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PRÁTICA PEDAGÓGICA EM GEOGRAFIA II Clécio José Carrilho 2 SUMÁRIO 1 O ENSINO DA GEOGRAFIA ESCOLAR ........................................................ 3 2 CONCEITOS FUNDAMENTAIS DO ENSINO DE GEOGRAFIA ..................... 18 3 EXPECTATIVAS DE APRENDIZAGEM PARA O ENSINO DE GEOGRAFIA E PLANEJAMENTO ....................................................................................... 31 4 ENSINO DE GEOGRAFIA E EDUCAÇÃO BÁSICA ....................................... 47 5 COMPETÊNCIAS E HABILIDADES ESPECÍFICAS DO ENSINO DE GEOGRAFIA ................................................................................................................. 61 6 PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NO ENSINO DE GEOGRAFIA E AVALIAÇÃO ..... 73 3 1 O ENSINO DA GEOGRAFIA ESCOLAR Frequentemente, os alunos de geografia demonstram falta de interesse pelas atividades pedagógicas desta disciplina e apresentam dificuldades de aprendizagem. Esse quadro problemático leva Cavalcanti (2006) a questionar: [...] que tarefas são exigidas para a prática docente no mundo contemporâneo? Qual é o papel da geografia escolar? Que trabalho docente os professores de geografia têm realizado? Que concepções teórico-práticas têm contribuído para a construção da Geografia escolar? Como tem sido formado os professores de geografia? (CAVALCANTI, 2006, p. 27). Estas questões nos auxiliam na condução desse material cujo objetivo principal é discutir com professores em formação a prática da geografia na educação básica. A trajetória deste material instrucional perpassa pela compreensão da dinâmica do ensino da geografia dos elementos que constituem esse ensino, suas condições de realização, o contexto legal-orientacional desse ensino (BNCC, legislação etc.), o papel dos sujeitos envolvidos nesse processo de ensino-aprendizagem. 1.1 Concepções de Geografia ensinada A Geografia é uma das habilidades cognitivas intuitivas da humanidade. Não é necessária uma educação formal para que se pense o espaço, utilize-se referências espaciais, interprete-se a natureza e a sociedade e, a partir dessa compreensão, se produza e se organize o espaço. Toda sociedade humana ancestral ou com traços primitivos demonstraram historicamente uma relação espacial que lhe permitiu a sobrevivência e a prosperidade. A Geografia, enquanto uma ciência ou conhecimento formal, surgiu justamente da reflexão e da observação dessa experiência, tendo como objetivo o desejo de conhecer e desenvolver-se. Portanto, o pensamento geográfico é inerente à existência humana. 4 Um antigo filósofo grego que viveu entre 276 a 194 a.C., Eratóstenes, foi o primeiro, até onde se sabe, a utilizar o termo Geografia, que em língua grega é formado da palavra “geo”, o que significa Terra, e “grafia”, que significa escrita ou descrição material da linguagem. Outro filósofo grego, Estrabão, que viveu entre 64 e 24 a.C., escreveu o primeiro tratado conhecido de Geografia, com 17 livros abordando historicamente o espaço e as sociedades conhecidos a seu tempo, por meio de descrições e narrativas detalhadas. Desde então, estabeleceu-se uma pesquisa e sistematização dos conhecimentos espaciais até o presente, naturalmente com enfoques, concepções e perspectivas diferentes ao longo do tempo. De acordo com Moreira (1982, p. 18), o espaço “[...] é o objeto da Geografia, o conhecimento da natureza e leis dos movimentos da formação econômico-social é o seu objetivo [...]”, o que faz do espaço geográfico a categoria por intermédio da qual se busca aprender os movimentos do todo: a formação econômico-social. A noção de espaço como “chão” da Geografia é, certamente, um tema que perpassa todos os discursos geográficos em todos os tempos, tal como se pode aferir de uma simples confrontação da maneira como a vêm definindo os geógrafos. Os gregos definiam a Geografia em seu sentido etimológico, como descrição da terra, em termos de um enciclopedismo que era fruto de sua visão sistêmica dos fenômenos. Objeto da Geografia seria os fenômenos passados na superfície terrestre, mas como estes tinham sua gênese numa escala fenomenológica que transcende a epiderme do planeta, suas dimensões eram cósmicas. Essa foi a herança que se arrastou até o século XVIII e desenvolvida por Estrabão, Ibn Kha ldun, Cuverius, Avenarius, cada qual alargando apenas o campo de conhecimento e propondo uma primeira sistematização da ciência. (MOREIRA, 1982, p. 18-19). Apesar de ser um conhecimento intuitivo e sistematizado formalmente enquanto ciência, a Geografia se faz presente como um dos conhecimentos escolares, ou uma das disciplinas que constituem a grade curricular das escolas. 1.2 Por que ensinar e aprender Geografia? Há um forte vínculo entre o conhecimento escolar e o conhecimento científico; no entanto, o discurso escolar não é simplesmente uma transposição didática, isto é, uma apropriação com fins didáticos do discurso científico. Antes de mais nada, o conhecimento escolar é constituído pelos saberes docentes e discentes, e conta com a 5 contribuição de outras fontes, tais como a arte, os meios de comunicação, as formas gerais referentes à ética e à moral de uma sociedade, entendendo-se a ética como valores construídos social e historicamente, e a moral como as regras de comportamento coerentes com esses valores. Dada a relação entre conhecimento escolar e conhecimento científico, podemos perceber diversas concepções sobre a Geografia que se ensina. Para evidenciar essas diferenças, discutiremos no próximo tópico duas concepções de ensino e aprendizagem e a relação que o Ensino de Geografia pode ter com elas. A geografia escolar tem uma importância explícita para a formação geral do cidadão; em outras palavras, a formação da pessoa humana e a formação da Cidadania, como obriga a Constituição Federal do Brasil de 1988, aspecto que abordaremos adiante com mais precisão. Dado que as práticas sociais do cotidiano possuem uma dimensão espacial, é necessário que o cidadão formado institucionalmente adquira um raciocínio espacial, ampliando o originário das relações sociais cotidianas, que no Ensino de Geografia denominamos conhecimentos prévios. A geografia escolar contribui para essa formação ao auxiliar os alunos a identificarem, analisarem e verem esses conhecimentos próprios, desenvolvendo um pensamento geográfico e aprendendo métodos e procedimentos para captar a realidade tanto daquela vivida cotidianamente quanto daquela representada por meio da geografia escolar, da literatura, da mídia e de todas as outras instâncias de interação sociocultural. Formar um pensamento espacial e generalizar as próprias experiências são objetivos do Ensino de Geografia. Os conceitos desse pensamento e dessa experiência não se constituem e se desenvolvem nos alunos pela mera transferência ou por reprodução de conteúdos, mas se formam a partir do encontro e da ressignificação do que Lana de Souza Cavalcanti (2006) denomina conceitos científicos e conceitos cotidianos. Ou seja, educa-se geograficamente a partir do momento em que a experiência adquirida e aprendizagem em aquisição forma o aluno de modo social, racional e cognitivo emocional. 6 Os conteúdos ministrados na Geografia escolar têm relação tanto com a ciência geográfica quanto com a realidade dos alunos. Por que ensinamos Geografia e o quê ensinamos? Sobretudo, como ensinamos? A abordagem a seguir referenda esta última questão e adiante, em outros módulos, refletiremos sobre o que ensinamos. 1.3 A lógica formal e a dialética É essencial que o professor, sendo também pesquisador, compreenda adequadamente os métodos da ciência com a qual trabalha em sala de aula. Na Geografia, usualmente, os métodos trabalhados na produção do saber são a lógica formal (ou método hipotético-dedutivo, sistêmico), a dialética,fenomenologia e, de modo mais recente, a complexidade. Estas são as matrizes metodológicas com as quais a Geografia tem construído o seu corpo de conhecimentos ao longo dos últimos séculos. Todas essas matrizes se caracterizam pelo posicionamento e pela relação entre o sujeito e o objeto, compreendendo-se o sujeito como aquele que produz o conhecimento, e o objeto como o recorte da realidade em estudo. Na perspectiva da lógica formal temos o empiricismo, o positivismo, o neopositivismo e as abordagens sistêmicas, das quais a Geografia se fundamentou para elaborar escolas históricas tais como a Geografia Regional francesa, a Geografia Política alemã, a Geografia Teorética Quantitativa, o geossistemas, entre outras. Quanto à lógica formal, o objeto é maior do que o sujeito, que deve, na medida do possível, ser neutralizado. Por exemplo: se em sala de aula o professor estiver desenvolvendo práticas e abordagens para ensinar o clima de um determinado lugar, será de pouco auxílio alguém expressar a opinião de que, naquele ou em qualquer outro dia, vai chover ou não vai chover, dado que a opinião do sujeito em nada influencia a realização do objeto, isto é, a precipitação, que vai depender de forças próprias tais como pressão atmosférica, umidade, temperatura, dentre outros elementos absolutamente independentes da subjetividade do pesquisador. Nesse sentido, estuda- se objetivamente o comportamento climático e do tempo, sendo a forma correta de proceder na compreensão desse fenômeno específico. 7 Com base no pensamento cartesiano, Vergez e Huisman (apud SPOSITO, 2004), afirmam que o método hipotético-dedutivo, sistêmico ou lógico formal, lógico-formal, marcado pela objetividade, caracteriza-se da seguinte forma: 1. A primeira regra é a evidência, que não deve admitir nenhuma coisa como verdadeira se não a reconheço evidentemente como tal. Assim, deve-se evitar toda precipitação e toda prevenção (preconceitos ou pré-conceitos) e só ter por verdadeiro que for claro e distinto, isto é, o que eu não tenho a menor oportunidade de duvidar. A evidência é algo indubitável (que existe às dúvidas) o produto do espírito crítico. 2. Uma outra regra é análise: dividir cada uma das dificuldades em tantas parcelas quantas parcelas forem possíveis. 3. A terceira é a regra da síntese: concluir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer para, aos poucos, ascender, como que por meio de degraus, aos mais complexos. Com esta regra cartesiana, podemos lembrar o procedimento indutivo e veremos que eles se constituem em elementos semelhante à regra exposta. 4.A última regra é aquela dos desmembramentos tão completos... a ponto de estar certo de nada ter omitido. (VERGEZ; HUISMAN, apud SPOSITO, 2004, p. 30). Resumindo, a objetividade científica construída a partir da evidência ou do objeto de estudo, analisa em todos os seus elementos e processos constituintes e em seguida cria sínteses dos conhecimentos obtidos. A cartografia escolar, os estudos da natureza e da população urbana a partir de dados quantitativos e materiais são exemplos de construções objetivas no Ensino de Geografia. O método dialético, por sua vez, caracteriza-se por ser aquele procedimento que refuta as opiniões do senso comum, identificando contradições para então racionalmente chegar à verdade. A dialética nasce na antiguidade grega, a partir da contribuição de Sócrates, desenvolvido por Platão, discípulo de Sócrates, que afirmava que as ideias eram mais reais que os próprios fenômenos naturais, daí a importância da argumentação. Ao passo que Platão enfatizou a razão como método para construir conhecimentos, Aristóteles assegurou que este também era um papel dos sentidos humanos, acrescendo a razão uma base empírica. 8 Dialética, em sua origem etimológica, significa diálogo, ou seja, confronto entre partes distintas por meio da razão. É nesse sentido que entendemos a dialética: “O pensamento que é elaborado, uma vez estabelecido, vai ser confrontado com o novo pensamento, criando uma tensão entre dois modos de pensamento” (SPOSITO, 2004, p. 40). O filósofo alemão Hegel denominou esse processo como dialético, em que uma afirmação atrai necessariamente uma negação, levando a uma terceira posição superior à afirmação e à negação, fazendo da dialética a compreensão dos contrários, o que podemos entender como crítica, capaz de identificar contradições na realidade ao supor uma determinada a materialidade e a essência histórica que a compõe. É desse movimento, por exemplo, que nasce o materialismo histórico dialético, base teórico-metodológica para constituir as Geografias Críticas. Para exemplificar: se observamos uma determinada rua, de determinada cidade, possivelmente não veremos com frequência recorrente assaltos, homicídios, furtos e outras formas de violência urbana; no entanto, se observarmos as fachadas das casas e vermos dispositivos como pega ladrão, portões fechados, cerca elétrica, câmeras de vigilância, dentre outros, podemos deduzir que se trata de um espaço acessível à essa violência urbana, de modo que os moradores estão procurando proteger-se dela. A materialidade das fachadas nessa rua se constrói de acordo com o processo essencial, que é o próprio processo da violência urbana. Ainda de acordo com o Sposito, a dialética, como ciência das leis gerais do movimento e do desenvolvimento da natureza, da sociedade e do pensamento humano, possui três leis, amplamente conhecidas por aqueles que têm um mínimo de familiaridade com o Marxismo, que assim podem ser resumidas: (1) a transformação da quantidade em qualidade e vice-versa; (2) a unidade e interpenetração dos contrários, e (3) a negação da negação. (SPOSITO, 2004, p. 45). Se na lógica formal o sujeito é menor do que o objeto, na dialética há uma relação recíproca entre sujeito e objeto, já que o sujeito também é parte do objeto pesquisado. 9 Há diferença entre abordagem metodológica e fenomenológica que veremos a seguir, na dialética, a ênfase que se dá nos sujeitos coletivos e categóricos. Que sujeitos seriam esses? O sindicato, os trabalhadores, os professores, os moradores de um bairro ou de uma cidade, os cidadãos de um determinado país e assim sucessivamente. Interessa à dialética aquilo que o sujeito pode projetar na coletividade e aquilo que a coletividade pode projetar no sujeito. O ensino crítico-dialético de Geografia foi importante para começar a explorar as desigualdades socioeconômicas nas cidades e entre os países, redimensionar criticamente a geografia política, evidenciar os problemas gerados pelo impacto ambiental, dentre outras temáticas não abordadas anteriormente pelo Ensino da Geografia. 1.4 A fenomenologia e a complexidade No método fenomenológico, às vezes reconhecido como hermenêutico, o esforço da ciência aplica-se em interpretar e compreender os objetos e os sujeitos do conhecimento de forma que o ser humano assume uma centralidade nesse processo, elegendo a subjetividade como centro da pesquisa científica. A fenomenologia coloca em evidência o problema do outro em sua plenitude, colocando o fenômeno para além da aparência, manifesto pleno dos sentidos, sendo o papel da ciência desvendar esses sentidos. Assim, ela consiste em um método e em uma forma de pensar em que a percepção é essencial para produzir conhecimentos, rompendo a oposição entre o sujeito e objeto. De fato, na fenomenologia sujeito e objeto são equivalentes. A fenomenologia foi base importante para a construção da Geografia Humanística e da Geografia Cultural. Por meio dessa abordagem metodológica, a Geografia passou a perceber o espaço vivido como evidência das práticas sociais. 10 O esforço teórico-metodológico da fenomenologia na Geografia é descrever o fenômeno, em outras palavras aquilo que sedá imediatamente aos sentidos do pesquisador e do sujeito pesquisado, de modo que a fenomenologia não se interessa pelas Ciências da Natureza e se opõem, de certa forma, ao empirismo, pois renuncia uma teoria do conhecimento. Seu objeto é sobretudo a constituição das ciências humanas. Paisagem e lugar, portanto, ocupam lugares especiais dentre os conceitos chaves operados pela Geografia nessa perspectiva metodológica. Reconhece-se que quem descreve o objeto é o próprio sujeito e o que é possível aprender do objeto em pesquisa é evidência dos próprios sujeitos que descrevem o objeto e das relações que tem com ele a partir do próprio ponto de vista. Para compreender a mais recente e ainda frequente abordagem metodológica na geografia, a complexidade, precisamos compreender alguns conceitos essenciais: disciplinaridade, interdisciplinaridade, transdisciplinaridade e transversalidade. Disciplinaridade A disciplinaridade define-se pela circunscrição de um corpo teórico-metodológico instituído a partir de um objeto de estudo específico. Assim, o quadro curricular da instituição escolar apresenta uma série de disciplinas que atende a esses critérios: história, geografia, química, matemática, língua portuguesa, filosofia etc. Também uma ciência é feita a partir do entrelaçamento de diversas disciplinas que atuam igualmente como a circunscrição de um corpo teórico-metodológico instituído a partir de um objeto de estudo específico. Na ciência geográfica, por exemplo, temos disciplinas como geografia da população, geologia, climatologia, cartografia, sensoriamento remoto, regionalização do espaço Mundial, dentre outras, que, juntas compõem o que conhecemos como Geografia, uma das ciências modernas. 11 Interdisciplinaridade A interdisciplinaridade refere-se à realização de um projeto comum com o auxílio de duas ou mais disciplinas, sendo que, nessa ação, nenhuma delas perdem a sua identidade originária. É muito comum a instituição escolar fazer projetos interdisciplinares, inclusive aqueles extracurriculares, tais como gincanas, campeonatos esportivos, semanas culturais, semanas científicas e outros. Transdisciplinaridade A transdisciplinaridade, por sua vez, caracteriza-se por disciplinas que começam a trabalhar de forma interdisciplinar, mas dada a natureza do projeto em desenvolvimento, em algum momento se fundem, perdendo suas características originárias, encaminhando-se para a geração de uma terceira ciência ou disciplina. Por exemplo, a partir de projetos interdisciplinares desenvolvidos entre a medicina e a biologia, surgiu uma nova ciência: a biomedicina. Em referência às disciplinas originárias, a biomedicina é uma ciência transdisciplinar. No âmbito da Educação, como veremos apropriadamente adiante, as disciplinas Geografia, História, Filosofia e Sociologia deixam de atuar no Ensino Médio como disciplinas específicas e autônomas, passando a constituir uma área transdisciplinar denominada ciências humanas. Transversalidade A transversalidade, por seu lado, diz respeito a conteúdos, temas e componentes de programas curriculares que não estão circunscritos a uma única disciplina; sendo, contudo, indispensável à formação do discente, são abordadas por um grupo de disciplinas, a partir da perspectiva de cada uma, enriquecendo o desenvolvimento desses conteúdos. Classicamente, temos o exemplo dado pelos PCN, que elencam temas transversais, que, recentemente, na BNCC, foram incorporados nas competências e habilidades gerais e específicas. Com a teoria da complexidade em Edgar Morin (2014, p. 32-33) e outros pensadores da complexidade reivindicam uma revolução epistemológica em que se reforme o 12 pensamento no sentido de “[...] favorecer a inteligência geral, aptidão para problematizar a realização da ligação dos conhecimentos”. Nessa crítica, percebe-se que os conhecimentos científicos pautados na disciplinaridade enquanto organização do conhecimento tem o risco da hiperespecialização, que pode fazer o conhecimento perder contato com a realidade, da complexidade da realidade ser relegada a um segundo plano. Especificamente sobre a educação, na obra “A cabeça bem-feita”, Edgar Morin (2014) trabalha duas concepções de ensino e aprendizagem resumida nos conceitos uma “cabeça bem feita” e uma “cabeça bem cheia”. Trata-se de uma imagem alegórica que ilustra um conceito amplo capaz de nos dar uma perspectiva estrutural da Educação, a de uma educação tradicional no sentido de uma cabeça bem cheia e a de uma concepção de educação que procura alternativas no sentido de formar pessoas. Quando pensa as práticas pedagógicas da instituição escolar, Morin (2014) diz que uma cabeça bem cheia preocupa-se com o ensino e a aprendizagem centrada nos conteúdos, no acúmulo de conteúdos naquilo que Paulo Freire já nos anos 1960 reclamava como sendo uma educação bancária. Para que se tenha a educação de uma cabeça bem feita, Morin reclama que, ao invés de acumular o saber, é mais importante de expor ao mesmo tempo de: uma aptidão geral para colocar e tratar os problemas; princípios organizadores que permitam ligar os saberes eles dar sentido. (MORIN, 2014, p. 21). Para encaminhar a educação nesse sentido, é indispensável cultivar a curiosidade, a capacidade interrogativa, estimular a dúvida como fermento para a atividade crítica. 1.5 Concepções metodológicas da ciência geográfica e sua relação com o ensino escolar Dentro do escopo desses métodos, desenvolvem-se formas específicas de pensamento para produção de conhecimentos, bem como as escolas históricas de produção da Geografia. 13 A prática de ensino de geografia perpassa pela problemática de que não há fórmulas para se ensinar algum conteúdo. As relações de ensino e aprendizagem são ao fundo relações humanas; portanto, traz em si a mesma complexidade de todo relacionamento humano: é imprevisível e relativo ao posicionamento do outro, de maneira que dar aula sempre será um ato que, embora planejado, perpassa pelo improviso das relações humanas, pela reação dos sujeitos envolvidos nesse processo e, sobretudo, pela retomada da complexidade da realidade na qual o sujeito vive. Mesmo não havendo fórmulas corretas para se dar uma boa aula, conhecer os métodos que produz o conhecimento auxilia o professor a compreender a constituição dos conteúdos, e conhecendo essa formulação o professor pode planejar na sua prática, estabelecer a sua didática, a partir do conhecimento dos alunos aos quais atende em termos de aprendizagem. Permeada pela racionalidade e com forte influência do positivismo, escola filosófica do século XIX, que circunscreveu a ciência como um campo disciplinar em torno de um objeto de estudo, a Geografia foi introduzida no Brasil primeiro como disciplina escolar, particularmente no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Nessa acepção, o Ensino de Geografia estruturava-se no estudo de regiões, que paulatinamente assumiu uma visão de lablachiana em que os espaços eram explicados por si mesmo, como materialidades a partir da qual se estruturavam modos de vida. Esse Ensino de Geografia procurava caracterizar as diferenças espaciais e sociais, fixando o habitante típico das regiões, que até hoje permeiam o imaginário popular brasileiro: o gaúcho, o caiçara, o ribeirinho, o sertanejo e assim sucessivamente. Sobretudo, após a criação da Universidade de São Paulo, que a agregou as Faculdades de Filosofia, Ciência e Letras com outras instituições de ensino superior do Estado paulista, pela primeira vez a Geografia assumiu um espaço institucional no ensino superior brasileiro. Os primeiros geógrafos universitários que atuaram nesse espaço eram fortemente influenciados pela Escola Francesa de Geografia, que opunha sua forma de pensar à escola alemã, liderada por Friedrich Ratzel. 14 Ratzel defendiaque o ser humano é dependente da sua relação com a natureza, ponto de partida para constituir os meios de existência e desenvolvimento social. Na obra de Ratzel, encontramos a importância do solo para estruturar o sustento e a modelagem das sociedades em função das condições ambientais nas quais se inserem, sendo uma característica marcante da escola alemã o território como categoria geográfica definidora das relações socioespaciais. Erroneamente, essa perspectiva ficou conhecida como determinismo ambiental, embora Ratzel não defendesse estritamente que as condições naturais fossem determinante para os modos de existência e formação social humanas. A esse entreposto teórico, opunha-se a Escola Francesa de Geografia, reconhecida como possibilista, segundo a qual a natureza fornece as possibilidades de transformação dos espaços e de desenvolvimento para as sociedades humanas. Para a Escola Francesa de Geografia, em que ganha grande importância o conceito de região, as condições ambientais são um simples anteparo para o protagonismo das técnicas, dos hábitos e da organização social que torna possível o desenvolvimento humano a partir das possibilidades oferecidas pelo ambiente em que as pessoas habitam. Não deixa de reconhecer, entretanto, que o meio ambiente influencia os seres humanos, embora protagonismo seja regido pela racionalidade das sociedades habitantes dos espaços. Como herança da Escola Francesa de Geografia, esta ciência, no Brasil, concentrou-se em realizar precisas descrições regionais demonstrando que as paisagens evidenciam a intervenção da ação humana a partir das relações entre a natureza e a sociedade ao longo de determinado tempo. Tanto a Escola Alemã quanto a Escola Francesa de Geografia foram influenciadas pelas ideias positivistas que dominaram até as primeiras décadas do século XX: as explicações objetivas e quantitativas do espaço geográfico e das sociedades, conduzida a partir da neutralidade do discurso científico, distante o quanto possível de qualquer tipo de politização das relações humanas. Essas ideias, de forma geral, caracterizaram o Ensino de Geografia em vigor praticamente até a década de 1980. 15 O primado da Escola Francesa de Geografia permaneceu até a entrada no debate de um outro geógrafo francês, na década de 1970, chamado Yves Lacoste. Este, evidentemente, teve outros precursores, mas notabilizou-se por refletir sobre o caráter político da Geografia, fazendo uma transição do pensamento lógico formal para um pensamento dialético em que, no espaço geográfico, as relações sociais são muito mais relevantes que as condições propriamente materiais, ou naturais. A geopolítica e o desenvolvimento econômico dos países foram uma pauta significativa para configurar o que ficou conhecido como Geografia Crítica, que atuou para desligar a ideia da neutralidade da ciência, no caso a ciência geográfica, enfatizando o papel da ciência para construir uma crítica à sociedade capitalista e às formas de apropriação da natureza, considerando-se as relações sociais. Para a Geografia Crítica são centrais as relações entre trabalho, sociedade e natureza, influentes na transformação do espaço geográfico, bem como das contradições socioeconômicas evidentes nas sociedades humanas. O estudo do político, não necessariamente da política, fez ganhar ênfase quanto à formação da cidadania, viés pela qual o Ensino de Geografia passou a abordar conceitos espaciais como lugar, paisagem, território, região. Não se trata apenas de uma questão epistemológica do Ensino de Geografia, já que a própria Constituição Federal do Brasil (1988) recomenda a educação básica como referência para a preparação da cidadania. Ao mesmo tempo em que ascendia a Geografia Crítica, uma outra vertente, de influência fenomenológica, começou a construir uma alternativa à abordagem lógica formal ou sistêmica na Geografia: a denominada Geografia Humanística e/ou Geografia da Percepção. Tendo como marcos anos 1960, essa abordagem focalizou a produção de conhecimento fundamentada nas experiências pessoais e sociais dos seres humanos, considerando a relação entre estes e o ambiente na qual se insere, retomando os valores, os símbolos, as crenças e os comportamentos das pessoas. 16 Yi-Fi Tuan, uns dos geógrafos humanistas, por exemplo, se propôs a estudar os sentimentos de pertencimento das pessoas aos ambientes naturais ou historicamente construídos, identificando as respostas psicológicas das pessoas como forma de construção cultural das sociedades. Tendo por base estas breves considerações, as quais o licenciando em Geografia deve procurar aprofundar com o estudo das obras e autores constituintes desses pensamentos, o Ensino de Geografia precisa ser pensado em sua estrutura. Para isso, em primeiro lugar, este ensino, suas práticas pedagógicas, os livros didáticos, apesar de serem construídos a partir da visão metodológica predominante de seus protagonistas, não se pode deixar de considerar que a Geografia é uma disciplina escolar. Como disciplina, é resultado de uma transposição didática da ciência, anulando-se às dicotomias constituintes da ciência geográfica, tais como a geografia física, a geografia humana, as características particulares condizentes ao desenvolvimento histórico de cada escola geográfica, bem como as marcas predominantes da Lógica formal, da dialética e da fenomenologia, pois todos esses enfoques são trabalhados de forma conjunta para estruturar esse ensino. Isso significa dizer que o ensino de geografia requer objetividade, subjetividade, racionalidade e irracionalidade, pois como disciplina procura aproximar o educando de uma visão do mundo. O ensino de geografia, em última instância, constrói uma percepção do mundo no qual os alunos vivem considerando desde as inserções locais até relações mais amplas, como as globais. Em outras palavras, o ensino de geografia aproxima-se o quanto possível da realidade que circunda a produção da existência de seus alunos. 17 REFERÊNCIAS CAVALCANTI, L. de S. Bases teórico-metodológicas da geografia: uma referência para a formação e a prática de ensino. In: _____ (Org.). Formação de professores e práticas em Geografia. Goiânia: Editora Vieira, 2006. p. 27-49. MOREIRA, R. A Geografia serve para desvendar máscaras sociais. Geografia, teoria e crítica: o saber posto em questão. Petrópolis: Vozes, 33-63, 1982. 112, 1982. MORIN, E. A cabeça bem-feita. Repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução de Eloá Jacobina. 21. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014. SPOSITO, E. S. A questão do método e a crítica do conhecimento. In: ______. Geografia e filosofia. Contribuição para o ensino do pensamento geográfico. São Paulo: Editora Unesp, 2004. p. 23-72. 18 2 CONCEITOS FUNDAMENTAIS DO ENSINO DE GEOGRAFIA Uma ciência caracteriza-se por um objeto de estudo, que no caso da Geografia é o espaço geográfico, e por um conjunto de conceitos básicos que formam seu corpo teórico e metodológico. Esses conceitos passam por frequentes ressignificação, na medida em que avançam os estudos sobre a realidade espacial. De qualquer forma, os principais conceitos geográficos são lugar, território paisagem, região, escala geográfica. Na Geografia escolar, esses são os conceitos trabalhados com mais frequência. Não se trata de ensinar os alunos a decorar esses conceitos: eles fazem parte das discussões e abordagens gerais dos conteúdos geográficos que formam o currículo dessa disciplina. No Ensino de Geografia, atualmente, valoriza-se o aluno como sujeito do seu processo de aprendizagem, ou como um ser atuante e dinâmico nesse processo; valoriza-se seus saberes prévios e, sobretudo, as experiências espaciais que constroem cotidianamente. Assim, considerando-se a vivência dos alunos, um dos conceitos mais evidentesé o de lugar, pois se conecta ao espaço vivido e às primeiras experiências geográficas do aluno. O mundo atualmente é marcado pela globalização, entendida como a eliminação das fronteiras culturais, tecnológicas, econômicas e sociais, dentre outras. Trata-se de uma integração ou aproximação dos espaços, o que caracteriza o espaço geográfico em sua abordagem contemporânea. A globalização é contraditória porque amplia as desigualdades, agravando os problemas que, de locais, alcançam dimensões globais. O ensino de geografia, nesse contexto, lida com situações como exclusão social, desigualdades socioeconômicas, aumento da violência, fragmentação territorial, segregação espacial, problemas ambientais dentre outros relevantes. As tecnologias da informação ou comunicação, conhecidas como TICs, permitem a simultaneidade e a rápida transmissão e acesso aos conhecimentos acumulados pela humanidade. No entanto, esse acesso à informação igualmente é caracterizado pelo 19 despreparo para lidar com informações, o que amplifica, por exemplo, o problema da desinformação e das Fake News, e mesmo a questão da homogeneização cultural, notando-se a universalização de hábitos, comportamentos, lazer e modelos de vida social. A percepção espacial dos sujeitos não deixa de ser afetada por esse amplo contexto. Nesse sentido, o trabalho e a educação geográfica têm como desafio ensinar uma leitura da espacialidade contemporânea: ensinar Geografia é ensinar o aluno a olhar um contexto amplo e global do qual todos fazem parte e, ao mesmo tempo, ensiná-lo a olhar o contexto local, ou o lugar do aluno. Para lidar com esta contemporaneidade, o Ensino de Geografia trabalha com a pluralidade e a diversidade. Elas são abordadas na educação geográfica por meio das categorias e conceitos que operacionalizam a compreensão e a leitura do espaço geográfico. Lembrando que conceitos e categorias são definições científicas pelas quais se faz uma representação da realidade, sendo categoria mais distante do objeto e o conceito uma aproximação do objeto, aprendendo-o em sua materialidade ou em seu processo. Para melhor compreensão do Ensino de Geografia, rememoramos a seguir alguns dos conceitos chaves que estruturam essa disciplina escolar e a própria ciência geográfica. 2.1 Espaço e paisagem O espaço geográfico talvez seja a categoria mais complexa e importante da ciência geográfica, tomada como sendo o objeto e a maior contribuição metodológica desta ciência. Paisagem, por sua vez, é a porta empírica através da qual se acessa o objeto da Geografia. A seguir, refletiremos sobre ambos. Talvez a melhor compreensão do que seja o espaço geográfico possa ser alcançada por uma ilustração: o disco de Newton. Neste artefato, tem-se um disco ligado a uma manivela, sendo sua superfície frontal dividida em partes iguais, preenchidas com as cores da decomposição da luz, que é branca – ou as cores do arco-íris. Quando o disco está parado, percebemos claramente todas as cores em sua distinção. Quando o disco é girado pela manivela a velocidade faz com que as cores se misturem e componha uma 20 superfície branca. O espaço geográfico é isso: uma composição das paisagens, lugares, regiões, territórios, escalas, redes e outros conceitos operacionais da Geografia. O espaço como categoria científica orienta-se por diversas abordagens metodológicas, tais como perspectivas fenomenológica, dialética e sistêmica (na perspectiva da lógica formal). Em todas, contudo, existem algumas bases em comum, sendo a principal delas o fundamento social. De acordo com Cavalcanti (2006), a geografia busca [...] se estruturar para ter um olhar mais integrador, aberto, ao mesmo tempo, às contribuições de outras áreas da ciência e as diferentes especialidades em seu interior, um olhar mais compreensivo, mais sensível às explicações do senso comum, ao sentido dado pelas pessoas para suas práticas espaciais. No mundo contemporâneo as práticas cotidianas das pessoas [...] são complexas, fragmentadas, desiguais, diferenciadas, multiculturais, interculturais, desterritorializadas, organizadas em fluxos e redes, midiáticas e informatizadas. (CAVALCANTI, 2006, p. 32). A primeira identificação que o senso comum faz sobre o espaço geográfico o direciona à superfície terrestre, o que é, do ponto de vista da ciência geográfica, insuficiente para compreender esta categoria. No senso comum, é frequente se identificar o adjetivo geográfico com os processos e feições naturais, tais como clima, hidrografia, geologia etc., apenas de maneira secundária referindo-se à ocupação humana. No entanto, apesar de essa acepção que ainda faz parte do pensamento popular ter sido por longo tempo a conceituação que espaço geográfico tinha na visão da geografia sistematizada enquanto conhecimento formal, a ponto de ser traduzida como descrição da superfície terrestre, a pesquisa teórico-metodológica da ciência geográfica agrega à concepção de espaço o fato de ser um espaço social, ou seja, aquele espaço apropriado, transformado, organizado e produzido pela sociedade. O que significa dizer que a materialidade não esgota o espaço social, pois o espaço perpassa por uma organização que o caracteriza de acordo com a divisão espacial do trabalho, com a distribuição e a disposição da infraestrutura técnica, que gera fenômenos espaciais como segregação, centralização e outros. 21 Sobretudo, o espaço não se esgota na organização: ele é igualmente produzido, como vemos claramente em alguns processos urbanos, como revitalização de espaços, o próprio fenômeno de produção urbana ou de re-tecnificação do espaço rural. Quanto à paisagem, de acordo com Souza (2017, p. 46), “a ideia de paisagem nos remete, inicialmente, não à ciência, mas sim à pintura, mais especificamente à pintura da Renascença na Itália [...]”. No Ensino de Geografia, o conceito de paisagem começa a ser ensinado e aprendido a partir dos anos iniciais do Ensino Fundamental (também os de lugar e região), quando em geral o currículo dessa disciplina explora as diferenças entre as paisagens urbanas e as paisagens rurais, já então desconstruindo a noção do senso comum que define paisagem como sendo uma “visão que pede foto”, ou uma perspectiva do espaço passível de ser representada iconograficamente. A paisagem define-se como apreensão sensorial do espaço por meio da visão, do olfato, do tato e da audição, conjugando diversas temporalidades que a torna única: a paisagem abriga o passado, o presente e a perspectiva do futuro. Trata-se de um produto social e histórico que testemunha tanto a sociedade que a construiu quanto as formas de sua construção. Em síntese, a paisagem é o espaço visível e material, embora essa materialidade denuncie os conflitos socioambientais que constroem, produzem e constituem o espaço humano. Embora paisagem não seja um conceito exclusivo da Geografia, sendo elaborado e utilizado em diversos outros conhecimentos formais e científicos, trata-se de um conceito que classicamente tem ajudado a constituir o saber geográfico. Sistematicamente, esse conceito é compreendido como sendo a expressão de uma área passível de descrição. Dialeticamente, compreende-se, com a paisagem, a expressão visível de um determinado espaço, em que se procura a compreensão da essência da produção desse espaço. Fenomenologicamente, a paisagem não se constitui apenas de materialidades objetivas, mas igualmente de aspectos subjetivos dos sujeitos, sendo a expressão funcional, estética e técnica de uma determinada sociedade. 22 Conforme referido anteriormente, quando afirmamos que dão conta do passado, do presente e do futuro, as paisagens indicam uma dinâmica histórica, expressando as ações sociais, as contradições e os desejos de uma determinada a sociedade (CAVALCANTI, 2006, p. 32). 2.2 Território Este é um conceitofundamental da Geografia, presente em seus diversos movimentos teórico-metodológico, desde sua gênese na perspectiva de uma das ciências modernas. Frequentemente, há uma identificação genérica entre “território” e “espaço geográfico”, tratados como sinônimos, e com certa recorrência dentre os próprios geógrafos. Em decorrência disso, a formação docente em Geografia deve compreender adequadamente este conceito. Em linhas gerais, segundo Souza (2017), território é concebido como sendo um espaço cuja definição e delimitação se dá por e a partir das relações de poder. Sendo assim, é necessário que se entenda o que é poder. De acordo com a filósofa Hannah Arendt (1983), o poder é sempre, como diríamos, hoje, um potencial de poder, não uma entidade imutável, mensurável e confiável como a força. Enquanto a força é a qualidade natural de um indivíduo isolado, o poder passa a existir entre os homens quando eles agem juntos, e desaparece no instante em que eles se dispersam. [...] um grupo de homens relativamente pequeno, mais bem organizado, pode governar, por tempo quase indeterminado, vastos e populosos impérios [...]. Por outro lado, uma revolta popular contra governantes materialmente fortes pode gerar um poder praticamente irresistível, mesmo quando se renuncia à violência face a forças materiais vastamente superiores. (ARENDT, 1983, p. 212-213). Feitas estas considerações, Arendt (1985), em outro texto, afirma que o poder corresponde à habilidade humana de não apenas agir mas de agir em uníssono, em comum acordo. O poder jamais é propriedade de um indivíduo; pertence ele a um grupo e existe apenas enquanto o grupo se mantiver unido. Quando dizemos que alguém está no poder, estamos na realidade nos referindo ao fato de encontrar-se essa pessoa investida de poder, por um certo número de pessoas, para atuar em seu nome. No momento em que o grupo, de onde origina-se o poder [...], desaparece, o “seu poder” também desaparece. (ARENDT, 1985, p. 24-25). 23 Vê-se, portanto, que para a compreensão do conceito de território, é imprescindível compreender o exercício do poder como constitutivo dessa definição: o poder só existe nas relações históricas entre as pessoas de uma ou mais sociedades. A dimensão relacional entre indivíduos e lugares se traduzem no exercício do poder, visível na gestão Regional e local ou nos poderes individuais e de grupos da sociedade, estabelecendo um campo de forças regular ou periódico, estáveis ou instáveis, flexíveis ou inflexíveis, além da própria identidade como produtora de territórios, de forma que campo de forças, poder e identidade são capazes de definir o que seja o território, entendido como as relações de poder que se dão especialmente. Assim, o poder só é exercido se tiver por referência um território, isto é, por meio de um território não há influência que seja exercida ou poder explícito que se concretize sem que seus limites espaciais, ainda que às vezes vago, igualmente sejam menos ou mais perceptíveis. Mesmo quando se exerce poder a grandes distâncias, por meio das modernas tecnologias de comunicação e informação, o alvo ou destinatário jamais é um grupo social flutuando no ar mas sempre um grupo em conexão com o espaço [...]. (SOUZA, 2017, p. 87). Sem poder não há território. Se por um lado o senso comum, dentre os quais podemos entender juristas, militares e até cientistas políticos, inclusive muitos geógrafos, o território é confundido como aquele espaço sobre o qual um Estado exerce soberania, por outro lado sabemos que o território vai muito além de uma ideia estatal de espaço, que configura países, estados ou municípios. Isso acontece porque territórios são, antes de mais nada, relações sociais projetadas em espaços concretos: onde houver a conjugação ou relação entre duas ou mais pessoas, estaremos observando delimitações espaciais embasadas em uma transitoriedade que correlaciona poder e espaço. Vemos isso pelo domínio que as pessoas exercem sobre os lugares onde tomam assento, onde realizam suas atividades econômicas, onde residem, no trajeto pelo qual fazem uma caminhada: “se o poder é uma das dimensões das relações sociais, o território é expressão espacial disso: em uma relação social tornando- a espaço” (SOUZA, 2017, p. 97-98). 24 Nessa linha de pensamento, esse autor fala da necessidade de “descoisificar” o território, o que sendo feito conceitualmente nos habilita a entender como os movimentos sociais e as organizações sociais, os protestos, a dinâmica dos jovens, o crime organizado, dentre outros, adquirem uma dimensão cultural e simbólica inclusa no raciocínio territorial da Geografia, posto que apenas a dimensão política não dá conta da totalidade dessas manifestações em sua relação com o espaço. É compreendendo esses fenômenos que percebemos que o conceito de território operaciona sempre de forma dinâmica: trata-se sempre de uma territorialização, de uma desterritorizalização, de uma reterritorialização. Se atentarmos ao espaço urbano, por exemplo, notamos que as territorialidades, ou a conjugação das relações sociais sobre o espaço, frequentemente opõe o público e o privado, a posse do espaço em termos de tempo, a configuração de um domínio temporal de um determinado lugar. Trata-se de uma unidade comercial que se apossa da calçada ou de parte da rua como extensão na sua atividade econômica (componentes de anúncio, mesa de bar, estandes de exposição de mercadorias), um espaço livre tais como praças públicas, em que a depender do horário, se torna de uso de grupos distintos: pessoas que fazem atividades física pela manhã, adolescentes que se reúnem para praticar esportes à tarde, perto do final do dia pontos de tráfico e de prostituição, e assim sucessivamente: “[...] uma territorialização ou desterritorialização é, sempre e em primeiro lugar, um processo que envolve o exercício de relações de poder e a projeção dessas relações no espaço” (SOUZA, 2017, p. 102). 2.3 Lugar Para início dessa abordagem, lugar pode ter um enfoque sistêmico ou lógico-formal em que adquire o sentido de localização, isto é, um ponto no espaço, que permite referência e orientação espacial concernente aonde se situa um determinado fenômeno, processo ou materialidade sociogeográfica. Toda representação cartográfica é a expressão lógico formal de um processo de localização com esse significado relacional. 25 Em uma abordagem fenomenológica, as referências para a composição desse conceito são subjetivas, indicando as experiências cotidianas vividas, tais como o sentimento de identidade e pertencimento, familiaridade e afetividade. São as relações que o sujeito estabelece por meio das experiências subjetivas com a dimensão espacial a qual pertence que produz sua existência. Por outro lado, em uma abordagem dialética, o conceito de lugar concretiza relações e processos globais, processos mais amplos que transitam entre o mundial e o local, bem como todos aqueles que resultam de um processo histórico situado em alguma localização. Por meio do conceito de lugar, permite-se o ensino e a aprendizagem de conhecimentos que visam elementos da realidade subjetiva, objetiva e global. Na acepção cotidiana, o lugar sempre é referente a uma localidade, a uma área qualquer, com determinação ou indeterminação; os dicionários de língua portuguesa em geral, por exemplo, definem lugar como uma área de limites definidos ou indefinidos, bem como uma porção espacial onde se verifica um conjunto de características que compõem um espaço específico denominado lugar. Sobretudo, em particular, por influência das abordagens fenomenológicas ressurgentes na Geografia a partir da década de 1970, o lugar conceitualmente tem ganhado forças para interpretar as realidades “[...] como o espaço percebido e vivido dotado de significado, e com base no qual desenvolvem-se e extraem-seos sentidos do lugar e as imagens do lugar” (SOUZA, 2017, p. 114). O conceito de lugar, diferentemente do território, não se destaca inicialmente pela dimensão política ou do exercício do poder, mas antes pela dimensão cultural e simbólica, pelas quais se opera conceitualmente a realidade para pesquisar e compreender as identidades, intersubjetividade e as trocas simbólicas: “[...] o lugar está para a dimensão cultural-simbólica assim como o território está para a dimensão política” (SOUZA, 2017, p. 114), embora no lugar a dimensão do poder possa e deve-se, aliás, ser igualmente considerada. 26 A esse propósito, o geógrafo Yi-Fu Tuan constituiu conceitos como topofilia e topofobia em que as emoções das pessoas, seja de amor ou de medo, se projetam na vida partir das características e condições ofertadas pela relação entre a pessoa humana e o espaço. O lugar só existe se forem considerados os sentimentos e as imagens subjetivas que se criam e recriam na produção e na comunicação desses sentidos, pelas pessoas que se relacionam com esses espaços determinados. Recentemente, e fora do âmbito da Geografia, houve a tentativa de realizar uma abordagem conceitual da realidade desses espaços determinados a partir da noção de não-lugar, que viria a ser espaços marcadamente com identidades similares, independentemente de sua localização no planeta: é o caso dos aeroportos, das redes de fast-food, do shopping centers, onde há praticamente uma fórmula de se produzir e de se organizar o espaço, bem como o funcionamento desses espaços, de modo que para as pessoas que transitam por eles fica difícil de perceber as particularidades e as individualidades específicas desses locais. A Geografia, no entanto, faz uma crítica a esse conceito porque, embora nas perspectivas dos transeuntes e dos clientes possam ser espaços com uma não caracterização específica, eles se constituem lugares para quem convive e trabalha nesses espaços específicos. Os lugares que frequentamos – a escola, a universidade, o comércio do nosso bairro, a igreja, a cidade onde moram os familiares, e assim sucessivamente – são mais do que espaços, pois são lugares aos quais se dá um sentido de lugar; isso é, são espaços com significados subjetivos, espaços de vivência e convivência, onde se reproduz as condições e as determinações para reprodução do nosso modo de vida. Apesar de serem espaços marcados pelos traços da subjetividade, nele também estão presentes características objetivas, pois os espaços igualmente são planejados e orientados por especialistas a favor do Estado, das empresas e outros agentes, muitas vezes entrando em conflito com a subjetividade dos seus usuários. 27 2.4 Região Tal qual paisagem e território, região é um conceito tradicional do conhecimento geográfico, muitas vezes mobilizando a discussão teórico-metodológica e fazendo verdadeiras escolas de produção de conhecimentos da ciência geográfica. Quando falamos de região na Geografia, frequentemente não estamos falando da mesma coisa, pois há diversas acepções teórico-metodológicas para esse conceito. No sentido da geografia francesa, liderada na época por Vidal de la Blache, região significava "uma entidade geográfica que corresponderia a, por assim dizer, harmoniosas relações entre o homem e seu meio natural" (SOUZA, 2017, p. 136). Essa concepção levava os pesquisadores a criar divisões naturais dotadas de uma verticalidade histórica e cultural, enraizada na própria compreensão dos populares habitantes desses espaços determinados. Dessa forma, um determinado país seria um mosaico de regiões características, diversas uma das outras pelo fator cultural condicionado às possibilidades que a natureza ofertava para a reprodução do meio de sobrevivência da sociedade. Essa acepção de região, por exemplo, esteve presente durante muitas décadas no Ensino de Geografia brasileiro, em que fazia se uma abordagem do espaço brasileiro para, ao final, elencar os típicos habitantes regionais dos lugares. Foi uma contribuição tão forte e profunda que até hoje pertence ao imaginário popular. É comum, para exemplificar essa cristalização cultural, nos referirmos às regiões Sul, Sudeste, Nordeste, entre outras, e correlacionar a esses espaços figuras como a do gaúcho, a do sertanejo, a do vaqueiro, todos utilizando trajes e costumes tradicionais. Evidentemente, esse imaginário não deixa de descrever uma correspondência cultural relacionada a esses lugares, embora esteja em muito distante de representar essas realidades espaciais. Em uma outra vertente, nos Estados Unidos, liderada por Richard Hartshorne, a Geografia era concebida como um estudo focado na diferenciação de áreas, em que área e região, embora não sejam a mesma coisa, aproximam-se por aquelas a serem 28 diferenciadas como construções mentais e intelectuais, justificadas pelas necessidades analíticas humanas face a uma determinada realidade. Esta acepção conduziu o pensamento geográfico a fazer tratamentos parciais e abstratos do espaço social, vistos na forma de espaços econômicos. Em decorrência dessa forma de pensamento, os teóricos dos polos de crescimento e desenvolvimento elaboraram um modelo em que estabelecia três tipos de região: a região homogênea, que seria uma área com características que as diferenciavam de áreas próximas; a região funcional, ou uma área polarizada por um centro, notadamente marcando uma rede urbana; e a região programa, uma área de aplicação de um plano de desenvolvimento regional. Essa abordagem reflete um determinado pragmatismo que pensava a região como escopo para o planejamento e intervenção contrastando com a concepção de lablachiana pelo fator econômico contraposto ao fator cultural. Trata-se da visão a pregada pela geografia nova, de matriz neopositivista, engendrada na lógica formal, vista anteriormente. Em uma perspectiva mais recentes, temos a concepção crítica de região pensada por Yves Lacoste, que anunciava um determinado projeto ideológico que conduzia a especialização a um certo artificialismo, observando, portanto, que não apenas a questão da cultura e da economia seriam critérios para classificação regional, sendo também pautada pelas contradições políticas. Para Lacoste, a região não apresenta apenas convergências, localizações e distribuições espaciais de diferentes fenômenos: “representação mais operacional e científica do espaço não é de uma divisão simples em regiões, em compartimentos dos apostos uns aos outros, mas a de uma superposição de vários quebra-cabeças bem diferencialmente recortados” (LACOSTE, 1988, p. 70). A essa altura da discussão, chegamos a uma concepção em que a região não pode ser explicada ou analisada isoladamente, como uma coisa única. Ainda na década de 1970, outro geógrafo francês, Armand Frémont, trouxe à tona a concepção de região como espaço vivido, em que se afirma a identidade regional como uma consideração derivada da vivência das pessoas que habitam determinado espaço. 29 Mais recentemente, região continua a ser uma abordagem conceitual importante. Dentre algumas das inovações introduzidas contemporaneamente, há o fator da escala da região, em que se fala sobre uma escala propriamente regional. Tem sido amplamente utilizada as noções de microrregião, macrorregião, mesorregião não apenas como tratamentos teóricos, antes como espaços aos quais se associam as identidades regionais interseccionando o político, a cultura, a economia. 2.5 Redes Não tão recorrente quanto os conceitos chaves da Geografia e do seu ensino apresentados até aqui, porém igualmente relevante, é a noção de redes. Milton Santos nos dá uma contribuição fundamental ao propor que o espaço geográfico atualmente comporta-se como um meio técnico-científico-informacional. Enquanto meio com essa configuração, a existência de redesé primordial para a organização e a produção espacial. Nessa linha de pensamento, Manuel Castells fala em uma sociedade em rede, conectada pela informação e pelas técnicas, acentuada por um processo de globalização que aproxima os espaços, reduz o tempo e aumenta a velocidade da circulação de pessoas, mercadorias e propriamente da informação. Assim, o que seria propriamente redes? Em um plano abstrato, redes refere-se a “[...] um conjunto estruturado de ligações ou de fluxos, em que os fios entre os nós são chamados de arcos e os nós são, muito simplesmente, chamado de nós” (SOUZA, 2017, p. 167), compondo uma trama integrada. O conceito de rede nos permite pensar as relações sociais cujas experiências deixam de ser prioritariamente marcadas pela contiguidade espacial, ou pelas relações face a face no contexto geral da globalização. 30 REFERÊNCIAS ARENDT, H. A condição humana. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1983. CAVALCANTI, L. de S. Bases teórico-metodológicas da geografia: uma referência para a formação e a prática de ensino. In: _____ (Org.). Formação de professores e práticas em Geografia. Goiânia: Editora Vieira, 2006. p. 27-49. LACOSTE, Y. A geografia – isso serve em primeiro lugar para fazer a guerra. Campinas: Papirus, 1988. SOUZA, M. L. de. Por uma geografia libertária. São Paulo: Consequência, 2017. 31 3 EXPECTATIVAS DE APRENDIZAGEM PARA O ENSINO DE GEOGRAFIA E PLANEJAMENTO O estado brasileiro atual é organizado a partir da proposição e da orientação da Constituição Federal do Brasil, de 1988, texto que normatiza e organiza a conduta legal dos brasileiros de forma geral este Estado, inclusive a educação. Decorre da Constituição Brasileira a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), O Plano Nacional de Educação (PNE) e outras leis específicas, como a Lei 13.415, de 2017, que regulamenta o novo Ensino Médio. Todos esses documentos fundamentam legalmente a proposição da Base Nacional Comum Curricular para a Educação Básica. Vamos, a seguir, refletir um pouco sobre como essa educação, inclusive o Ensino de Geografia se estrutura, e a relação entre essas expectativas e o planejamento das atividades desenvolvidas como práticas na sala de aula. 3.1 Expectativas legais sobre a educação brasileira e sobre o Ensino de Geografia O Artigo 205 da Constituição Federal recomenda que a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida é incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da Cidadania e sua qualificação para o trabalho. (BRASIL, 1988, art. 205). Nesse dispositivo constitucional, os professores têm as três matrizes principais das práticas pedagógicas; portanto, os objetivos mais amplos da Educação Básica: 1) Desenvolver a pessoa humana; 2) Preparar o exercício da Cidadania; 3) Qualificar para o mundo do trabalho. Esses fundamentos estruturam de maneira mais profunda os documentos curriculares que orientam atualmente a educação básica brasileira: os Parâmetros Curriculares Nacionais e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Essas orientações igualmente 32 têm fundamento em dispositivo constitucional, o Artigo 210, que diz: “Serão fixados conteúdos mínimos para o Ensino Fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum”. Ainda na Constituição, no Artigo 211, parágrafo 50, o texto constitucional recomenda que o Ensino Médio seja progressivamente universalizado, de forma que a recomendação para uma base comum curricular preconizada para o Ensino Fundamental seja estendida para toda a educação básica, inclusive para educação infantil e outras modalidades especiais como a Educação de Jovens e Adultos (EJA), a educação indígena, educação a distância, entre outras. Um pouco mais tarde, em 1996, a LDB, no Artigo 9, inciso IV, atribui à União estabelecer, em colaboração com os estados, o Distrito Federal e os municípios, competências e diretrizes para educação infantil, o Ensino Fundamental e o Ensino Médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum. (LDB, 1996, art. 9). Como desdobramento dessa recomendação, e da ação da União do estabelecimento de conteúdos comuns, o Artigo 26 da LDB afirma que os currículos da educação infantil, do Ensino Fundamental e do Ensino Médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos. (LDB, 1996). Isso significa que as redes municipais e estaduais devem, com fundamento na Base Nacional Comum Curricular, elaborar seus currículos. As DCN, por seu lado, no Artigo 14, define base nacional comum como conhecimentos, saberes e valores produzidos culturalmente, expressos nas políticas públicas e que são gerados nas instituições produtoras de conhecimento científico e tecnológico; no mundo do trabalho; no desenvolvimento das linguagens; nas atividades desportivas e corporais; na produção artística; nas formas diversas e exercício da cidadania; nos movimentos sociais. (DCN, 2010, art. 14). 33 A Lei Nº 13415/2017 alterou a LDB propondo duas nomenclaturas para designar as finalidades da Educação. De acordo com o Artigo 35-A, “A Base Nacional Comum Curricular definirá direitos e objetivos de aprendizagem do Ensino Médio conforme diretrizes do Conselho Nacional de Educação”. Artigo 36, § 1º: “A Organização das áreas de que trata o caput das respectivas competências e habilidades será feita de acordo com critérios estabelecidos em cada sistema de ensino”. Os “conhecimentos, saberes e valores”, postulados nas diretrizes curriculares nacionais, tomaram contexto de direitos e objetivos de aprendizagem, competências e habilidades na Base Nacional Comum Curricular. A BNCC estabelece aprendizagens essenciais, configurando um novo direito, o de aprendizagem, ou seja, equidade curricular para todos os estudantes. Para compreender a dissociação de conteúdos vigente no Brasil. Observe na Figura 1 a comparação entre conteúdos sobre universo e sistema solar em duas coleções de livros didáticos de Geografia: Fonte: Própria, 2019. Figura 1 – Comparação entre dois livros de Geografia do Ensino Fundamental. 34 Nesta figura, vemos que dois livros didáticos destinados ao mesmo perfil de alunado fazem abordagens completamente diferentes sobre um conteúdo em geral participante das proposições curriculares: abordam-se temas diferentes, silenciam-se sobre alguns tópicos, de forma a criar uma disparidade de abordagem, ferindo o direito de aprendizagem dos alunos em relação a um ponto programático comum. Esse exemplo esclarece ao professor em formação o quanto devemos evitar, enquanto professores, a dependência do livro didático, pois não existem materiais que sejam por si mesmo infalíveis: o professor deve pesquisar e propor o material de estudo para o curso em que leciona, se ficar na dependência do livro didático pode gerar controversas semelhantes a esta, prejudicando a formação do aluno. O principal objetivo da BNCC é tornar obrigatórias para todas as redes de ensino, sejam estas públicas ou privadas, as condições para que os sistemas relacionados ao ensino tenham unidade, o que não deve ser confundido com uniformização. Com isso, a formação inicial, os concursos, os currículos das redes, a formação contínua, os recursos didáticos (tais como os livros didáticos) e as avaliações, inclusive externas, deverão se fundamentar nos temas, disciplinas e áreas epistêmicas, competências e habilidades propostas pela BNCC, garantindo aprendizagem do aluno, conforme mostra a Figura 2. Fonte: Própria,2019. Figura 2 – A unidade de ensino aprendizagem pretendida pela BNCC. 35 Apesar de obrigatória, e ter um caráter normativo, a Base Nacional não é o currículo, pois este pressupõe técnicas e métodos compondo um caminho performativo para prática docente. A base é apenas orientativa no sentido de definir o rumo para onde se quer que a educação brasileira chegue. Nesse sentido, a BNCC deve ser complementada com currículos locais, que contemplem as realidades regionais. Em outras palavras, localmente a BNCC se realiza com a proposição dos Projetos Políticos Pedagógicos, de forma que o governo federal propõe a BNCC, os estados e municípios propõem os currículos, e as instituições educacionais públicas ou privadas fazem as propostas pedagógicas. É com base nesse percurso que se faz a ponte entre a BNCC e o plano de aula do professor, conforme mostra a Figura 3. É importante ressaltar que a BNCC é uma política de estado, não de governo, não podendo ser alterada sem o debate envolvendo todas as categorias profissionais e os órgãos que atuam sobre a educação brasileira. Fonte: BNCC, 2017 (adaptado). Figura 3 – Trajetória performativa pretendida pela BNCC. 36 Ademais, a política de estado precisa coordenar um regime de colaboração para a formação de professores, gerar matrizes de avaliação e materiais didáticos. É necessário, ainda, um alinhamento de políticas e ações federais, estaduais e municipais para a formulação de currículos, a formação de professores, a elaboração de avaliação, a elaboração de conteúdos didáticos e critérios para oferta de infraestrutura adequada que atenda ao cumprimento dos currículos e da BNCC. O planejamento perpassa por todas as atividades humanas e, evidentemente, para que a BNCC encontre espaço e execução na sala de aula, necessita do planejamento escolar, entendido como o Plano Nacional de Educação (PNE), o Projeto Político Pedagógico, o plano de ensino, o plano de aula. 3.2 Plano Nacional de Educação Para que uma aula seja adequadamente executada, o professor deve orientar a sua prática por ações de planejamento, que não se reduz apenas ao plano de aula. Outras produções são importantes nesse sentido, a começar com um macro planejamento que conhecemos como Plano Nacional de Educação (PNE). Periodicamente, o Congresso Nacional sanciona um planejamento para a educação brasileira que orienta as instituições escolares e o trabalho docente a fazer esforços e investimentos para melhorar a qualidade da educação no país. O PNE vigente foi aprovado pelo Congresso Federal em 2014, estabelecendo 20 metas a serem atingidas até 2024. Grande parte dessas metas dizem respeito a indicadores de alfabetização e inclusão, à expansão do ensino profissionalizante para adultos e adolescentes, à formação continuada de professores. Todos os estados e municípios brasileiros obrigatoriamente devem observar as diretrizes, metas e estratégias que regem as iniciativas na área da Educação. Para verificação do andamento e do cumprimento dessas iniciativas, é feito um acompanhamento bienal para dimensionar os efeitos e consequências dessas metas no aumento, estagnação ou regressão dos índices qualitativos da educação brasileira. 37 As 20 metas referem-se a: 1. educação infantil; 2. ensino fundamental; 3. ensino médio; 4. educação inclusiva; 5. alfabetização; 6. educação integral; 7. aprendizado adequado na idade certa; 8. escolaridade média; 9. alfabetização e analfabetismo de Jovens e Adultos; 10. EJA integrada a educação profissional; 11. educação profissional; 12. educação superior; 13. titulação de professores da educação superior; 14. pós-graduação; 15. formação de professores; 16. formação continuada e pós- graduação de professores; 17. valorização do professor; 18. plano de carreira docente; 19. gestão democrática; e 20. financiamento da Educação. Apenas para exemplificar, dado a extensão do documento e o espaço disponível nesse material, tomamos o cumprimento das metas 2, 3 e 7, que são: Meta 2: “universalizar o Ensino Fundamental de 9 anos para toda a população de 6 a 14 anos e garantir que pelo menos 95% dos alunos concluam essa etapa na idade recomendada, até o último ano da vigência deste PNE”; Meta 3: “universalizar, até 2016, o atendimento escolar para toda população de 15 a 17 anos e elevar, até o final do período de vigência desse PNE, a taxa líquida de matrículas no Ensino Médio para 85%”; 38 Meta 7: “aumentar a qualidade da educação básica em todas as etapas e modalidades, com melhoria do fluxo escolar e da aprendizagem de modo a atingir as seguintes médias nacionais para o Ideb: Quadro 1 – Projeção do crescimento do Ideb até 2021. Ideb 2015 2017 2019 2021 Anos iniciais do Ensino Fundamental 5,2 5,5 5,7 6 Anos finais do Ensino Fundamental 4,7 5 5,2 5,5 Ensino Médio 4,3 4,7 5 5,2 Fonte: Libâneo, 2008 (adaptado). Condizente à meta 2 e à meta 7, que pretende que a população brasileira entre 6 e 14 anos de idade esteja matriculada no ensino fundamental, completando este estudo na idade correta, tem-se que em 2014 alcançou-se 97,1% desse índice, o que é muito próximo da universalização, embora ainda seja resiliente o problema de completar o ensino fundamental na idade correta. Espera-se que os alunos completem o ensino fundamental com 95% na idade correta até 2024. Com relação à meta 3, que preconiza que toda a população brasileira entre 15 e 17 anos esteja frequentando o ensino médio, temos muito trabalho ainda, dado que 82,6% dos jovens nessa faixa etária estavam matriculados em 2014 nesse nível da Educação Básica, subindo para 84,3 em 2015, demonstrando, portanto, dificuldades para essa universalização até 2016, o que não foi alcançado. Incentivamos os professores em formação a conhecerem esse documento (e ao longo da carreira, cada novo documento sancionado, pois faz parte da ação docente). Como se vê, o trabalho de professor não se isola na sala de aula, pois tem contexto externo ao ambiente onde se processam as relações de ensino e aprendizagem. O trabalho docente é partícipe e indispensável no desenvolvimento conjunto da educação brasileira. Nas práticas pedagógicas, o professor necessita pensar em como ele pode contribuir, a partir do seu grupo estudantil, para melhorar o país no que diz respeito a sua educação, e a própria formação dos alunos. 39 3.3 O Projeto Político Pedagógico Como dito anteriormente, o Projeto Político Pedagógico (PPP) consolida na instituição escolar e para a sala de aula as orientações gerais da Educação Básica, inclusive as curriculares. A escola deve articular a formulação do PPP com os planos de Educação Nacional, estadual e municipal na execução do PPP deve se apresentar o contexto em que a escola se situa e as necessidades locais e de seus estudantes, isto é, por meio desse instrumento se sistematiza um conhecimento específico sobre a realidade local dos alunos que estarão em formação na instituição. As Diretrizes Curriculares da Nacionais (DCN), que é uma lei, torna obrigatória a proposição e a execução de um PPP pelas escolas. Muitas delas, por isso, apresentam PPP sem organicidade, apenas como um documento protocolar, não contribuindo para estabelecer um cotidiano escolar. De acordo com as Diretrizes Nacionais da Educação (DCN), o PPP deve conter: 1. o diagnóstico da realidade dos sujeitos do processo educativo contextualizados no tempo e no espaço; 2. a concepção sobre educação, conhecimento, avaliação da aprendizagem e mobilidade escolar; 3. o perfil real dos sujeitos, sejam eles crianças, jovens ou adultos; 4. as bases norteadoras da organização do trabalho pedagógico, tais como coordenação pedagógica e supervisão do trabalho docente, avaliações gerais dentre outras; 5. a definição da qualidade daaprendizagem e consequência da escola no contexto das desigualdades que se refletem na instituição escolar; 6. os fundamentos da gestão democrática compartilhada e participativa, tais como órgãos colegiados e de representação estudantil; 40 7. o programa de acompanhamento de acesso de permanência dos estudantes e de superação da retenção escolar; 8. o programa de Formação Inicial e Continuada dos profissionais da educação, docentes e não docentes; 9. as ações de acompanhamento sistemático dos resultados do processo de avaliação interna e externa, incluindo dados referentes ao Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB); 10. a organização do espaço físico da instituição escolar de tal modo que esteja compatível com as características de seus sujeitos, que atenda as normas de acessibilidade, além da natureza e das finalidades da educação, deliberadas e assumidas pela Comunidade Educacional. Libâneo (2008, p. 230), denominando o PPP como “plano da escola”, diz que este é o plano pedagógico e administrativo da unidade escolar, onde se explicita a concepção pedagógica do corpo docente, as bases teórico- metodológicas da organização didática, a contextualização social, econômica, política e cultural da escola, a caracterização da clientela escolar, os objetivos educacionais gerais, a estrutura curricular, diretrizes metodológicas gerais, o sistema de avaliação do plano, estrutura organizacional e administrativa. São estruturantes para a escola suas decisões pedagógicas e sua gestão no sentido de conectar a escola, localmente, ao Sistema Nacional de Educação. Haidt (2000) resume essas orientações gerais enfatizando que o planejamento escolar cumprir as seguintes etapas: 1. Sondagem e diagnóstico da realidade escolar 1.1. - características da comunidade 1.2. - características da clientela escolar 1.3. - levantamento dos recursos humanos e materiais 2. Definição dos objetivos e prioridades da escola 41 3. Proposição da organização geral da escola 4. Elaboração de plano de curso contendo a programação das atividades curriculares 5. Elaboração do sistema disciplinar da escola, com a participação de todos os membros da escola, inclusive o corpo discente. A BNCC incorpora as mudanças no ensino e na sociedade e faz uma proposta que pode ser desenvolvida a partir das teorias científicas e das tecnologias educacionais, cujo currículo constante no PPP deve refletir essa realidade. O PPP, portanto, é a instância de autonomia educacional necessária para formar o aluno, considerando a proposição curricular efetivada na escola, incorporada em seu planejamento institucional. 3.4 Plano de Ensino O Plano de Ensino, fundamentado no Projeto Político Pedagógico, expressa as orientações gerais da Educação Básica, especificando o programa curricular da disciplina. Com base no Plano de Ensino, o professor terá uma orientação para planejar as práticas docentes e executar as sequências didáticas necessárias à formação e ao aprendizado dos estudantes. A escola, portanto, deve ter presente as finalidades da Educação a que se propõe a contribuir. Deve organizar bases teórico-metodológicas no sentido didático e administrativo para identificar o tipo de pessoa humana que deseja formar, as tarefas a serem feitas para essa formação, a orientação do trabalho pedagógico didático dos professores para que de fato ocorra o ensino e aprendizagem. Em síntese, o plano de ensino, também conhecido como planejamento de curso, contempla a dinâmica a ser realizada em uma determinada disciplina no período letivo de integração curricular no educando. O plano de ensino deve fundamentar-se no conhecimento da realidade dos educandos, estando aberto para a participação de interessados no processo de ensino e aprendizagem, devendo, ademais, refletir o 42 caráter local desses alunos, indicando a viabilidade de realização desse processo de aprendizagem. Em sentido prático, um plano de ensino deve conter dados de identificação tais como: nome da escola, localidade, identificação das turmas alvo, nome do professor, ano, semestre. Pode seguir dados sobre a população alvo e, se possível, identificando os alunos por gênero, procedência, nível socioeconômico, dentre outras informações relevantes, e deve procurar a distribuição do tempo pelo período letivo, estabelecendo as cargas horárias para auxiliar o planejamento das aulas dos docentes. Ressalta-se que os objetivos devem estar em acordo com a distribuição do tempo letivo e, com eles, devem os procedimentos metodológicos serem coerentes, pois o currículo será abordado nesse intermédio e será feita avaliação dos alunos. Não menos importante, no Plano de Ensino deve constar as diversas formas de avaliação, tanto as qualitativas quanto as quantitativas, dentre outras informações que forem consideradas essenciais para caracterizarem a disciplina. O Plano de Ensino, ao contrário do PPP, que é um documento de produção coletiva, é elaborado exclusivamente pelo professor da disciplina ou em colaboração com outros professores da mesma disciplina que houver na instituição escolar. Portanto, o Plano de Ensino faz a transição entre o Projeto Político Pedagógico e o Plano de Aula, que veremos a seguir. 3.5 Plano de Aula e sequências didáticas As aulas, por sua vez, em acordo com o escopo do planejamento, devem ser planejadas prevendo uma determinada sequência didática, isto é, um encadeamento pedagógico de procedimentos ou etapas ligadas entre si, a partir de conteúdos, para promover o aprendizado de um determinado objetivo. 43 Para Oliveira (2013), sequência didática se trata de um procedimento simples que compreende um conjunto de atividades conectadas entre si, e prescinde de um planejamento para delimitação de cada etapa e/ou atividade para trabalhar os conteúdos disciplinares de forma integrada, para uma melhor dinâmica no processo ensino/aprendizagem. (OLIVEIRA, 2013, p. 39). De acordo com o Antoni Zabala (1998, p. 21), no livro A prática educativa: como ensinar, as práticas pedagógicas devem ser organizadas metodologicamente para que sejam executadas, sendo questões chave para o docente “Para que educar? Para que ensinar?”. Para o autor, sequências didáticas são “um conjunto de atividades ordenadas, estruturadas e articuladas para a realização de certos objetivos educacionais, que têm um princípio e um fim conhecidos tanto pelos professores como pelos alunos” (ZABALA, 1998, p. 18). Como esse processo se operaciona no plano de aula? O autor exemplifica a partir de uma abordagem tradicional de aula e a partir do estudo do meio. Há quatro fases de uma sequência didática em uma abordagem tradicional, segundo Zabala (1998): “comunicação da lição; estudo individual sobre o livro didático; repetição do conteúdo aprendido e julgamento (nota do professor ou professora)”. Se considerarmos o estudo do meio, uma sequência didática prevê uma atividade motivadora relacionada com uma situação conflitante da realidade experiencial dos alunos; explicação das perguntas ou problemas; respostas intuitivas ou hipóteses; seleção e esboço das fontes de informação e planejamento da investigação; coleta, seleção e classificação dos dados; generalização das conclusões tiradas; expressão e comunicação. (ZABALA, 1998, p. 55). Conforme Oliveira (2013), as etapas básicas de uma sequência didática são a escolha do tema a ser tratado em aula; questionamentos, perguntas e narrativas para problematizar o assunto a ser trabalhado; planejamento dos conteúdos; definição dos objetivos a serem atingidos; delimitação da sequência de atividades (se individualmente, em duplas, em grupos, quais competências e habilidades em foco em cada uma delas), a avaliação dos resultados. 44 Todo plano de aula, ao considerar uma sequência didática, apoia-se na interação
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