visão crítica a partir dos postulados da igualdade e da liberdade. OBJETIVOS: Refletir a interação entre Educação de qualidade e inclusão social expressa na interação entre Cidadania e Direitos Humanos. No mundo globalizado e capitalista as injustiças sociais proporcionam aos indivíduos a exclusão, a ausência de identidade. Para tanto, a Educação pode ser a força motriz, um dos instrumentos para nortear por uma ética que preconize, o bem comum da coletividade em contrapartida da ideologia, ora transmitida pelo sistema vigente. CONTEÚDO: 1- Justiça e Exterioridade: reflexões sobre o Direito e a Alteridade 2- Direitos Humanos e Direitos Fundamentais 3- Exclusão Social: aplicabilidade e implicações para a intervenção prática 4- Exclusão Social e Políticas Públicas de Inclusão. METODOLOGIA Disciplina oferecida na modalidade a distância (EAD). Incentiva-se a formação de grupos de estudo autônomos, orientados pelo professor. AVALIAÇÃO No sistema EAD, a legislação determina que haja avaliação presencial, sem, entretanto, se caracterizar como única forma possível e recomendada. Na avaliação presencial, todos os alunos estão na mesma condição, em horário e espaço pré-determinados, diferentemente, a avaliação a distancia permite que o aluno realize as atividades avaliativas no seu tempo, respeitando-se, obviamente, a necessidade de estabelecimento de prazos. A avaliação terá caráter processual e, portanto contínuo, sendo os seguintes instrumentos utilizados para a verificação da aprendizagem: 1) Tarefas através de questionários automáticos na plataforma de estudos; 2) Provas semestrais realizadas presencialmente; BIBLIOGRAFIA BÁSICA Marx, K. O Capital, três, Nova Iorque: International, 1894. ARON, R. As Etapas do Pensamento Sociológico. São Paulo. Editora Martins Fontes. 1995 DOMINGUES, J. M. Teorias Sociológicas no Século XX. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira. 2004 . BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR DOMINGUES, J. M. Sociologia e Modernidade. Para entender a sociedade contemporânea. 2005. LALLEMENT, M. História das ideias sociológicas. De Parsons aos contemporâneos. Petrópolis: Vozes, 2004. GADOTTI, Moacir. História das ideias pedagógicas. São Paulo: Ática, 1998. FRIEDMAN, T. O mundo é plano. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. IANNI, O. Teorias da globalização. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1995. DUSSEL, Enrique. Filosofia da libertação: crítica à ideologia da exclusão. São Paulo. Paulus. 1995. CINTRA, Benedito Eliseu. Emmanuel Lévinas e a ideia do infinito. In, Margem, São Paulo, n. 16, p. 107-117, dez. 2002. LÉVINAS, Emmanuel. Humanismo do outro homem. Petrópolis: Vozes. 1993. p. 98 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.85 SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos fundamentais na Constituição de 1988. Revista Diálogo Jurídico, Ano I, Vol. I, Salvador, 2001. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p.2. BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000, p.42. MARTINS, J. S. (1997). Exclusão social e a nova desigualdade. São Paulo: Paulus. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. CASTEL, Roberto. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998. ESCOREL, Sarah. Vidas ao léu: trajetórias de exclusão social. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999. BRANDÃO, A. A. Raça, demografia e indicadores sociais. In: OLIVEIRA, I. de. (org.) Relações raciais e educação: novos desafios. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Geografia da educação brasileira, 2001. Brasília: Inep, 2002.CURY, Carlos Roberto Jamil. Direito à diferença: um reconhecimento legal. Educação em. revista, n. 30, p. 7-15, dez. 1999. Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos – Inep –, 2002 Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estatísticas do século XX. Rio de Janeiro, 2003. Cadernos de Pesquisa, v. 35, n. 124, jan./abr. 2005 - Políticas inclusivas e compensatórias... UNIDADE 1 – JUSTIÇA E EXTERIORIDADE: REFLEXÕES SOBRE O DIREITO E A ALTERIDADE . CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos: Refletir sobre a possibilidade de uma justiça vinculada a indivíduos concretos inspirada por discursos da alteridade, e a identificação da exterioridade enquanto padrão dominante de valores da exigência por justiça, capaz de buscar a responsabilidade pelo outro dentro do sistema jurídico. Conceituando alteridade Alteridade (ou outridade) é a concepção que parte do pressuposto básico de que todo o homem social interage e interdepende do outro. Assim, como muitos antropólogos e cientistas sociais afirmam a existência do "eu-individual" só é permitida mediante um contato com o outro (que em uma visão expandida se torna o Outro - a própria sociedade diferente do indivíduo). Dessa forma eu apenas existo a partir do outro, da visão do outro, o que me permite também compreender o mundo a partir de um olhar diferenciado, partindo tanto do diferente quanto de mim mesmo, sensibilizado que estou pela experiência do contato. A “noção de outro ressalta que a diferença constitui a vida social, à medida que esta efetiva-se através das dinâmicas das relações sociais. Assim sendo, a diferença é, simultaneamente, a base da vida social e fonte permanente de tensão e conflito” (G. Velho, 1996:10) “A experiência da alteridade (e a elaboração dessa experiência) leva-nos a ver aquilo que nem teríamos conseguido imaginar, dada a nossa dificuldade em fixar nossa atenção no que nos é habitual, familiar, cotidiano, e que consideramos ‘evidente’. Aos poucos, notamos que o menor dos nossos comportamentos (gestos, mímicas, posturas, reações afetivas) não tem realmente nada de ‘natural’. Começamos, então, a nos surpreender com aquilo que diz respeito a nós mesmos, a nos espiar. O conhecimento (antropológico) da nossa cultura passa inevitavelmente pelo conhecimento das outras culturas; e devemos especialmente reconhecer que somos uma cultura possível entre tantas outras, mas não a única.” (F. Laplantine, 2000:21) Definição de Michel de Montaigne: "Mas, para retornar a meu assunto, acho que não há nessa nação nada de bárbaro e de selvagem, pelo que me contaram, a não ser porque cada qual chama de barbárie aquilo que não é de costume; como verdadeiramente parece que não temos outro ponto de vista sobre a verdade e a razão a não ser o exemplo e o modelo das opiniões e os usos do país em que estamos".http://pt.wikipedia.org/wiki/Alteridade Subjetividade A relação com o outro não pode ser uma relação de dominação, de poder, isso implicaria o extermínio da alteridade, deve ser, por outro lado, de respeito, de deixar ser, de ver no outro a infinitude ética, “uma relação anterior ao entendimento de uma vocação, relação que precede o entendimento e o desvelamento, precede a verdade”. O pensar levinasiano quando trata da subjetividade implica a percepção da consolidação de um humanismo filosófico centrado no outro. Um humanismo do outro, diferente do humanismo que considera todas as pessoas iguais, não as percebendo em sua unicidade e na sua temporalidade, reduzindo-as a conceitos, negando a alteridade destas. “A crise do humanismo em nossa época tem, sem dúvida, sua fonte na experiência da ineficácia humana posta em acusação pela própria abundância de nossos meios de agir e pela extensão de nossas ambições. No mundo, em que as coisas estão em seu lugar. LÉVINAS, Emmanuel. Humanismo do outro homem... p. 71. A identidade constitui-se a partir do eu, é o ser onde o existir consiste em se identificar, no reencontro de tudo que chega ao ser com o eu. Em outro sentido, não se deve reduzir o outro ao eu, ou seja, o outro não deve ser visto a partir do meu conceito, não devo totalizar o outro, conceituá-lo. O eu encontra sua identidade na medida em que sai de si e se relaciona com o outro, esse sentido, o respeito pelo outro como outro não deve passar pela vontade de possuí-lo. Para Lévinas, o infinito está na alteridade, na impossibilidade de dominação, de compreensão absoluta do outro em sua diferença. A razão não pode se pretender universal justamente pela impossibilidade implicada no fato de que, ao trazer o outro para si, o outro é desrespeitado em sua diferença, esse movimento ontológico exprime a opressão do outro, a redução do diferente ao mesmo. O pensamento levinasiano parte do pressuposto da negação da alteridade, ou seja, que não somos vistos em nossas individualidades, nem mesmo com o respeito que merecemos enquanto subjetividade. Assim, na apresentação do rosto nu, do indigente, da viúva, do órfão e do estrangeiro, isto é, daqueles que são relegados ao mesmo, é um olhar de denúncia e apelo, é algo simbólico que esconde na dimensão carnal e fenomenológica a transcendência do seu mundo, da sua dor e de sua história. BUSCANDO CONHECIMENTO Justiça Lévinas busca uma justiça vinculada aos indivíduos concretos, a justiça provém dessa concretude, não inspirada por um ideal, mas pela palavra concreta, pelo discurso do Outro. “Corremos os risco de não perceber a vida que está aí diante de nós, e que precisa da nossa resposta. Corremos o risco de não perceber o rosto do outro que se encontra caído pelas ruas, o outro que em muitas situações está com sua dignidade ameaçada.” GODOY, Maristela. A constituição da subjetividade... p. 117-118. O discurso do Outro carrega a fala de toda humanidade. A justiça, assim não pode estar distante da relação do face-a-face, do contrário, transformar-se-á em tirania. Tanto a justiça como a política, devem estar permeadas pela concretude da fala do Outro. A Justiça apresentar-se-á como um árbitro sempre disposto a ouvir. A universalidade da lei não pode fazer desaparecer as diferentes falas e suas exigências, por isso nem sempre a democracia surgirá como justa. A tirania da maioria pode levar a sistemas autoritários e ditatoriais, como o stalinismo, nazismo e o fascismo. Lévinas reitera que a justiça fundamenta a verdade, que a consciência da minha indignidade moral, da arbitrariedade da liberdade injustificada, apenas torna possível a verdade do ser. A paz que deve proporcionar a justiça não representa necessariamente o fim dos combates, em que se percebe a vitória de uns em nome da derrota de outros. Este é o retrato de nossa história, sempre pronta a servir seus vitoriosos, em nome de uma ordem, em que o progresso só beneficiou a poucos. As vítimas, os excluídos da história, hoje exigem uma justiça que deve ser balizada pela ética, pela responsabilidade pelo outro. Através da razão é possível assegurar os discursos, garantindo um acordo, que não deve implicar uma unidade vazia, mas o respeito às diferenças. No rosto levinasiano se encontra uma ordem constante, um chamamento à justiça e um profundo apelo que vem dos oprimidos, daqueles expulsos de sua própria condição humana. Qualquer cidadão, desse modo, é capaz e legítimo para inquirir a justiça e exigir que a mesma esteja a serviço de um compromisso ético. “[...] na concretude de uma responsabilidade por outrem: responsabilidade que lhe incumbiria imediatamente na própria percepção de outrem, mas como se nesta representação, nesta presença, ela já precedesse esta percepção, como se ela já estivesse aí, mais velha que o presente, e, por isso, responsabilidade indeclinável, duma ordem estranha ao saber; como se, de toda a eternidade,o eu fosse o primeiro chamado a esta responsabilidade; impermutável e assim único, assim eu, refém eleito, o eleito. Ética do encontro, socialidade.” LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós... p. 291. Dentro da sociedade, a própria justiça deverá atualizar e prolongar a responsabilidade pelo Outro. A política deve orientar-se pela Ética, senão perde- se na teoria de princípios que não consegue cumprir. Ou seja, a justiça exercida pelas instituições deve buscar inspiração na relação do face a face que é sempre original. Deve-se ir em busca de um Estado orientado para a justiça e não na busca de uma justiça que surja para assegurar a subsistência do Estado. Lévinas destaca que o Estado Moderno representou na verdade a possibilidade de concretização de seus desejos, o começo da história de seres livres. Assim, a justiça não pode se contentar com suas conquistas, devendo sempre ser revista. A Ética é então o movimento possível da justiça. A justiça é, desse modo, a responsabilidade pela vida; a impossibilidade de omissão diante da negação da alteridade. ESTUDANDO E REFLETINDO A EXTERIORIDADE E A DIGNIDADE HUMANA É através da alteridade que os direitos intrínsecos do outro serão reconhecidos, afirmando, assim, sua dignidade ao exigir a justiça desde a exterioridade, uma resposta perante a interpelação do outro. Nesse sentido afirma Ana Letícia B. D. Medeiros: A partir da denúncia da vítima é possível estabelecer uma lógica procedimental de natureza diversa da discursiva de caráter hegemônico, agora crítica, porque nasce do grito, de natureza testemunhal (a partir da experiência vívida) ou teórica (na condição de reconhecimento do “outro” assimetricamente exterior à totalidade opressora). O princípio da dignidade da pessoa humana é tratado como forma suprema de toda comunidade de comunicação, e interpõe uma verdadeira inexigibilidade de conduta diversa, ou seja, o interpelante (oprimido, que possui sua alteridade negada pelo sistema jurídico hegemônico), “poderá deixar de apoiar as normas vigentes” desde sua alteridade negada. A dignidade não é garantida em condições de participação na comunidade de discussão ao interpelante, o que implica a abertura ética para que este possa questionar as normas vigentes. A não incidência da normatividade ao interpelante pode decorrer tanto, da não obtenção de condições mínimas de subsistência, acarretando em uma indignidade, quanto o fato de o ordenamento jurídico se encontrar em transição, de modo que os direitos da exterioridade serão tutelados, contudo esta proteção jurídica se projeta para o futuro. DUSSEL, Enrique. Filosofia da libertação: crítica à ideologia da exclusão. p. 57. Enrique Dussel expõe que: Da nossa parte, como latino-americanos, participantes de uma comunidade de comunicação periférica – dentro da qual a experiência da “exclusão” é um ponto de partida (e não de chegada) cotidiano, isto é, um a priori e não um a posteriori – nós precisamos obrigatoriamente encontrar o “enquadramento” filosófico dessa nossa experiência de miséria, de pobreza, de dificuldade para argumentar (por falta de recursos), de ausência de comunicação ou, pura e simplesmente, de não-fazermos-parte dessa comunidade de comunicação hegemônica. Uma comunidade de comunicação ideal teria as características de acordo com os enunciados seguintes: a) isenção de dominação e respeito à igualdade de todos os seus participantes possíveis (positividade); b) a priori pragmático de todos os seus (possíveis) participantes, além do direito de se colocar como outro perante a comunidade (negatividade). A partir disso, a comunidade de comunicação comunga com a alteridade, que pode ser pensada como capaz de enquadrar a exterioridade em diversos níveis, desde a total incapacidade de manifestação, até ao direito procedimental de discórdia. Abre-se, portanto, a comunidade de comunicação para a razão da alteridade, a razão do outro enquanto razão ética enquanto a base para a comunidade ideal de comunicação. A comunidade humana, real, sempre incorre na exclusão do outro, tanto no momento da fala, como no acesso aos meios de produção. Esta alteridade, pensada enquanto uma comunidade de excluídos, não é privada da razão, mas detém outras razões, as quais interpelam, expõe sua exterioridade, propugnando pela inclusão imperiosa – muitas vezes essa questão diz respeito a casos de vida ou morte – na comunidade de acordo com a justiça. O outro é a exterioridade enquanto tal, histórica e não apenas metafísica, o outro é a alteridade de todo sistema opressor, para além do mesmo, enquadrado na totalidade excludente. O rosto do outro se apresenta enquanto outro, no sistema totalizante e externa sua exterioridade, como uma liberdade que interpela, que provoca e resiste à totalização instrumental, o outro, assim, não pode ser tratado como algo, ente, mas como alguém, com dignidade, razão, voz, direitos. Enrique Dussel ao pensar na exterioridade aponta que: Mas entre as coisas reais que conservam exterioridade do ser, encontra-se uma coisa que tem eventos, que tem história, biografia, liberdade: outro homem. O homem, para além do ser, da compreensão do mundo, do sentido constituído por uma interpretação que supõe meu sistema, transcende as determinações e condicionamentos da totalidade, pode revelar-se como o extremamente oposto; pode increparmos em totalidade. Mesmo na extrema humilhação da prisão, no frio da cela e na total dor da tortura, mesmo quando seu corpo não era senão uma chaga viva, podia exclamar: “– Sou outro; sou homem; tenho direitos!”. O outro se exterioriza como alteridade quando irrompe a totalidade, quando se demonstra fora da norma, fora dos padrões e da totalidade vigente, em sua corporalidade sofredora de oprimido. O rosto sofredor daquele que pede por comida, o direito do outro, fora do sistema, não é um direito que se justifica pelo projeto normativo vigente, pelas leis que regulam a sociedade, seu direito, por ser alguém, livre, funda-se em sua exterioridade, “na constituição real de sua dignidade humana”. A exterioridade é o princípio para aqueles que exigem por justiça, pela ética enquanto responsabilidade pelo outro. A alteridade, associada com a exterioridade, é o fundamento para se promover uma outra práxis jurídica, alternativa, para além do sistema totalizante. DUSSEL, Enrique. Filosofia da libertação. p. 49. A forma concreta de busca dessa alteridade pode dar-se pela práxis jurídica alternativa, situando o pobre/oprimido, como realidade (histórica) e tendo na categoria (epistemológica) da exterioridade a fonte de uma ética jurídica de libertação.” LUDWIG. Celso Luiz. A alternatividade jurídica na perspectiva da libertação: uma leitura a partir da filosofia de Enrique Dussel. A identificação da exterioridade enquanto valor supremo da exigência por justiça constitui a formação de um instrumental apto a concretizar a práxis jurídica alternativa (práxis entendida aqui como a realidade vivida), capaz de buscar a responsabilidade pelo outro dentro do sistema jurídico, e a exteriorização, real, de seres humanos cujas necessidades fundamentais não são atendidas, cuja dignidade é violada e cuja vida concreta é negada. Realiza-se, através da ação cotidiana a “... afirmação ética radical da vida negada nas vítimas (materialmente), expressa pelo desejo e pela luta por viver e a partir do reconhecimento da dignidade da vítima como o Outro que o sistema que a nega”. INTERAGINDO CONHECIMENTO Assista ao clássico filme: A VIDA É BELA de Roberto Benigni -1998 Recorrendo à noção filosófica da alteridade, analise os fundamentos alternativos de uma fundamentação do princípio da dignidade da pessoa humana, através da mensagem veiculada pelo filme. UNIDADE 2 – DIREITOS HUMANOS E DIREITOS FUNDAMENTAISCONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos: Percorrer os fundamentos legais da inclusão social defendidos na Constituição de 1988 - Constituição Cidadã, assim como sua eficácia e sua preservação. Quase que diariamente ouvimos meios de comunicação, pessoas, grupos e entidades debatendo e expressando posições acerca de direitos fundamentais das formas mais diversas possíveis. A cada crime que choca a opinião pública, os reclamos por aumentos de pena, tipificação de crimes como hediondos e até a adoção da pena de morte são trazidos à tona. Descobertos fatos envolvendo corrupção, propõe-se a volta da ditadura. Aumenta a violência urbana e são propostas ações da estrutura de segurança fora dos limites legais e aplaudem-se atividades de milícias armadas e filmes retratando ações violentas e fora da lei, como recentemente visto. Ocorrem aumentos de casos de disputas pela posse da terra, justificam-se atos de violência de parte a parte. Como se nada dissesse respeito à sociedade como um todo. Como se cada uma destas facetas dos conflitos sociais pudessem ser vistos e resolvidos isoladamente. Como se não fizessem parte tais fatos de conflitos sociais, envolvendo direitos que tanto custaram à sociedade, como um todo, conquistar. “Direitos fundamentais do homem constituem a expressão mais adequada a este estudo, porque, além de referir-se a princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas.” (José Afonso da Silva,) Ainda sobre a caracterização, registre-se a posição de J.J.G. Canotilho, em citação feita por Alexandre Moraes, em sua obra Direito Constitucional: “a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objetivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico subjetivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa)” Para realmente adentrarmos aos aspectos históricos dos direitos fundamentais, registramos a posição do professor Uadi Lamêgo Bulos sobre o tema: “Por isso é que eles são, além de fundamentais, inatos, absolutos, invioláveis, intransferíveis, irrenunciáveis e imprescritíveis, porque participam de um contexto histórico, perfeitamente delimitado. Não surgiram à margem da história, porém, em decorrência dela, ou melhor, em decorrência dos reclamos da igualdade, fraternidade e liberdade entre os homens. Homens não no sentido de sexo masculino, mas no sentido de pessoas humanas. Os direitos fundamentais do homem nascem, morrem e extinguem-se. Não são obra da natureza, mas das necessidades humanas, ampliando-se ou limitando-se a depender do influxo do fato social cambiante.” Há registros de que o conceito de dignidade humana surgiu na antiguidade greco-romana e derivava somente da posição social que o indivíduo ocupava na polis e, ainda, que no Antigo Testamento a dignidade do ser humano proviria da ideia de ser ele filho de Deus e representar a imagem deste. Quanto a esses registros, merece destaque a posição de Santo Tomás de Aquino, que na “Lex Naturalis” ressalta a autonomia do direito como tema naturalmente humano, ao invés de um simples apêndice da teologia moral. Para Tomás de Aquino os direitos humanos seriam o princípio dos direitos naturais, autorizando assim, a resistência do súdito em face da opressão do soberano. A melhor expressão desse direito de resistência foi trazida por John Locke, para quem os homens se reuniam em sociedade para preservar a própria vida, a liberdade e a propriedade, e, sendo assim, tais direitos seriam oponíveis ao próprio soberano. Avancemos para a positivação desses direitos tidos como inerentes ao homem em sua relação com o Estado. Aproveitamos aqui a lição de Norberto Bobbio, para quem o registro histórico do Estado moderno deriva da relação política entre este e o indivíduo. Veja-se: “a afirmação dos direitos do homem deriva de uma radical inversão de perspectiva, característica da formação do Estado moderno, na representação da relação política, ou seja, na relação Estado/cidadão ou soberano/súditos: relação que é encarada, cada vez mais, do ponto de vista dos direitos dos cidadãos não mais súditos, e não ponto de vista dos direitos do soberano, em correspondência com a visão individualista da sociedade (...) no início da idade moderna”. Embora sempre instigante a discussão acerca da classificação dos direitos fundamentais, seja em gerações como preferem alguns, seja em dimensões como preferem outros, sustentando que a conceituação geracional teria o efeito da exclusão de uma geração pela que lhe é posterior (Alexy e JJ.Gomes Canotilho). ESTUDANDO E REFLETINDO O Estado Social no Brasil Para que melhor se possa entender o alcance dos direitos fundamentais inscritos na Constituição de 1988, é necessário um registro, ainda que sucinto, dos aspectos relativos à formação do Estado Social de Direito ou Estado Social no Brasil. Sendo assim, passemos a uma pequena abordagem sobre o conceito de Estado de Direito e, após, ao Estado Social. Sobre o Estado de Direito clássico, do ponto de vista formal, que é o modelo de Estado que garante os direitos civis, compreendidos aqui como os direitos oponíveis pelo indivíduo e por si, em face do Estado, na relação deste com a sociedade e ainda nas relações entre os membros dessa sociedade. Entre nós o Estado do período republicano, a partir de 1891, caracterizou-se inicialmente como um Estado de Direito Liberal, adotando o ideário da concepção liberal em contraposição ao modelo monárquico até então vigente. O Estado de Direito Social ou Estado Social é o modelo de Estado que incorpora direitos sociais para além do Estado de Direito clássico. Surgem em momentos de contradições históricas de determinadas sociedades, refletindo a contraposição entre as funções do Estado e os avanços sociais. Acerca da caracterização do Estado Social vamos nos valer do magistério de Paulo Bonavides sobre o Estado Social: “Quando o Estado, coagido pela pressão das massas, pelas reivindicações que a impaciência do quarto estado faz ao poder político, confere, no Estado constitucional ou fora deste, os direitos do trabalho, da previdência, da educação, intervém na economia como distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços, combate o desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata a casa própria, controla as profissões, compra a produção, financia as exportações, concede crédito, institui comissões de abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependência de seu poderio econômico, político e social, em suma, estende sua influência a quase todos os domínios que dantes pertenciam, em grande parte, à área de iniciativa individual, nesse instante o Estado pode, com justiça, receber a denominação de Estado Social” Em que pese a adoção de Estados Sociais por diversas sociedades, o Brasil apenas no início do século XX iniciou a transição do modelo de economia agrária para outro modelo de produção e, tal transição, exigia transformações, pois a adoção de Estado Liberal efetivada pela Constituição de 1891 não contemplava a necessidade de constitucionalizarem-se algumas relações sociais, especialmente as decorrentes de demandas de categoriasde trabalhadores necessárias à modernização das relações de produção. Esse foi um dos fatores que levaram à Revolução de 30, embora um dos seus maiores expoentes e condutores - Getúlio Vargas - pertencesse à oligarquia rural e fosse um dos seus representantes. Assim, vencida a fase inicial do processo de ruptura constitucional, a Constituição de 1934, por força da Revolução de 30, registrou alguns desses avanços sociais, elevando-os à categoria de direitos fundamentais. O Estado Social, entre nós, nasce como uma resposta conservadora ao incremento dos movimentos sociais, especialmente daqueles trabalhadores mais importantes ao novo modelo de produção para a qual era necessária a implantação de infraestrutura, e expressa o clamor social pelas garantias e cumprimento dos direitos sociais. Era preciso ultrapassar os limites do Estado liberal para garantir a paz social necessária à tranquilidade do processo produtivo. Perfeitamente adequada a observação de Norberto Bobbio acerca das diferentes relações entre as duas concepções de Estado: “Da crítica das doutrinas igualitárias contra a concepção e a prática liberal do Estado é que nasceram as exigências de direitos sociais, que transformaram profundamente o sistema de relações entre o indivíduo e o Estado e a própria organização do Estado, até mesmo nos regimes que se consideram continuadores, sem alterações bruscas, da tradição liberal do século XIX (...) Liberalismo e igualitarismo deitam suas raízes em concepções da sociedade profundamente diversas: individualista, conflitualista e pluralista, no caso do liberalismo; totalizante, harmônica e monista, no caso do igualitarismo. Para o liberal, a finalidade principal é a expansão da personalidade individual, abstratamente considerada como um valor em si; para o igualitário, essa finalidade é o desenvolvimento harmonioso da comunidade. E diversos são também os modos de conceber a natureza e as tarefas do Estado: limitado e garantista, o Estado liberal; intervencionista e dirigista, o Estado dos igualitários.” Se no início do século vigorava o receituário liberal, a partir de 1930 o Estado se fortalece e passa a pautar o processo capitalista em bases do próprio Estado de Direito, para melhor organizar e defender o próprio sistema capitalista. Entretanto, as pressões sociais continuam e é necessário que se faça a evolução, desta forma, chega-se à Constituição de 1934, a que anteriormente nos referimos. É nessa fase que se estimula e protege o capitalismo, pois este necessita de trabalho livre, pois, não há consumo sem salários e o modelo de produção arcaico e superado não mais interessa. Porém não interessa ao capital o tensionamento natural em Estados nos quais os direitos sociais, especialmente aqueles de expressão coletiva, são buscados pelos diversos setores sociais. Neste contexto de crescimento das reivindicações sociais por categorias de trabalhadores mais organizados sobrevêm o endurecimento do regime, através do golpe de 37. É necessário um novo respaldo jurídico para esse novo modelo de produção. Essa necessidade do capital, aliada às pressões sociais cria as condições para os avanços trabalhistas registrados na época, como por exemplo, a CLT, em 1943, embora, registre-se, o regime de força tenha se estendido até 1945, com a convocação de Assembleia Constituinte. Após a 2ª Guerra Mundial é necessário criar uma válvula de escape para as pressões sociais. Era preciso uma transformação mais profunda no Estado de Direito, a fim de que não mais se justificassem Estados de Exceção como foi, por exemplo, o estado nazista. Desta forma, restaura-se o Estado de Direito e, nesse novo contexto social, avança o Estado Nacional para o modelo de Estado Social de Direito, constitucionalizando-se vários direitos fundamentais exigidos pelos movimentos sociais e pelos setores organizados da produção. Tal modelo mantém-se até 1964, quando pressionado pelos setores mais conservadores da sociedade os militares assumem poder, autoproclamando um processo revolucionário e, em nome deste, destituindo o Estado de Direito Social e instalando um Estado de Direito, que, embora possa parecer um contrassenso, ilegítimo, porque calcado na força das armas. O endurecimento do regime durou até o início da década de 80 com o período de distensão que acabou por levar a eleição do presidente da República, ainda, registre-se, pelo método indireto. Em 1985 são convocadas eleições para o Congresso Nacional Constituinte, que acontecem em 1986. Em 1988, promulgada a nova Constituição, restaura-se o regime democrático, após mais de vinte anos de regime de força, de exceção. Este, o contexto de elaboração e promulgação do Contrato Social vigente. ESTUDANDO E REFLETINDO Os Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. Os direitos fundamentais até aqui conquistados, pela humanidade e pelos brasileiros em especial, são fruto de longo processo histórico no qual a construção desse patrimônio, não raras vezes, custou vidas, gerou guerras, golpes de estado e outras manifestações violentas de força e demonstrações de poder mantido por força de armas. Dessa forma alinhamo-nos com o professor Ingo Wolfgang Sarlet que expressou de forma magistral a responsabilidade por sua manutenção, que transcrevemos: “A efetividade dos direitos fundamentais – de todos os direitos – depende, acima de tudo, da firme crença em sua necessidade e seu significado para a vida humana em sociedade, além de um grau mínimo de tolerância e solidariedade nas relações sociais, razão, aliás, pela qual de muito se sustenta a existência de uma terceira dimensão (ou geração) de direitos fundamentais, oportunamente designada de direitos de fraternidade ou solidariedade. A preservação do meio ambiente, o respeito pela intimidade e vida privada, a proteção da criança e do adolescente, a igualdade entre homens e mulheres, a liberdade de expressão, dependem de um ambiente familiar e de relações afetivas sadias e responsáveis, enfim, de muito mais do que um sistema jurídico que formalmente assegure estes valores fundamentais, assim como de Juízes e Tribunais que zelem pelo seu cumprimento.” Nosso Estado Nacional, ainda que tardiamente como ficou demonstrado quando nos referimos à formação do nosso Estado Social, evoluiu do Estado de Direito de matriz liberal burguesa para o Estado de Direito Social e nossa Constituição atual consagrou um elenco de direitos fundamentais, abrangendo tanto os direitos fundamentais como direitos de defesa, como também os direitos fundamentais a prestações, englobando-os no capítulo dos direitos sociais e espraiando-os pelo corpo da Constituição, tanto sob a forma de direitos explícitos, como sob a forma de direitos implícitos, ou decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados. Sarlet (2001, p.19) aponta, citando D. Murswiek e C. Starck a relevância da dimensão econômica dos direitos sociais prestacionais, por terem este como objeto prestações do Estado diretamente vinculadas à criação, destinação, distribuição e redistribuição de serviços e bens materiais. Tal característica não ocorre com os direitos de defesa, que, na sua condição de direitos negativos, podem ser assegurados, quase que na maioria das vezes, independentemente das circunstâncias econômicas. Sobre a questão da eficácia, vigência e sistematização, Luís Roberto Barroso informa: “a efetividade significa, portanto, a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever ser normativo e o ser da realidade social” A incapacidade do Estado de promover justiça social conduz a uma crise dos direitos fundamentais. Eis que este, o Estado,atua em limites fáticos e para que o atendimento dos direitos fundamentais prestacionais possa ser alcançado na sua plenitude é necessário que tais limites reais possam ser ampliados ou, na hipótese alteração das destinações necessárias ao seu efetivo cumprimento, sejam estas feitas com rígida observância dos princípios democráticos que nortearam a opção pelo Estado Social. Com poucas exceções o Estado Nacional cumpre os direitos fundamentais de defesa, sendo os eventuais abusos cometidos, corrigidos pelo Poder Judiciário, ao quem compete atuar em defesa da sua guarda, seja em face do interesse individual, seja em nome da sociedade, dispondo esta dos mecanismos necessários. Parece-nos que neste aspecto, em face do tamanho e da complexidade de formação da sociedade brasileira, este princípio fundamental é plenamente satisfeito. Tem-se a convicção de que, tanto mais aprofundemos a experiência democrática - como, por exemplo, fez-se recentemente com a aprovação de Tratado Internacional sobre Direitos Humanos, com equivalência de Emenda Constitucional por aplicação da Emenda 45 -, ou ainda, com a firme decisão de destinar mais recursos para a educação, mais perto estaremos de conseguir efetivar todos aqueles direitos fundamentais que o legislador originário nos legou na moderna Constituição, não sem justiça, chamada de Constituição Cidadã. Constituição de 1988 A carta de 1988 demarca, no âmbito jurídico, o processo de democratização do Estado brasileiro, ao consolidar a ruptura com o regime autoritário militar, instalado em 1964. Esse processo iniciou-se dentro do próprio regime autoritário, devido às dificuldades em solucionar problemas internos e, em decorrência disso, as forças de oposição da sociedade civil se beneficiaram do processo de abertura, fortalecendo-se mediante formas de organização, mobilização e articulação, que permitiram importantes conquistas sociais e políticas. A Constituição de 1988 difere das constituições anteriores. Compreende nove títulos, que cuidam, dentre eles (1) dos princípios fundamentais; (2) dos direitos e garantias fundamentais, segundo uma perspectiva moderna e abrangente dos direitos individuais e coletivos, dos direitos sociais dos trabalhadores, da nacionalidade, dos direitos políticos e dos partidos políticos; A Constituição de 1988 e os Direitos Humanos Como afirma Flávia Piovesan, a Carta de 1988 institucionaliza a instauração de um regime político democrático no Brasil, introduzindo indiscutivelmente avanço na consolidação legislativa das garantias e direitos fundamentais e na proteção de setores vulneráveis da sociedade brasileira. A partir dela, os direitos humanos ganham relevo extraordinário, considerando-se a Carta de 1988 como o documento mais abrangente sobre os direitos humanos, jamais adotado no Brasil. Tamanha a vontade constitucional de priorizar os direitos e as garantias fundamentais que a Constituição, em seu artigo 60, parágrafo 4o, os declara cláusulas pétreas, compondo, assim, o seu núcleo intocável. Os direitos sociais, nesta Constituição, estão inseridos no título dedicado aos direitos e garantias, diferentemente do que ocorria nas Cartas anteriores, em que estes encontravam-se dispersos no âmbito da ordem econômica e social. Pode-se dizer que a Constituição atual, no capítulo dos direitos e garantias individuais avançou bastante, incorporando diversos anseios das sociedades. Tratemos de algumas inovações trazidas pela Carta de 1988: - O artigo 5o, inciso XIII aponta o racismo como crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão nos termos da lei. Isso foi uma verdadeira vitória na tentativa de amenizar a triste realidade social brasileira, repleta de casos discriminatórios. - Ainda no artigo 5o, o inciso X refere-se à proteção à vida privada, à intimidade, à honra e à imagem das pessoas. Trata-se de uma conquista e de uma inovação. Na vida moderna, com o aumento da atividade dos meios de comunicação, é fundamental que a intimidade dos indivíduos seja amparada por lei. - O inciso III do artigo 5o prioriza que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante. A tortura, como diz José Afonso da Silva, não é só um crime contra o direito à vida, mas sim, uma crueldade que atinge todas suas dimensões, e a humanidade como um todo. - Outra inovação relevante na atual Constituição é tratada no artigo 5o, inciso XXIII, que dispõe que a propriedade atenderá a sua função social. Este dispositivo teve grande importância, ao permitir que maior quantidade de pessoas tenha acesso a terra, já que número maior de imóveis estará sujeito a desapropriação para fins de reforma agrária. - Vê-se, nesta sucinta análise, que a filosofia dos Direitos Humanos está bastante presente na Constituição adotada por nosso país. Todas as Constituições brasileiras apresentaram Declarações de Direitos. As duas primeiras contentaram-se com as liberdades públicas, objetivando limitações ao Poder. As demais, a partir de 1934, acrescentavam a estas, na Ordem Econômica, os direitos sociais. A atual já prevê ao menos um dos direitos de solidariedade. Pelo exposto, pode-se notar que houve, no Brasil, a progressiva conscientização social no sentido a importância da incorporação dos direitos humanos nas diversas Constituições nacionais. Essa incorporação deu-se de maneira crescente, de modo a atender cada vez mais os anseios da população, que exigia uma maior garantia para a efetivação de seus direitos. Passou-se a crer que esta seria a única forma para que houvesse, realmente, a implementação dos direitos humanos a todos os indivíduos, e estes pudessem exercer de fato sua cidadania. INTERAGINDO CONHECIMENTO 1- Identifique os direitos fundamentais que a Nossa Constituição consagrou ao evoluir do Estado de Direito de matriz liberal burguesa para o Estado de Direito Social. 2- Reconheça nos vídeos abaixo Direitos Humanos violados, tendo como referência os Direitos Fundamentais inscritos na Constituição de 1988. Desigualdade social - http://www.youtube.com/watch?v=Uhpz2ZR5JM4&feature=related Ética e indiferença - http://www.youtube.com/watch?v=jL_OR0OaGnA&feature=related http://www.youtube.com/watch?v=Uhpz2ZR5JM4&feature=related http://www.youtube.com/watch?v=jL_OR0OaGnA&feature=related UNIDADE 3 - EXCLUSÃO SOCIAL: APLICABILIDADE E IMPLICAÇÕES PARA A INTERVENÇÃO PRÁTICA CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos: Abordar as relações entre os significados da noção de exclusão social e suas implicações para a intervenção prática. A exclusão social tornou-se tema e noção frequentes nas pesquisas das ciências humanas e nas análises e propostas de governos, partidos políticos, organizações não-governamentais e outros agentes. Em alguns casos, o termo indica ruptura de laços sociais; em outros, refere-se a uma forma desvantajosa de inserção na sociedade capitalista, ou ainda à impossibilidade de acesso a bens materiais e simbólicos. A cada significado da exclusão social subjaz uma determinada maneira de entender a sociedade. Além disso, cada significado implica a construção de uma determinada via de encaminhamento de possíveis soluções para o problema. As situações abrangidas pelo termo são múltiplas e distintas: moradores de favelas, trabalhadores sem-terra, desempregados mesmo que oriundos da classe média, idosos, toxicômanos, mendigos e outros são considerados como excluídos, para interlocutores diferentes. O tema ganha complexidade teórica na medida em que não é apenas uma nova forma de se referir à velha pobreza, mas sugere mudanças no fenômeno da pobreza urbana e está ligado, em vários autores, à discussão sobre a crise de um certo modelo de sociedade – que pode ser a sociedade salarial ou mesmo a sociedade centrada no trabalho. Adiscussão é interessante não apenas para os pesquisadores, pela teoria em si. Interessa também para o conjunto da sociedade, principalmente porque a teoria e a prática influenciam-se mutuamente. Antes de se difundir no Brasil, a noção de exclusão social formou-se e ganhou notoriedade na França. Seus primeiros usos, por Pierre Massí (no ensaio “Os dividendos do progresso”) e J. Klanfler (no livro Exclusão social: estudo da marginalidade nas sociedades ocidentais), na década de 1960, remetiam à ideia da sobrevivência de uma população à margem do progresso econômico e da partilha dos benefícios da sociedade industrial (Paugam, 1996). Mas o marco inicial da expressão “exclusão social” é comumente atribuído a René Lenoir, pelo livro Os excluídos: um francês sobre dez. Entretanto, neste livro, o termo exclusão social não era central e aparecia poucas vezes ao longo do texto. Esta obra trazia, porém, uma novidade importante: não se referia mais a um fenômeno residual e pouco influente sobre o conjunto da sociedade, como nos usos anteriores, mas a um problema que se propagava num ritmo rápido, atingindo cada vez mais pessoas. Exclusão era sinônimo de inadaptação social, que atingia os doentes mentais, toxicômanos, alcoólatras e outros grupos vulneráveis como os migrantes muçulmanos cuja integração era precária (Paugam, 1996). O tratamento da questão começa a mudar na década de 70, junto com o avanço do desemprego nos países centrais. Ganha destaque a noção de uma “nova pobreza”, que atinge setores anteriormente adaptados, mas que se tornam vítimas de uma conjuntura recessiva. Nesta mesma época, também frente a uma explosão do desemprego, a noção de exclusão social adquire destaque e novos contornos no Brasil. É verdade que o tema da desigualdade sempre esteve presente em nosso país. Mas entre as décadas de 50 e 70, a noção predominante para se referir ao fenômeno da pobreza, no Brasil como em outros países da América Latina, era a marginalidade. Esta noção difundiu-se através de Gunnar Myrdal, que a usava para caracterizar uma camada populacional miserável e economicamente supérflua. Na década de 70, underclass tornou-se sinônimo de pobreza persistente (Jenks, 1993) e associou-se à ideia de uma “cultura da pobreza”, marcada pela indolência, imprevidência e imoralidade (segundo os padrões de valores da burguesia norte- americana), compreendendo usuais manifestações de alcoolismo, toxicomania, maternidade dissociada do casamento, desemprego e dependência de políticas sociais. Esta ideia deu suporte à divisão dos pobres em dois subgrupos: de um lado, aqueles que mereceriam ajuda e, de outro, os indivíduos e famílias cuja pobreza era atribuída ao seu próprio comportamento (Jenks, 1993). Tem-se aqui a ênfase da orientação culturalista da marginalidade. As demais orientações teóricas sobre a marginalidade caracterizavam-na como realidade estrutural ligada às contradições do modo de produção capitalista (Fassin, 1996). Assim, a marginalidade é definida em negativo em relação aos valores dominantes, ou seja, como carência em relação à inserção no mercado de trabalho, à proteção social, à habitação, à cidadania etc. (Fassin, 1996). Pereira (1984) mostra que a maior parte das definições de marginalidade aponta para a falta de integração a alguma dimensão da vida social. Sua visão, porém, é de que a marginalidade é uma forma específica de incorporação social, compreendendo as formas mais precárias de inserção. Seu indicador empírico nuclear é a renda-trabalho mínima, expressando as baixas oportunidades de trabalho (assalariado ou não). Os indicadores secundários estão relacionados ao consumo: baixas condições de moradia, higiene, alimentação, acesso aos serviços de saúde, escolarização etc. Em Paoli (1974), a marginalidade revela um tipo de exploração da força de trabalho requerida pelo capital nas economias dependentes. A situação marginal é explicada pelos níveis de participação econômica e cultural, sendo o marginal “um tipo humano cujo papel é de ‘sobra’ em relação às estruturas fundamentais da sociedade em que se insere – no caso, as formações capitalistas periféricas” (p.145). Em ambas as formulações, percebe-se uma relação de funcionalidade dos grupos marginais em relação ao capitalismo. Também Kowarick (1977) explicita esta ideia, ao defender que os “segmentos marginais das sociedades dependentes” desempenham papel de exército industrial de reserva. Além disso, vemos em Paoli, a construção da noção de marginalidade com referência ao trabalho, principalmente, e ao consumo, de modo derivado. Esta forma de enfocar o problema não se perde completamente na década de 90, quando a noção de marginalidade é deixada de lado pela maioria dos autores (o que, aliás, já vinha acontecendo desde a década de 80), desta vez em favor da expressão exclusão social. Os primeiros usos da exclusão social como noção são atribuídos por Nascimento (1994b) a Hélio Jaguaribe, em livro da segunda metade década de 80 (Brasil: reforma ou caos). Neste livro, exclusão social identifica-se com pobreza, com origens nas raízes coloniais da sociedade brasileira e acentuada pela crise econômica do início da década de 80. Mas a noção é mais generalizadamente apropriada pelas ciências sociais na década de 90, em muitos casos com novos significados. Neste momento, torna-se frequente ver também o exército industrial de reserva, tal como concebido por Marx (1985), que consiste em uma “população trabalhadora excedente”, “produto necessário da acumulação ou do desenvolvimento da riqueza com base no capitalismo” e que se constitui em “alavanca da acumulação capitalista, até uma condição de existência do modo de produção capitalista” (p.191), oferecendo força de trabalho ao capital quando necessário e, pela concorrência, forçando os trabalhadores empregados a sujeitarem-se às exigências do capital. BUSCANDO CONHECIMENTO A frequência com que o termo exclusão social aparece e as diversidades de situações às quais ele se refere frequentemente tornam difícil saber exatamente o que ele pretende significar em cada contexto. Os próprios autores que refletem sobre o tema concordam que o termo assume na maior parte dos casos contornos vagos e é inespecífico (Demo, 1998; Escorel, 1999; Véras, 2001). Quando feita de modo refletido, a sua utilização sempre exige um complemento –exclusão em relação a quê? Ao mundo do trabalho? Às instituições escolares? Ao acesso à tecnologia? – ou a explicitação de uma definição como conceito. Entre os autores que elaboraram o conceito de exclusão social no Brasil, agrupamos três grandes conjuntos de significados, combináveis entre si: a) ruptura de laços sociais; b) inserção precária no mundo do trabalho e/ou do consumo; c) não realização da cidadania. O primeiro grupo sugere uma abordagem que vai além da explicação da desigualdade das décadas anteriores: trata do problema como um fenômeno novo em seu significado, relacionado à ruptura de laços sociais e fator de uma crise nos fundamentos da sociedade, já presente ou em vias de acontecer. A exclusão social é vista como um processo de ruptura sucessiva de laços sociais. Exclusão social seria, portanto, “um processo porque fala de um movimento que exclui, de trajetórias ao longo de um eixo inserção/exclusão, e que é potencialmente excludente (vetores de exclusão ou vulnerabilidades). Mas é, ao mesmo tempo, um estado, a condição de exclusão, o resultado objetivo de um movimento” (Escorel, 1999 O segundo grupo aparece em parte como uma reação ao primeiro, reaproximando-se em vários pontos da noção de marginalidade. O terceiro, mais frequente, aborda uma outra perspectiva, relativa à cidadania, que pode estar ligada a qualquer uma das anteriores ou a nenhuma delas. Nesse sentido, observa-se uma trajetóriade rupturas parciais, que caracterizam situações de precariedade e vulnerabilidade podendo chegar por fim à ruptura total. A ideia de precariedade é geralmente apresentada como autoevidente, sem uma definição precisa, significando a ausência de condições consideradas pela sociedade como minimamente necessárias ao bem-estar, que se rompem são principalmente os que vinculam o indivíduo ao trabalho e às relações comunitárias e familiares. Já a vulnerabilidade se refere ao déficit de capacidade dos indivíduos, domicílios, grupos ou comunidades satisfazerem suas necessidades básicas (Katzman, 2000). Os autores franceses assim como o brasileiro Nascimento (1994a), dão mais ênfase às desvinculações com o trabalho, multiplicadas pelo crescente desemprego que marca as últimas décadas do século XX. No Brasil, onde, as condições de cidadania vêm sendo construídas de modo lento e precário, já antes da década de 80 o emprego formal não se estendia à grande maioria da população e a família ocupou sempre papel central na definição do lugar dos indivíduos na sociedade, de forma que a desvinculação sócio-familiar ganha premência na garantia de proteção aos indivíduos. Assim, sua desagregação torna-se o fator central no processo de exclusão social. Independente da ênfase que se dê a uma ou outra dimensão da exclusão social, o resultado é o mesmo: do ponto de vista do indivíduo excluído: solidão, isolamento e estigma; do ponto de vista da sociedade, ameaça à coesão social (Buarque, 1999; Castel, 1998; Escorel, 1999, Nascimento, 1994a, 1994b; Paugam, 1996; Schnapper, 1996). A desvinculação dos indivíduos excluídos traduz-se num não pertencimento a grupos sociais e na não participação nas dimensões sociais da vida humana que Escorel (1999) sintetiza bem, ao definir a condição de exclusão “como a daquele que está ‘sem lugar no mundo’, totalmente desvinculado ou com vínculos tão frágeis e efêmeros que não constituem uma unidade social de pertencimento” (p.18). Já sob a abordagem que dá ênfase à sociedade, as ideias sobre a ruptura do tecido social envolvem uma retomada contemporânea das teorias de Durkheim sobre a integração social. A exclusão social seria como sugere Nascimento (1994b), um efeito secundário da ruptura da solidariedade orgânica, na medida em que cada vez mais indivíduos deixam de ser elos necessários de uma interdependência social conferida pela divisão do trabalho. Aos grupos excluídos, molda-se um conjunto de características interligadas: eles se tornam desnecessários do ponto de vista do funcionamento da economia capitalista (Buarque, 1993,1994; Nascimento, 1994a, Wanderley, 2001), objeto de desprezo, “não-forças políticas”. Castel prefere falar em desafiliação. Este termo, em vez de dar a falsa ideia de que há uma possibilidade de estar fora da sociedade, indica desligamentos, sem negar que os indivíduos que participam desse processo continuem a depender do centro, que se torna ultimamente mais importante para a sociedade do que em qualquer época anterior e, como potencial fonte de ameaças de violência contra os incluídos, objetos de uma discriminação cada vez mais acentuada (Buarque, 1993; Nascimento, 1994a). Tanto na formulação de Buarque como nas dos outros autores citados, os indivíduos excluídos passam a ser vistos pelos demais como não-semelhantes, ou seja, não é reconhecida neles qualquer fração de humanidade que faça com que os incluídos (ou grande parte deles) se reconheçam nos excluídos. Em função dessa condição, estes se tornam vítimas de ameaças de eliminação física, como de fato ocorre em acontecimentos cotidianos como ateamento de fogo a mendigos, chacinas de presos e meninos de rua, extermínios de vários grupos pobres etc. (Buarque, 1993, Nascimento, 1994a, Forrester, 1997). Quando buscam as razões para que se tenha chegado a tal situação – ou à ameaça premente de tal situação – vários autores encontram uma crise da organização atual da sociedade, que iria desde uma mudança dos valores (Zaluar, 1997) até uma mudança dos próprios fundamentos dessa organização (Castel,1998; Paugam, 1996; Rosanvallon, 1998). Assim, Zaluar diz que a situação atual de anomia difusa, na qual deve ser entendida a exclusão social, é provocada pelas mudanças nas relações entre os sexos, nas formas de organização familiar e comunitária (com ênfase à ruptura dos laços vicinais) e nos valores, que antes tinham no trabalho sua principal referência e agora são sobretudo valores de consumo. Martins, ao criticar a exclusão social como conceito mas admiti-la como fenômeno equivalente à pobreza, também enfatiza o deslocamento do eixo de funcionamento da sociedade da produção para o mercado (isto é, para a circulação de mercadoria e serviços). Rosanvallon (1998) refere a “nova questão social” - que abarca mas ultrapassa a exclusão social - a disfunções da sociedade industrial, quando antigos mecanismos de solidariedade se tornam ineficazes. Esta questão se traduz pela inadaptação dos antigos métodos de gestão social, explicitada na crise do Estado Providência. Tal crise abrange uma dimensão financeira (desproporção entre despesas e receitas), ideológica (dúvidas quanto à eficácia do Estado empresário para conduzir políticas sociais) e filosófica (pela “desagregação dos princípios de organização da solidariedade e o fracasso da concepção tradicional dos direitos sociais”) (Rosanvallon, 1998, 25). Forrester (1997) não fala de ruptura de laços de sociabilidade exteriores ao mundo do trabalho, mas fala do fim do emprego como o fator fundamental nas transformações pelas quais as sociedades modernas passam. Argumenta que a financeirização da economia revela que a reprodução do capital deixou de exigir grande quantidade de trabalho e, dessa forma, e desemprego tornou-se estrutural, caracterizando o fim da sociedade organizada sobre o trabalho. O que o desemprego criaria, na verdade, não seriam excluídos – uma vez que a ideia de exclusão se refere ao padrão não mais vigente – mas uma maioria de incluídos num novo padrão. Não se trataria, portanto, de uma crise, mas de uma mutação rumo a uma nova civilização. A exclusão como inserção precária tem em sua abordagem a exclusão social não como sintoma ou elemento de crise de um dado tipo de sociedade, mas como decorrência do funcionamento desta organização social. Entre os autores que compartilham esta perspectiva, Sawaia (2001) deixa claro que a exclusão é parte de um processo de contradição, uma vez que ela nega a inclusão, ao mesmo tempo em que faz parte dela. “Em síntese, a exclusão é um processo complexo e multifacetado, uma configuração de dimensões materiais, políticas, relacionais e subjetivas. É processo sutil e dialético, pois só existe em relação à inclusão como parte constitutiva dela. Não é uma coisa ou um estado, é um processo que envolve o homem por inteiro e suas relações com os outros. Não tem uma única forma e nem é uma falha do sistema, devendo ser combatida como algo que perturba a ordem social, ao contrário, ele é produto do funcionamento do sistema” (Sawaia, 2001, 9) Não se trata, portanto, de ruptura de laços sociais. Trata-se simplesmente de um determinado tipo de ligações. Também não representa estado de anomia ou qualquer tipo de crise de fundamentos da sociedade, mas parte do seu funcionamento. Da mesma forma, Santos (2001) enxerga na exclusão uma consequência das contradições da acumulação capitalista. Nesse sentido, a exclusão resulta da dinâmica da atual fase do capitalismo, sintetizada no conceito de globalização. A intensa especulação, o livre comércio imposto aos países periféricos (acompanhado de protecionismo nos países centrais), os empréstimos estrangeiros, com as consequentes dívidas externas e imposição de condições aos países endividados, conduzemao enfraquecimento da soberania dos países periféricos, com reflexos no seu desenvolvimento econômico e humano. Esta situação, agravada pelas políticas neoliberais que contribuem para o aumento das taxas de desemprego e pelo aumento da exploração da força de trabalho, significa para as classes subalternas a acentuação da exclusão da riqueza social, com associada deterioração das condições de vida, e afastamento dos centros de decisão política. A ideia de exclusão como forma subordinada de integração também está presente em autores que criticam a emergência da exclusão social como conceito, mas usam o termo como sinônimo de pobreza em seu sentido lato (ou seja, em relação às riquezas materiais mas também à participação política) (Demo, 1998) ou para se referir à nova forma de desigualdade social (Martins, 1997). Ambos os autores apresentam argumentos semelhantes contra o conceito de exclusão. Demo mostra que se os excluídos ameaçam a ordem social não são de fato excluídos, pois fazem parte do sistema. Mesmo quando desvinculados do mercado de trabalho (formal ou informal), os grupos excluídos são, para Demo, funcionais ao sistema capitalista. Na mesma linha, Martins sustenta a tese de que não existe exclusão, mas contradição, pois “no interior do que parece forte e dominante” cria-se “o nicho de ação eficaz dos frágeis” (p.14) e as reações fazem parte do sistema econômico e de poder, mesmo que os negue. Quando tocam nesse ponto, as teorias da exclusão social aproximam-se daquelas teorias sobre a marginalidade, tão em voga no Brasil nas décadas de 60 e 70 para designar uma parcela da população que não se integrava aos setores modernos da economia ou se integrava de maneira subordinada ao sistema capitalista (Pereira, 1982; Paoli, 1974). Aproximam-se igualmente da ideia de um papel de exército de reserva, aparece como formado por vagabundos, delinquentes, prostitutas e outros elementos que compõem uma “massa indefinida e desintegrada”. Martins caminha na direção da visão da contradição ao falar da exclusão como uma “inclusão estritamente em termos daquilo que é mais, conveniente e necessário a mais eficiente (e barata) reprodução do capital. E também ao funcionamento da ordem política, em favor daqueles que dominam” (p.20). A exclusão seria uma etapa entre uma forma e outra de exclusão: “a sociedade capitalista desenraiza, exclui, para incluir de outro modo, com as suas próprias regras, segundo a sua própria lógica” (p.32). A diferença entre o que acontecia em décadas atrás e o que ocorre nos dias atuais seria que antes as pessoas ficavam excluídas por pouco tempo, ao passo que agora, esse período deixou de ser transitório e se tornou um modo de vida, na medida em que há amplas parcelas da população (crianças prostituídas, moradores de favelas, cortiços, ocupações etc.) com poucas chances de reinserção. Desta forma, talvez a colocação inicial de Martins sobre a exclusão como forma específica de integração perca-se na própria argumentação posterior do autor. Sobre isto, fica a questão: ainda hoje, quando o desemprego total aumenta, como ele mesmo assinala, sustenta-se sua tese da exclusão como forma específica de integração? A ideia de cidadania que se opõe à exclusão social é, em termos gerais, a formulação clássica de T.H. Marshall (1967). Sua concepção compreende os direitos que asseguram ao indivíduo a garantia de um mínimo de participação na vida social e nas benesses, materiais ou não, criadas pela sociedade. Isto inclui três elementos: civil, político e social. “O elemento civil [da cidadania] é composto dos direitos necessários à liberdade individual – liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade e de concluir contratos válidos e os direitos à justiça. (...) Por elemento político, se deve entender o direito de participar no exercício do poder político, como um membro de um organismo investido da autoridade política ou como um eleitor dos membros de tal organismo. (...) O elemento social se refere a tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade” (Marshall, 1967, 64). Por outro lado, também quando a abordagem da exclusão social centra-se nas rupturas de laços sociais, a sua oposição à cidadania pode estar presente. Escorel (1999) sugere que o problema da exclusão social possa ser lido como não- cidadania. Sposati aplica seu índice de exclusão/inclusão social à cidade de São Paulo, diferenciando através dele as suas regiões. Trata-se de “um fenômeno de ampliação de parcelas significativas da população em situação de vulnerabilidade social, e também as formas de manifestação de exclusão, abarcando as esferas cultural, econômica e política” (p.49). Se a exclusão significa, como para Nascimento (1994b), “a negação do direito aos direitos” – já que os indivíduos excluídos passam a ser tratados como não-semelhantes –, então fica claro que eles estão, nesta concepção, ameaçados de expulsão da cidadania. Também quando a concepção de exclusão é tratada, numa outra perspectiva, como inserção precária na vida econômica e social, a ideia de não realização da cidadania é evidente. Afinal, pode-se dizer que a não- participação num mínimo de bem-estar e segurança material e nas decisões políticas (verdadeira e não apenas formalmente), como Demo (1998) situa a exclusão, é exatamente a não-realização da concepção marshalliana de cidadania em seus aspectos social e político. Entretanto, o fenômeno da não realização da cidadania tem sido há várias décadas denunciado no Brasil, quando se anuncia a existência de “não-cidadãos”, “sub-cidadãos” e “cidadãos de segunda classe” (Carvalho, 2002). Aparece, na maior parte dos casos, como uma decorrência lógica de outras características mais essenciais da exclusão social e não como um de seus fundamentos. ESTUDANDO E REFLETINDO Análises e proposições no debate sobre a exclusão social: uma relação íntima Como lembra Fassin (1996), não é por acaso que sociedades de períodos e contextos diferentes usaram noções e/ou conceitos distintos para se referir à pobreza urbana. Essas diferenças na maneira de conceber os fenômenos traduzem realidades distintas, bem como tradições políticas e intelectuais diferentes. Tomemos o exemplo da discussão da marginalidade, que em seu auge na América Latina se inseria num contexto de debates sobre as formações capitalistas periféricas. Como sugere Fassin, a discussão sobre os pobres desses países situava-se segundo parâmetros de centro e periferia, assim com se fazia com os países, em função do entendimento de que todos participavam de um processo geral do capitalismo, com relações de interdependência. Nota-se assim que a escolha dos conceitos e noções e a forma como eles são trabalhados também implica consequências para as formulações de cenários e proposições que se traçam a partir dessas análises. É o que Castel (1998) expõe, ao falar da aparente crise da sociedade salarial. Diante do fenômeno visível de aumento do desemprego, as possibilidades de reação dependem da interpretação que se dê ao problema. Caso acreditemos tratar-se apenas de um momento difícil, a ser provavelmente seguido por uma retomada do padrão anterior, basta encontrar alguns expedientes para sobreviver da melhor forma possível a esta fase difícil. Mas se, no outro extremo, considerarmos que presenciamos uma mutação completa da relação dos homens com o trabalho e, através disso, das relações sociais em geral, então as alternativas recaem sobre a invenção de uma maneira diferente de viver nesse mundo ou, na pior hipótese, sobre a resignação com a catástrofe. O livro de Forrester (1999) éum exemplo de como a análise sobre o problema sugere seu encaminhamento. Ao ver a situação atual como de mutação rumo a um novo tipo de sociedade, não mais passível de ser organizada sobre o trabalho, a autora sugere que os antigos critérios para tratar o problema devem ser abandonados, e se pergunta: por que não buscar outras soluções para a sobrevivência e para a vida que não estejam ligadas ao emprego? Provavelmente, propostas como esta, de mudanças radicais nos modos de vida, são as mais raras. Um primeiro olhar sobre os programas de governo das coligações de partidos que concorreram na última eleição presidencial da década de 90 sugere que a maioria deles associa a exclusão social à pobreza e ao não cumprimento dos direitos formalmente existentes e, a partir daí, aponta para a resolução do problema da exclusão social pela efetivação daqueles direitos, pela ajuda social às famílias mais pobres, pela educação e qualificação e pela criação de alguns postos de trabalho. De modo semelhante, um levantamento preliminar das ONGs que atuam no combate e prevenção à exclusão social permite a hipótese de que sua concepção sobre a mesma está majoritariamente vinculada à ideia de não efetivação da cidadania, sendo suas propostas de atuação voltadas para a abertura de possibilidades de exercício dos direitos de cidadania. Por isto e pela análise das tendências históricas brasileiras, temos motivos para supor que exista, no Brasil, uma tendência geral a tratar a exclusão social como problema a ser resolvido pela capacitação dos indivíduos para o exercício de uma cidadania, que se supõe formada a priori, sem pensar em transformações estruturais macrossociais. Se de fato a questão for vista desse modo, as propostas de inclusão social se fariam “dos incluídos para os excluídos”, como se a inclusão se fizesse a despeito – ou mesmo apesar – dos excluídos. A hipótese se sustenta por vários motivos: primeiramente, porque a questão da cidadania, em seu aspecto referente aos direitos sociais, tem sido tratada historicamente no Brasil como algo concedido aos trabalhadores pelo Estado, e não conquistado (Telles, 1992, 1999; Carvalho, 2002). Sendo a exclusão social frequentemente tratada como a face oposta da cidadania plena, o problema da exclusão seria resolvido pela concessão de direitos reais (ou seja, concessão não apenas formal de direitos) para os setores excluídos. A segunda razão leva em consideração que até mesmo a maneira de definir um conceito pode implicar soluções que a ele se apresentem. Assim, por exemplo, pensemos sobre o conceito de vulnerabilidade, tão utilizado para falar do processo pelo qual se chega à exclusão. Este conceito aparece, em geral, associado à ideia de incapacidade de certos indivíduos, grupos ou comunidades responderem a certas situações de risco. Isto nos permite lançar duas hipóteses sobre as propostas de solução para os problemas respaldados por este conceito. Primeiramente, que se culpam as próprias vítimas desses processos pelos seus problemas, podendo-se cair nas mesmas armadilhas a que levou o conceito de underclass, ao permitir a distinção entre os que deveriam ser, de alguma forma socorridos e os que mereciam sua condição de pobreza. A última evidência que aponta para aquela hipótese refere-se à presença do pensamento neoliberal no Brasil, difundido pela grande imprensa e trazido para as políticas públicas na década de 90. Ele defende que a única igualdade à qual todos os indivíduos devem ter direito é a igualdade de oportunidades, dependendo a sua ascensão, a partir daí de sua própria capacidade e esforço (Friedman, 1980). Neste raciocínio, não seriam os próprios excluídos os responsáveis pela sua situação? Em vista da grande difusão deste tipo de pensamento, urge pensar se os partidos, governos e ONGs que tratam a questão da exclusão social não cedem a essas ideias. Aliás, quando se pensa em políticas sociais para os excluídos, não se está em busca da focalização que os princípios neoliberais recomendam? Katzman (2000), por exemplo, ilustra bem este conceito, ao definir vulnerabilidade como: “a incapacidade de uma pessoa ou de um domicílio para aproveitar as oportunidades disponíveis em distintos âmbitos socioeconômicos, para melhorar sua situação de bem-estar ou impedir sua deterioração”. Chambers (1989) a define como exposição a riscos associada à incapacidade de respostas. Moser (1998) acrescenta a esses dois elementos a inabilidade para adaptar-se ativamente. Chamando a atenção para esta questão, procuramos enfatizar a necessidade de pensar as propostas de soluções dos diversos agentes sociais em relação com as próprias análises sobre a questão, incluindo os conceitos nela utilizados. Um último exemplo, oferecido por Kowarick (2003) ao falar do debate americano sobre a underclass, ilustra esta íntima relação entre a formulação de um problema, as propostas de resolução do mesmo e a sua aplicação. Já vimos que esta noção foi associada por economistas e sociólogos norte- americanos, nas décadas de 60 e 70, a uma cultura da pobreza, identificada com indolência, imprevidência e imoralidade dos que dela participam. No final da década de 70 e início dos anos 80, o termo se popularizou, graças a reportagens em revistas de grande circulação (Nesweek, Fortune, Readers Digest), que associavam a pobreza à negligência, criminalidade e nocividade à sociedade. Tal empreendimento da mídia teve como resultado, ainda segundo Kowaricki, o convencimento de amplas parcelas de eleitores sobre a necessidade de retração das políticas sociais, levada a cabo pelos governos republicanos de Ronald Reagan e George Bush (pai). É interessante lembrar que tal uso da noção de underclass levou um de seus fundadores, W. J. Wilson (When the work desappears), a rever seu uso em suas obras e a recomendar maior crítica em sua utilização em pesquisas científicas (Kowarick, 2003). Este é um ótimo exemplo das influências mútuas entre o debate acadêmico e as relações sociais em geral – permeadas, aliás, pelas opções políticas. Vimos que não existe uma única teoria da exclusão social, mas sim significados, teses e argumentos diversos ligados a este tema. Não apenas as concepções são diversas, como chegam a ser contraditórias. Desta divergência, podemos concluir que a noção é objeto de disputa teórica e também política, na medida em que a forma de ver o fenômeno implica certas maneiras de tratá-lo quando se pensa em medidas práticas de intervenção. Desta forma, um olhar da exclusão social como um fenômeno que expressa rupturas no âmbito social sugere a construção de novos paradigmas teóricos e de uma forma de vida nunca antes realizada. Já a exclusão social como forma precária de inserção pode suscitar tanto propostas revolucionárias de transformação social como propostas reformistas e mesmo superficiais. Por fim, a exclusão social como mera negação de direitos pode levar a propostas de conquista de direitos previamente definidos. Todavia, numa sociedade marcada por raízes clientelistas, este caminho corre o risco de incidir em concessão de direitos – uma contradição de termos que nunca pode fazer parte de uma verdadeira construção da cidadania. Daí a importância de pensar a teoria em profunda relação com a prática, sem perder de vista as influências mútuas entre as duas esferas. INTERAGINDO CONHECIMENTO Das três acepções para a noção de Exclusão Social estudadas, na unidade em questão, discorra sobre a qual você mais se identifica, enquanto análise dos fenômenos a que ela se refere (utilize o texto da unidade como referência e as imagens abaixo ilustrativas) http://2.bp.blogspot.com/_4A9MCMbaw_0/THbTe-yCLtI/AAAAAAAAAd4/uzHPd1TTnMY/s1600/exclus%C3%A3o.jpg http://1.bp.blogspot.com/_oG9WOEk_Jco/S6OpaKrLNJI/AAAAAAAAIRY/8FY0Ji6GrWQ/s1600-h/miseria.jpg
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