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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PETRÓPOLIS CENTRO DE TEOLOGIA E HUMANIDADES CURSO DE FILOSOFIA A REGRA DE OURO EM SANTO AGOSTINHO Marcos Vinícios Chiaretti Guedes Petrópolis 2019 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PETRÓPOLIS CENTRO DE TEOLOGIA E HUMANIDADES CURSO DE FILOSOFIA A REGRA DE OURO EM SANTO AGOSTINHO Monografia apresentada ao Centro de Teologia e Humanidades da Universidade Católica de Petrópolis como requisito parcial para a conclusão do curso de Filosofia. Marcos Vinícios Chiaretti Guedes Professor orientador Dr. Sergio de Souza Salles Petrópolis 2019 Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. CIP – Catalogação na Publicação Universidade Católica de Petrópolis (UCP) Bibliotecária responsável: Marlena H. Pereira – CRB7: 5075 G924r Guedes, Marcos Vinícios Chiaretti. A regra de Ouro em Santo Agostinho / Marcos Vinícios Chiaretti Guedes. – 2019. 49 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Filosofia) -Universidade Católica de Petrópolis, 2019. Orientação: Prof. Sérgio de Souza Salles. 1.História da filosofia. 2. Ética. 3. Antropologia. I. Salles, Sérgio de Souza (Orient.). II. Título. CDD: 170 Agradeço a Deus, nosso Senhor, por ter concedido a mim a graça de executar este trabalho. Aos professores, especialmente ao professor Sérgio de Souza Salles, meu orientador, e Carlos Frederico G. C. da Silveira, coordenador do curso de Filosofia, grandes responsáveis por meu crescimento intelectual e humano. A todos os meus familiares especialmente minha mãe e meu pai, que além do apoio material contribuíram para a educação que recebi e me proporcionou chegar aonde estou. Por fim aos meus amigos do curso de Filosofia, com os quais muitas vezes sorri e chorei, mas que comigo partilharam além de um grande amor a Filosofia uma amizade que me foi necessária para concluir meu curso. “Eis a regra da dileção: querer também para o outro o bem que se quer para si. E não querer para ele, o mal que não se quer para si mesmo. E isso serve para todos os homens [...]” (Santo Agostinho) RESUMO Ao se tratar da questão do amor em Santo Agostinho há sempre aspectos ulteriores que podem ser destacados, como da ordenação do amor, a regra de ouro. Agostinho entende o amor em geral como inclinação da vontade ao bem. Para o Santo, o amor será bom ou mal dependendo do que se ama. Deve se amar a si, amando a Deus e ao próximo, tal ordenação do amor é a chave de compreensão da ética do autor, embasada na regra de ouro. A importância do estudo realizado é enorme, pois Agostinho foi um dos filósofos mais expressivos da sua época e influenciou a história da Filosofia até os dias atuais, o tema do amor e da ética no filósofo são de suma importância para entender seu pensamento e seus escritos, que estão repletos da questão do amor principalmente através da regra de ouro que aparece constantemente neles e apresenta a ordenação do amor através da primazia da caridade. Diante disso, esse trabalhou busca através de uma pesquisa interpretativa e bibliográfica do autor e de alguns de seus comentadores traçar aquela que seria a doutrina da regra de ouro, ou seja, do amor e da ética para Santo Agostinho. São ricos os questionamentos que podem ser feitos acerca da doutrina da regra e nesse sentido, buscaram- se reflexões sobre alguns deles ao longo do texto. O trabalho conta com diversas citações do autor e de comentadores, a fim de embasar a argumentação no próprio autor e naqueles que futuramente o interpretaram, mostrando uma metodologia de pesquisa apoiada justamente na leitura e interpretação do que Agostinho escreveu sobre a regra de ouro. Buscou-se dar uma interpretação geral acerca da regra ao longo do texto, não esquecendo que há no autor uma evolução do pensamento acerca da regra que tenta ser abordada no terceiro capítulo do desenvolvimento do texto. Diante disso, verificou-se que, Agostinho entende a regra de ouro como norma moral para a realização de uma ética do amor, que visa agir bem para com o outro amando nele a sua dignidade enquanto pessoa, isso porque se concluiu que o homem possui uma natureza e um paradigma que o põe em posição singular em relação ao resto da natureza, sendo assim, é digno de ser amado pelo amor de caridade que propões a regra de ouro. PALAVRAS-CHAVE: Regra de Ouro. Amor. Ética. RESUMÉ Lorsqu’on traite de la question de l’amour à Saint Augustin, il y a toujours d’autres aspects qui peuvent être soulignés, comme l’ordination de l’amour, la règle de l’or. Augustin comprend l’amour en général comme inclination de volonté au bien. Pour le Saint, l’amour sera bon ou mauvais selon ce que vous aimez. Il faut aimer soi-même, aimer Dieu et le prochain, une telle ordination de l’amour est la clé de la compréhension de l’éthique de l’auteur, basée sur la règle de l’or. L’importance de l’étude est énorme, car Augustin a été l’un des philosophes les plus expressifs de son temps et a influencé l’histoire de la philosophie jusqu’à nos jours, le thème de l’amour et de l’éthique dans le philosophe sont d’une importance primordiale pour comprendre sa pensée et son Les écrits, qui sont des repletes avec la question de l’amour principalement à travers la règle d’or qui apparaît constamment en eux et présente l’ordination de l’amour par la primauté de la charité. En vue de cela, ce travail cherche à travers une étude interprétative et bibliographique de l’auteur et certains de ses commentateurs tracer ce qui serait la doctrine de la règle d’or, à savoir l’amour et l’éthique pour Saint Augustin. Il y a des questions riches qui peuvent être formulées au sujet de la doctrine de la règle et dans ce sens, des réflexions sur certains d’entre eux ont été recherchées tout au long du texte. L’œuvre a plusieurs citations de l’auteur et les commentateurs, afin de soutenir l’argumentation dans l’auteur lui-même et dans ceux qui, à l’avenir l’interpréter, montrant une méthodologie de recherche soutenue précisément dans la lecture et l’interprétation de ce que Augustin A écrit sur la règle d’or. Nous avons cherché à donner une interprétation générale de la règle tout au long du texte, sans oublier qu’il y a une évolution de la pensée dans l’auteur sur la règle qui tente d’être abordée dans le troisième chapitre de l’élaboration du texte. En raison de cela, il a été constaté que, Augustin comprend la règle de l’or comme une norme morale pour la réalisation d’une éthique de l’amour, qui vise à agir bien avec l’autre aimant lui sa dignité en tant que personne, que parce qu’il est conclu que l’homme possède une nature est un paradigme Cela le met dans une position singulière par rapport au reste de la nature, de sorte qu’il est digne d’être aimé par l’amour de la charité qui propose la règle de l’or. Mots-clés: règle d’or. amour. éthique. SUMÁRIO INTRODUÇÃO...............................................................................................................5 2 A REGRA E SUAS FORMULAÇÕES......................................................................112.1 A REGRA DE OURO....................................................................................11 2.2 FORMULAÇÃO POSITIVA.........................................................................15 2.3 FORMULAÇÃO NEGATIVA......................................................................17 3 O CONHECIMENTO DA REGRA DE OURO........................................................20 3.1 A REGRA E A REVELAÇÃO.......................................................................20 3.2 A REGRA E A LEI INSCRITA NO CORAÇÃO DO HOMEM....................23 4 A REGRA DE OURO E A “IMAGO DEI”...............................................................27 4.1 O AMOR À “IMAGO DEI”...........................................................................27 4.2 O AMOR CONTRÁRIO À “IMAGO DEI”...................................................30 4.3 A RESTAURAÇÃO DO AMOR PELA ORDEM DA CARIDADE.............33 5 CONCLUSÃO.............................................................................................................38 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................41 6.1 FONTES PRIMÁRIAS..................................................................................41 6.2 FONTES SECUNDÁRIAS............................................................................42 APÊNDICE – O ITER FILOSÓFICO DE SANTO AGOSTINHO...........................44 5 1 INTRODUÇÃO Santo Agostinho (354-430) foi um filósofo, escritor, bispo e importante teólogo cristão do norte da África, durante a dominação romana. É considerado o mais ilustre Padre da Igreja do Ocidente, pois influenciou toda a vida da Igreja, em matéria de filosofia e de teologia, nos séculos subsequentes até os dias atuais. Suas concepções sobre as relações entre a fé e a razão, entre a Igreja e o Estado, dominaram toda a Idade Média. Conhecido também como Agostinho de Hipona, nasceu em Tagaste, na cidade da Numídia (hoje Argélia), no norte da África, região dominada pelo Império Romano, no dia 13 de novembro de 354. Sua infância e adolescência transcorreram principalmente em sua cidade natal, em um ambiente limitado por um povoado perdido entre montanhas. Seu pai Patrício, era pagão e sua mãe Mônica, uma cristã devota que exerceu grande influência sobre a conversão do filho. Santo Agostinho iniciou seus estudos em Tagaste, em seguida, foi para Madaura, onde iniciou os estudos de retórica. Lia e decorava trechos de poetas e prosadores latinos, entre eles Virgílio e Terêncio, através de sua formação profundamente embasada na língua latina, conheceu Cícero, o qual foi para ele como que um modelo e um ponto de referência, inclusive, foi a partir da leitura de uma de suas obras, intitulada Hortensius, que despertou interesse pela filosofia, “Cícero havia instigado Agostinho a sabedoria” (BROWN, 2005, p. 49). Ainda segundo Brown: O Hortensius possuía uma exortação a educação liberal, como um meio para a reflexão filosófica, e uma breve história do pensamento de Tales, Sócrates, Demócrito, Aristóteles, Teofrasto, Aristão de Chio, Posidônio, Nicómaco de Tiro e ainda expunha a doutrina das virtudes morais, depreciando a riqueza e os prazeres carnais, e propondo uma filosofia como princípio universal da felicidade (BROWN, 2005, p. 49). Estudou música, física, matemática e filosofia. Em 371, transfere-se para Cartago, a maior cidade do Ocidente latino depois de Roma, um grande centro do paganismo, onde se deixou cativar pelo esplendor das cerimônias em honra dos milenares desuses protetores do império. Em 373, nasce Adeodato, filho de seu romance com uma cartaginense. Dedicou- se ao estudo das Escrituras, mas logo ficou desiludido diante do estilo simples da Bíblia. Depois de três anos termina o estudo superior em retórica e eloquência. De volta a sua cidade natal, abre uma escola particular onde ensina gramática e retórica. Em 374 foi para 6 Cartago e mais uma vez dedica-se ao ensino da retórica. Em 383 seguiu para Roma e no ano seguinte é nomeado mestre de eloquência em Milão. A inquietude era um tema permanente em sua vida. O despertar de seu espírito crítico o levou a adotar o maniqueísmo, o maniqueísmo é uma filosofia religiosa sincrética e dualística fundada e propagada por Manes ou Maniqueu, filósofo cristão do século III, que divide o mundo simplesmente entre Bom, ou Deus, e Mau, ou o Diabo. A matéria é intrinsecamente má, e o espírito, intrinsecamente bom. Com a popularização do termo, maniqueísta passou a ser um adjetivo para toda doutrina fundada nos dois princípios opostos do Bem e do Mal, pretendendo seguir a força única da razão. Durante doze anos foi seguidor de Mani, profeta persa fundador do maniqueísmo no qual se misturavam Evangelho, ocultismo e astrologia. Segundo Mani, o bem e o mal constituíam princípios opostos e eternos, presentes em todas as coisas. O homem não era culpado por seus pecados, pois já trazia o mal dentro de si. Insatisfeito com as respostas que o maniqueísmo oferecia, Agostinho resolveu abandonar a doutrina e seu lugar é temporariamente preenchido por um profundo ceticismo. Em 386 procura Ambrósio, o poderoso bispo do Império em busca de uma colocação oficial como professor. Em vez disso, encontra respostas para algumas das suas dúvidas. Passa a assistir os sermões de Ambrósio, inspirados, sobretudo, no Antigo Testamento. Ao conhecer de fato Cristo Agostinho finalmente encontra as respostas que procurava: Nos sarcófagos da época, Cristo é sempre exibido como um mestre, ensinando Sua sabedoria a um séquito de filósofos novatos. Para um homem culto, a essência do cristianismo estava justamente nisso. Cristo, como sabedoria divina, havia criado um monopólio do saber: a patente revelação cristã havia suplantado e substituído as opiniões conflitantes dos filósofos pagãos: “Vede, eis aquilo que todos os filósofos buscaram durante todas a sua vida, mas nenhuma só vez conseguiram capturar, abraçar, reter, com firmeza. [...] Aquele que quiser ser sábio, um homem completo, deixa-o ouvir a voz de Deus (BROWN, 2005, p. 50-51). Finalmente, a influência de Santo Ambrósio foi decisiva para convertê-lo ao Cristianismo. Em 387, Agostinho e Adeodato são batizados. No ano seguinte, retorna definitivamente para Tagaste, onde se dedica à vida monástica, vende a propriedade deixada pelo pai e distribui o dinheiro entre os pobres. Conserva apenas uma pequena porção de terra, onde, ao lado dos amigos Alípio e Ovídio, funda o primeiro mosteiro agostiniano. Em 391, é sagrado sacerdote em Hipona, região provinciana do Império 7 Romano. Em 396 é sagrado bispo auxiliar de Hipona, onde se tornou um dos pilares da teologia católica. Entre 397 e 398, Agostinho se dedica a escrever Confissões, em que narra a juventude e sua conversão, onde revela os caminhos da fé em meio às angústias do mundo. O livro é uma autobiografia que também imprime o seu pensamento filosófico. Cria a noção de espaço interior como campo da verdade essencial do homem verdade e Deus devem ser buscados no interior da alma, e não no mundo. Em 413 começa a obra A Cidade de Deus, escrita para consolar os cristãos após Roma ser saqueada pelos bárbaros visigodos, em 410. Na obra, Santo Agostinho apresenta a defesa do cristianismo e convida seus contemporâneos a compreender o sentido profundo da história. Já não se trata de um reino de Deus que sucede à vida terrena. A cidade de Deus e a dos homens coexistem: a primeira, antes simbolizada por Jerusalém, é agora a comunidade dos cristãos. A cidade dos homens tem poderes políticos, moral, e existências próprias. Segundo ele as duas cidades permanecerão lado a lado até o fim dos tempos, mas depois a divina triunfará, para a eternidade. Deixou uma obra fundamental para a doutrina da igreja católica, que foi registradaem tratados filosóficos, teológicos, comentários, sermões e cartas. Exerceu grande influência em várias áreas do conhecimento. Teve papel importante na fixação da hierarquia na Igreja Católica e fez a síntese entre a filosofia grega e o pensamento cristão. Fixou a ideia da vida interior do homem como o palco essencial da construção da identidade. Santo Agostinho faleceu em Hipona, África, no dia 28 de agosto de 430. Santo Agostinho foi canonizado por aclamação popular, e reconhecido como Doutor da Igreja, em 1292, pelo papa Bonifácio VIII. Tudo isto nos permite conhecer a evolução do pensamento de Agostinho, pois dentre suas influencias está, sua mãe como figura de fé, a leitura de Cícero, que o desperta para a filosofia, sua adesão ao maniqueísmo e pôr fim a influência de Ambrósio, que finalmente o leva a beatitude, o autor produziu imensa obra literária, entre ela além das obras filosóficas, também obras dogmáticas, apologéticas, exegéticas e polêmicas. Ora, do ponto de vista ético [...] para Agostinho, o ser humano tem um telos (fim) para atingir, o qual é uma coisa, uma realidade distinta de um mero signo, pois o signo apenas indica, aponta, significa algo que vai além dele mesmo. Porém, para se atingir o fim almejado, é necessário ter claro que há duas maneiras de se relacionar ou aderir aos seres em geral: o frui e o uti. Isso compreendido, vê-se que há seres que são objeto do uti (uso), servem como meio, enquanto outros são objetos do frui (fruição, gozo), funcionando como 8 o fim. Ora, entender isso e viver de acordo com essa hierarquia é se colocar na ordinata dilectio (ordem do amor), percebendo que a caritas (caridade) é o princípio primeiro e fundamental (GRACIOSO, 2012, p. 19). A ética filosófica de Agostinho considera sempre o amor como o que move o homem a buscar a felicidade. Agostinho observa que: “Essa felicidade, essa vida que é a única feliz, todos a querem, todos querem a alegria que provém da verdade” (AGOSTINHO, 1997, p. 177). Em seguida se pergunta: Onde conheceram essa felicidade, senão onde conheceram a verdade? Se de fato não querem ser enganados, é porque amam também a verdade. E já que amam a felicidade que nada mais é que a alegria oriunda da verdade, amam certamente também a verdade (AGOSTINHO, 1997, p. 177) A felicidade então está no próprio Deus que é apontado como esta verdade. Todo aquele que possui o que quer é feliz, mas só é de fato feliz se o que possuir for permanente e eterno. Logo, só quem possui a Deus é feliz. O fato, é que o simples conhecimento não é suficiente para alcançar a Deus, por isso deve-se estar inserido no amor, que une o que ama e o que é amado, assim só o amor é capaz de levar a Deus e a felicidade “portanto, ele será feliz quando, sem obstáculos nem perturbações, puder gozar daquela única verdade, fonte de tudo que é verdadeiro” (AGOSTINHO, 1997, p. 177). Ou seja, no encontro dessa verdade que é Deus e que só pode ser alcançado pelo amor é que se encontra está verdadeira felicidade. Para alguns pensadores foi com Santo Agostinho que “o pensamento cristão ganhou uma nova visão, pois, passou a melhor articular elementos do pensamento clássico com princípios cristãos para melhor adequar e fundamentar os ideais cristãos” (PAULA; MELO, 2011, p. 12). Santo Agostinho, gera uma mudança de foco no sentido de amor, acrescentando ao mero desejo a caridade. De eros, que indicava desejo, passou a ágape, que quer dizer caridade: “É um abuso de linguagem dizer que os concupiscentes amam, assim como é abusivo dizer que aqueles que amam são concupiscentes. Ora, o verdadeiro amor é aderir à verdade, para viver na justiça” (AGOSTINHO, 2018, p. 168). Nesse sentido é dito por um de seus comentadores: “Desse modo, para Santo Agostinho, o cristianismo trouxe um novo conceito de amor, que recebeu um olhar diferente do que havia sido entendido por pensadores gregos como Platão. O foco que se dava ao amor tomou um novo sentido” (PAULA; MELO, 2011, p. 4). Ou seja, há então uma virada onde o amor que era mero desejo ganha o sentido do amor ágape que vai além desse mero desejar. É importante refletir sobre tal mudança, pois rapidamente parece se estar afirmando que o eros é deixado de lado em vista do ágape, mas na Encíclica Deus Caritas 9 Est Bento XVI (Joseph Ratzinger) diz que “isto não é rejeição do eros, não é o seu « envenenamento », mas a cura em ordem à sua verdadeira grandeza” (RATZINGER, 2005)1. Continua Bento XVI: Isto depende primariamente da constituição do ser humano, que é composto de corpo e alma. O homem torna-se realmente ele mesmo, quando corpo e alma se encontram em íntima unidade; o desafio do eros pode considerar-se verdadeiramente superado, quando se consegue esta unificação. Se o homem aspira a ser somente espírito e quer rejeitar a carne como uma herança apenas animalesca, então espírito e corpo perdem a sua dignidade. E se ele, por outro lado, renega o espírito e consequentemente considera a matéria, o corpo, como realidade exclusiva, perde igualmente a sua grandeza (Ratzinger, 2005). Ou seja, para o Papa Bento XVI o verdadeiro desafio do eros não está em vence- lo, mas em conseguir manter uma verdadeira harmonia entre eros e ágape, só assim o homem pode viver plenamente sua condição e estar inteiramente voltado ao amor para assim compreender e viver a sua grandeza. Como já visto em trechos anteriormente citados de Santo Agostinho ele apresenta o amor também como meio pra viver na justiça, ou seja, ao aderir ao amor encontra-se também uma vida justa, e realiza-se assim a justiça proposta pela ética. Dessa forma, para Santo Agostinho: [...] A ordem da vida moral é, pois, regida pela ordem do amor que se desdobra na esfera do uso como amor de si mesmo e dos outros segundo o reto modo e os graus correspondentes, e se eleva finalmente à esfera da fruição como amor de Deus, amado em si mesmo e por si mesmo (LIMA VAZ, 1999, p. 193). O amor em geral é entendido como uma inclinação da vontade ao bem “O que é o amor ou a caridade, tão louvada e exaltada pela Escritura, senão o amor do Bem?” (AGOSTINHO, 2018, p. 172). E ainda “o cerne da filosofia do amor em Santo Agostinho está diretamente relacionado com o projeto de Deus para o homem, pois, para o Santo Doutor, o amor faz parte da essência humana, o homem é obra da criação Divina e a essência divina é amor” (VIEIRA, 2010, p. 60). Na dinâmica do amor está inserido o amor de caridade: “A caridade deve ser entendida como o amor pela qual se ama o que se deve amar” (ALMEIDA, 2014, p. 58). Nessa perspectiva a caridade é o melhor sentido de amor. É por isso que: Agostinho nos aponta, através de uma proposta filosófico-teológico-cristã o amor Cristão como um remédio satisfatório ao problema da miséria no mundo, 1 Versão eletrônica disponível em: <http://w2.vatican.va/content/benedict xvi/pt/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20051225_deus-caritas-est.html> 10 convidando-nos a contemplarmos a humanidade com os olhos de um Deus de amor e a promovermos uma revolução em nossa sociedade, a revolução do amor, tomando o critério de fruição divina como um bem para nos lançarmos ao mundo como chamas do amor de Deus (VIEIRA, 2014, p. 62). Dentro dos questionamentos sobre o amor no pensamento do filósofo, está inserida a regra de ouro que é uma formulação moral que observa o tratamento do outro como a si mesmo através da ordenação da caridade: Nessa mesma ordem de ideias, o cristão ama o seu inimigo: não enquanto inimigo, mas enquanto homem, possuidor da natureza humana. Ao ponto de desejar para ele o mesmo que deseja para si mesmo, isto é, de poder chegar à felicidade do Reino dos Céus, após ter sido renovado e transformado. (AGOSTINHO, 2017, p. 75). Ninguém ama a si, sem amar a Deus e ao próximo; ao próximo,sem amar a Deus e a si; nem a Deus, sem amar a si e ao próximo. “Para Santo Agostinho, a caridade aparece como a virtude primeira e será entendida como o fundamento de toda a vida ética” (VIEIRA, 2014, p. 62). Nesse sentido a regra de ouro, também chamada regra da caridade, tem papel fundamental em sua ética. As considerações de Santo Agostinho sobre a Regra de Ouro exerceram grande influência ao longo dos tempos, sendo comentadas por vários autores, alguns que oportunamente serão aqui citados, diante da grande importância dessas considerações é que esse trabalho irá se deter como também sobre o pensamento do autor acerca do tema, propondo um estudo mais aprofundado sobre a regra e suas formulações, no primeiro capítulo, no segundo capítulo o conhecimento da regra, e sobre a regra de ouro e a “imago dei”, no terceiro capítulo. 11 2 A REGRA E SUAS FORMULAÇÕES O principal objetivo desse capitulo é investigar o pensamento de Santo Agostinho acerca da regra de ouro e de suas diferentes formulações, como poderá ser visto ao longo deste Agostinho conheceu as duas formulações da regra, a positiva e a negativa e objetivou várias formas tanto de uma quanto da outra, nesse sentido, buscar-se-á estudar o pensamento do autor e como ele usa e entende essas duas formulações. Assim, será apresentada a definição da regra, as diferenças entre a formulação positiva e a negativa e as suas particularidades bem como em que casos é aplicada uma ou outra. 2.1 A REGRA DE OURO Os textos nos quais Santo Agostinho usa a regra de ouro são numerosos, ela aparece em diversos livros do autor, as vezes mais de uma vez. Diante disso poderá ser visto no apêndice do presente trabalho um conjunto dessas formulações em ordem cronológica. A regra na filosofia do santo é vista como uma máxima do amor: “Pois a perfeição da misericórdia com a qual é atendida toda alma extenuada de pena e cansaço não vai além desse amor aos inimigos” (AGOSTINHO, 2017, p. 91). É o amor que atende a perfeição da misericórdia, amor esse que deve ser praticado mesmo aos inimigos, o amor é o caminho para a perfeição é a regra é o caminho para viver de modo ético esse amor. Agostinho afirma na Doutrina Cristã que: Vive justa e santamente quem é perfeito avaliador das coisas. E quem as estima exatamente mantém amor ordenado. Dessa maneira, não ama o que não é digno de amor, nem deixa de amar o que merece ser amado. Nem dá primazia no amor àquilo que deve ser menos amado, nem ama com igual intensidade o que se deve amar menos ou mais, nem ama menos ou mais o que convém amar de forma idêntica (AGOSTINHO, 2002, p. 46). Sendo assim é justo aquele que mantém o amor de maneira ordenada, amando mais o que deve ser mais amado e menos o que deve ser menos amado, essa ordenação diz a respeito à perfeição acima citada tendo em vista que a coisas mais perfeitas que devem ser mais amadas e coisas menos perfeitas que devem ser menos amadas. A regra de ouro é, nesse sentido, a atitude ética mantenedora dessa relação de amor, é através dela que se é capaz de viver perfeitamente no amor, ou seja, de forma ordenada. A formulação mais conhecida da regra em Agostinho e provavelmente a mais conhecida na cultura em geral é a presente no sermão da montanha, tendo sido proferida 12 pelo próprio Jesus Cristo: “Tudo, portanto, quanto desejais que os outros vos façam, fazei- o, vós também, a eles. Isto é a Lei e os Profetas. (Mt. 7,2)” Foi o contato com essa formulação ao escrever o Comentário ao Sermão da Montanha que fez com que Agostinho escrevesse um dos maiores trechos encontrados em seus escritos sobre a regra, trecho esse que, junto de outros, será utilizado nesse trabalho na ajuda da construção de uma ideia acerca da regra no pensamento do Santo. Segundo o comentador de Agostinho Giovanni Catapano, antes de adentrar mais profundamente ao estudo da regra na ótica do autor, são necessárias ser feitas ao menos 3 observações de caráter mais geral. “A primeira é que Agostinho não cessou de recorrer a regra de ouro desde o início ao fim de sua atividade literária e pastoral” (CATAPANO, 2005, p. 104)2. Ora, agostinho tem em torno de 33 citações da regra ao longo de seus escritos e essas citações comportam tanto formulações positivas quanto negativas da regra isso endossa o comentário acima citado de que Agostinho realmente não abandonou seus estudos sobre a regra desde que a conheceu. Desde o período cassicíaco, època de estudos e produção acadêmica (filosófica), até o seu episcopado Agostinho se dedicou de várias formas ao estudo da regra, nas palavras do próprio comentador “Agostinho usa a regra de ouro nas circunstâncias e para os mais diversos fins” (CATAPANO, 2005, p. 104)3, isso demonstra a forte presença da regra na filosofia do Santo Doutor que não só a utilizou em diversas circuntâncias para diversos fins como dedicou parte da sua vida ao estudo dessa máxima. “A segunda observação que a tabela de lugares permite expressar, além disso, é a heterogeneidade dos textos agostinianos que relatam as ocorrências da regra de ouro”4 (CATAPANO, 2005, p. 104), isso indica que nas suas mais diversas obras, de filosofia, tratados apologéticos, escritos dogmáticos, exegéticas, obras polemicas antimaniqueias e antipelagianas, discursos ao povo, cartas, e sua obra única que é Confissões. “Se pode dizer que quase não há gênero literário, entre os praticados por Agostinho, em que ele não 2 “La prime è che Agostino non ha cessato di ricorrere alla Regula d’oro dall’inizio alla fine della sua attività letteraria e pastorale”. CATAPANO, Giovanni. La regola d’oro in Agostinho. Apud: VIGNA, Carmelo; ZANARDO, Susy (ORG.) La Regola d'oro come etica universale. Vita e Pensiero: Milano, 2005. 3 “adopera la regola d'oro nelle circostanze e per i fini più diversi”. CATAPANO, Giovanni. La regola d’oro in Agostinho. Apud: VIGNA, Carmelo; ZANARDO, Susy (ORG.) La Regola d'oro come etica universale. Vita e Pensiero: Milano, 2005. 4 “la seconda osservazione che la tabella dei luoghi permette di esprimere concerne appunta l'eterogeneità dei testi agostiniani che riportano occorenze della regola aurea”. CATAPANO, Giovanni. La regola d’oro in Agostinho. Apud: VIGNA, Carmelo; ZANARDO, Susy (ORG.) La Regola d'oro come etica universale. Vita e Pensiero: Milano, 2005. 13 usou a regra de ouro” (CATAPANO, 2005, p. 104)5, o Santo sempre citou a regra independente do gênero literário utilizado por ele naquela obra e em praticamente todos os gêneros utilizados pelo autor se encontra alguma citação da regra de ouro. A terceira e última observação diz respeito à extensão das etapas mencionadas na lista. Como pode ser visto facilmente, eles não têm mais do que dois ou três parágrafos. Agostinho quase nunca tratou com amplitude a regra de ouro; às vezes ele o usa sem nem mesmo torná-lo objeto de considerações diretas (CATAPANO, 2005, p. 105)6. É curioso se deter nessa parte, pois de fato foram poucas as ocasiões onde Agostinho de fato se deteve em elaborar um texto ou uma dissertação significativamente longa sobre a regra, porém isso não implica necessariamente que ele vê como secundária a importância da regra, mas “significa simplesmente que já não é dada como tal nos textos, mas deve ser reconstruída a partir deles”7 (CATAPANO, 2005, p. 105), ou seja, ele não formula especificamente uma doutrina sobre a regra, pois ela deve ser lida, meditada e compreendida a partir dos textos e citações que a comportam. Agostinho está muito mais preocupado com a prática da regra do que com um tratado filosófico sobre ela, segundo Jones Bernades Machado: Isso é perceptível através da simples leitura dos textos referenciados na tabela, mas, apesar disso, todas as ocorrências da regra no corpus estão inseridas no contextoe na temática do argumento ao qual integram. Do mesmo modo, ressalta-se ainda a veracidade do dizer que há uma doutrina sobre a regra da caridade em Agostinho, pois mesmo que tal doutrina não seja visível nos textos, é reconstituída a partir deles (MACHADO, 2012, p. 42) É por esse motivo, que nas páginas que se seguem, esse trabalho se concentrará em reunir citações literárias do autor e de seus comentadores para buscar construir um pensamento e uma doutrina coesa da visão da regra pelo autor. Para Agostinho, aquilo que pode tornar os homens perfeitos é a capacidade de amar: “Assim, o que faz os homens invencíveis e perfeitos é somente o fato de eles 5 “se può dire che non v'é quasi genere letterario, fra quelli praticati da agostino, in cui egli non abbia utilizzato la regola d'oro”. CATAPANO, Giovanni. La regola d’oro in Agostinho. Apud: VIGNA, Carmelo; ZANARDO, Susy (ORG.) La Regola d'oro come etica universale. Vita e Pensiero: Milano, 2005. 6 “la terza e ultima osservazione riguarda l'estensione dei passi citati nell'elenco. come si può facilmente notare, esse non sono lunghi più de due o tre paragrafi. Agostino non ha mai trattato con ampiezza della regola d'oro; a volte la usa senza nemmeno farla oggeto di considerazioni dirette”. CATAPANO, Giovanni. La regola d’oro in Agostinho. Apud: VIGNA, Carmelo; ZANARDO, Susy (ORG.) La Regola d'oro come etica universale. Vita e Pensiero: Milano, 2005. 7 “significa semplicemente chè essa non e gia data come tale nei testi, ma va riconstruita a partire da essi”. CATAPANO, Giovanni. La regola d’oro in Agostinho. Apud: VIGNA, Carmelo; ZANARDO, Susy (ORG.) La Regola d'oro come etica universale. Vita e Pensiero: Milano, 2005. 14 poderem amar” (AGOSTINHO, 2017, p. 76), o amor também torna o homem invencível, ou seja, o torna capaz de superar as dificuldades. Segundo Giovanni Reale para Agostinho: Quando o amor do homem se volta para Deus (amando os homens e as coisas em função de Deus), é charitas; quando, porém, volta-se para si mesmo, para o mundo e para as coisas do mundo, é cupiditas. Amar a si mesmo e aos homens não segundo o juízo dos homens, mas segundo o juízo de Deus, significa amar do modo justo (REALE, 2003, p. 100). É crucial para entender a concepção de amor em Agostinho entender essa diferença que ele traz entre charitas, amor ordenado a Deus e em Deus se volta as pessoas e aos demais seres, e cupiditas, quando o amor de si supera o amor a Deus e aos outros. Agostinho diz que “A retidão de conduta nos dá a coragem e a força para encetarmos o caminho em direção da sabedoria. Leva-nos à pureza e à simplicidade do coração” (AGOSTINHO, 2017, p. 168). Ou seja, é a boa conduta que leva o homem ao bom caminho e por consequência a ser bom, ela dá também a força e a coragem necessárias para alcançar a sabedoria e torna o coração puro e simples, essas qualidades trazidas pela retidão de conduta expressam em Agostinho algumas das boas consequências que a regra de ouro traz já que mais à frente no texto ele aponta essa retidão de conduta com sendo a própria regra: “O Senhor assim termina o que estava desenvolvendo: “Portanto, tudo aquilo que quereis que os homens vos façam de bem, fazei-o vós a eles, porque isto é a Lei e os Profetas”” (AGOSTINHO, 2017, p. 168). Agostinho introduz o Capítulo do texto Comentário ao Sermão da Montanha falando sobre a retidão de conduta e logo a frente apresenta essa passagem da regra de ouro como meio de se alcançar essa retidão necessária para o alcance da sabedoria e demais qualidades que ela proporciona. Em agostinho “a força motriz para a realização da ordem moral é o amor, que remata na caridade. Sua força orientadora é à vontade, que culmina na liberdade. Sua consumação é a ordem da caridade” (BOEHNER; GILSON, 2004, p. 188), ou seja, é na ordem da caridade, alcançada pela regra, que se faz possível a realização da ordem moral que para o Santo se confunde com o próprio amor, amor e moral são iguais, um é força motriz do outro e vice-versa. Ainda segundo Gilson “a caridade não é apenas o coração da moralidade; ela é a própria vida moral. O começo do amor é o começo da justiça, o progresso do amor é o progresso na justiça, a perfeição do amor é a perfeição da justiça” (BOEHNER; GILSON, 2004, p. 191). Nesse trecho o escritor fortalece a ideia que acima foi citada que a caridade 15 e a moral se confundem, é interessante a afirmação de que ‘a caridade não é apenas o coração da moral, mas a própria vida moral’, reforçando justamente essa ideia de mutualidade entre amor e moral apresentada antes. Ao comparar amor e moral Agostinho afirma que o amor está na própria natureza humana, ou seja, implicitamente está afirmando que a moral está na própria natureza humana: O amor está na própria natureza humana. Trata-se de um apetite natural, pressuposto pela vontade livre, que deve, iluminada pela luz natural da razão, orientá-lo finalmente para Deus. O amor é, pois, uma atividade decorrente do próprio ser humano. Donde se deduz que, tendo-se no fundo do coração a raiz do amor, dessa raiz não pode sair senão o bem, o que resulta na tão citada máxima agostiniana: ‘ama e faze tudo o que queres’ (COSTA, 2002, p. 296- 297). Isso reforça o poder do amor e da moral na natureza humana e parece afirmar que a regra de ouro como forma de ordenação desse amor está também implícita nessa natureza como será investigado futuramente no 3.2 desse trabalho. Porém, no momento é hora de se reclinar sobre as formulações e aplicações da regra de ouro dentro da filosofia de Santo Agostinho. 2.2 FORMULAÇÃO POSITIVA É notório que Santo Agostinho conhece tanto a formulação positiva, quanto a formulação negativa da regra de ouro. Ambas são utilizadas por ele ao longo de seus escritos, mas devem ser esclarecidos os pontos de convergência e divergência de usos e aplicações. Sendo assim trataremos da positiva nesse ponto e da negativa no próximo. A formulação positiva da regra coincide com a relatada nas palavras de Jesus no Sermão da Montanha: “Portanto, tudo aquilo que quereis que os homens vos façam de bem, fazei-o vós a eles, porque, isto é, a Lei e os Profetas (Mt. 7,2)”. Em relação à regra no sentido positivo Agostinho afirma conhecer a formulação presente nos “exemplares gregos”, porém há uma diferença pois esses não utilizam a palavra “bem” como nos “exemplares latinos”, Agostinho acredita que esta mudança se dá para melhor explicitar o pensamento: “Lê-se nos exemplares gregos: “Tudo aquilo que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles”. Penso que textos latinos acrescentaram a expressão “de bem” para melhor explicitar o pensamento. Poderiam autorizar-se dessa passagem para abonar uma ação condenável” (AGOSTINHO, 2017, p. 16 168). O santo justifica então o acréscimo do termo “bem” ao fato de ele ser uma forma de impedir que a regra justifique a realização de um mal ao outro tendo o argumento de que o desejava para si também: “Por exemplo, se alguém quisesse beber em excesso, até a embriaguez. Mas seria ridículo de se justificar por aí quem procurasse beber ou excitasse outrem a beber em excesso, até ficar bêbado. Para evitar essa interpretação e para maior clareza, foi acrescentada a expressão ‘façam de bem’” (AGOSTINHO, 2017, p. 168). Ou seja, para evitar que um mal ou um excesso seja cometido contra um outro ou contra si mesmo, foi acrescentada essa expressão “de bem”. Apesar disso, o santo não acha oportuno que se faça alteração nos já citados exemplares gregos: “Se faltar nos exemplares gregos será bom completar. Mas quem se permitiria corrigir o texto grego? É preciso, pois, admitir que a recomendação está plena e completa, mesmo sem essa adição” (AGOSTINHO, 2017, p. 168). O autor, afirma então que a recomendação é completa mesmo sem a adição do termo“bem”, pois ele serviria apenas para evitar o mal-uso da regra e direcionar melhor essa recomendação evitando que seja distorcida por má-fé ou ignorância. Em Agostinho, o amor é caminho para o agir ético por excelência: A partir do momento que o homem passa a amar verdadeiramente a Deus e como Ele ama, com gratuidade e fazendo o bem aos outros, sua vida será guiada corretamente aos verdadeiros caminhos, por isso, o ser e agir ilu- minados pela vontade do amor divino garante que a liberdade de ação seja justa, logo, ética. É o amor que conduz o homem a agir de forma coerente segundo a vontade de Deus e o desvia de agir somente por prazeres inconstantes (ROCHA; CARVALHO, 2016, p. 29). Diante disso pode-se observar que é amando verdadeiramente a Deus e ao próximo e fazendo bem aos outros é que se guiará a vida pelo caminho verdadeiro, livre e por consequência ético, nota-se que o autor acrescenta que esse caminho é livre do agir pelos prazeres inconstantes: “A expressão “tudo aquilo que quereis” não deve ser tomada aqui em sentido ordinário e banal, mas em seu sentido forte. A vontade livre não concebe a não ser o bem. Quando se trata do mal, não se fala de vontade, mas de paixão” (AGOSTINHO, 2017, p. 168). Ou seja, o uso correto da regra, enquanto máxima do amor, guia até mesmo ao afastamento das paixões. Para o comentador Giovanni Catapano: “à fórmula positiva limita-se ao dever para com o próximo (na verdade, prescreve para fazer aos homens o que queremos que eles 17 façam a nós)” (CATAPANO, 2005, p. 110)8 Nesse sentido a regra no seu caráter positivo faz relação ao amor do próximo, o que não exclui por si o amor de Deus, esse está implícito no próprio sentido de amor: Que ninguém diga: “Não sei o que amar”. Que ele ame o seu irmão e estará amando o próprio Amor. Pois assim conhecerá melhor o amor com que ama do que o irmão a quem ama. Pode desse modo ter de Deus um conhecimento maior do que o do irmão. Sim, Deus torna-se mais conhecido, porque lhe está mais presente. Deus lhe será mais conhecido porque lhe é mais íntimo. Mais conhecido porque mais seguro. Ao abraçar a Deus que é Amor, abraças a Deus por amor. É esse mesmo amor que une todos os anjos bons e todos os servos de Deus pelo vínculo da santidade. É o mesmo amor que nos une entre nós e a eles reciprocamente, e ainda nos submete a Deus (AGOSTINHO, 2018, p. 170). Nesse sentido o amor é vinculo de unidade entre sujeito, objeto e o próprio Amor, que é Deus, quem ama algo, ama necessariamente a Deus que é amor. Sobre esse sentido do amor a Deus trataremos melhor no próximo ponto que diz sobre a regra na formulação negativa, que segundo a linha de interpretação seguida diz respeito propriamente ao amor de Deus. 2.3 FORMULAÇÃO NEGATIVA Como já dito anteriormente, a regra de ouro conta com mais uma formulação, inteirando assim duas formulas possíveis, a positiva acima citada e a negativa que será tratada nesse ponto. Deve-se se buscar entender o valor das duas formulações, se as duas podem ser consideradas máximas éticas e se tem aplicações diferente pelas suas diferentes formulas. É notório o fato de que Santo Agostinho conhece também a formula negativa da regra de ouro, ela está presente na obra do Santo em vários textos e coincide com a formula apresentada no Livro de Tobias: “Assim, o que não gostas, não o faças a ninguém (Tb. 4, 31)”. A formula negativa como o próprio nome já diz ao invés de apresentar uma atitude a ser feita apresenta algo a não ser feito. A fórmula negativa é a mais utilizada pelo santo doutor em suas obras formuladas de diversas maneiras. Em suma, são todas maneiras diversas de expressar o mesmo conteúdo; pois, se forem interpretadas corretamente elas prescrevem a mesma ação: uma 8 “la formula positiva si limita ai dovere nei confronti del prossimo (prescrive infatti di fare agli uomini ciò che vogliamo essi facciano a noi)”. CATAPANO, Giovanni. La regola d’oro in Agostinho. Apud: VIGNA, Carmelo; ZANARDO, Susy (ORG.) La Regola d'oro come etica universale. Vita e Pensiero: Milano, 2005. 18 hora ordenando, outra proibindo e vice-versa. Agostinho compreende que a formula negativa da regra tem seu fundamento no Decálogo, pois é uma síntese dos ‘nãos’ aí apresentados, segundo ele as duas formulações da regra tem fundamento na Pessoa Divina, sendo a positiva proveniente da lei natural e a negativa do decálogo, esse não do decálogo para o autor é necessário, pois o decálogo enquanto lei, surge já de uma privação que é o pecado, esse é um não do homem para Deus e por isso Deus precisou dizer não para o homem. A regra em seu sentido negativo tem uma conotação de interdição apresentando um ‘não’, ou seja, uma partícula de interdição que representa bem a ideia de evitar o mal, segundo o filosofo francês Paul Ricuer “A todas as figuras do mal responde o não da moral” (RICOEUR, 1991, p. 167), ou seja é o não da moral que tem força interditaria para evitar o mal, por exemplo é só pensar nos mandamentos da lei de Deus como não matar e não roubar, e nesse sentido a formula negativa da regra diz mais respeito aos deveres voltados para com Deus, pois é preceito divino “Afaste-se do mal e faça o bem (1Pe. 3, 11)”, assim como a formulação positiva parece cumprir o preceito de fazer o bem, a negativa parece cumprir o de evitar o mal, acontece também que não fazer o mal implica necessariamente em fazer o bem, pois a ausência de bem é um mal em si mesma e por isso Giovanni Catapano afirma: “Enquanto o 'negativo' também inclui deveres para com Deus” (CATAPANO, 2005, p. 110)9. Então aí está a diferença das formulações, a primeira incluiu mais profundamente o amor ao próximo e a segunda mais profundamente o amor a Deus. “Seguindo essa perspectiva, o homem não poderia amar a si próprio antes de conhecer a Deus. Em outras palavras, antes de se achegar a Deus, o homem se odiava a si mesmo, a Deus e ao próximo” (PAULA; MELO, 2011, p. 6) ou seja, é somente no amor de Deus que o homem é capaz de conceber relação de amor com si mesmo e com o outro, por isso a necessidade de duas formulações, pois a regra como expressão de amor ao próximo não pode deixar de conter em si uma expressão do amor a Deus, pois se não ama o próprio amor, que é Deus, o homem não será capaz de amar o seu próximo. Para Agostinho o amor verdadeiro e aquele que não pode ser vencido, ou seja, o amor ao qual não pode ser arrebato as coisas que se ama: Não poderá ser vencido por homem algum aquele que vence suas próprias paixões. Com efeito, não será vencido senão aquele a quem o adversário lhe arrebata as coisas que ele ama. Então, aquele que ama somente aquilo que não 9 “mentre quella 'negativa' comprende anche i doveri verso Dio”. CATAPANO, Giovanni. La regola d’oro in Agostinho. Apud: VIGNA, Carmelo; ZANARDO, Susy (ORG.) La Regola d'oro come etica universale. Vita e Pensiero: Milano, 2005. 19 lhe pode ser arrebatado, é incontestavelmente invencível. E nem poderá ser atormentado por invejoso algum. Além do que, se ele vê os outros chegarem até ao objeto de seu amor para amá-lo igualmente, e participar desse amor, felicita-os generosamente. Ele ama a Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu espírito. E ama a seu próximo como a si mesmo. Não sente inveja alguma, caso os outros se tornem iguais ao que ele mesmo é (AGOSTINHO, 2017, p. 75). A regra de ouro que leva ao amor de Deus, se direciona justamente a esse amor que não pode ser arrebatado e que não causa inveja, pois se outro atinge esse amor e motivo de felicidade e nunca de inveja, tal amor que não pode ser arrebatado atende as exigências de uma verdadeira ética, pois sempre se agirá em conformidade com esse amor, tanto o amor que está destinado ao próximo quanto oque está destinado a Deus, é assim que a regra em seus dois sentidos atende as expectativas de uma verdadeira ética de amor. Em Agostinho o amor se configura sendo “a perfeita justiça — a que nos leva a amar mais o que vale mais, e amar menos o que vale menos” (AGOSTINHO, Santo. 2017, p. 79). Ao alcançar essa perfeição o homem se torna capaz de valorizar melhor o que vale mais, nesse caso, valorizar melhor o irmão, quando diz respeito a regra positiva e valorizar melhor a Deus, quando diz respeito a regra negativa. A regra de ouro torna-se então caminho ético por excelência que possibilita o homem conceber melhor suas relações e os objetos dessas relações levando assim a uma perfeita conduta ética que respeita as relações humanas e seus objetos. Diante das duas formulações da regra é importante perceber que as duas devem ser levadas em conta, ou seja, ao mesmo tempo que se deve tratar bem o seu próximo, fazendo a ele o que gostaria que fosse feito a si mesmo, também deve-se evitar tratá-lo mal, não fazendo a ele o mal que não quer para si mesmo, sendo assim as duas formulações se completam, demonstrando como se deve dar a verdadeira conduta de vida. 20 3 O CONHECIMENTO DA REGRA O principal objetivo desse capitulo é investigar o pensamento de Santo Agostinho acerca do conhecimento da regra de ouro, como poderá ser visto, Agostinho postulou duas fontes de conhecimento da regra, uma por meio da revelação e a outra no coração do homem. Nesse sentido, buscar-se-á estudar o pensamento do autor e como ele entende essas duas fontes. Se há nelas diferenças substanciais ou se o conhecimento da regra se vale tanto por uma quanto por outra e como isso se relaciona com o sentido ético da regra de ouro. 3.1 A REGRA E A REVELAÇÃO Se questionar sobre isso é se questionar sobre o modo como a regra de ouro se dá a conhecer na realidade humana, é possível apresentar pelo menos duas formas disso acontecer no pensamento de Agostinho: “existe, portanto, uma lei revelada nas escrituras, e uma lei natural, escrita não em um livro, mas no coração, que qualquer homem que tenha chegado ao uso da razão pode descobrir dentro de si mesmo” (CATAPANO, 2005, p. 116)10. Nesse sentido a regra pode ser conhecida pela revelação, através das escrituras, ou pode ter como meio para isso a própria natureza humana presente no coração do homem. Nesse capítulo optou-se por fazer a divisão tratando primeiro da do conhecimento revelado e depois do natural. Entender melhor os sentidos de lei natural e lei revelada e como se dá sua relação com a regra de ouro é fundamental para um maior conhecimento da concepção do autor sobre a mesma. A revelação em Santo Agostinho compreende todo o conhecimento que não foi advindo da razão humana, mas de algum tipo iluminação divina. Portanto revelação e conhecimento estão intimamente ligados, pois a revelação nada mais é que um conhecimento dado por Deus ao homem. Para Agostinho “O conhecimento seria a capacidade de concluir verdades imutáveis por meio dos processos mentais. [...] Assim, o ser humano tem pensamento 10 “esiste quindi una legge rivelata nella scritture, e una legge naturale, scritta non in un libro, ma nel cuore, che qualsiasi uomo giunto all'uso di ragione può scoprire dentro di sé”. CATAPANO, Giovanni. La regola d’oro in Agostinho. Apud: VIGNA, Carmelo; ZANARDO, Susy (ORG.) La Regola d'oro come etica universale. Vita e Pensiero: Milano, 2005. 21 autônomo e acesso à verdade eterna, mas depende, para isso, de iluminação divina” ( FERRARI, 2008)11. Ou seja, a verdade pode ser alcançada por qualquer homem mesmo que dependendo de uma iluminação divina que nesse sentido seria a revelação que completa o conhecimento humano preenchendo-o com o que Deus tem a ensinar, as formulações presentes na revelação, sagrada escritura, seriam nesse sentido meios de Deus demonstrar ao homem aquilo que ele deseja que eles conheçam, nesse caso a ordenação da caridade através da regra de ouro: amar a si, amando a Deus e ao próximo; ao próximo, amando a Deus e a si; e a Deus, amando a si e ao próximo. Num trecho das Confissões, Agostinho professa a eternidade e imutabilidade do Verbo Divino que não deixa de ser o que era para passar a ser o que não era, tal afirmação dá caráter necessário a toda revelação presente no que professou o Cristo, próprio Verbo encarnado: Sabemos, Senhor, sabemos que de algum modo uma coisa nasce e morre, quando deixa de ser o que era e passa a ser o que não era. Na tua palavra, nada aparece e desaparece, porque é realmente imortal e eterna. Com esta palavra, que é eterna como tu, enuncias a um só tempo e eternamente tudo o que dizes. E tudo o que dizes que se faça, realiza-se. Não de outro modo, mas somente com a palavra, tu crias (AGOSTINHO, 1997, p. 203). Isso inclui a regra de ouro, por isso para o Santo a regra é imutável e necessária, pois está presente na revelação do próprio Verbo, o princípio de amor e o de tratamento da regra são de grande importância para Agostinho graças a isso e como se verá futuramente tal necessidade da regra se fundamenta melhor ainda ao investigar o coração do homem. Num trecho do livro A Trindade ao se perguntar sobre onde estão escritas essas regras que possibilitam o conhecimento da justiça, inclui-se aqui a regra de ouro, pois para o Santo ela é uma regra de justiça, Agostinho chega à conclusão de que essas estão escritas no “livro da luz da verdade” que é também a fonte da revelação divina e que ela passa a estar escrita no coração do homem junto dessa pratica da justiça, isso se dá porque para o filósofo Deus, cria, ordena e possibilita o conhecimento das coisas que deve ser buscado na interioridade do homem: Onde, pois, estarão escritas essas regras? Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que é justo, descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo não possui? Onde hão de estar escritas senão no livro daquela luz que se chama Verdade? Nesse livro é que se baseia toda lei justa que é transcrita e se transfere 11 Versão Eletrônica: <https://novaescola.org.br/conteudo/1683/santo-agostinho-o-idealizador-da- revelacao-divina> Acessado em 05/05/2019. 22 para o coração do homem que prática a justiça. Não como se ela emigrasse de um lado para o outro, mas a modo de impressão na alma. Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera, sem se apagar do anel (AGOSTINHO, 2018, p. 280). Isso é possível para o Santo porque ele admite que Deus ilumina o conhecimento estando este já anteriormente em nosso espírito. Essa doutrina da Iluminação divina caracteriza-se por uma luz que não é material e que atinge no encontro com o conhecimento da verdade para que o homem possa ter uma vida feliz e beata. Essa luz da verdade, pela qual a alma é iluminada, é Deus ele mesmo ao passo que a alma é uma criatura que ainda que feita racional e intelectual à sua imagem, quando ela se esforça por ver a luz ela mesma age com dificuldade é no entanto de lá que lhe vem tudo o que ela apreende pelo intelecto como ela o pode fazer. A teoria da iluminação, preocupa-se menos em demonstrar se podemos ou não conhecer a verdade, e mais em nos fornecer as condições de possibilidade para que o façamos, nesse sentido a regra de ouro é o que nos leva a condição de possibilidade de amar a Deus e ao próximo. Através de um pequeno itinerário filosófico de Agostinho, pode ser perceber o papel central que tem a revelação em seu pensamento: Filosofar, para Agostinho, é buscar a Felicidade. Ser feliz é conhecer a Verdade. Conhecer a Verdade é conhecer a Deus. Assim, a própria teoria do conhecimento agostiniana segue esta sua jornada autobiográfica, o materialismo correspondendo ao plano da exterioridade (sensibilidade, exterior),o platonismo atingindo a interioridade (inteligibilidade, interior) e o cristianismo transcendendo ao Absoluto pela Revelação (transcendência, superior) (VARGAS, 2010). O conhecimento da regra de ouro através da sagrada escritura demonstra para o Santo a necessidade de se ter essa regra como conduta de vida, pois tudo que é revelado demonstra ser de um conhecimento superior, é uma vontade do próprio Deus para a humanidade. “O Senhor assim termina o que estava desenvolvendo: Portanto, tudo aquilo que quereis que os homens vos façam de bem, fazei-o vós a eles, porque isto é a Lei e os Profetas” (AGOSTINHO, 2017, p. 169). Nesse trecho do Sermão da Montanha o Cristo afirma ser a regra, “a Lei e os Profetas”, ou seja, Ele não só a identifica como parte da revelação, mas como parte crucial de toda a história que vinha sendo escrita através dos tempos. Agostinho ao meditar sobre essa passagem chega à seguinte conclusão: “É preciso também não passar por cima do que ele acrescenta: “Isso é a Lei e os Profetas”. Ao falar desses dois mandamentos, o Senhor não diz somente: “Eles contêm a Lei e os Profetas”, mas: “Toda a Lei e os Profetas”, isto é, todas as profecias” (AGOSTINHO, 23 2017, p. 169). Ou seja, a regra contempla toda a revelação, pois contempla seu mais importante mistério, o mistério do amor, ao comtemplar o amor enquanto amor ela apresenta tudo o que é necessário para uma vida em Cristo, o sentido pleno de toda a revelação. 3.2 A REGRA E A LEI INSCRITA NO CORAÇÃO DO HOMEM A lei natural também conhecida como lei eterna ou ainda direito natural na filosofia de Santo Agostinho seria encontrada no próprio indivíduo que a deveria buscar em seu interior, é a lei que está inscrita no coração humano. Nos dias atuais, essa ideia é chamada de moral que é encontrada no foro íntimo da pessoa. Em um primeiro momento, o homem não possui acesso à essa lei, por ser cometedor do pecado original. Entretanto, o homem pode ter acesso através da fé. A lei eterna, para Agostinho, visa a paz eterna. “Contudo, os autores medievais concordaram em valorizar a regra de ouro como uma expressão importante da lex naturae (lei natural)” (TATRANSKY, 2006, p. 647)12. Nesse sentido pode se perceber que a regra de ouro é uma importante peça dentro daquilo que é chamado de lei natural, ou seja, ela está presente nos mais profundos anseios do coração do homem, pela própria impressão desta nesse coração. Mesmo que nunca fosse estabelecida pela revelação ou pelos preceitos do Decálogo, a regra de ouro conservaria sua autoridade e eficácia enquanto pertencente à lei natural. Isso significa que a validade da regra de ouro não depende de sua instituição e promulgação divina, como ocorre em relação aos preceitos cerimoniais e judiciais. Assim, o conhecimento da regra de ouro pela Escritura não lhe conferiria outra autoridade e eficácia distinta daquela que já possui enquanto pertencente à luz natural da própria razão ( SALLES; SILVA; OLIVEIRA, 2011, p. 93). Diante desse texto percebe-se que a regra de ouro não necessita da revelação para se fundamentar, apesar de essa lhe dar autoridade da promulgação divina, a regra mostra- se autossustentável através da própria natureza humana, ou seja, na própria criação do homem foi deixada por Deus em seu coração essa regra que como pertencente a essa instituição divina se sustenta pela própria natureza humana, pelos próprios anseios de seu coração. 12 “Tuttavia, gli autori medievali erano concordi nel valorizzare la regola d’oro come un’espressione importante della lex naturae.”. TATRANSKY, Tomás. SUL VOLUME LA REGOLA D’ORO COME ETICA UNIVERSALE. Nuova Umanità. XXVIII (2006/5) 167, p. 643-659. 24 De acordo com Jones Bernardes Agostinho identifica a exigência existente no coração do homem como a lei natural: Do mesmo modo, essa exigência presente em todos os seres humanos indistintamente é identificada por Agostinho com a lei natural inscrita no interior de todos os homens. Tudo o que esta lei contém em si está expresso interiormente de modo universal, imutável e evidente, sem necessidade de uma revelação sobrenatural. Estas três notas ou atributos são essenciais para a sua compreensão: universal – em todos e em qualquer lugar; imutável – não está sujeita a movimento/mudança; evidente – todos podem ter acesso pela razão. Conquanto, a pessoa humana não necessita da revelação sobrenatural para conhecer essa lei. Desse modo, a lei de Moisés, enquanto lei revelada, apenas explicitou e precisou exteriormente o que a lei natural já continha interiormente (MACHADO, 2012, p. 42-43). É importante se deter em três pontos centrais dessa fala: primeiro, de que Agostinho identifica a regra de ouro como pertencente a natureza humana; segundo que a regra como parte da natureza é expressa como universal, está presente em cada ser humano como imutável, não pode ser mudada por nada nem ninguém e como evidente, que pode ser acessada por qualquer ser dotado de razão; terceiro, como já foi afirmado antes nesse trabalho, ela não precisa da revelação para ser fundamentada, a revelação tem o papel de explicitá-la, pois essa já está fundamentada na lei natural. Um pouco mais à frente o mesmo autor ainda diz “essa, sem nenhuma dúvida, é uma das leis inscritas no coração do homem que nada pode apagar; nem a maior iniquidade humana tem essa capacidade” (MACHADO, 2012, p. 43), ou seja, não importa o que seja feito mesmo que o homem jamais siga esta regra ele nunca poderia apagá-la do seu coração, por exemplo, um bandido mesmo cometendo furto jamais quereria sofre-lo e se perguntado se para fazer bem ao seu próximo não deveria comete-lo evidentemente responderia que sim, então para qualquer homem são, mesmo que infrator da regra ela ainda é parte da natureza e está presente em seu coração. Esta mesma lei natural é ainda identificada por ele com a voz da verdade, ou como chama Agostinho ‘tribunal interior’. Eis o modo como se propõe essa ideia através de um exemplo dessa mesma voz que grita no interior: Vamos supor que, não sei de onde, vem um amigo teu, e sem testemunhas confia-te certa quantidade de ouro. Somente ele e tu, dentre os homens, tendes conhecimento disso. Existe, porém, ali outra testemunha que é invisível, mas vê. O amigo te entregou o ouro secretamente, em teu quarto, talvez sem a presença de qualquer árbitro. A testemunha presente, não está dentro das paredes do quarto, mas no recinto de vossas consciências. O amigo entregou e partiu. Não o contou a nenhum dos seus, esperando voltar, e receber de volta o que entregara. Como são as coisas humanas, ele morre. Tem um herdeiro, o filho que deixou. O filho ignora o que o pai possuía e a quem o confiou. Vamos. Volta, volta, prevaricador, ao teu coração, onde está escrita a norma: “Não 25 faças a ninguém o que não queres que te façam”. Imagina que foste tu quem confiou o ouro, que não disseste a nenhum dos teus, que morreste e deixaste um filho. Que querias que teu amigo fizesse? Responde, julga a questão, o tribunal do juiz está em tua mente. Ali Deus está sentado, tua consciência é o acusador, e o medo o carrasco. Vives em meio às vicissitudes humanas, na sociedade dos homens. Pensa no que querias que teu amigo prestasse a teu filho. Sei o que te respondem teus pensamentos. Julga, então, conforme ouves. Julga. Haverá uma voz. A voz da verdade não se cala. Não clama com os lábios, mas vocifera no coração. Presta ouvidos. Fica ali com o filho de teu amigo (AGOSTINHO, 1997, p. 81). Esse é um dos mais fortes testemunhos na obra de Santo Agostinho, acerca da regra de ouro como lei interior. O tribunal ao qual os homens devem se submeter apresenta um juiz já conhecido, a própria consciência, ao ouvir essa voz o homem saberá como agir e como pautar as suas ações, ao transvia-la o homemquebra uma norma de seu próprio coração. Esse tribunal é essencial, se assim não fosse como o homem que não conhece a revelação seria capaz de cobrar a injustiça sofrida? Isso não seria possível, só o é porque tais homens estão expostos a sofre-la e assim sabem que não devem praticá- la, a Epistola aos Romanos observa que: Quando os pagãos, embora não tenham a Lei, cumprem o que a Lei prescreve, guiados pelo bom senso natural, esses que não têm a Lei tornam-se Lei para si mesmos. Por sua maneira de proceder, mostram que a Lei está inscrita em seus corações: disso dão testemunho igualmente sua consciência e os juízos éticos de acusação ou de defesa que fazem uns aos outros... (Rm. 2,14-15). Ou seja, essa lei está inscrita no coração do homem, pois mesmo os que não conhecem a revelação a praticam como é prevista, tal lei se faz presente no homem por necessidade, é preciso que ela esteja presente no coração humano para que assim ele possa agir bem e para que ele seja correto e justo, esse ideal de justiça dado pela regra demonstra sua natureza ética, pois é ela responsável por fazer o homem agir bem com os outros e com Deus. “Como Anne-Marie La Bonnardière esclareceu, quando Agostinho usa o ditado, ‘o que você não gostaria que acontecesse para você, não faça para os outros’, não é para ele um ato de um texto biblico, mas uma frase que expressa o preceito fundamental da lei natural” (CATAPANO, 2005, p.115)13, nesse sentido o filósofo observa que a regra de ouro é um preceito fundamental da lei natural e não um ato específico de um texto biblíco, sendo assim ele relaciona a regra muito mais profundamente com a natureza humana que 13 “come há chiarito la Bonnardière, quando Agostinho utilizza il detto, ‘quod tibi fieri non uis, alli ne feceris’, se trata per lui non de un testo scritturistico, ma de una sentenza che esprime il precetto fundamentale della legge naturale”. CATAPANO, Giovanni. La regola d’oro in Agostinho. Apud: VIGNA, Carmelo; ZANARDO, Susy (ORG.) La Regola d'oro come etica universale. Vita e Pensiero: Milano, 2005. 26 a própria revelação que traz a conhecê-lá, ela não seria aceita mesmo com a revelação se não fosse preceito já presente no coração homem. Portanto, nota-se que a regra pode ser conhecida de duas maneiras distintas, ela pode ser revelada através da ação divina, bem como pode ser encontrada no próprio coração do homem, acontece que a regra precisava ser revelada para que os religiosos nela acreditassem, mas também precisava estar presente no homem para que os pagãos igualmente o fizessem, o importante é que seja qual for a forma de conhecimento ao que se deu a regra ela é necessária para uma boa conduta de vida e para um bom agir para com os outros. 27 4 A REGRA DE OURO E A “IMAGO DEI” A síntese do desenvolvimento do pensamento de Agostinho acerca da regra de ouro se resume através de sua concepção sobre a “imago dei”14 (causa formal intrínseca da natureza humana) e da graça de Cristo (causa formal extrínseca, Cristo como paradigma de uma natureza atualizada). Uma vez que o homem comete o pecado original ele fere a imagem de Deus que possuía na criação, tal imagem proporcionava ao homem a capacidade de viver plenamente no amor de maneira natural, ao cair no pecado o homem deteriora sua natureza perdendo a imagem de Deus que possuía e para restaurar tal imagem e atualizar a natureza humana Deus envia o Cristo que através da sua graça se torna paradigma para a raça humana. Sendo assim, buscar a concepção que tem Agostinho dessa imagem pré e pós pecado original é necessário para entender como a ideia de redenção proveniente da graça proporciona a restauração da imagem que foi atingida pelo pecado original. 4.1 O AMOR À “IMAGO DEI” Na obra da criação, Deus cria o homem, Adão, no sexto dia. Dando-lhe a Sua imagem e semelhança: Deus disse: “Façamos o ser humano à nossa imagem e segundo nossa semelhança, para que domine sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todos os animais selvagens e todos os animais que se movem pelo chão”. Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus o criou. E Deus os abençoou e lhes disse: “Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a! Dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que se movem pelo chão” (Gênesis 1, 26-28). Para Agostinho, Deus diz à nossa imagem para marcar que não somos imagem só do Pai, ou só do Filho ou só do Espírito Santo. Somos imagem da Trindade, mas essa mesma Trindade é apenas um só Deus. “Então o Senhor Deus formou o ser humano com o pó do solo, soprou-lhe nas narinas o sopro da vida, e ele tornou-se um ser vivente. Depois, o Senhor Deus plantou um jardim em Éden, a oriente, e pôs ali o homem que havia formado” (Gênesis 2, 7-8). Terminada a criação do homem Deus lhe dá como morada um belo jardim chamado Éden. 14 “Imagem de Deus”. 28 Agostinho indica uma oposição entre imago Dei x vestigium Dei15. Pois Deus deixou seu vestígio em toda a criação e todas as coisas criadas são boas. Mas a ordem sensível, incluindo nela o homem exterior, só pode manifestar os vestígios de Deus, já que para Agostinho ela está numa posição inferior. Somente na mente humana, parte mais nobre da alma que corresponde ao homem interior, é que de fato se manifesta a imagem de Deus: Pois, como dissemos (XIV,4,6), na alma, mesmo perdendo a participação de Deus, e se tornando manchada e disforme, permanece, entretanto, a imagem divina. E ela é imagem de Deus, porque precisamente é capaz de Deus, e pode ser partícipe dele. E não poderia alcançar tão grande bem, se não fosse ela a sua imagem (Agostinho, 1997, p. 271) De acordo com o filósofo dizer que homem é feito a imagem e semelhança de Deus significa que "Tendo Deus criado o homem à sua imagem, efetivamente, criou nele uma alma apta pela razão e pela inteligência a se elevar acima de todos os outros animais e demais seres criados, desprovidos de um espírito deste gênero” (AGOSTINHO, 2011, p. 1143). Deus criou o homem dotado de inteligência e saber e com a capacidade para conhecer. Logo após colocá-lo no paraíso Ele percebe que o homem precisa de alguém que o auxilie e assim faz a mulher: Formado o homem do pó da terra, insuflando-lhe essa alma citada, quer a tenha já feita, quer fazendo-a pelo seu próprio sopro, quis que esse sopro fosse a própria alma do homem. E sendo o Criador, fez de um osso tirado do lado do homem, uma esposa para ajudá-lo na geração, ou seja, para a propagação da natureza humana (AGOSTINHO, 2011, p. 1143). Como é dito, Deus não criou o homem e a mulher, mas somente o homem e a partir dele criou a mulher, sendo assim, toda a humanidade descende de um único homem criado a imagem e semelhança de Deus, toda a concepção do universo agostiniano repousa sobre a ideia de semelhança já que todo mundo criado manifesta um elo fundamental de semelhança com seu criador, todos os seres revelam de alguma forma o Ser de Deus em maiores ou menores graus de participação no Ser divino, sendo o homem não só semelhança, mas imagem por excelência de Deus. Tal dignidade do homem deixava-o acima de qualquer outra criatura material, deixando-o abaixo apenas dos anjos: Ao homem, [...] deu uma natureza intermédia entre o anjo e o animal: [...], mas se, abusando da sua livre vontade pelo orgulho e a desobediência, ofendesse o Senhor seu Deus, deveria, condenado à morte, viver à maneira dos animais, 15 “Vestígio de Deus”. 29 escravo das paixões e votado, após a morte, a eterno suplício. Foi por isso que o criou único e só, não certamente para o deixar isolado de todaa sociedade humana, mas para pôr mais em relevo a seus olhos o vínculo de unidade e concórdia que esta sociedade deve manter, estando os homens ligados entre si pela identidade de natureza e pelos vínculos afetivos de parentesco (AGOSTINHO, 2011, p. 1139-1140). Ficou claro nesta passagem que o homem, apesar de criado numa natureza intermediaria entre anjos e animais e mesmo estando muito acima dos animais precisava obedecer aos preceitos de Deus para não sofrer com a escravidão das paixões como os animais. Deus criou o homem nessa condição intermediaria para que através de uma natureza única ela pudesse além de governar o mundo dado viver na unidade e seguir aos seus preceitos. Esse estado original no qual Deus criou o homem, pode ser chamado também de estado de graça que é o estado perfeito de retidão com Deus, estado no qual foram criados os primeiros pais e no qual se manteriam até a beatitude não fosse pelo pecado original. Agostinho comenta, caso o homem não tivesse pecado “juntar-se-ia à sociedade dos anjos e conseguiria para sempre a beatitude eterna sem passar pela morte” (AGOSTINHO, 2011, p. 1139). Esse estado de graça no qual o homem se encontrava é o estado de perfeita comunhão com Deus e perfeita vivência do Seu amor, nesse estado pode-se dizer que os homens viveriam perfeitamente a exigência da regra de ouro, pois, desejariam o bem para si, para o próximo e para Deus sempre, já que em tal estado não haveria desordem na natureza humana, pois, todos os homens estariam sob o efeito do amor de Deus, nesse sentido leva-se em consideração o 3.2 desse trabalho que afirma a regra ter um fundamento na natureza humana, ou seja, Deus cria o homem com a regra já em seu coração. Em relação a isso Agostinho faz um questionamento: Quem é que, de fato, ousaria negar que os primeiros homens no Paraíso tenham sido felizes antes do pecado [...]? Não é sem motivo que nós hoje chamamos felizes àqueles que vemos viverem na justiça e na piedade com a esperança da imortalidade, sem qualquer crime a roer-lhes a consciência, obtendo facilmente a misericórdia divina para os seus pecados de fragilidade presente. [...] a respeito do gozo de um bem presente, o primeiro homem era mais feliz no Paraíso do que qualquer justo na debilidade desta vida mortal. (AGOSTINHO, 2011, p. 1017) Em vista da resposta que Agostinho dá, pode-se dizer que não é possível ao homem de hoje, mesmo que muito próximo a Deus, alcançar a felicidade que tiveram aqueles primeiros homens no paraíso, isso por que por mais santo que seja o homem atual sofre ao menos o temor do pecado enquanto os primeiros homens sequer o conheciam. 30 O homem ao ser criado nesse estado de graça é um homem de boa vontade, pois está em perfeita comunhão com Deus “Assim Deus criou o homem, semelhante a Ti. Para viver na sua bondade e em sua fidelidade, mantendo-se em perfeita ordem carnal e espiritual. Vivendo sob a graça e sob o efeito do amor dele que é seu Senhor e Criador” (DALBOM, 2017, p. 22). Ou seja, este é um estado de perfeito amor à imagem de Deus que há no homem, por isso o homem ama igualmente seus semelhantes já que todos partilham dessa imagem de Deus em si mesmos. 4.2 O AMOR CONTRÁRIO A “IMAGO DEI” Para Santo Agostinho, antes do pecado vem a soberba, antes de comer o fruto proibido é desobedecer a Deus o homem se encheu de soberba e orgulho, ou seja, do desejo de grandeza que o levou a abandonar a Deus e só pensar em si próprio: Foi no seu íntimo que começaram a ser maus para logo caírem em ostensiva desobediência. De fato, não se chega ao ato mau sem que a vontade má o tenha precedido. Ora qual pode ser o começo da vontade má senão a soberba? Efetivamente, "o orgulho é o começo de todo o pecado (Ecles. 10,15)". Mas que é a soberba senão o desejo de uma falsa grandeza? A grandeza perversa está, na verdade, em abandonar o princípio ao qual a alma se deve unir para se tornar de certo modo seu próprio princípio. Isso se realiza quando ela se compraz demasiadamente em si própria. E, de fato, compraz-se em si própria quando se afasta daquele imutável bem que devia agradar-lhe mais do que ela própria a si mesma. [...] o mal, a transgressão em comer do alimento proibido, não se realizou senão por comerem-no quando já eram maus (AGOSTINHO, 2011, p. 1277 e 1278). A soberba é o desejo de colocar-se acima do que lhe convém é querer tomar um lugar que não lhe pertence, de acordo com Agostinho a verdadeira transgressão que se deu em comer o fruto proibido não estava em come-lo, mas em come-lo quando já se era mal. Ao se encher de soberba e orgulho o homem em seu interior já se torna mal e perde aquele estado original do qual foi falado, onde os homens viviam sempre desejando o bem do seu próximo num estado permanente de vivência da regra de ouro, o ato de comer o fruto proibido é a exteriorização do pecado já cometido no interior do homem: A serpente era o mais astuto de todos os animais selvagens que o Senhor Deus tinha feito. Ela disse à mulher: “É verdade que Deus vos disse: ‘Não comais de nenhuma das árvores do jardim?’” A mulher respondeu à serpente: “Nós podemos comer do fruto das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus nos disse: ‘Não comais dele nem sequer o toqueis, do contrário morrereis’”. Mas a serpente respondeu à mulher: “De modo algum morrereis. Pelo contrário, Deus sabe que, no dia em que comerdes 31 da árvore, vossos olhos se abrirão, e sereis como Deus, conhecedores do bem e do mal” (Gen. 3, 1-5). A mulher se enche de soberba com a oferta da serpente “sereis como Deus”, aí está uma má vontade, na oferta de querer ser como Deus, de tomar o lugar do seu senhor que é infinito, poderoso e sábio. Ao se deixar tomar pela soberba o homem abandona a lealdade a Deus, sendo assim por orgulho o homem se volta a si próprio e abandona a lealdade a seu Senhor: Segundo Agostinho, Deus criou o homem a sua imagem e semelhança, dotado de um corpo e uma alma. Se seguisse o movimento natural em direção ao criador, seria feliz. Porém, ao contrário, se abusasse do livre-arbítrio da vontade, desobedecendo e cedendo ao orgulho, iria morrer e tornar-se escravo. Dessa maneira, Deus criou o homem reto. Entretanto, este se corrompeu pelo mau uso da própria vontade. Em vez de usá-la para atingir o fim para o qual Deus a deu, o pecado de Adão mostra que o ser humano preferiu direcionar-se ao que era inferior do que ao bem supremo, numa atitude de orgulho (GRACIOSO, 2012, p. 22). Ao cometer esse pecado por soberba e orgulho e ao voltar-se inteiramente para si mesmo, o homem perde a comunhão do amor de Deus e abandona o princípio moral que vivia no seu estado natural o desejar o bem para si e para o próximo na comunhão com Deus e passa a desejar apenas o bem de si mesmo abandono o estado de ordenação com que foi criado: A soberba é, portanto, a motivação para a transgressão. É a soberba que motiva a realização do ato do pecado original na história dos ascendentes da humanidade. Foi por encherem-se de soberba que pecaram nossos primeiros pais, ao transgredirem o preceito, por desobediência. Isso, preferindo a si por vaidade que a seu Senhor. Viveram, pois, escravos dos vícios das paixões desordenadas, por terem abandonado a ordem original com que foram criados (DALBOM, 2017, p. 29). Assim, o homem passa a querer apenas o próprio bem e por isso faz-se necessária a instituição daquilo que é chamado de moral, pois o homem passa a poder fazer coisas que não deveria e no intuito de evitar que isso aconteça a moral é instituída e Agostinho a funda no princípio de amor contido na regra de ouro. A perca da capacidade natural do homem de se relacionar com Deus significa a perca da capacidade natural de se relacionar com o outro, é nesse sentido que se faz necessário o uso da regra de
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