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393952220-Ortiz-Romanticos-e-Folcloristas-pdf

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Prévia do material em texto

OI'YJUGHT© 13Y RENATO ÜRTIZ 
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida sem 
autorização do autor e do editor. 
Editor: 
Jorge Claudio Ribeiro 
Capa e projeto gráfico: 
Marco Aurélio Sismotto 
Composição e impressão: 
Edições Loyola 
ISBN: 5-85428-05-8 
l!llltora Olho d'Água 
H1 ;:tr I >S I Almeida 962/82 
('JI,I' · 0)0 I. -000 São Paulo - SP 
' I'( •( (()li 
~ 3/oJ/otr 
~1CV (f;-;1 2/JA<C.C. 
;:; 00/0Lf 
0.) 1 
j:. t,. 
3CJ 81'' 
Umversidade E:staduaJ de Lononna 
Sistema de Bibliotecas 
11111111111 
0000172214 
ÍNDICE 
p n~ ...... .. ...... ....... .......................... : .................... 7 
>MÂNTICOS E FOLCLORISTAS ....................................... 15 
() Uo;pfrito de Antiquário ............................................ 15 
() fJerfodo Romântico ........... .. .................................... 21 
l it&tre o Ideal Romântico e o Espírito Científico .......... 31 
(.'/liPtcia e Método ............................. .. ............ .. ......... . 43 
I /ma Ciência Mediana ............................................... 50 
.'ouclusão ........... , ...................................................... 62 
C il JAHANI: MITO DE FUNDAÇÃO DA BRASILIDADE .. 77 
()Mito ................ .................... ........... ............. ... ... ... ... 80 
CJ.,· Personagens .......... ....................... .. ....................... 83 
MtiS ulino e Feminino ............................................... 88 
l(f1flogo ...................... .. .. ..... ....... ................................. 94 
lllbllografia ... .-... ........................................................... .. .. . 97 
APRESENTAÇÃO 
A 11. russão sobre a cultura popular é um tema perma-
lt' t•ntr' nós. Desde o século passado ela se impõe com 
no ·nário acadêmico e político. Penso que seria 
vt'l ·screver uma história deste debate, que se modifica 
lcmJ(o dos anos, se molda às conjunturas sociais, articu-
lo t• a grupos de interesse, e às vezes, até mesmo a 
111 antagônicas. Entretanto, apesar das diferentes inter-
1 ~· t•s existentes, há algumas constantes, elementos que 
Jll '111 ·mente ressurgem. Tenho a impressão de que a 
I mka oscila entre dois pólos. Fala-se de grupos popula-
' uhalt •mos, no sentido classista do termo. Eles seriam 
r onadores de uma cultura radicalmente distinta, 
nl 1 l:lntc com a de uma elite esclarecida. É dentro desta 
1 t•rtlva que toda uma literatura engajada utiliza a noção 
ultura popular, atribuindo às manifestações concretas 
un pol ·ncialidade na construção de uma nova sociedade. 
I tllllll • c porém uma outra acepção do termo, não 
hult•nt · da anterior, mais abrangente. Popular enquanto 
In nlmo d povo. A inflexão restritiva de classe cede lugar 
111111 totalidade que a transcenderia. Daí a associação ín-
lh 1 t•lllr • cultura popular e questão nacional; a reflexão 
I 1 ~m assim os dilemas da nacionalidade. 
No t•ntanto, em ambos os casos, a diséussão se reveste 
I 11111 rar~tcr político. Ele traça um divisor de águas entre 
dllt•n•nt s projetos e os grupos sociais que os suportam. 
11111do (;ramsci defende a proposta de uma cultura nado-
(, RENATO ORTIZ 
nal-po pular, ele tem em mente um futuro socialista; por isso 
é essencial responder à pergunta "seria a cultura popular 
transformadora ou não?". Conhecemos sua resposta. O fol-
clore necessita ser trabalhado politicamente para se transfor-
mar em "bom senso", a realidade das classes populares deve 
ser entendida e orientada por princípios éticos e políticos. 
Em última instância, são os intelectuais que definem a legi-
timidade do que seria, ou não, popular. A resposta dada por 
algumas tendências nacionalistas será evidentemente de outra 
natureza (por exemplo, os isebianos). A cultura popular é 
considerada como reduto da essência nacional; na luta con-
tra a invasão e a colonização estrangeira, ela seria uma es-
pécie de alimento na constituição da autenticidade nacional. 
Como entender que propostas tão diversas, antagônicas, 
possam amparar-se nas mesmas idéias? Minha intenção nes-
te livro é em parte esclarecer este ponto. Procurei fazer uma 
espécie de arqueologia do conceito. Para tanto, voltei-me 
para as raízes históricas, para a herança cultural que pesa 
sobre o termo "popular". A escolha do século XIX teve para 
mim um interesse estratégico; naquele momento a idéia de 
"cultura popular" foi inventada, sendo progressivamente 
lapidada pelos diferentes grupos intelectuais. Dois deles são 
fundamentais para a compreensão dos avatares posteriores: 
os românticos e os folcloristas. Suas respostas configuram 
uma matriz de significados que, reelaborados, recuperados, 
prolongam-se até hoje nas discussões que fazemos. Os ro-
mânticos são os responsáveis pela fabricação de um popu-
lar ingênuo, anônimo, espelho da alma nacional; os 
folcloristas são seus continuadores, buscando no Positivismo 
emergente um modelo para interpretá-lo. Contrários às trans-
formações impostas pela modernidade, eles se insurgem 
contra o presente industrialista das sociedades européias e 
Jl usoriamente tentam preservar a veracidade de uma cultura 
ameaçada. 
* 
* * 
APRESENTAÇÃO 7 
· composto por dois textos autônomos mas 
oerente com minha orientação histórica, que 
l m to~ohrc o século XIX, escolhi um estudo sobre a 
... flll~ru · llt da noção de cultura popular na Europa, e outro 
t rom!lntico brasileiro. O primeiro texto tem como 
••'UYt , fc n·n ·cer ao leitor um conjunto de informaçõçs, e 
lU lro histórico, que lhe permita compreender melhor 
I 11\l('a ·m questão. A análise de "O Guarani" traz um 
~-llltiPH J c mio ·om a realidade européia. Por um lado as con-
' que filiam o romantismo de José de Alencar a 
m wim ·nto mais amplo. Sua preocupação em inventar 
rua~·no br..tsileira, encontra ressonância nos escritores 
, unlt' · •dem, e há muito vinham privilegiando o víncu-
1 r<" o popular e o nacional. Mas há também as 
mllnuldades, as rupturas. Como a situação brasileira é 
da européia, a aclimatação das idéias segue uma 
p1t t1i ·ular em solo tropical. 
A p 111l' relativa aos românticos e aos folcloristas, merece 
._... ...... c·om •ntários. Por que se interessar por algo tão lon-
._. ........ ,, distante de nosso quotidiano? O que traz de positi-
Uillll nnálise minuciosa do pensamento dos folcloristas 
,, •u , particularmente ingleses? Ao longo de meus tra-
lhu lu l a ·umulando uma série de inquietações e dúvidas. 
mullo vinha nutrindo uma certa insatisfação em relação 
1 1 prlo ·onceito de cultura popular. Qualquer estudioso 
lc nha lido os livros dos folcloristas, partilha do mal-
1 Clll • se esconde por trás da disparidade dos dados 
11 lltclos; eles dizem pouco sobre a realidade das classes 
11 hc• rnas, muito sobre a ideologia dos que os coletaram. 
lll lt lll o , é inevitável voltar-nos para eles, pois foram os 
lm h o. :1 sistematizar uma reflexão sobre a tradição popu-
' I ) t n r ·lcvância em entender como os inventores do 
I lou• pn uraram organizar e difundir seu material. Isto 
p<- tlllill' ·o mpreender como a idéia de cultura popular 
o nllf(ura o rno categoria de análise. A escolha dos 
lc1t l I ts ingl s s, como foco de atenção particular, vem 
H RENATO ORTIZ 
do fato de terem sido eles que confeccionaram uma com-
preensão da cultura popular que rapidamente se generali-
zou na Europa e na América Latina. A- "escola" inglesa con-
seguiu traduzir as inquietações românticas em programa 
sistemático de estudo. A absorção da Antropologia, como 
disciplina fundadora do folclore, foi vital para isso. 
Não quis todavia, limitar meu enfoque ao campo restrito 
do conhecimento folclórico. Procurei integrá-lo dentro de 
uma história das idéias, compreendendo não apenas as si-
tuações nas quais elas emergem, como também o diálogo e 
o conflito que alimentam em relação a outros pensamentos. 
Por isso a contraposição com as Ciências Sociais pareceu-
-me reveladora: ela ilumina, sob outro ângulo, a formação 
do campo da Sociologia e da Antropologia. O folclore, como 
ciência"menor", permite abordar a constituição das frontei-
ras das Ciências Sociais a partir de sua margem. Refletindo 
sobre a cultura popular capta-se, com outra lente, o mundo 
dos conceitos e as disciplinas que os manipulam. 
Uma outra motivação, de natureza política, incentivou-
-me ainda a realizar este estudo. O debate sobre cultura 
popular, no Brasil e na América Latina, possui uma vertente 
que sobrevaloriza a potencialidade das manifestações popu-
lares como força transformadora da sociedade. Para mim 
sempre ficou no entantO a sensação de que o conceito, na 
sua origem, possuía uma inflexão muito mais "conservado-
ra" do que "transformista"; foi com base nesta intuição que 
me voltei para o passado, procurando reconstruir seu trajeto 
durante o século XIX. Curioso, foi a partir de uma exigência 
brasileira, que me deparei com toda uma literatura euro-
péia. 
Um último esclarecimento. Quando consultei a literatura 
especializada sobre o assunto, notei a ausência de uma his-
tória conceitual. Os autores falam muito das manifestações 
populares, mas pouco do conceito que empregam. Que eu 
t nha conhecimento, o único texto que se coloca na mesma 
p ·rspc tiva deste trabalho, é o de Peter Burke, no seu livro 
APRESENTAÇÃO 9 
Popular na Idade Moderna"; mesmo assim, trata-se 
' IP tulo, limita-se à virada do século XVIII, e focaliza 
o período romântico. Cabe ainda sublinhar que o 
lftl8ni!IIIC' dos historiadores pela problemática da cultura 
r r lativamente recente. O livro de E.P.Thompson, 
maç; o da Classe Trabalhadora Inglesa", citado como 
rco na historiografia, foi publicado em 1963, mas se 
M •; ·ultura política da classe operária; o de Mandrou, 
llt •rJtura de cordel, é de 1964 . Na verdade, a cul-
popular tradicional só se tornou objeto legítimo da 
•u•n•,••,grafia européia, quando havia desaparecido por com-
t ,, f~ somente em meados dos anos 60, mas sobretudo na 
I d • 70, que surge uma série de análises e de ensaios 
u tc.'mática do popular. Eles se voltam para fenômenos 
,, o ·amava!, os charivari, a literatura de cordel, as festas 
c 111, utilizam uma fonte documental diversificada, mas 
mom ·nto algum o conceito é tomado em consideração. 
nhrlgou-me a voltar para o único tipo de literatura dis-
aquela elaborada pelos próprios folcloristas. Alguns 
, t•m trabalhos mais recentes, procuraram escrever uma 
•I • c.lc história das escolas teóricas, mas o resultado 
I lo · uma seqüência de períodos desarticulados entre si, 
• 11< 1s no tom oficial das velhas cartilhas escolares, e sem 
I Jllt'r sentido crítico. Esta dificuldade inicial, trouxe-me 
mnlgumas vantagens, pois tive que privilegiar as fontes 
In 1ls. Foi quando encontrei um material de primeira mão, 
m significados, que nos ensina sobre a aventura e a 
v •ntura das idéias' . 
RENATO ÜRTIZ 
São Paulo, 15 de julho de 1992 
• AI 111 da hilbiografia em anexo, pesquisei de maneira sistemática as 
ulnh• revistas: Folklore Record (1878-1882), Folklore Joumal (1883-
), Jlolklor • (1890-1900), Mélusine (1878-1912), Révue des Traditions 
t l]lll,tllt' IHR6-l919), La Tradition (1887-1893). 
ROMÂNTICOS E 
FOLCLORISTAS 
Espírito de Antiquário 
A t 'OI ·ta dos costumes populares não era uma preocu-
n maior dos homens educados no início da era "moder-
• lutlliz aqui a demarcação proposta pelos historiadores]; 
• Interessavam mais por temas como os druídas, os 
lt , os astecas, os africanos, do que pelo camponês ou 
I , t•rvos•. Mas desde o século XVI, alguns escritores se 
11 111 para ela, embora dentro de uma perspectiva normativa 
h 11 mista. Boa parte desta literatura foi produzida por 
rdott•s, como "Tratado das Superstições", de]ean-Baptiste 
hl r (I )79), "Antiquitates Vulgares, ou as Antiguidades das 
1 1 Comuns" escrito pelo clérigo Henry Boume (1725), 
111 tflri:1 .rítica da~ Práticas Supersticiosas que Seduziram o 
u t' Intrigaram os Sábios", do padre Le Brun (1702). Tais 
tlto. , tinham por finalidade apontar os erros e as crendi-
dlt dasses inferiores, e se encontravam em consonância 
111 um ·spírito moralizador e hostil às manifestações po-
tl rr . uando ]ohn Brand publica "Observações sol;:>re as 
niiHuldad s Populares", livro de referência obrigatória en-
c, I( 1ldoristas ingleses, ele não deixa de se insurgir con-
e 1 t•sport s que geram "violência e protesto" ou as prá-
qut• "d bocham" da religião protestante. Brand possuía 
c c•utarlto, uma posição mais tolerante do que os teólogos-
ll RENATO ORTIZ 
que o antecederam: ele distingue os bons dos maus costu-
mes, defendendo uma política seletiva em relação ao gosto 
plebeu. Referindo-se aos jogos e à prática dos esportes, ele 
diz: "O homem comum, confinado ao trabalho diário requer 
um intervalo próprio de relaxamento, e talvez fosse do maior 
interesse político encorajar entre eles os esportes e os jogos 
inocentes. A revitalização de vários desses [eventos] seria par-
ticularmente pertinente neste tempo quando a divulgação da 
luxúria e da dissipação, muito mais do que em qualquer outro 
período anterior, extinguiu o caráter de nossa braveza na-
cional"2. Tolerância relativa, pois as manifestações popula-
res devem ser preservadas, e até mesmo estimuladas, desde 
que previamente depuradas de sua dimensão explosiva. 
São pessoas como Brand que, aos poucos, começam a 
se diferenciar da ânsia meramente conjuntural, episódica, 
pelos costumes populares. A curiosidade pela coleta das 
práticas e narrativas se intensifica, dando origem a um novo 
tipo de intelectual: o antiquário. No início, cada um deles 
faz um trabalho solitário, sem conexão com os outros; com 
o passar do tempo, eles se agrupam em clubes, onde seus 
trabalhos são discutidos. Já em 1718, é fundada na Inglaterra 
a "Sociedade dos Antiquários", da qual Brand, após a edição 
de seu. livro, toma-se um membro influente. Em Edinburgo, 
cria-se em 1820, uma "Sociedade Céltica", da qual sir Walter 
Scot é o presidente. A mesma tendência se consolida na · 
França; em 1807, funda-se a "Academia Céltica", que se trans-
forma depois na "Sociedade dos Antiquários da França". A 
academia, tinha como objetivo principal o estudo da língua 
e das antiguidades celtas, mas ela irá também ocupar-se dos 
costumes da vida popular, chegando inclusive a elaborar 
uma série de questionários que envia aos diversos departa-
mentos franceses. Este tipo de enquete é estendido à Itália, 
e, durante a invasão napoleônica, é aplicada à realidade do 
país3. Na Inglaterra, no início do século XIX, florescem vá-
rios clubes de antiquários, onde se reúnem membros da 
!asse média para discutir e ublicar, livros e revistas sobre 
as antiquidades populares. William John Thoms, criador da 
~\,\o (. 
ROMÂNITCOS E FOLCLORISTAS 13 
I vm "folclore", é fellow da "Sociedade dos Antiquários" 
), na revista "Athenaeum", funda urna seção dedicada 
I ll"ol popular, na qual comenta a correspondência envia-
los leitores à editoria. Ele edita ainda sua própria revista, 
and Queries", para depois se engajar na formação da 
re Society, a qual vai presidir até 1885, ano de sua morte. 
que caracteriza este período é uma tentativa de com-
o • de ordenamento do material. É bem verdade, que 
roj to da "Academia Céltica" fracassa e, por volta de 
, os relatórios sobre as tradições populares desapare-
ompletamente. Isto terá conseqüências nefastas para a 
órla do folclore francês - a França é um dos últimos 
da Europa no qual a disciplina se desenvolveu. Mas 
I nlva de organizar os dados obtidos, marca uma dife-
m relação a etapa dos colecionadores individuais. 
que será amplamente reconhecido pelos folcloristas: 
ri Gaidoz e E.Rolland, quando fundam a revista 
--~~~,.w•un,ne" (1878), estabelecem uma flliação direta de seus 
"'111111,.111\I' )S com as memórias publicadas no início do século4• 
I~ ta tendência para uma maior sistematização dos fatos 
rvados manifesta-se em outros lugares. No entanto, é 
n•ra•ml\rlo sermos cautelosos ao falar em uma metodologia 
qulsa. Talvez fosse correto qualificarmos o processo 
o uma sistematizaçãoincipiente. O exemplo do procedi-
!(, empregado por Thoms, em sua coluna do "Athenaeum", 
UfCCNtivo; ele se volta para o público, e pede auxílio na 
d:ts informações. É num de seus artigos, e comentários, 
n r •nno "folclore" surge pela primeira vez: 
"ll>lrlglndo-se aos leitores] suas páginas têm freqüente-
OI mostrado o interesse pelo que na Inglaterra chama-
Antiguidades Populares ou Literatura Popular (embora 
mais um saber do que uma literatura, e seria mais apro-
clo d s revê-lo por urna boa combinação saxônica, Folk-
o saber do povo) que não é sem esperança que lhes 
• ujuda para cultivar as poucas espigas que existem dis-
no ampo, e que nossos antepassados juntaram numa 
,·olh •ita. Todos aqueles que estudaram as maneiras, os 
l-I RENATO ORTIZ 
costumes, práticas, superstições, baladas,[Er~bio'; ~te, dos 
tempos antigos, devem ter chegado a duas conclusões: 
primeiro, o quanto tudo isto é curioso e que o interesse por 
elas está agora se perdendo; segundo, o quanto pode ainda 
ser recuperado. O que poderíamos fazer no 'Every-Day-
-Book', o 'Athenaeum' com sua circulação mais ampla, pode 
realizar dez vezes mais: juntar os infinitos pequenos fatos , 
ilustrativos dos objetos que mencionei, e que se encontram 
espalhados na memória de milhares de leitores"5• 
O termo é criado quase que acidentalmente, e não se 
vincula a uma concepção coerente de pesquisa; o procedi-
mento metodológico é resultado da boa vontade dos leito-
res, e da persistência dos editores. 
Existem dois traços fundantes da perspectiva do 
antiquário. O primeiro, é seu afã colecionador. A denomina-
ção "antigüidades populares" se aplicava a um espectro di-
ferenciado e díspar de materiais e assuntos: costumes popu-
lares festas monumentos celtas, ruínas romanas, história 
locai, tudo' era absorvido como coisas do passado. O 
antiquário é antes de tudo um curioso. Mas ele parece não 
saber muito bem como lidar com o tempo. John Brand, tem 
plena consciência da impenetrabilidade originária dos cos-
tumes populares. Para ele, "a origem primeira das cerimônias 
e noções supersticiosas do povo, é absolutamente inatingível, 
nos desesperamos por não sermos capazes de atingir a fonte 
primeva do riacho que corre e aumenta desde o início dos 
tempos"6• Isto o leva a uma busca errática das informações 
que, isoladas do contexto, desafiam qualquer inteligibilidade. 
Este dilema, que aprisiona o espírito antiquário, prolonga-se 
nos estudos posteriores; uma. das singularidades que defi-
nem as associações de folclore, é a obsessão pelo 
ordenamento dos pedaços heteróclitos de cultura. 
O segundo ponto, diz respeito à atitude em relação às 
práticas populares. O antiquário, pelo menos até o advento 
do romantismo, não possuía nenhuma predileção especial 
pelo povo. Freqüentemente ele justifica seu interesse cole-
ionador pelo "amor às antigüidades", ou pelo "gosto do 
Q 'I ' I lJ...o_, \'> 
RO MÂNTICOS E FOLCLORISTA$ 15 
>''. Muitas vezes, quando apresenta seu trabalho ao lei-
1 HC vê na posição incômoda de explicar sua curiosidade 
lllft1UIIbula pelos que ocupam os lugares mais baixos na hierar-
homens. Inclinação que encontra uma justificativa em 
• IUni\C:I'Ittos como a piedade e a comiseração pelos pobres. Na 
llllft1111dc, os estudiosos dos proveibios populares no século 
t m um desdém ma · esto para com a fala popular; 
eles denunciam os erros gramaqcais que a 
los cânones reconhecidos da língua oficial. Os sacerdo-
nlt •stantes crêem ser sua tarefa principal, combater as 
llupcrsticiosas, resquícios do paganismo alimentado pela 
<~uólica. Os católicos, por sua vez, querem libertar-se 
ln nsistências religiosas que consideram heréticas. 
u atitude negativa, restritiva, não é um traço exclusivo 
ntlquário: ela permeia uma ideologia corretiva mais 
• constitui todo o espírito de uma época. Os histo-
......... ,_ .. parecem divergir na avaliação do impacto das for-
qu diluem a tradição popular durante o século XVI. 
m vê o advento da imprensa como um elemento 
..:am1111<>r de uma literatura de evasão que mina a mentali-
lrudicional das classes populares. Natalie Davis toma 
t partido; ela acredita que neste período a imprensa, 
de induzir a uma transformação exó ena, estimula as 
1 locais7• Outros consideram que no século XVI, e 
no princípio do XVII, a cultura popular formava um 
........... d ·vida coeso, ao abrigo de interferências extemas8• 
pur ·m uma convergência de opiniões quando avança-
no séculos XVII e XVIII. Pode-se dizer que antes cul-
lt< ·litc e cultura popular se misturavam, suas fronteiras 
ltu 11 não eram tão nítidas, pois os nobres participavam 
· nças religiosas, das superstições e dos jogos; as au-
1 l t'll possuíam ainda uma certa tolerância para com as 
ti u po pulares. Vários esportes, considerados violentos, 
m pat rocinados pelos senhores da terra, o gosto pelos 
IWCII de cavalaria era generalizado, e as baladas e a 
lu ru de cordel não eram associadas, pela minoria 
cl1 , a povo inculto, ela participava também da mes-
16 RENATO ORTIZ 
ma inclinação estética9• Não se deve pensar que o processo 
de interação cultural inter-classes era simétrico; a elite par-
ticipava da pequena tradição do povo, mas este não parti-
lhava de seu universo. Os homens cultos eram anfíbios, bi-
culturais, falavam e escreviam em latim mas eram capazes 
de se expressar no dialeto local, que conheciam como se-
gunda ou terceira língua. 
O processo de repressão se intensifica com o 
distanciamento entre cultura de elite e cultura popular; são 
vários os motivos que contribuem para isso. A Igreja, cató-
lica e protestante, implementa uma política de submissão 
das almas com base na doutrina oficial definida pela Teolo-
gia. Os objetivos propostos podiam ser atingidos tanto pela 
catequese, pela distribuição e leitura da Bíblia, como através 
de iniciativas mais violentas; os tribunais de Inquisição e a 
caça à feitiçaria são exemplos típicos do uso de uma estra-
tégia mais forte no combate às heresias populares. Existem 
no entanto causas mais amplas, como a centralização do 
Estado [ele era desmembrado durante a Idade Média], o que 
significa o advento de uma administração unificada dos 
impostos, da segurança e da língua. A luta contra os dialetos ' 
regionais revela uma integração forçada no interior do Esta-
do-nação, e exige a imposição de uma língua legítima sobre 
as falas locais. A constituição dos Estados nacionais requer 
também a mudança da política em relação às classes subal-
ternas. Se o Estado surge agora como instit~ição provedora, 
em contrapartida ele demanda os impostos, o serviço mili-
tar enfim reclama os deveres atribuídos a seus súditos. As 
' ' autoridades se preocupam ainda com as práticas que geram 
protesto, como o futebol, o carnaval, o ©!_arivariJque muitas 
vezes terminam em distúrbios, quando não exprimem uma 
contestação aberta ao poder constituído10• 
O século XVIII é também o período em que se elabora 
uma cultura de abrangência universal, cristalizando-se num 
determinado tipo de comportamento, o do bonnête bomme 
ou do "homem esclarecido". O Iluminismo tem um papel 
fundamental na elaboração deste modelo: ele promove os 
cJ 
RO MÂNI"ICOS E FOLCLORISTAS 17 
universalidade e racionalidade, contrapondo-se 
Jlr ti as populares, consideradas irracionais . O 
•lm 'nto deste espírito, paralelo ao avanço das ciências 
I Ml '&IS e médicas, corresponde a um processo de desen-
1 rn •nt do mundo e pode ser apreendido quando se 
rva a história da feitiçaria na Europa. O argumento que 
llh Thomas utiliza para explicar o declínio da magia na 
I l rm revela a força da penetração do racionalismo jun-
•lltcs dirigentes11 • A partir de 1736, já não mais existem 
.,.OC.'C~IIHé 1s formais contra a acusação de feitiçaria. Isto não se 
r nll' •tanto a uma maior simpatia pela causa herege; trata-
urna mudança de mentalidade que envolve o grupo 
lnl. lr:ttivo dos tribunais. Os pressupostos intelectuais dos 
n. t'<.1ucados, que controlavam à máquina judiciária; ~~me-
1 " lnl•rferir na avaliação do que estava sendo julgado. 
"'d:1s pe rseguições é conseqüência do crescente ceticis-
qut• s · tem em relação à possibilidade real da ofensa. 
mhi ·me de uma cultura racional, as explicações dos 
lllt·nos de bruxaria tornam-se implausíveis. Há pois a 
Idade de repensar os procedimentos jurídicos. A fei-
ht passa então a ser considerada como o testemunho da 
c 11 n ·la e da credulidade popular, e não mais como ato 
f '1. c I · produzir efeitos concretos. A ausência da crença 
1 lh'u o declínio dos crimes de magia. 
() Período Romântico 
() l(omantismo é um movimento amplo, uma consciên-
llcJVa que emerge com o processo de mudança do final 
•c ·ulo XVIII. Muitos autores vão interpretá-lo como uma 
11 lhllldade que procura dar conta da dupla transformação 
I pt·n ·rr&~ o mundo europeu: a Revolução Francesa e a 
lu rrlal• ~ . Homantismo e revolta, seriam assim disposições 
111 ,J, 1Wts. Seu advento traz também rupturas profundas 
1 lllltndo las artes13• Regidas pelas normas rígidas das 
18 RENATO ORTIZ 
academias, elas começam a se libertar da tradição 
enrijecedora. O artista romântico, ao valorizar a força do Eu, 
introduz a noção de individualidade livre no doriúnio artís-
tico. Os princípios estéticos deixam de ser decorrentes dos 
códigos consensuais, estabelecidos pelas instituições legíti-
mas (Academia de Belas Artes e de Literatura), para serem 
apreendidos pela sensibilidade do criador individual. O 
Romantismo alivia os homens da herança tradicional. Este 
elemento propulsor, seu fundamento, no momento da con-
solidação da sociedade burguesa do XIX, orienta o indiví-
duo na sua luta contra as restrições à imaginação. Os ro-
mânticos irão contrapor-se à idéia de mercado cultural, es-
paço no interior do qual suas individualidades se equivale-
riam ao simples valor de troca. Sensíveis, reticente·, _eles são -críticos do cagitalismo na~ent~ 
Não obstante, apesar da riqueza e dos matizes que o 
movimento contém, no âmbito da discussão que estamos 
enfrentando, o Romantismo se reveste de uma característica 
particular. Não importa tanto a idéia de revolta, da 
idiossincrasia do Eu. Seu impacto, a meu ver, deve ser con-
siderado quando transforma a predisposição negativa, que 
havia anteriormente em relação às manifestações populares, 
em elemento dinâmico para a sua apreensão. Isto, parado-
xalmente, vai afastá-lo inclusive dos próprios ideais român-
ticos, valorizados pela consciência artística. O popular ro-
mantizado retoma inclinações como sensibilidade, esponta-
neidade, mas enquanto qualidades diluídas no anonimato 
da criação. Não é pois o indivíduo o ponto nodal, mas o 
coletivo. Por isso, para evitar possíveis dúvidas, e associa-
ções impróprias, sublinho que na compreensão da proble-
mática da cultura popular, nos deparamos com um determi-
nado tipo de romantismo. Esta é a matriz, que será poste-
riormente reelaborada pelos estudiosos. 
Da disposição romântica, no sentido genérico, gostaria 
de reter alguns aspectos relevantes para o debate: a oposi-
ção ao Iluminismo, o historicismo, o gosto pelo bizarro e 
pelo exotismo. Tanto a literatura quanto a pintura clássicas, 
ROMÂNTICOS E FOLCLORISTAS 19 
ncialmente um affaire de pensée; os sentimentos, 
bjetos de tratamento artístico, deviam ser lapida-
I) ·la inteligência, depurados de sua espontaneidade 
lnwlra. Os românticos invertem esta tendência: eles se 
IUit·tam mais com as qualidades do que com as regras, 
rn a Integridade das emoções do que com a retidão dos 
1.c 1 • Até mesmo na pintura das paisagens, antes vista como 
' x ·r ício da capacidade técnica do artista, a preponde-
'lil dos sentimentos prevalece14• Busca-se exprimir a 
muc.,·!l >diante do sublime da natureza. Os românticos des-
if.U IIl as pinturas-cópias (eles se insurgirão mais tarde 
nlw a fotografia), e através do olhar individualista, preten-
rn d ·svendar, traduzir, os mistérios do mundo natural. 
·u. a-se assim a perspectiva analítica do Iluminisno. 
c ) ms mo se passa no terreno da literatura. A escrita 
lt·a tinha como objetivo, decompor os sentimentos, 
11. • I s e utilizá-los para conhecer melhor o homem. Ela 
vu d ' um ser universal, era racional, e se propunha mais 
ular as almas do que divertir, ou surpreender a imagina-
,, Por isso os escritores se insurgem contra seu 
louallsmo estreito, seu cosmopolitismo abstrato; eles se 
11 1111 para as situações particulares, privilegiando a 
'"h lpll ·idade dos sentimentos e das vivências. O Romantis-
' 1 • 1ambém marcado pelo historicismo, que lhe faz des-
1 11 Ir a Idade Média, os romances de cavalaria, os reis, as 
11 .• ulas; a oposição ao Iluminismo se traduz até mesmo na 
h Hil".a ão do gótico, desprezado pelos clássicos, que o 
n ldl'ra vam como uma expressão do obscurantismo reli-
i 1 11 , Esta sensibilidade em relação ao passado, manifesta-
111110 na pintura, com~e a ter Scott. 
I propicia um dtstanetamento do presente, retoman o-o 
o 1u t'Orn outros olhos. 
IIm tltimo traço refere-se ao gosto pelo bizarro, por 
1111111 qu · dife re. Novalis já dizia, que tudo pode ser con-
11 r u lo ·orno romântico, desde que transportado para lon-
, c) Ho mantismo confere aos objetos ausentes uma digni-
luh• do d ·s nhecido . Contrariamente à literatura clássica, 
20 RENATO ORTIZ 
com suas leis rigorosas de composição, tendendo para a 
medida e a harmonia, o romântico gostava daquilo que 
surprendia, da impressão de infinito: ele privilegiava o mis-
terioso15. Uma literatura marcada pelo anormal, amantes 
queimando-se de paixão, devotamento total das pessoas, 
perversidade satânica. Este gosto por seres exepcionais se 
associa muitas vezes ao exotismo, aos países estrangeiros, com 
suas paisagens e costumes peculiares. O romântico é fascinado 
pelo mundo oriental, pela sua magia, pelos seus mistérios16. 
Daí a predileção pelas viagens pitorescas, conhecer as terras 
longínquas (reforçando a vaga de viajantes do século ante-
rior), mas também a vida dos camponeses, com seus hábitos 
estranhos. Diferença que impulsiona os estudiosos a com-
preender o desconhecido de seus países, levando uma es-
critora como George Sanei, a viajar pelo interior da França 
na busca das "autênticas" tradições populares. 
Sensibilidade, espontaneidade, historicismo, diferença, 
distância - são elementos que irão compor o léxico dos 
estudiosos. É possível aproximar alguns deles à prática do 
antiquário, mostrando como encontram um solo já predis-
posto a absorvê-los. Embora de forma inconsciente, o 
antiquário sempre esteve mais ligado a uma história local do 
que propriamente universal; seu particularismo contrastava 
com o cosmopolitismo iluminista. Ele também entretinha 
um certo gosto pelo passado, pela Idade Média, desvalori-
zada pelo pensamento contemporâneo. Era esta paixão pelo 
longínquo que lhe permitia justificar suas anódinas coleções 
de costumes populares. No entanto, embora seja possível 
identificar alguns traços comuns entre românticos e 
antiquários, é importante marcar a radicalidade e originali-
dade do Romantismo. Na virada do século, a tradição popu-
lar é descoberta pelos intelectuais; daí o número crescente 
de publicações versando sobre as baladas, as canções, a 
fala, enfim sobre o povo. Ocorre de fato uma transformação 
do pensamento, a ponto de um autor como Peter Burke 
considerar ser este o instante em que o conceito de cultura 
popular é inventado17. Dentro deste contexto, alguns pensa-
ROMÂNTICOS E FOLCLORISTAS 21 
m um papel preponderante, o ftlósofo alemão Herder, 
irm:Ios Grimm. Vejamos o que eles trazem de novo. 
A visão herderiana é uma crítica radical da idéia de pro-
•'"· Ela contesta a possibilidade da continuidade histó-
·ombate qualquer tipo de pensamento evolucionista. 
ri • de ordenamento das etapas históricas é rompida, 
li •reler imagina que cada povo, cada civilização-orga-
1 mo, contém em si o seu próprio destino, potencialidade 
•onlradições evoluindo através de ciclos que vão do apo-
1 o declínio. Uma civilização é um organismo centradosi mesmo. Contrariamente aos iluministas, ele intro-
uma ruptura entre o mundo clássio e o moderno. A 
ll~euld;tcle e a sociedade germânica teriam poucos pontos 
·omum, seriam entidades com passos independentes. 
uma recusa do Renascimento e das Luzes e uma 
lorização da Idade Média. Os tempos medievais isto é 
I ll:tnismo germânico, é entendido como a juven;ude d~ 
o 11 ·mão, e se contrapõe ao envelhecimento e à senili-
1 do ~éculo XVIII. 
A proposta de Herder privilegia portanto um relativismo 
1 ko mas seu valor não é meramente ftlosófico - ela 
11:1 uma dimensão política. A teoria racionalista do pro-
, ufirmava a superioridade da Europa, isto é, da França 
IIIHiaterra, sobre os outros. Para isso, ela necessaria-
nlc• linha que ser universal. Herder, ao reabilitar as dife-
n '" , o particular, pode reivindicar, no plano do pensa-
rue •, a paridade dos direitos para o povo alemão. A recu-
~· c' dos valores literários da Idade Média, encobre por-
lo uma exigência de natureza política. Não é por acaso 
lól duração da história tenha sido escolhida como ponto 
•h•r n ia. Hercler valoriza nos tempos medievais justa-
lllc• 1 ausência do poder central, a multiplicidade de au-
11 ulc·s locais, que impedem o exercício de um domínio 
lllrc•c·lonal. As organizações societárias são vistas assim 
1 totalidades orgânicas, na quais as diferenças e discre-
·1• •nc ntram-se harmonicamente integradas ao todo. 
lt• rnod ·I - local x universal, todo harmônico x 
22 RENATO ORTIZ 
segmentação política - que inspira seu pensamento. Não 
se pode esquecer que, no momento em que Herder escreve, 
o império germânico não possuía a configuração de uma 
nação, e a cultura oficial da corte era predominantemente 
francesa. A reflexão sobre a unidade nacional adquire por-
tanto um papel estratégico. Pretende-se construir uma civi-
lização-organismo alemã, única forma de um povo escapar 
da dominação estrangeira (particularmente francesa) e da 
segmentação política. No plano interno, a totalidade-nação 
resolveria a contradição entre elite e povo, no plano externo 
os alemães conseguiriam uma identidade para se contrapor 
aos países centrais. É dentro deste contexto que surge o 
debate sobre a cultura popular; parte da inte//igentzia alemã 
volta sua atenção para as tradições· para nelas encontrar o 
substrato de uma autêntica cultura nacional. 
Embora sejam poucos os escritos de Herder sobre cul-
tura popular, sua contribuição é fundamental. "Sobre os efei-
tos da poesia nos costumes e na moral das nações antigas 
e modernas", ganhou o prêmio da Academia da Bavária em 
1770, e alguns anos depois, ele publica "Canções Popula~ 
res"19. Nesses estudos, pela primeira vez, argumenta-se quy 
a canção e a poesia popular representam a quintessência da 
cultura. Retomando sua perspectiva organicista, Herder ar:. 
gumenta que a poesia autêntica é expressão espontânea 
da alma nacional. Como para ele cada nacionalidade é moda!, 
intrínseca, sua essência só pode realizar-se quando em con-
tinuidade com o seu passado. A ruptura com a história siJl-
gular, significaria a desagregação da unidade orgânica. Por 
isso a constituição do Estado-nação se reveste sobretudo de 
r- ma dimensão cultural; a proposta herderiana se assemelha 
Jem muito à concepção dcl,p~le de__ Ma~ J- a nação 
· # repousa na existência de uma consciência coletiva, elo so-
lidário que solda os diferentes grupos de um país. Os cos-
tumes, as lendas, a língua, são arquivos de nacionalidade, e 
formam o alicerce da sociedade. A língua não é apenas um 
mero instrumento de comunicação; ela traduz o caráter de 
HOMÂNTICOS E FOLCLORISTAS 
• • 
1 
<"T 1 ~C' r 'I.. .ivv~ú.d 11 "'~~ 23 
povo. A retomada da tradição linguística alemã transfor-
t assim em recuperação do gênio nacional. o estudo 
·ultura popular é o reatamento com o que havia se per-
•! • é a ponte para se pensar a unicidade nacional. 
I I ·r<.lcr introduz ainda uma distinção entre "poesia de 
-• ... r .. ·~ · "e "poesia de cultura", tese amplamente explorada 
Irmãos Grimm20• A primeira tem um cunho intuitivo 
n • de uma sabedoria que não se adquire com o conhe~ 
,..,.
1''""''"''> ~ rmal; ela integra um gênero que atualiza o frescor 
sado, resistindo ao impacto da degradação civilizatória. 
é sensível à poesia medieval, aos cantos de Ossian, 
kc.•:tspeare, a Homero; épicos que refletiriam a essência 
um P vo. Já a poesia de cultura teria um caráter indivi-
1, •l:t deriva da intelecção, afastando-se da intuição e da 
espontânea. Como a dimensão intuitiva se sobrepõe 
n •xlva, tem-se que a poesia de natureza constituiria a 
lírica por excelência. A ela correspondem a tradi-
oral, os mitos, as lendas, as canções, mas também ai-
po ·tas como Homero e Shakeaspeare, que souberam 
11 r c.• traduzir a alma popular. 
A Influência do pensamento de Herder junto aos irmãos 
1111 P de ser observada quando eles procuram definir as 
1!•
11
"'"''r"" modalidades da narrativa popular. No entanto, os 
lr11111 vão restringir o significado da poesia de natureza· su-
lnh llldo o anonimato das produções populares eles coru:ide-
1 llc llllCro apenas um intérprete da matéria lírica que a ele 
Impunha. Elimina-se desta forma a mediação individual do 
I lu' poético. Há neste ponto uma nítida contradição entre 
Jc wlmcnto romântico nacionalista e popular, e os ideais do 
ntlo;mo. A visão egocêntrica do artista cede lugar ao ano-
' da criação. Desvaloriza-se no indivíduo a capacidade 
lmuHfn.1ção artística, ao mesmo tempo que a sensibilidade 
lc J< ':tda para o pólo do ser popular. Neste sentido, a poesia 
ult ura é obrigatoriamente inferior à poesia de natureza. 
o, Crimm a epopéia é a forma mais primitiva, bem 
h 1< lól , da matéria poética: 
24 RENATO ORTIZ 
"Nela se exprimem as crenças, as aspirações, os pensa-
mentos da coletividade; a história de um povo, nela se 
desenvolve como um fluxo regular e sereno. A epopéia é 
propriamente a poesia popular, porque ela é a poesia de 
todo um povo"21 . , . 
Eles também consideram os contos como uma especte 
de epopéia familiar, distintos dos "contos de arte", obras da 
arbitrariedade do intelecto humano. As histórias populares 
pertencem à tradição oral, elas são vestígios de um_ passado 
longínquo, e se sobressaem diante das tramas urdtdas pela 
imaginação. 
Mas ao conceberem o povo como transmissor fidedigno 
da tradi~ão, os Grimm colocam em prática urna metcx:toiogia 
até então desconhecida do antiquário. A edição do hvro de 
contos (primeiro volume em 1812, o segundo em 1814~, e 
de lendas (1816), inclui, pela primeira vez, elementos retira-
dos de uma versão popular22. Diferenciando-se das publica-
ções anteriores, que continham versões arranjadas p:los 
autores, os Grimm têm a iniciativa de procurar coleta-las 
diretamente "da boca dos camponeses". Seus livros são 
impessoais, e indicam detalhadamente o local onde cada 
história foi ouvida; esta metodologia de trabalho abre a pos-
sibilidade de se realizar um estudo mais sistemático das tra-
dições populares. É bem verdade que os Grimm não res_pei-
tam inteiramente os critérios que eles mesmos enunciam. 
Como os livros se endereçavam a leitores de classe média, 
foi necessária uma tradução da fala popular, seja ao nível da 
sintaxe, seja do conteúdo; onde as histórias poderiam ~h?­
car, eles corrigiam as "grosserias" que eventualmente eXIStiS-
sem· diante de duas versões possíveis de um mesmo conto, 
eles' eliminavam a que estivesse em desacordo com os cri-
térios da espontaneidade23. Curiosamente, a própria ideolo-
gia da unidade e do anonimato da criação lhes permitia tais 
intervenções. Justificando os textos reunidos no livro das 
lendas, eles dizem: 
"O primeiro e o mais importante elemento de uma cole-
ção, e não se pode nunca perder isso de vista, é a sua verdade 
HOMÂNTICOS E FOLCLORISTAS 
25 
I I c·onfiabilidade. Esta necessidade sempre foi reconhecida 
mo da maior irnportãncia em todas as estórias. Mas nós 
ml •rn u ·mandamos a verdade poética, e reconhecemos nel~ 
1ru lomta de toda verdadeirapoesia. As mentiras são falsas 
, assim como é tudo o que vem dela. Mas nunca encon-
._1"''"' nenhuma mentira nas canções e nas lendas do povo. 
deixam o conteúdo dessas histórias da maneira como as 
, • .,.,,,n,, .. ,mm e da forma como sempre as conheceram"24. 
Corno um indígena rousseauiano, a alma popular é inca-
~~ distorções, ela condensa as qualidades de uma ingenui-
t'S<JUCcida25. Desta visão essencialista, decorre a força da 
ltu I popular e a metodologia ·proposta para entendê-la. 
nl d ' sua magnificência, cabe às pessoas simplesmente 
Ytr, quando muito traduzir, a veracidade do fato popular. 
I ndo os Grimm pesquisam em KasseJ, utilizam como infor-
1 t'Sla "fabulosa" mulher, que repetia de cor, e sempre da 
m I maneira, as histórias que conhecia. Em princípio seu 
te, •ria representativo do saber popular na sua inteireza, 
I no pressuposto do anonimato da criação reside a 
n 1hflidade do relator. A pessoa é apenas um médium entre 
lllisador e o tesouro perdido. Mas, como os contos são 
lmos, e nenhuma versão é preferível a outra, pode-se 
ll(lr ou remanejar esta ou aquela expressão literária, desde 
c• ·speite, religiosamente, o fundo sobre o qual elas se 
I m; justifica-se assim a supressão das passagens Jicen-
. das alusões satíricas. 
• 'c• · verdade que o movimento romântico valoriza po-
IYillllc•ntc a cultura popular, é necessário perguntar 
0 
que 
nlll<'u para ele a idéia de povo. Seriam as classes popu-
c·omo um todo? A nação, como categoria sócio-cultu-
1, pc I( I · conciliar os interesses tão diversos e conflitantes 
dass ·s que a compõem? 
C )uando escreve "Uma Outra Filosofia da História" 
lc•r procura refutar o despotismo esclarecido que consi~ 
v • as nações e os indivíduos como elementos passivos, 
llc 1, : sua dominação. Sua crítica a Frederico II, visava 
lllltc·nt • a s paração entre elite e povo, fosso que afasta-
26 RENATO ORTIZ 
va o monarca dos verdadeiros desígnios nacionais. No en-
tanto, sua compreensão da História, apesar da oposição aos 
equívocos do Iluminismo, dificilmente poderia ser qualifica-
da como democrática, no sentido da igualdade dos homens, 
· tema inaugurado pela Revolução Francesa. A rigor, a proble-
mática popular tem pouco a ver com os direitos, restringindo-
-se aos aspectos do distanciamento entre governante e gover-
nados. O essencial para Herder são os dilemas que rondam o 
ser nacional. A monarquia podia muito bem acomodar-se à 
realidade social, desde que o rei fosse o representante legítimo 
dos anseios nacionais. Há portanto uma diferença entre povo 
e classes populares. Essas, no contexto de uma sociedade aris-
tocrática, não podiam ser assimiladas à positividade do popu-
lar-nacional. Os pobres são despossuídos de cidadania política 
e cultural. Ou como dirá Herder: "A canção do povo não tem 
que vir da ralé e ser cantada para ela; povo não significa a ralé 
nas ruas, que nunca canta ou cria canções mas grita e mutila 
as verdadeiras canções populares"26• Existem pois, os excluí-
dos do organismo-nação. Não é a cultura das classes popula-
res, e_nquanto modo de vida concreto, que suscita a atenção, 
mas sua idealização através da noção de povo. O critério sócio-
-econômico toma-se então irrelevante; interessa mapear os 
arquivos da nacionalidade, a riqueza da alma popular. "Povo" 
significa um grupo homogêneo, com hábitos mentais simi-
lares, cujos integrantes são os guardiães da memória esque-
cida. Daí o privilégio pela compreensão do homem do cam-
po. Entretanto, o camponês não será apreendido na sua 
função social; ele apenas corresponde ao que há de mais 
isolado da civilização. Os costumes, as baladas, as lendas, 
os folguedos, são contemplados, mas as atividades do pre-
sente são deixadas de lado. Movimento de imigração para a 
cidade, formas de produção, inserção do camponês na so-
ciedade nacional, são esses os temas ausentes, tabus; eles 
escapam à própria definição do que seria o popular. 
Esta concepção terá grande influência no pensamento 
posterior; ela estabelece a base de identificação entre os 
intelectuais e seu objeto de estudo. Tudo se passa como se 
ROMÂNITCOS E FOLCLORISTAS 27 
mpo da cultura popular fosse análogo ao de uma forma-
M •ol()gi a. Na superfície encontraríamos o pensamento 
,, <· m suas veleidades racionais e reflexivas. Descendo 
·amadas sociais, penetraríamos no segredo das jazidas 
las. Por isso os pobres e os trabalhadores são per-
MC.'ns secundários da curiosidade romântica; é necessá-
1 mais fundo, tocar os grupos incólumes, afastados da 
. O intelectual, como um geólogo, caminharia 
c•arnadas intermediárias, para finalmente recuperar os 
arqueológicos cobertos pela poeira da História. 
llohsbawm, em "A Invenção da Tradição", se refere à 
· c 1 d ' rituais e de regras que buscam traçar uma conti-
k ·om o passado28• Gesta-se desta forma uma memó-
JII<' funciona como um estoque de lembranças. No en-
,, rwrn tudo o que ela abarca é realmente passado; várias 
111s manifestações são recentes, mas surgem para as 
, 1 ·orno algo há muito existente. Neste sentido, pode-
ralar da invenção de tradições - como no caso dos 
-•ttln >~ <.1 Ossian, das saias escocesas C um produto tardio 
111 1 )ria), ou de algumas cerimônias mais recentes con-
las pela monarquia inglesa. O fato de celebrá-l~s faz 
'qcw s esqueça sua idade, sua origem atual, camuflada 
I ·mpo imag· ado. A "tradição criada" confere a ilusão 
JK'It'nidade, reabilitando o nexo entre o presente e o 
l rllo reconstruído. Em nosso caso, deveríamos talvez 
l ela Invenção do conceito de "tradição". O entendimen-
1 c·ullura popular só é possível quando referido a uma 
1. nda de cultura" pertencente ao passado. 
Allmlmcnte, são comuns os estudos que se contrapõem 
lt• ponto de vista. E.P.Thompson pode compreender o 
rlv~trl orno uma manifestação pré-política das classes 
ul~trcs, c Mandrou o florescimento da literatura' de cor-
c·omo um processo de alienação das massas camponesas 
Jll<' • duvidoso]29• Nada de semelhante existe na literatura 
nlka. Para seus autores, o cordel está ligado à imagem 
rt•l , príncipes e cruzadas; fenômenos como o carnaval, 
lc·s1as religiosas, dificilmente poderiam conter uma 
28 RENATO ORTIZ 
consciência de contestação ou de protesto. Isto não se deve 
apenas ao preconceito, ou ao conservantismo político; o 
resultado das análises decorre de seu suporte epistemológico. 
Os conflitos culturais e políticos são excluídos "naturalmen-
te"; eles representam a aridez contemporânea, dimensão que 
escapa aos olhos do pesquisador. 
Entre o Ideal Romântico 
e o Espírito Científico 
É somente na segunda metade do século XIX que os 
estudiosos da cultura popular vão considerar-se "folcloristas". 
Esse neologismo inglês, cunhado tardiamente, não é apenas 
uma inovação terminológica - ele encobre uma disposição 
que redefme o estudo das tradições populares. Pode-se captar 
esta mudança, quando focalizamos a Folklore Society, criada 
na Inglaterra em 1878. A escolha não é arbitrária - são os 
ingleses que fundam a primeira associação de folclore cuja 
ambição é transformá-lo em uma nova ciência. A Folklore 
Society agrupava um conjunto de intelectuais e, através de 
publicações, palestras, congressos, pretendia organizar e 
divulgar o estudo da cultura popular de forma sistemática e 
dinâmica30. Seus membros participaram ativamente do pri-
meiro Congresso Internacional do Folclore (Paris, 1889) e 
promoveram em Londres um segundo Congresso Interna-
cional (1891). Seu principal orgão de publicação, o "Folk-
-Lore Record", que alguns anos depois muda o título para 
"Folklore Journal", trazia artigos sobre os mais variados as-
suntos. A revista estava também aberta à participação de 
autores estrangeiros, e publicava regularmente resenhas da 
bibliografia escrita nos mais diferentes países. Ela cultivava 
uma visão internacionalista, e sua influência incentivou a 
formação de sociedades homólogas em outros lugares do 
mundo. Na verdade, ela é um modelo; não é por acaso que 
a palavra "folclore",escolhida para denominar a nova disci-
ROMÂNTICOS E FOLCLOIUSTAS 29 
, tk·ntro de poucos anos, acabou sendo aceita univer-
1\l •. Até então, a noção possuía um significado vago e 
-.~",.~"' 'ISO: cr'.t simplesmente uma denominação recente para 
Ih t prática de antiquário. Quando Thoms, ocupando 
flcamente o cargo de presidente da Sociedade, escre-
lntrodução do primeiro número de "Folk-lore Record", 
•nhum momento ele se preocupa em delimitar os con-
, de uma disciplina científica31 • O tom é outro, quando 
w l..ang, um dos membros mais ativos da entidade, 
o prefácio do volume 11 da revista; pela primeira vez 
mama "ciência do folclore"32• É com base neste ideário 
lko, ou melhor cientificizante, como veremos, que o 
, fundador da Folklore Society vai desenvolver um es-
, d • organização e de convencimento que ultrapassa as 
I ,as do território inglês. A aceitação do termo reflete a 
mia e a consagração de um determinado tipo de 
• da cultura popular; ele vem agora marcado pelo 
ro da ciência positivista. Por exemplo, o italiano Pitrê, 
1•. d · 1870 vinha publicando seus textos sob a rubrica 
I mopsicologia", no final do século, a contragosto, passa 
11 porar o vocábulo inglês33• O primeiro número de 
1 hlt'" - revista que agrupa estudiosos franceses -
ltt. 111 ·nção à palavra, mas o segundo, publicado em 
trdta-a sem maiores dificuldades em substituição à 
'111111111fthtu ... n ,> francesa, "tradições populares". "Mélusine" realça 
'' t•mpreendimento inglês, sua seriedade e sua dili-
lt na promoção da nova ciência; o mesmo sentimento 
dmlm~·: o e de respeito manifesta-se na "Révue des 
lllon,'i I' pulaires", fundada por Sébillot em 188634. 
A t'tlaç·: o do folclore se realiza sob a égide do pensa-
' H •stado pelas Ciências Sociais do século XIX. O 
lvl mo de Auguste Comte e de Spencer tem uma in-
li d •t ·rminante na compreensão dos fenômenos so-
A 1 ·r •nça na possibilidade de se fundar uma ciência 
lv 1 ('111 t dos os domínios do conhecimento, anima o 
lntd · tua! da época. Os folcloristas acreditam ser 
30 RENATO ORTIZ 
apenas um desses grupos, que aplicadamente levam o es-
clarecimento científico ao domínio popular. Não se deve 
esquecer, que este é o momento em que é publicado o libro 
de Darwin, "A Origem das Espécies". No século XIX, as 
idéias de progresso, evolução e ciência são dominantes, e 
praticamente sinônimas. Mas é importante distinguir duas 
vertentes que incidem sobre a reorientanção do pensamen-
to. Uma, que floresce junto ao mundo acadêmico, outra que 
se caracteriza como cientificismo. Evidentemente há uma 
relação estreita entre elas; seria entretanto um equívoco 
identificar inteiramente os desdobramentos científicos ex-
clusivamente ao campo da ideologia. Mas nossa discussão é 
outra. Basta sublinharmos que paralelamente ao desenvolvi-
mento do saber universitário, temos a popularização do 
entendimento científico. Um exemplo disso, na Inglaterra, 
são os Institutos de Mecânica, cuja finalidade é esclarecer os 
trabalhadores sobre o progresso da humanidade. Na França 
a doutrina de Allan Kardec integra os ensinamentos de 
Comte para, positivamente, descobrir as leis que regem o 
universo dos espíritos35. Os folcloristas encontram-se a meio 
caminho entre o universo das ciências e a popularização do 
saber. Ambigüidade que irá acompanhá-los, marcando de 
maneira indelével a disciplina que pretendem construir. 
A aceitação do ideal científico não deixa de trazer al-
guns dilemas. Face às exigências de um novo paradigma, 
tem-se a necessidade de rever o substrato das correntes que 
alimentavam as reflexões anteriores. Se por um lado o Ro-
mantismo dá um impulso para a compreensão das curiosi-
dades populares, por outro, ele destoa da atmosfera reinan-
te no final do século. Para se consolidar como "ciência", o 
folclore tem de reinterpretar seu passado, procurando dese-
nhar, de maneira inequívoca, suas novas fronteiras. Para 
isso, é crucial que se estabeleça uma distinção entre os 
folcloristas e os românticos que os antecedem. 
Desde meados do século, o Romantismo tinha pratica-
mente desaparecido como gênero literário. São várias as 
I MÂNTICOS E FOLCLORISTAS 31 
qu · · ncorrem para isso - autonomização do cam-
n 11 ·o, transformações econômicas, mudanças políti-
'1 • dmcnto do público leitor36• Existe no entanto um 
' recorrentemente empregado pelos intérpretes na 
falai para o movimento o excesso literário. O abu-
lmaHinação teria distanciado o escritor de seu público. 
nlt•m ·me, este tipo de explicação não dá conta do 
, crn questão, mas o que importa é entender como 
rc•lmlld para o plano do folclore. Os escritores român-
n·kbrados anteriormente, devido à sua imaginação 
rhada, passam agora a ser criticados como 
11 •do res da essência popular, adulterando-a com seu 
art íslico e egocêntrico. Como dirá um historiador 
• onr pa deste período: 
•Jt 1:1 a iência do folclore, o interlúdio romântico entre 
lllrlua do racionalismo [Iluminismo] e os métodos do 
I mo, trouxe vários perigos. Ele interrompeu a pesquisa 
d;~ busca de dados folclóricos de primeira mão, e des-
1 ai ·nção para a evocação da emoção atmosférica e 
. I >c' p nto de vista da literatura isto não tinha nenhum 
la, mas do ponto de vista do folclorista os resultados 
d<·saslrosos: a apresentação das tradições folclóricas 
hrhc·rada e diluída pelo maneirismo literário"37. 
11111 1111aticamente, valoriza-se a sobriedade do antiquário 
c 1 llrllimo romântico. 
Ih ncy .aidoz e Paul Sébillot também distinguem duas 
no ·studo do folclore. A primeira, dominada pelos 
11 clorl's" românticos, e a subseqüente, quando "o 
lc•z.un ·nto e as preocupações literárias foram deixados 
c lc 1: passou-se a escutar o povo para reproduzir suas 
com uma fidelidade escrupulosa"38• Alejandro 
11 11 y Si rra, quando escreve uma história do folclore 
1 •u, r<'I Oma esta distinção; há os que retratam "fielmen-
,., :1d dade da cultura popular, e os que a desvirtuam. 
c c 1111pr · ·nsivo para com os escritores romântico ele 
1 po. sív I separar os "utilizadores simpatizantes",' isto 
lll' t'Om Walter Scott ou George Sand, que não possu-
32 RENATO ORTIZ 
íam as técnicas científicas para a coleta de dados, mas ti-
nham boa intenção naquilo que faziam, dos "utilizador s 
egoístas", que adulteravam sem nenhum escrúpulo o saber 
popular. A demarcação revela em que medida o espírito 
científico colocava sob suspeita as pesquisas anteriores. 
Muitas delas tinham sido feitas por pessoas que tiveram sua 
reputação associada à dos falsários. O caso mais notório é 
o de ]ames Macpherson, tradutor dos poemas de Ossian. 
Em 1760, ele forja uma versão épica, fazendo-a passar por 
um relato anônimo; de maneira imaginosa ele reconstrói a 
gloriosa história do povo celta, que numa idade remota teria 
habitado a Escócia39• Os poemas, que influenciaram pensa-
dores como Herder, transformaram-se em uma longa con-
trovérsia, a ponto de, em 1797, a Higbland Society o f 
Scoltland criar uma comissão para averiguá-los. A conclusão 
foi que o conjunto deles, embora parciàlmente contivesse 
alguns traços de autenticidade, correspondia a uma farsa 
montada pelo autor. Acontecimentos como esse 
desqualificavam, e até mesmo minavam a credibilidade das 
análises. Diante do futuro incerto de uma disciplina em busca 
de definição, como estratégia, só restava aos folcloristas uma 
vigilância redobrada dos arroubos da imaginação. 
Dentro do quadro da época deve-se particularmente levar 
em conta o impacto do livro de Tylor - "Cultura Primitiva" 
-publicado em 1871; sua argumentação constitui o funda-
mento das pesquisas sobre cultura popular. Sua influência 
no entanto, não se limitou ao ensinamento teórico, o livro 
despertou vocações em pessoas como Edward Clodd e 
Andrew Lang, membros fundadores da Folklore Societyw. 
Quando se lê a biografia desses autores, tem-se uma idé ia 
clara de como o espírito cientificista, e no caso, especifica-
mente a obra de Tylor, penetra as diversas camadas da vida 
intelectual inglesa.Edward Clodd, em suas memórias, con-
fessa que sofreu uma verdadeira conversão após a leitura de 
"Cultura Primitiva"; convicto, ele abandona sua velha curio-
sidade, a astronomia, para abraçar a ciência do folclore. 
Tylor considera a mente humana como universal, única, 
mas que as diferentes culturas a ajustam aos níveis de evolu-
nOMÂNTICOS E FOLCLOniSTAS 33 
·iul. Evolucionista, ele propõe uma deftnição antropoló-
d ·ultura ("todo complexo que inclui conhecimentos 
nne, moral, leis, costumes, hábitos"), e insiste na im~ 
de se estudar a humanidade, conectando os aconte-
à totalidade evolutiva que preside a existência indi-
u livro, como o título sugere, focaliza o pensamento 
- IIUo•t•m O que atrai os foldoristas são as passagens que 
o homem primitivo do "selvagem moderno". Por 
'J'ylor dirá do homem do campo: 
para o moderno camponês europeu usando sua 
- •u11ma ou sua enxada; se considerarmos que as coisas 
lm e não se alteraram ao longo de vários séculos 
•stabelecer um quadro em que existem poucas dife~ 
ntrc um lavrador inglês e um negro da África Central"4I 
utor introduz ainda a noção de sobrevivência pa~ 
Ir a deAsu~erstição. Ele se dedica assim a compreen-
rmanencra de certas sobrevivências no mundo in-
1 - canções infantis, jogos de azar, ocultismo _ 
lllllll'llu.u. que seriam análogas ao pensamento do ho-
lrnltlvo. 
lnllu ~ncia de Tylor na conceptualização do folclore 
r facilmente traçada. Basicamente, os folcloristas 
t'Nt:tbelecem uma divisão de trabalho entre as áreas 
oc:upam das coisas primitivas. Reconhecendo a im-
ela Antropologia, eles reinvidicam como objeto a 
lu ·ultura selvagem no seio das sociedades moder-
toma-se assim a analogia sugerida anteriormente: 
n lc 1-s ' dos selvagens para os camponeses da Europa 
lt, lka-se surpreso quando se percebe que até 0 
momento as mesmas condições de pensamento 
t•r discernidas nos lugares que não foram tocados 
luc· ~~·:lo moderna, pela Revolução Industrial e Comer-
t)hlrnos cem anos"42• As sobrevivências são portanto 
J de hábitos milenares. Sua persistência possibilita a 
, de um domínio especffico do conhecimento. Os 
I da nova disciplina podem então ser delineados: 
lll(' lll <.~ fal ando, o folclore concerne as lendas, costu-) 
34 RENATO ORTIZ 
mes, crenças do povo, das classes que foram menos alte r::t -
das pela educação e que participam menos do progress . 
Mas o estudo do folclore logo mostra que essas classes nã 
progressivas retêm várias crenças e maneiras dos selvagens"~J. 
O aspecto primitivista configura-se em traço definidor. 
folclore seria, "a ciência que trata das sobrevivências arca i-
cas na Idade Moderna", uma "Antropologia do fenômen 
psicológico do homem não civilizado"44• A camada geológi-
ca a que eu me referia, pode então ser tratada como objet 
de ciência, e não mais como matéria para a inspiração po-
ética. O longínquo, o distante, de alguma maneira desen-
cantado pelo Positivismo, torna-se palpável graças ao olhar 
penetrante dos arqueólogos do mundo moderno. 
Mas a influência de Tylor não se resume à Inglaterra. O 
argumento de que a mentalidade primitiva se prolongaria 
nas sociedades modernas permeia toda a reflexão folclórica, 
a ponto de tomar-se senso comum. O primeiro número da 
"Révue des Traditions Populaires", traz uma referência ex-
plícita a Tylor. Os editores observam que sua Antropologia 
"se associa estreitamente às tradições populares: os contos 
a canções explicam certos costumes, e inversamente os mitos 
antes obscuros, se esclarecem quando se aproxima os usos 
antigos aos existentes ainda em certos lugares. A Etnografia 
é portanto um elemento essencial, cujo estudo se impõe a 
todos que tentam tirar conclusões dos mitos populares"~5 . 
Até mesmo nos pontos polêmicos há uma convergência 
quanto aos princípios. Quando Emmanuel Cosquin, se in-
surge contra a interpretação de Andrew Lang, de que os con-
tos populares seriam oriundos de um único tipo de mentalida-
de, ele contesta apenas uma parte de seu argumento. 
Difusionista, adepto das teses de Max Müller, Cosquin acre-
ditava que as narrativas populares seriam originárias da India; 
deste centro irradiador, matriz da cultura indo-européia, elas 
teriam sido difundas para todos os cantos do mundo46• A va-
riedade das interpretações seria o resultado da associação entre 
a mentalidade primitiva e uma história local. Com este artifício, 
IH IMAN'I'I S E FOLCLOIUSTAS 35 
IIJ(tlldad ·do aporte indo-europeu, cronologica-
11• 1 lo ·orno superior ao estágio anterior. De 
11 o m ·locínio repousa na suposição da existên-
m llll' ln('apaz de entender a riqueza da literatura 
nt 1 t•m contacto. A perda da origem seria fruto 
I um pensamento "pré-lógico" (expressão de 
I 1 1'11m os estudiosos as coisas são claras: a igno-
1 rlmdramente as idéias supersticiosas, a igno-
11~·· o as perpetuam. O elemento primitivo é 
nda que desvenda o passado. 
\'• o da cultura popular ao elemento selva-
11111 problema interessante; não estariam os 
lomando a velha ótica negativista, anterior ao 
1111(11111 ? Para responder à pergunta, é neces-
r t'Omo a imagem do selvagem era percebida 
. l.ouis Chevalier observa que, contrariamente 
rouss •auiana, é neste período que as classes 
• o a . .;;similiadas à idéia de classes perigosas47• 
via no proletariado uma plêiade de atributos 
11110 o nomadismo da mão-de-obra, a vida imun-
' d 1 h ·blda, as doenças venéreas; práticas que 
111 111 ll'f'dade, constituíam uma ameaça, pois refor-
p llil~'ilo ele um grupo, do restante da sociedade. 
1 rovlnha de um conflito potencial entre civilização 
A luta d classes, que neste momento é aguda 
rc•t ' ·m-industrializados da Europa, é traduzida 
I 11110. m rais e ideológicos. 
11111 pode ser dito em relação aos camponeses, 
h • t •;a ,.;;o, a dimensão explosiva não se coloque da 
n 1\t'ha . Eug n Weber observa que na França são 
te• u·munhos que os assimilam ao estado selva-
mu• t' dizia na época, não era preciso viajar à 
1 11 t•nrontrá-lo- ele se manifestava nas provín-
1 1 at r:1.-.adas em relação ao ritmo do progresso. 
11 utltana se contrapõe assim à vida bárbara e 
1l11 (':tmpo. Na verdade, este embate ideológico 
1111111 ltua~·: na qual a França tem dificuldades em 
36 RENATO ORTIZ 
se constituir como nação. Não há ainda uma consciência c 
letiva que integre a diversidade social na totalidade naciona I. 
Em 1863, cerca de um quarto de sua população não falava o 
francês; a língua oficial era portanto estranha para um conjun-
to considerável de seus habitantes. Por outro lado, a comuni-
cação entre os espaços e as pessoas era precária, o número de 
estradas era pequeno, elas encontravam-se em péssimo esta-
do, e o país só pôde contar com uma rede ferroviária a partir 
de meados do século. Com isso, nos lugares mais isolados, ou 
de difícil acesso, os hábitos culturais do passado encontravam 
condições propícias para se reproduzir. Blanqui dizia que na 
França, existiam "dois diferentes povos, vivendo em uma mesma 
terra vidas tão diversas, que eles parecem estranhos uns aos 
outros". Para o citadino, o camponês vivia como um troglodita, 
em cabanas sórdidas, perpetuando maneiras que o coloca-
vam à margem da sociedade: faltava-lhe civilização. Ciente 
çlo problema, o Estado francês empreende uma política de 
integração do campesinato; entre 1860 e 1880 a ideologia 
que justifica o desenvolvimento das escolas primárias, fun-
damenta-se numa pedagogia civilizatória, induzindo o pro-
gresso nas regiões culturalmente atrasadas da zona rural. 
Analisando os relatórios dos instrutores públicos. Eugen 
Weber mostra como a escola vai aos poucos substituindo 
"as maneiras rudes e selvagens pelos hábitos de contenção 
e de polidez", _e como os velhos costumes são "varridos pela 
civilização". O contraste entre civilização e barbárie revela 
pois o processo de formação da nacionalidade. 
Fruto de uma época, os ideais civilizatórios não podiam 
deixar de se exprimir nos debates sobre o folclore. Quando 
uma autora inglesa justifica suas atividades,ela diz: 
"Ao se entender os motivos do homem deseducado, as 
pessoas aprendem como tratar com eles, e como reconciliá-
-los com os princípios da cultura moderna e da civilização"49• 
Um folclorista italiano afirma: 
"[O folclore é] um movimento de homens de elite, que 
através da propaganda assídua, se esforça para despertar o 
povo e' iluminá-lo na sua ignorância e no seu preconceito"50• 
J( MÂNTICOS E FOLCLORISTAS 37 
llnrtland, participante do núcleo decisório da 
\'udt ty, quando compara o camponês ao selvagem 
I lllo( : "Quando maior é nosso interesse [pelos cam-
nualor nossa simpatia por eles, podemos nos iden-
11 nclm mais completa com seu modo de pensamen:-
nwlor será nossa influência sobre eles. O conflito de 
massas, do qual se-ouve tanto falar atualmente, se 
>r causa do abismo educacional que se abriu entre 
h lxo51 • O argumento político é explícito. Caberia 
J r:unbém uma função pedagógica. 
n . uma dúvida, esta dicotomia entre civilização e 
I' ria Igualmente parte da ideologia burguesa? Es-
te ,J ·Joristas partilhando do mesmo ponto de vista 
,-- ........ ,tor s do mundo moderno industrial? Creio que 
unos diante de uma concordância aparente. Ela 
VI II<) •s que se comunicam, mas no fundo são 
I . A welstanchauung do progresso não encontra 
foldoristas seus melhores defensores. 
n ·am •nto das elites dominantes, ao identificar ig-
r rcupcrstição, desvaloriza imediatamente qualquer 
·c )fll a ultura popular. Esta se apresenta como um 
c•xi~l!ncias do progresso. Os folcloristas porém, 
r as superstições como sobrevivências, abrem-
outro horizonte. Assim, um livro intitulado, "As 
'la Su pcrstições Populares", contrariamente ao que 
IIJ(c'rir uma pedagogia repressiva, prescreve em 
c·uhura popular, "uma pesquisa simpatizante por 
p kológicos e científicos do maior interesse"52• 
luc, quand estuda as lendas da Bretanha, caminha na 
lln·~·~to: 
l'llllrn ·ntos deste povo, tal como eles se apresen-
lc•ndas, c mesmo nas superstições, parecem dar 
tpul:a~·· o uma idéia que está longe de ser desfavorá-
1111 nrlv •rmos à tradição oral, que é uma imagem 
11 ·I dos sentimentos populares, tem-se a impressão 
ttlljllnlo de qualidades médias, com idéias de carida-
38 RENATO ORTIZ 
de bastante impressionantes e um sentido de justiça que se 
manifesta nas punições que recaem sempre sobre os maus"53• 
Na introdução do primeiro número da "Révue des 
Traditions Populaires", propõe-se: 
"Nós compreenderemos o estudo [do folclore] no senti-
do mais abrangente, e procuraremos tomar amável esta ciên-
cia praticamente desconhecida entre nós. Tentaremos, sem-
pre continuando científicos, mostrar ao público que as tra-
dições populares são geralmente divertidas e charmosas, e 
quase sempre ingênuas e poéticas"54• 
Poderíamos multiplicar as manifestações de simpatia 
pelos costumes populares, inclusive quando se admite a 
ignol"ância como a causa desta mentalidade. Há certamente 
neste ponto uma filiação romântica, embora contida pela 
.razão científica. Uma passagem de Tylor, comparando o 
homem selvagem à classe proletária, ilustra bem a dimensão 
que quero ressaltar: 
"Em nossas grandes · cidades, as chamadas classes peri-
gosas estão afundadas numa miséria horrenda e na depra-
vação. Se quisermos estabelecer uma comparação entre os 
papuas da Nova Caledônia e a comunidade européia de 
mendigos e ladrões, temos que conceder que possuímos em 
nosso meio algo pior do que a selvageria. Mas isto não é 
selvageria, é civilização decadente. O pensamento selvagem 
se devota essencialmente a ganhar substância da natureza, 
o que a vida proletária não faz. Em minha opinião frases 
como selvagens da cidade ou árabes de rua parecem com-
parar uma casa arruinada a um pátio bem cuidado"55• 
A oposição não está muito distante da que Herder esta-
belecia entre o povo e a canalha, mas para além do julga-
mento de valor, que situa a classe operária no nível da 
barbárie, tem-se que a noção de selvagem possui uma di-
mensão positiva. A cultura primitiva, embora considerada 
inferior à da civilização industrialista, quando comparada 
pela escala da evolução social, analisada no tempo e no 
espaço que lhe correspondem, é superior à decadência. Neste 
sentido, existe uma diferença entre o selvagem e o bárbaro. 
ROMÂNTICOS E FOLCLORISTAS 39 
h trutor da escola primária republicana francesa, ao qual 
h•rla Eugen Weber, assim como o empresário moderno 
111l ressa apenas pela prosperidade de seus negó-
o incapazes de entender esta sutileza. Para eles o 
-·nn1rc•m, indolente, preguiçoso, é o antípoda dos ideais de 
<K'I ·dade na qual o trabalho é uma categoria central. 
- I\ICI'ICl'l < JUC se ajustam mal ao mecanismo da máquina social; 
ou operários, são pensados como improdutivos, por-
h. rharos. Isto não ocorre com o folclorista, para quem 
lmltlvo é o testemunho da Tradição (com maiúscula). 
I c 1 o folclore é concebido como "o corpo de conheci-
mo dos homens deseducados, incluindo os costumes, as 
lllai~· •s, as superstições, as práticas médicas, e muitas 
I t'Oisas além das histórias"56• Visão que se afasta do 
tlvl.o;mo f'àcionalista: "O povo é um verdadeiro relicário, 
I c mt · de achados, um conglomerado de remanescência 
h hltos, pensamentos e costumes perdidos, um verda-
muscu de antiguidades, cujo valor e preço é inteira-
ti ·sconhecido por aquele que o possuía; o povo é o 
lvc, da tradição"57• Outros dirão que o sabet: popular é 
lqula de um passado não gravado"58. 
:oauo s românticos, os folcloristas cultivam a tradição. 
I nwnto selvagem encerra portanto uma positividade, 
Indo aproximá-lo da riqueza das pedras preciosas. O 
rio tinha um afã colecionador, o folclorista, respalda-
lc 1 P sitivismo, cria o museu das tradições populares. 
1 cll~ Michel de Certeau, ele se contenta em mirar a 
do morto", pois o que lhe interessa é o passado em 
lc• c•xt inção59• Diga-se que o folclorista tem plena cons-
1 t das mutações sociais que vivenda. Andrew Lang 
qu ·"as relíquias de um estado de pensamento primi-
jllt' c•stão morrendo na Europa, existem em várias partes 
mundo"60. Um depoimento pungente é o de Sébillot, 
nd no fmal de sua vida, e rememorando a idade de 
<lc• suas investigações. Para ele: 
INc•, I · período os pesquisadores] puderam explorar e 
11,., c 1 I ·souro maravilhoso da alma popular, interrogan-
40 RENATO ORTIZ 
do as pessoas que contavam o que elas haviam aprendido 
das gerações passadas. As tradições ancestrais eram perpe-
tuadas e transmitidas oralmente, algumas depois de milha-
res de anos, junto aos camponeses, que até lá tinham vivido 
isolados do resto do mundo, habitando, de século em sécu-
lo a mesma aldeia ou o mesmo condado. Elas estavam 
' inscritas na memória fiel, como num disco virgem, nenhuma 
outra leitura tinha podido transformá-la. Elas ainda estavam 
intactas, precisas, vivas. Depois - constatemos sem deplo-
rar- veio a escola obrigatória, o serviço militar, a leitura 
dos jornais e dos livros, os deslocamentos fáceis, a diminui-
ção da fé religiosa e seu corolário, o ceticismo em relação 
às numerosas crenças populares"61 • 
O tom nostálgico é revelador; trata-se de lutar contra o 
tempo. O esforço colecionador identifica-se à idéia de sal-
v.ação; a missão é agora congelar o passado, recuperando-
-o como patrimônio histórico. 
Se lembrarmos da defmição de intelectual, proposta por 
Gramsci, podemos dizer que os instrutores da escola públi-
ca assim como os políticos e os administradores da máquina 
estatal, são os intelectuais orgânicos de uma nova ordem. A 
barbárie significa o que está em descompasso com este 
mundo em construção; ela deve ceder lugar ao progresso. O 
Estado tem por função resolver esta contradição, integrando 
as partes desconexas da sociedade no todo nacional. Maurice 
Agulhon, no título de seu livro, "La République au Village", 
captou muito bem este movimento. Para chegar até aos 
confins do país, o Estado teve de expandir a nova consciên-
cia de cidadania para todos os setores e recantos da socie-
dade62. Osfolcloristas, no entanto, se assemelham mais aos 
intelectuais de província, que Gramsci descreve como tradi-
cionais. Reconhecendo a radicalidade das mudanças em 
curso, eles se voltam para uma operação de resgate. Os 
intelectuais orgânicos caminham a favor do tempo histórico, 
os tradicionais nadam contra a corrente, e procuram armaze-
nar, em seus museus e bibliotecas, a maior quantidade 
possível de uma beleza morta. 
ROMÂNriCOS E FOLCLORISTAS 41 
I ncia e Método 
<.las coisas mais difíceis de encontrar na literatura 
é a explicitação da metodologia empregada na 
dados. Os folcloristas são unânimes em dizer que 
deve ser recolhido diretamente do povo, e neste 
a investigação dos irmãos Grimm é uma referência 
Com a absorção do Positivismo, a exigência de 
h ·lccer um procedimento metodológico torna-se 
lva, mas paradoxalmente, são raríssimas as reflexões 
o modo de realizá-lo. Contrariamente aos antropólo-
IUl' fizcr.am do trabalho de campo o ponto forte de sua 
lna, com os folcloristas tudo tende a se tomar implí-
m seus livros e artigos esquecem sempre de meneio-
uno o trabalho foi realizado. Por exemplo, diante da 
- '"'"luóldc de a disciplina delinear suas fronteiras, o 
I )f· J umal" incentiva toda uma reflexão sobre a ciên-
l lc 1! ·!ore. Entretanto, no debate travado em suas pági-
qu ·stão metodológica não é tratada uma única vez. É 
t' a precisão científica, reverentemente cultivada, não 
· s • um destaque na constituição do campo discipli-
'l'tKiavia, o trabalho empírico desempenha uma função 
nl • na ideologia professada, é através dele que os 
as pensam distinguir-se de seu antecessores. A pes-
o álibi da cientificidade. 
OI'J.( • Gomme, quando define o folclore, nos lembra 
• u estudo não pode ser um simples divertimento de 
rio, ou a mania de se observar tudo o que é curioso 
t "ordinário, mas uma ciência". De uma maneira um 
hKtüente ele continua seu raciocínio: 
•l(u r ·clamo para o Folclore a posição e a função de 
, o que significa que se deve passar de uma vez por 
do •studo fragmentado de pedaços de fatos curiosos e 
para um estudo defmitivo e diferente que possui pro-
pró prios e trabalha suas conclusões a serem demons-
K la é evidentemente a diferença entre o mero literato 
'llllosidade antiquária e uma ciência histórica"63• 
42 RENATO ORTIZ 
Existe nesta estratégia uma dupla intenção: isolar o pas-
sado e interpretá-lo à luz das novas imposições. Antiquários 
e românticos podem ser vistos como precursores, mas suas 
contribuições se situariam no plano pré-científico. Um novo 
patamar seria alcançado quando as sondagens erráticas fos-
sem superadas pela pesquisa sistemática. Daí a coleta de 
dados ser encarada como uma atividade prioritária64• No 
entanto, é justamente este o ponto falho da proposta; as 
dificuldades que envolvem a discussão metodológica, expri-
mem a meu ver, a incapacidade de o folclore se transformar 
em verdadeira disciplina acadêmica. 
Um dos poucos manuais de folclore que existem, e tal-
vez um dos primeiros a ser escrito, é o de George Gomme; 
nele, um dos capítulos é dedicado ao procedimento empírico. 
Segundo o autor, para chegar a seu término, uma pesquisa 
deveria responder a quatro tipos de perguntas. De maneira 
rigorosa o pesquisador deveria anotar: a) a localidade em 
questão; b) a data de quando o fenômeno foi observado 
pela última vez; c) se o costume é ainda de uso local; d) o 
nome e ocupação social do informante. Munido dessas in-
formações, o ciclo de investigação estaria completo. Mas 
qual deveria ser a atitude do pesquisador diante de seu 
objeto? Como captá-lo? O manual nos ensina: 
"A melhor coleção é aquela que é feita por acaso, viven-
do junto do povo e cultivando os dizeres e as histórias que 
caem de tempos em tempos. Mas ninguém pode completar 
uma coleção desta forma, e uma busca deliberada é neces-
sário, o que é uma tarefa difícil; ela deve ser sempre um 
divertimento agradável, calculada para trazer um diversão 
durante um feriado no campo"65 . 
A sugestão é no mínimo ingênua, já que encontra-se em 
causa a fundação de um novo tipo de saber. Conseguiria 
uma ciência positiva erigir-se sobre um alicerce tão frágil e 
conjuntural? Nosso autor parece não se dar conta dessas 
contradições, e seu encaminhamento envereda por um ter-
reno cada vez mais instável e movediço. A quem perguntar 
sobre as tradições populares? Evidentemente aos velhos 
ROMÂNTICOS E FOLCLORISTAS 43 
111 ·s, vi tos como os guardiães da memória, mas raro-
no padr , ao advogado, ao fazendeiro, ao doutor, isto 
pt•ssoas educadas que estão em contato com as cama-
Inferiores. George Gomme é explícito a esse respeito: 
•A superstições não podem ser coletadas junto às clas-
1 lxas, embora aí floresçam; o povo não compreende 
o que as superstições significam, por isso não 
que o cavalheiro chegue a elas. As perguntas 
s ·r feitas junto à classe dos pequenos empregados, 
o um pouco mais cultivados do que o povo trabalha-
mas tem ainda uma familiaridade suficiente com as 
, , a ponto de conhecê-las bem, e participar de um 
n(uncro delas"66• 
l1odt•ríamos objetar que o "Manual" apresenta a visão 
1lar de um autor; entretanto, debruçando-se sobre a 
1r.1 disponível, percebemos que seu ponto de vista é 
lizado. Um interessado no assunto, escrevendo pa.IQ. 
~· o de notícias da revista "Folk-Lore Record", assim 
llln1 sua atividade: 
•cok·tar as tradições populares é uma arte que se apren-
om a prática. Quando eu coletei as baladas e as histórias 
o que fiz principalmente em Estocolmo, freqüente-
nas casas pobres, eu chegava num domingo quieto 
1 1 <'Ste velho povo, e lhes contava tal ou tal estória, ob-
'dt·sta maneira, as variantes das velhas histórias- tudo 
durante o café, para o qual eu convidava este povo deli-
Eu •stou certo de que várias pessoas, padres e senhoras, 
1r ·s c professoras primárias, e outros, poderiam fa-
uma rica colheita, mas eles devem saber como agir, e 
ouvir as palavras usadas pelo povo. ~7 
'l't•<\fllo 13raga, quando compõe seu livro sobre os contos 
uwwscs, nos dá um exemplo que vai na mesma dire-
Na introdução do texto ele fornece algumas informa-
ohr · material obtido, agradecendo aos que o ajuda-
I <'<>mpletá-lo. O depoimento de um certo doutor 
Ira · sugestivo: "Aconteceu outro dia passar por aqui 
11« lll<' a Maria e a Ignácia. Chamei-as para as interrogar 
44 RENATO ORTIZ 
sobre os contos populares a que o povo chama de casos. 
Desculparam-se pela falta de memória juvenil para entrarem 
francamente neste campo; contudo disseram bastante para 
me deixarem estupefato. Que peripécias, que maravilhoso, 
que poesiallÓS. Já um outro colaborador, tem como. infor-
mante privilegiado uma criança: "Redação pura, sem mcon-
gruência do improvisador momentâneo, nem o artifúico do 
literato. Parece-nos este o verdadeiro meio de obter a forma 
definitiva, simultaneamente étnica e artística do conto; fazê-
-los redigir por crianças, verdadeiro ponto de ·transmissão 
entre a alma popular e a inteligência culta"69• Evidentemen-
te este encanto romântico leva a uma parcialidade 
in~erpretativa, desconsiderando os relatos feitos pelas mu-
lheres adultas, "eivadas de explicações e considerações re-
ligiosas". A triagem interessada permite assim escolher a 
versão mais adequada da ingenuidade irúantil. 
À primeira vista, os exemplos mostram a inexistência de 
qualquer procedimento metodológico; mas esta ausência é 
um elemento intrínseco do olhar folclorista. Um primeiro 
aspecto, diz respeito à acidentalidade: "um fim de semana 
divertido no campo", "um domingo quieto e tranquilo em 
Estocolmo", "uma criada que passava em frente da casa". 
Tudo indica que a melhor coleção é aquela formada casu-
almente. Isto significa que o pesquisador não precisa neces-
sariamente ser um profissional; basta estar com os ouvidos 
· atentos, e captar as preciosidades dispersas do saber popu-
lar. Esta certeza justifica a relativa indiferença em relação à 
escolha dos informantes. Como afirma uma folclorista: 
"Existem milhares

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