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OI'YJUGHT© 13Y RENATO ÜRTIZ Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida sem autorização do autor e do editor. Editor: Jorge Claudio Ribeiro Capa e projeto gráfico: Marco Aurélio Sismotto Composição e impressão: Edições Loyola ISBN: 5-85428-05-8 l!llltora Olho d'Água H1 ;:tr I >S I Almeida 962/82 ('JI,I' · 0)0 I. -000 São Paulo - SP ' I'( •( (()li ~ 3/oJ/otr ~1CV (f;-;1 2/JA<C.C. ;:; 00/0Lf 0.) 1 j:. t,. 3CJ 81'' Umversidade E:staduaJ de Lononna Sistema de Bibliotecas 11111111111 0000172214 ÍNDICE p n~ ...... .. ...... ....... .......................... : .................... 7 >MÂNTICOS E FOLCLORISTAS ....................................... 15 () Uo;pfrito de Antiquário ............................................ 15 () fJerfodo Romântico ........... .. .................................... 21 l it&tre o Ideal Romântico e o Espírito Científico .......... 31 (.'/liPtcia e Método ............................. .. ............ .. ......... . 43 I /ma Ciência Mediana ............................................... 50 .'ouclusão ........... , ...................................................... 62 C il JAHANI: MITO DE FUNDAÇÃO DA BRASILIDADE .. 77 ()Mito ................ .................... ........... ............. ... ... ... ... 80 CJ.,· Personagens .......... ....................... .. ....................... 83 MtiS ulino e Feminino ............................................... 88 l(f1flogo ...................... .. .. ..... ....... ................................. 94 lllbllografia ... .-... ........................................................... .. .. . 97 APRESENTAÇÃO A 11. russão sobre a cultura popular é um tema perma- lt' t•ntr' nós. Desde o século passado ela se impõe com no ·nário acadêmico e político. Penso que seria vt'l ·screver uma história deste debate, que se modifica lcmJ(o dos anos, se molda às conjunturas sociais, articu- lo t• a grupos de interesse, e às vezes, até mesmo a 111 antagônicas. Entretanto, apesar das diferentes inter- 1 ~· t•s existentes, há algumas constantes, elementos que Jll '111 ·mente ressurgem. Tenho a impressão de que a I mka oscila entre dois pólos. Fala-se de grupos popula- ' uhalt •mos, no sentido classista do termo. Eles seriam r onadores de uma cultura radicalmente distinta, nl 1 l:lntc com a de uma elite esclarecida. É dentro desta 1 t•rtlva que toda uma literatura engajada utiliza a noção ultura popular, atribuindo às manifestações concretas un pol ·ncialidade na construção de uma nova sociedade. I tllllll • c porém uma outra acepção do termo, não hult•nt · da anterior, mais abrangente. Popular enquanto In nlmo d povo. A inflexão restritiva de classe cede lugar 111111 totalidade que a transcenderia. Daí a associação ín- lh 1 t•lllr • cultura popular e questão nacional; a reflexão I 1 ~m assim os dilemas da nacionalidade. No t•ntanto, em ambos os casos, a diséussão se reveste I 11111 rar~tcr político. Ele traça um divisor de águas entre dllt•n•nt s projetos e os grupos sociais que os suportam. 11111do (;ramsci defende a proposta de uma cultura nado- (, RENATO ORTIZ nal-po pular, ele tem em mente um futuro socialista; por isso é essencial responder à pergunta "seria a cultura popular transformadora ou não?". Conhecemos sua resposta. O fol- clore necessita ser trabalhado politicamente para se transfor- mar em "bom senso", a realidade das classes populares deve ser entendida e orientada por princípios éticos e políticos. Em última instância, são os intelectuais que definem a legi- timidade do que seria, ou não, popular. A resposta dada por algumas tendências nacionalistas será evidentemente de outra natureza (por exemplo, os isebianos). A cultura popular é considerada como reduto da essência nacional; na luta con- tra a invasão e a colonização estrangeira, ela seria uma es- pécie de alimento na constituição da autenticidade nacional. Como entender que propostas tão diversas, antagônicas, possam amparar-se nas mesmas idéias? Minha intenção nes- te livro é em parte esclarecer este ponto. Procurei fazer uma espécie de arqueologia do conceito. Para tanto, voltei-me para as raízes históricas, para a herança cultural que pesa sobre o termo "popular". A escolha do século XIX teve para mim um interesse estratégico; naquele momento a idéia de "cultura popular" foi inventada, sendo progressivamente lapidada pelos diferentes grupos intelectuais. Dois deles são fundamentais para a compreensão dos avatares posteriores: os românticos e os folcloristas. Suas respostas configuram uma matriz de significados que, reelaborados, recuperados, prolongam-se até hoje nas discussões que fazemos. Os ro- mânticos são os responsáveis pela fabricação de um popu- lar ingênuo, anônimo, espelho da alma nacional; os folcloristas são seus continuadores, buscando no Positivismo emergente um modelo para interpretá-lo. Contrários às trans- formações impostas pela modernidade, eles se insurgem contra o presente industrialista das sociedades européias e Jl usoriamente tentam preservar a veracidade de uma cultura ameaçada. * * * APRESENTAÇÃO 7 · composto por dois textos autônomos mas oerente com minha orientação histórica, que l m to~ohrc o século XIX, escolhi um estudo sobre a ... flll~ru · llt da noção de cultura popular na Europa, e outro t rom!lntico brasileiro. O primeiro texto tem como ••'UYt , fc n·n ·cer ao leitor um conjunto de informaçõçs, e lU lro histórico, que lhe permita compreender melhor I 11\l('a ·m questão. A análise de "O Guarani" traz um ~-llltiPH J c mio ·om a realidade européia. Por um lado as con- ' que filiam o romantismo de José de Alencar a m wim ·nto mais amplo. Sua preocupação em inventar rua~·no br..tsileira, encontra ressonância nos escritores , unlt' · •dem, e há muito vinham privilegiando o víncu- 1 r<" o popular e o nacional. Mas há também as mllnuldades, as rupturas. Como a situação brasileira é da européia, a aclimatação das idéias segue uma p1t t1i ·ular em solo tropical. A p 111l' relativa aos românticos e aos folcloristas, merece ._... ...... c·om •ntários. Por que se interessar por algo tão lon- ._. ........ ,, distante de nosso quotidiano? O que traz de positi- Uillll nnálise minuciosa do pensamento dos folcloristas ,, •u , particularmente ingleses? Ao longo de meus tra- lhu lu l a ·umulando uma série de inquietações e dúvidas. mullo vinha nutrindo uma certa insatisfação em relação 1 1 prlo ·onceito de cultura popular. Qualquer estudioso lc nha lido os livros dos folcloristas, partilha do mal- 1 Clll • se esconde por trás da disparidade dos dados 11 lltclos; eles dizem pouco sobre a realidade das classes 11 hc• rnas, muito sobre a ideologia dos que os coletaram. lll lt lll o , é inevitável voltar-nos para eles, pois foram os lm h o. :1 sistematizar uma reflexão sobre a tradição popu- ' I ) t n r ·lcvância em entender como os inventores do I lou• pn uraram organizar e difundir seu material. Isto p<- tlllill' ·o mpreender como a idéia de cultura popular o nllf(ura o rno categoria de análise. A escolha dos lc1t l I ts ingl s s, como foco de atenção particular, vem H RENATO ORTIZ do fato de terem sido eles que confeccionaram uma com- preensão da cultura popular que rapidamente se generali- zou na Europa e na América Latina. A- "escola" inglesa con- seguiu traduzir as inquietações românticas em programa sistemático de estudo. A absorção da Antropologia, como disciplina fundadora do folclore, foi vital para isso. Não quis todavia, limitar meu enfoque ao campo restrito do conhecimento folclórico. Procurei integrá-lo dentro de uma história das idéias, compreendendo não apenas as si- tuações nas quais elas emergem, como também o diálogo e o conflito que alimentam em relação a outros pensamentos. Por isso a contraposição com as Ciências Sociais pareceu- -me reveladora: ela ilumina, sob outro ângulo, a formação do campo da Sociologia e da Antropologia. O folclore, como ciência"menor", permite abordar a constituição das frontei- ras das Ciências Sociais a partir de sua margem. Refletindo sobre a cultura popular capta-se, com outra lente, o mundo dos conceitos e as disciplinas que os manipulam. Uma outra motivação, de natureza política, incentivou- -me ainda a realizar este estudo. O debate sobre cultura popular, no Brasil e na América Latina, possui uma vertente que sobrevaloriza a potencialidade das manifestações popu- lares como força transformadora da sociedade. Para mim sempre ficou no entantO a sensação de que o conceito, na sua origem, possuía uma inflexão muito mais "conservado- ra" do que "transformista"; foi com base nesta intuição que me voltei para o passado, procurando reconstruir seu trajeto durante o século XIX. Curioso, foi a partir de uma exigência brasileira, que me deparei com toda uma literatura euro- péia. Um último esclarecimento. Quando consultei a literatura especializada sobre o assunto, notei a ausência de uma his- tória conceitual. Os autores falam muito das manifestações populares, mas pouco do conceito que empregam. Que eu t nha conhecimento, o único texto que se coloca na mesma p ·rspc tiva deste trabalho, é o de Peter Burke, no seu livro APRESENTAÇÃO 9 Popular na Idade Moderna"; mesmo assim, trata-se ' IP tulo, limita-se à virada do século XVIII, e focaliza o período romântico. Cabe ainda sublinhar que o lftl8ni!IIIC' dos historiadores pela problemática da cultura r r lativamente recente. O livro de E.P.Thompson, maç; o da Classe Trabalhadora Inglesa", citado como rco na historiografia, foi publicado em 1963, mas se M •; ·ultura política da classe operária; o de Mandrou, llt •rJtura de cordel, é de 1964 . Na verdade, a cul- popular tradicional só se tornou objeto legítimo da •u•n•,••,grafia européia, quando havia desaparecido por com- t ,, f~ somente em meados dos anos 60, mas sobretudo na I d • 70, que surge uma série de análises e de ensaios u tc.'mática do popular. Eles se voltam para fenômenos ,, o ·amava!, os charivari, a literatura de cordel, as festas c 111, utilizam uma fonte documental diversificada, mas mom ·nto algum o conceito é tomado em consideração. nhrlgou-me a voltar para o único tipo de literatura dis- aquela elaborada pelos próprios folcloristas. Alguns , t•m trabalhos mais recentes, procuraram escrever uma •I • c.lc história das escolas teóricas, mas o resultado I lo · uma seqüência de períodos desarticulados entre si, • 11< 1s no tom oficial das velhas cartilhas escolares, e sem I Jllt'r sentido crítico. Esta dificuldade inicial, trouxe-me mnlgumas vantagens, pois tive que privilegiar as fontes In 1ls. Foi quando encontrei um material de primeira mão, m significados, que nos ensina sobre a aventura e a v •ntura das idéias' . RENATO ÜRTIZ São Paulo, 15 de julho de 1992 • AI 111 da hilbiografia em anexo, pesquisei de maneira sistemática as ulnh• revistas: Folklore Record (1878-1882), Folklore Joumal (1883- ), Jlolklor • (1890-1900), Mélusine (1878-1912), Révue des Traditions t l]lll,tllt' IHR6-l919), La Tradition (1887-1893). ROMÂNTICOS E FOLCLORISTAS Espírito de Antiquário A t 'OI ·ta dos costumes populares não era uma preocu- n maior dos homens educados no início da era "moder- • lutlliz aqui a demarcação proposta pelos historiadores]; • Interessavam mais por temas como os druídas, os lt , os astecas, os africanos, do que pelo camponês ou I , t•rvos•. Mas desde o século XVI, alguns escritores se 11 111 para ela, embora dentro de uma perspectiva normativa h 11 mista. Boa parte desta literatura foi produzida por rdott•s, como "Tratado das Superstições", de]ean-Baptiste hl r (I )79), "Antiquitates Vulgares, ou as Antiguidades das 1 1 Comuns" escrito pelo clérigo Henry Boume (1725), 111 tflri:1 .rítica da~ Práticas Supersticiosas que Seduziram o u t' Intrigaram os Sábios", do padre Le Brun (1702). Tais tlto. , tinham por finalidade apontar os erros e as crendi- dlt dasses inferiores, e se encontravam em consonância 111 um ·spírito moralizador e hostil às manifestações po- tl rr . uando ]ohn Brand publica "Observações sol;:>re as niiHuldad s Populares", livro de referência obrigatória en- c, I( 1ldoristas ingleses, ele não deixa de se insurgir con- e 1 t•sport s que geram "violência e protesto" ou as prá- qut• "d bocham" da religião protestante. Brand possuía c c•utarlto, uma posição mais tolerante do que os teólogos- ll RENATO ORTIZ que o antecederam: ele distingue os bons dos maus costu- mes, defendendo uma política seletiva em relação ao gosto plebeu. Referindo-se aos jogos e à prática dos esportes, ele diz: "O homem comum, confinado ao trabalho diário requer um intervalo próprio de relaxamento, e talvez fosse do maior interesse político encorajar entre eles os esportes e os jogos inocentes. A revitalização de vários desses [eventos] seria par- ticularmente pertinente neste tempo quando a divulgação da luxúria e da dissipação, muito mais do que em qualquer outro período anterior, extinguiu o caráter de nossa braveza na- cional"2. Tolerância relativa, pois as manifestações popula- res devem ser preservadas, e até mesmo estimuladas, desde que previamente depuradas de sua dimensão explosiva. São pessoas como Brand que, aos poucos, começam a se diferenciar da ânsia meramente conjuntural, episódica, pelos costumes populares. A curiosidade pela coleta das práticas e narrativas se intensifica, dando origem a um novo tipo de intelectual: o antiquário. No início, cada um deles faz um trabalho solitário, sem conexão com os outros; com o passar do tempo, eles se agrupam em clubes, onde seus trabalhos são discutidos. Já em 1718, é fundada na Inglaterra a "Sociedade dos Antiquários", da qual Brand, após a edição de seu. livro, toma-se um membro influente. Em Edinburgo, cria-se em 1820, uma "Sociedade Céltica", da qual sir Walter Scot é o presidente. A mesma tendência se consolida na · França; em 1807, funda-se a "Academia Céltica", que se trans- forma depois na "Sociedade dos Antiquários da França". A academia, tinha como objetivo principal o estudo da língua e das antiguidades celtas, mas ela irá também ocupar-se dos costumes da vida popular, chegando inclusive a elaborar uma série de questionários que envia aos diversos departa- mentos franceses. Este tipo de enquete é estendido à Itália, e, durante a invasão napoleônica, é aplicada à realidade do país3. Na Inglaterra, no início do século XIX, florescem vá- rios clubes de antiquários, onde se reúnem membros da !asse média para discutir e ublicar, livros e revistas sobre as antiquidades populares. William John Thoms, criador da ~\,\o (. ROMÂNITCOS E FOLCLORISTAS 13 I vm "folclore", é fellow da "Sociedade dos Antiquários" ), na revista "Athenaeum", funda urna seção dedicada I ll"ol popular, na qual comenta a correspondência envia- los leitores à editoria. Ele edita ainda sua própria revista, and Queries", para depois se engajar na formação da re Society, a qual vai presidir até 1885, ano de sua morte. que caracteriza este período é uma tentativa de com- o • de ordenamento do material. É bem verdade, que roj to da "Academia Céltica" fracassa e, por volta de , os relatórios sobre as tradições populares desapare- ompletamente. Isto terá conseqüências nefastas para a órla do folclore francês - a França é um dos últimos da Europa no qual a disciplina se desenvolveu. Mas I nlva de organizar os dados obtidos, marca uma dife- m relação a etapa dos colecionadores individuais. que será amplamente reconhecido pelos folcloristas: ri Gaidoz e E.Rolland, quando fundam a revista --~~~,.w•un,ne" (1878), estabelecem uma flliação direta de seus "'111111,.111\I' )S com as memórias publicadas no início do século4• I~ ta tendência para uma maior sistematização dos fatos rvados manifesta-se em outros lugares. No entanto, é n•ra•ml\rlo sermos cautelosos ao falar em uma metodologia qulsa. Talvez fosse correto qualificarmos o processo o uma sistematizaçãoincipiente. O exemplo do procedi- !(, empregado por Thoms, em sua coluna do "Athenaeum", UfCCNtivo; ele se volta para o público, e pede auxílio na d:ts informações. É num de seus artigos, e comentários, n r •nno "folclore" surge pela primeira vez: "ll>lrlglndo-se aos leitores] suas páginas têm freqüente- OI mostrado o interesse pelo que na Inglaterra chama- Antiguidades Populares ou Literatura Popular (embora mais um saber do que uma literatura, e seria mais apro- clo d s revê-lo por urna boa combinação saxônica, Folk- o saber do povo) que não é sem esperança que lhes • ujuda para cultivar as poucas espigas que existem dis- no ampo, e que nossos antepassados juntaram numa ,·olh •ita. Todos aqueles que estudaram as maneiras, os l-I RENATO ORTIZ costumes, práticas, superstições, baladas,[Er~bio'; ~te, dos tempos antigos, devem ter chegado a duas conclusões: primeiro, o quanto tudo isto é curioso e que o interesse por elas está agora se perdendo; segundo, o quanto pode ainda ser recuperado. O que poderíamos fazer no 'Every-Day- -Book', o 'Athenaeum' com sua circulação mais ampla, pode realizar dez vezes mais: juntar os infinitos pequenos fatos , ilustrativos dos objetos que mencionei, e que se encontram espalhados na memória de milhares de leitores"5• O termo é criado quase que acidentalmente, e não se vincula a uma concepção coerente de pesquisa; o procedi- mento metodológico é resultado da boa vontade dos leito- res, e da persistência dos editores. Existem dois traços fundantes da perspectiva do antiquário. O primeiro, é seu afã colecionador. A denomina- ção "antigüidades populares" se aplicava a um espectro di- ferenciado e díspar de materiais e assuntos: costumes popu- lares festas monumentos celtas, ruínas romanas, história locai, tudo' era absorvido como coisas do passado. O antiquário é antes de tudo um curioso. Mas ele parece não saber muito bem como lidar com o tempo. John Brand, tem plena consciência da impenetrabilidade originária dos cos- tumes populares. Para ele, "a origem primeira das cerimônias e noções supersticiosas do povo, é absolutamente inatingível, nos desesperamos por não sermos capazes de atingir a fonte primeva do riacho que corre e aumenta desde o início dos tempos"6• Isto o leva a uma busca errática das informações que, isoladas do contexto, desafiam qualquer inteligibilidade. Este dilema, que aprisiona o espírito antiquário, prolonga-se nos estudos posteriores; uma. das singularidades que defi- nem as associações de folclore, é a obsessão pelo ordenamento dos pedaços heteróclitos de cultura. O segundo ponto, diz respeito à atitude em relação às práticas populares. O antiquário, pelo menos até o advento do romantismo, não possuía nenhuma predileção especial pelo povo. Freqüentemente ele justifica seu interesse cole- ionador pelo "amor às antigüidades", ou pelo "gosto do Q 'I ' I lJ...o_, \'> RO MÂNTICOS E FOLCLORISTA$ 15 >''. Muitas vezes, quando apresenta seu trabalho ao lei- 1 HC vê na posição incômoda de explicar sua curiosidade lllft1UIIbula pelos que ocupam os lugares mais baixos na hierar- homens. Inclinação que encontra uma justificativa em • IUni\C:I'Ittos como a piedade e a comiseração pelos pobres. Na llllft1111dc, os estudiosos dos proveibios populares no século t m um desdém ma · esto para com a fala popular; eles denunciam os erros gramaqcais que a los cânones reconhecidos da língua oficial. Os sacerdo- nlt •stantes crêem ser sua tarefa principal, combater as llupcrsticiosas, resquícios do paganismo alimentado pela <~uólica. Os católicos, por sua vez, querem libertar-se ln nsistências religiosas que consideram heréticas. u atitude negativa, restritiva, não é um traço exclusivo ntlquário: ela permeia uma ideologia corretiva mais • constitui todo o espírito de uma época. Os histo- ......... ,_ .. parecem divergir na avaliação do impacto das for- qu diluem a tradição popular durante o século XVI. m vê o advento da imprensa como um elemento ..:am1111<>r de uma literatura de evasão que mina a mentali- lrudicional das classes populares. Natalie Davis toma t partido; ela acredita que neste período a imprensa, de induzir a uma transformação exó ena, estimula as 1 locais7• Outros consideram que no século XVI, e no princípio do XVII, a cultura popular formava um ........... d ·vida coeso, ao abrigo de interferências extemas8• pur ·m uma convergência de opiniões quando avança- no séculos XVII e XVIII. Pode-se dizer que antes cul- lt< ·litc e cultura popular se misturavam, suas fronteiras ltu 11 não eram tão nítidas, pois os nobres participavam · nças religiosas, das superstições e dos jogos; as au- 1 l t'll possuíam ainda uma certa tolerância para com as ti u po pulares. Vários esportes, considerados violentos, m pat rocinados pelos senhores da terra, o gosto pelos IWCII de cavalaria era generalizado, e as baladas e a lu ru de cordel não eram associadas, pela minoria cl1 , a povo inculto, ela participava também da mes- 16 RENATO ORTIZ ma inclinação estética9• Não se deve pensar que o processo de interação cultural inter-classes era simétrico; a elite par- ticipava da pequena tradição do povo, mas este não parti- lhava de seu universo. Os homens cultos eram anfíbios, bi- culturais, falavam e escreviam em latim mas eram capazes de se expressar no dialeto local, que conheciam como se- gunda ou terceira língua. O processo de repressão se intensifica com o distanciamento entre cultura de elite e cultura popular; são vários os motivos que contribuem para isso. A Igreja, cató- lica e protestante, implementa uma política de submissão das almas com base na doutrina oficial definida pela Teolo- gia. Os objetivos propostos podiam ser atingidos tanto pela catequese, pela distribuição e leitura da Bíblia, como através de iniciativas mais violentas; os tribunais de Inquisição e a caça à feitiçaria são exemplos típicos do uso de uma estra- tégia mais forte no combate às heresias populares. Existem no entanto causas mais amplas, como a centralização do Estado [ele era desmembrado durante a Idade Média], o que significa o advento de uma administração unificada dos impostos, da segurança e da língua. A luta contra os dialetos ' regionais revela uma integração forçada no interior do Esta- do-nação, e exige a imposição de uma língua legítima sobre as falas locais. A constituição dos Estados nacionais requer também a mudança da política em relação às classes subal- ternas. Se o Estado surge agora como instit~ição provedora, em contrapartida ele demanda os impostos, o serviço mili- tar enfim reclama os deveres atribuídos a seus súditos. As ' ' autoridades se preocupam ainda com as práticas que geram protesto, como o futebol, o carnaval, o ©!_arivariJque muitas vezes terminam em distúrbios, quando não exprimem uma contestação aberta ao poder constituído10• O século XVIII é também o período em que se elabora uma cultura de abrangência universal, cristalizando-se num determinado tipo de comportamento, o do bonnête bomme ou do "homem esclarecido". O Iluminismo tem um papel fundamental na elaboração deste modelo: ele promove os cJ RO MÂNI"ICOS E FOLCLORISTAS 17 universalidade e racionalidade, contrapondo-se Jlr ti as populares, consideradas irracionais . O •lm 'nto deste espírito, paralelo ao avanço das ciências I Ml '&IS e médicas, corresponde a um processo de desen- 1 rn •nt do mundo e pode ser apreendido quando se rva a história da feitiçaria na Europa. O argumento que llh Thomas utiliza para explicar o declínio da magia na I l rm revela a força da penetração do racionalismo jun- •lltcs dirigentes11 • A partir de 1736, já não mais existem .,.OC.'C~IIHé 1s formais contra a acusação de feitiçaria. Isto não se r nll' •tanto a uma maior simpatia pela causa herege; trata- urna mudança de mentalidade que envolve o grupo lnl. lr:ttivo dos tribunais. Os pressupostos intelectuais dos n. t'<.1ucados, que controlavam à máquina judiciária; ~~me- 1 " lnl•rferir na avaliação do que estava sendo julgado. "'d:1s pe rseguições é conseqüência do crescente ceticis- qut• s · tem em relação à possibilidade real da ofensa. mhi ·me de uma cultura racional, as explicações dos lllt·nos de bruxaria tornam-se implausíveis. Há pois a Idade de repensar os procedimentos jurídicos. A fei- ht passa então a ser considerada como o testemunho da c 11 n ·la e da credulidade popular, e não mais como ato f '1. c I · produzir efeitos concretos. A ausência da crença 1 lh'u o declínio dos crimes de magia. () Período Romântico () l(omantismo é um movimento amplo, uma consciên- llcJVa que emerge com o processo de mudança do final •c ·ulo XVIII. Muitos autores vão interpretá-lo como uma 11 lhllldade que procura dar conta da dupla transformação I pt·n ·rr&~ o mundo europeu: a Revolução Francesa e a lu rrlal• ~ . Homantismo e revolta, seriam assim disposições 111 ,J, 1Wts. Seu advento traz também rupturas profundas 1 lllltndo las artes13• Regidas pelas normas rígidas das 18 RENATO ORTIZ academias, elas começam a se libertar da tradição enrijecedora. O artista romântico, ao valorizar a força do Eu, introduz a noção de individualidade livre no doriúnio artís- tico. Os princípios estéticos deixam de ser decorrentes dos códigos consensuais, estabelecidos pelas instituições legíti- mas (Academia de Belas Artes e de Literatura), para serem apreendidos pela sensibilidade do criador individual. O Romantismo alivia os homens da herança tradicional. Este elemento propulsor, seu fundamento, no momento da con- solidação da sociedade burguesa do XIX, orienta o indiví- duo na sua luta contra as restrições à imaginação. Os ro- mânticos irão contrapor-se à idéia de mercado cultural, es- paço no interior do qual suas individualidades se equivale- riam ao simples valor de troca. Sensíveis, reticente·, _eles são -críticos do cagitalismo na~ent~ Não obstante, apesar da riqueza e dos matizes que o movimento contém, no âmbito da discussão que estamos enfrentando, o Romantismo se reveste de uma característica particular. Não importa tanto a idéia de revolta, da idiossincrasia do Eu. Seu impacto, a meu ver, deve ser con- siderado quando transforma a predisposição negativa, que havia anteriormente em relação às manifestações populares, em elemento dinâmico para a sua apreensão. Isto, parado- xalmente, vai afastá-lo inclusive dos próprios ideais român- ticos, valorizados pela consciência artística. O popular ro- mantizado retoma inclinações como sensibilidade, esponta- neidade, mas enquanto qualidades diluídas no anonimato da criação. Não é pois o indivíduo o ponto nodal, mas o coletivo. Por isso, para evitar possíveis dúvidas, e associa- ções impróprias, sublinho que na compreensão da proble- mática da cultura popular, nos deparamos com um determi- nado tipo de romantismo. Esta é a matriz, que será poste- riormente reelaborada pelos estudiosos. Da disposição romântica, no sentido genérico, gostaria de reter alguns aspectos relevantes para o debate: a oposi- ção ao Iluminismo, o historicismo, o gosto pelo bizarro e pelo exotismo. Tanto a literatura quanto a pintura clássicas, ROMÂNTICOS E FOLCLORISTAS 19 ncialmente um affaire de pensée; os sentimentos, bjetos de tratamento artístico, deviam ser lapida- I) ·la inteligência, depurados de sua espontaneidade lnwlra. Os românticos invertem esta tendência: eles se IUit·tam mais com as qualidades do que com as regras, rn a Integridade das emoções do que com a retidão dos 1.c 1 • Até mesmo na pintura das paisagens, antes vista como ' x ·r ício da capacidade técnica do artista, a preponde- 'lil dos sentimentos prevalece14• Busca-se exprimir a muc.,·!l >diante do sublime da natureza. Os românticos des- if.U IIl as pinturas-cópias (eles se insurgirão mais tarde nlw a fotografia), e através do olhar individualista, preten- rn d ·svendar, traduzir, os mistérios do mundo natural. ·u. a-se assim a perspectiva analítica do Iluminisno. c ) ms mo se passa no terreno da literatura. A escrita lt·a tinha como objetivo, decompor os sentimentos, 11. • I s e utilizá-los para conhecer melhor o homem. Ela vu d ' um ser universal, era racional, e se propunha mais ular as almas do que divertir, ou surpreender a imagina- ,, Por isso os escritores se insurgem contra seu louallsmo estreito, seu cosmopolitismo abstrato; eles se 11 1111 para as situações particulares, privilegiando a '"h lpll ·idade dos sentimentos e das vivências. O Romantis- ' 1 • 1ambém marcado pelo historicismo, que lhe faz des- 1 11 Ir a Idade Média, os romances de cavalaria, os reis, as 11 .• ulas; a oposição ao Iluminismo se traduz até mesmo na h Hil".a ão do gótico, desprezado pelos clássicos, que o n ldl'ra vam como uma expressão do obscurantismo reli- i 1 11 , Esta sensibilidade em relação ao passado, manifesta- 111110 na pintura, com~e a ter Scott. I propicia um dtstanetamento do presente, retoman o-o o 1u t'Orn outros olhos. IIm tltimo traço refere-se ao gosto pelo bizarro, por 1111111 qu · dife re. Novalis já dizia, que tudo pode ser con- 11 r u lo ·orno romântico, desde que transportado para lon- , c) Ho mantismo confere aos objetos ausentes uma digni- luh• do d ·s nhecido . Contrariamente à literatura clássica, 20 RENATO ORTIZ com suas leis rigorosas de composição, tendendo para a medida e a harmonia, o romântico gostava daquilo que surprendia, da impressão de infinito: ele privilegiava o mis- terioso15. Uma literatura marcada pelo anormal, amantes queimando-se de paixão, devotamento total das pessoas, perversidade satânica. Este gosto por seres exepcionais se associa muitas vezes ao exotismo, aos países estrangeiros, com suas paisagens e costumes peculiares. O romântico é fascinado pelo mundo oriental, pela sua magia, pelos seus mistérios16. Daí a predileção pelas viagens pitorescas, conhecer as terras longínquas (reforçando a vaga de viajantes do século ante- rior), mas também a vida dos camponeses, com seus hábitos estranhos. Diferença que impulsiona os estudiosos a com- preender o desconhecido de seus países, levando uma es- critora como George Sanei, a viajar pelo interior da França na busca das "autênticas" tradições populares. Sensibilidade, espontaneidade, historicismo, diferença, distância - são elementos que irão compor o léxico dos estudiosos. É possível aproximar alguns deles à prática do antiquário, mostrando como encontram um solo já predis- posto a absorvê-los. Embora de forma inconsciente, o antiquário sempre esteve mais ligado a uma história local do que propriamente universal; seu particularismo contrastava com o cosmopolitismo iluminista. Ele também entretinha um certo gosto pelo passado, pela Idade Média, desvalori- zada pelo pensamento contemporâneo. Era esta paixão pelo longínquo que lhe permitia justificar suas anódinas coleções de costumes populares. No entanto, embora seja possível identificar alguns traços comuns entre românticos e antiquários, é importante marcar a radicalidade e originali- dade do Romantismo. Na virada do século, a tradição popu- lar é descoberta pelos intelectuais; daí o número crescente de publicações versando sobre as baladas, as canções, a fala, enfim sobre o povo. Ocorre de fato uma transformação do pensamento, a ponto de um autor como Peter Burke considerar ser este o instante em que o conceito de cultura popular é inventado17. Dentro deste contexto, alguns pensa- ROMÂNTICOS E FOLCLORISTAS 21 m um papel preponderante, o ftlósofo alemão Herder, irm:Ios Grimm. Vejamos o que eles trazem de novo. A visão herderiana é uma crítica radical da idéia de pro- •'"· Ela contesta a possibilidade da continuidade histó- ·ombate qualquer tipo de pensamento evolucionista. ri • de ordenamento das etapas históricas é rompida, li •reler imagina que cada povo, cada civilização-orga- 1 mo, contém em si o seu próprio destino, potencialidade •onlradições evoluindo através de ciclos que vão do apo- 1 o declínio. Uma civilização é um organismo centradosi mesmo. Contrariamente aos iluministas, ele intro- uma ruptura entre o mundo clássio e o moderno. A ll~euld;tcle e a sociedade germânica teriam poucos pontos ·omum, seriam entidades com passos independentes. uma recusa do Renascimento e das Luzes e uma lorização da Idade Média. Os tempos medievais isto é I ll:tnismo germânico, é entendido como a juven;ude d~ o 11 ·mão, e se contrapõe ao envelhecimento e à senili- 1 do ~éculo XVIII. A proposta de Herder privilegia portanto um relativismo 1 ko mas seu valor não é meramente ftlosófico - ela 11:1 uma dimensão política. A teoria racionalista do pro- , ufirmava a superioridade da Europa, isto é, da França IIIHiaterra, sobre os outros. Para isso, ela necessaria- nlc• linha que ser universal. Herder, ao reabilitar as dife- n '" , o particular, pode reivindicar, no plano do pensa- rue •, a paridade dos direitos para o povo alemão. A recu- ~· c' dos valores literários da Idade Média, encobre por- lo uma exigência de natureza política. Não é por acaso lól duração da história tenha sido escolhida como ponto •h•r n ia. Hercler valoriza nos tempos medievais justa- lllc• 1 ausência do poder central, a multiplicidade de au- 11 ulc·s locais, que impedem o exercício de um domínio lllrc•c·lonal. As organizações societárias são vistas assim 1 totalidades orgânicas, na quais as diferenças e discre- ·1• •nc ntram-se harmonicamente integradas ao todo. lt• rnod ·I - local x universal, todo harmônico x 22 RENATO ORTIZ segmentação política - que inspira seu pensamento. Não se pode esquecer que, no momento em que Herder escreve, o império germânico não possuía a configuração de uma nação, e a cultura oficial da corte era predominantemente francesa. A reflexão sobre a unidade nacional adquire por- tanto um papel estratégico. Pretende-se construir uma civi- lização-organismo alemã, única forma de um povo escapar da dominação estrangeira (particularmente francesa) e da segmentação política. No plano interno, a totalidade-nação resolveria a contradição entre elite e povo, no plano externo os alemães conseguiriam uma identidade para se contrapor aos países centrais. É dentro deste contexto que surge o debate sobre a cultura popular; parte da inte//igentzia alemã volta sua atenção para as tradições· para nelas encontrar o substrato de uma autêntica cultura nacional. Embora sejam poucos os escritos de Herder sobre cul- tura popular, sua contribuição é fundamental. "Sobre os efei- tos da poesia nos costumes e na moral das nações antigas e modernas", ganhou o prêmio da Academia da Bavária em 1770, e alguns anos depois, ele publica "Canções Popula~ res"19. Nesses estudos, pela primeira vez, argumenta-se quy a canção e a poesia popular representam a quintessência da cultura. Retomando sua perspectiva organicista, Herder ar:. gumenta que a poesia autêntica é expressão espontânea da alma nacional. Como para ele cada nacionalidade é moda!, intrínseca, sua essência só pode realizar-se quando em con- tinuidade com o seu passado. A ruptura com a história siJl- gular, significaria a desagregação da unidade orgânica. Por isso a constituição do Estado-nação se reveste sobretudo de r- ma dimensão cultural; a proposta herderiana se assemelha Jem muito à concepção dcl,p~le de__ Ma~ J- a nação · # repousa na existência de uma consciência coletiva, elo so- lidário que solda os diferentes grupos de um país. Os cos- tumes, as lendas, a língua, são arquivos de nacionalidade, e formam o alicerce da sociedade. A língua não é apenas um mero instrumento de comunicação; ela traduz o caráter de HOMÂNTICOS E FOLCLORISTAS • • 1 <"T 1 ~C' r 'I.. .ivv~ú.d 11 "'~~ 23 povo. A retomada da tradição linguística alemã transfor- t assim em recuperação do gênio nacional. o estudo ·ultura popular é o reatamento com o que havia se per- •! • é a ponte para se pensar a unicidade nacional. I I ·r<.lcr introduz ainda uma distinção entre "poesia de -• ... r .. ·~ · "e "poesia de cultura", tese amplamente explorada Irmãos Grimm20• A primeira tem um cunho intuitivo n • de uma sabedoria que não se adquire com o conhe~ ,..,. 1''""''"''> ~ rmal; ela integra um gênero que atualiza o frescor sado, resistindo ao impacto da degradação civilizatória. é sensível à poesia medieval, aos cantos de Ossian, kc.•:tspeare, a Homero; épicos que refletiriam a essência um P vo. Já a poesia de cultura teria um caráter indivi- 1, •l:t deriva da intelecção, afastando-se da intuição e da espontânea. Como a dimensão intuitiva se sobrepõe n •xlva, tem-se que a poesia de natureza constituiria a lírica por excelência. A ela correspondem a tradi- oral, os mitos, as lendas, as canções, mas também ai- po ·tas como Homero e Shakeaspeare, que souberam 11 r c.• traduzir a alma popular. A Influência do pensamento de Herder junto aos irmãos 1111 P de ser observada quando eles procuram definir as 1!• 11 "'"''r"" modalidades da narrativa popular. No entanto, os lr11111 vão restringir o significado da poesia de natureza· su- lnh llldo o anonimato das produções populares eles coru:ide- 1 llc llllCro apenas um intérprete da matéria lírica que a ele Impunha. Elimina-se desta forma a mediação individual do I lu' poético. Há neste ponto uma nítida contradição entre Jc wlmcnto romântico nacionalista e popular, e os ideais do ntlo;mo. A visão egocêntrica do artista cede lugar ao ano- ' da criação. Desvaloriza-se no indivíduo a capacidade lmuHfn.1ção artística, ao mesmo tempo que a sensibilidade lc J< ':tda para o pólo do ser popular. Neste sentido, a poesia ult ura é obrigatoriamente inferior à poesia de natureza. o, Crimm a epopéia é a forma mais primitiva, bem h 1< lól , da matéria poética: 24 RENATO ORTIZ "Nela se exprimem as crenças, as aspirações, os pensa- mentos da coletividade; a história de um povo, nela se desenvolve como um fluxo regular e sereno. A epopéia é propriamente a poesia popular, porque ela é a poesia de todo um povo"21 . , . Eles também consideram os contos como uma especte de epopéia familiar, distintos dos "contos de arte", obras da arbitrariedade do intelecto humano. As histórias populares pertencem à tradição oral, elas são vestígios de um_ passado longínquo, e se sobressaem diante das tramas urdtdas pela imaginação. Mas ao conceberem o povo como transmissor fidedigno da tradi~ão, os Grimm colocam em prática urna metcx:toiogia até então desconhecida do antiquário. A edição do hvro de contos (primeiro volume em 1812, o segundo em 1814~, e de lendas (1816), inclui, pela primeira vez, elementos retira- dos de uma versão popular22. Diferenciando-se das publica- ções anteriores, que continham versões arranjadas p:los autores, os Grimm têm a iniciativa de procurar coleta-las diretamente "da boca dos camponeses". Seus livros são impessoais, e indicam detalhadamente o local onde cada história foi ouvida; esta metodologia de trabalho abre a pos- sibilidade de se realizar um estudo mais sistemático das tra- dições populares. É bem verdade que os Grimm não res_pei- tam inteiramente os critérios que eles mesmos enunciam. Como os livros se endereçavam a leitores de classe média, foi necessária uma tradução da fala popular, seja ao nível da sintaxe, seja do conteúdo; onde as histórias poderiam ~h? car, eles corrigiam as "grosserias" que eventualmente eXIStiS- sem· diante de duas versões possíveis de um mesmo conto, eles' eliminavam a que estivesse em desacordo com os cri- térios da espontaneidade23. Curiosamente, a própria ideolo- gia da unidade e do anonimato da criação lhes permitia tais intervenções. Justificando os textos reunidos no livro das lendas, eles dizem: "O primeiro e o mais importante elemento de uma cole- ção, e não se pode nunca perder isso de vista, é a sua verdade HOMÂNTICOS E FOLCLORISTAS 25 I I c·onfiabilidade. Esta necessidade sempre foi reconhecida mo da maior irnportãncia em todas as estórias. Mas nós ml •rn u ·mandamos a verdade poética, e reconhecemos nel~ 1ru lomta de toda verdadeirapoesia. As mentiras são falsas , assim como é tudo o que vem dela. Mas nunca encon- ._1"''"' nenhuma mentira nas canções e nas lendas do povo. deixam o conteúdo dessas histórias da maneira como as , • .,.,,,n,, .. ,mm e da forma como sempre as conheceram"24. Corno um indígena rousseauiano, a alma popular é inca- ~~ distorções, ela condensa as qualidades de uma ingenui- t'S<JUCcida25. Desta visão essencialista, decorre a força da ltu I popular e a metodologia ·proposta para entendê-la. nl d ' sua magnificência, cabe às pessoas simplesmente Ytr, quando muito traduzir, a veracidade do fato popular. I ndo os Grimm pesquisam em KasseJ, utilizam como infor- 1 t'Sla "fabulosa" mulher, que repetia de cor, e sempre da m I maneira, as histórias que conhecia. Em princípio seu te, •ria representativo do saber popular na sua inteireza, I no pressuposto do anonimato da criação reside a n 1hflidade do relator. A pessoa é apenas um médium entre lllisador e o tesouro perdido. Mas, como os contos são lmos, e nenhuma versão é preferível a outra, pode-se ll(lr ou remanejar esta ou aquela expressão literária, desde c• ·speite, religiosamente, o fundo sobre o qual elas se I m; justifica-se assim a supressão das passagens Jicen- . das alusões satíricas. • 'c• · verdade que o movimento romântico valoriza po- IYillllc•ntc a cultura popular, é necessário perguntar 0 que nlll<'u para ele a idéia de povo. Seriam as classes popu- c·omo um todo? A nação, como categoria sócio-cultu- 1, pc I( I · conciliar os interesses tão diversos e conflitantes dass ·s que a compõem? C )uando escreve "Uma Outra Filosofia da História" lc•r procura refutar o despotismo esclarecido que consi~ v • as nações e os indivíduos como elementos passivos, llc 1, : sua dominação. Sua crítica a Frederico II, visava lllltc·nt • a s paração entre elite e povo, fosso que afasta- 26 RENATO ORTIZ va o monarca dos verdadeiros desígnios nacionais. No en- tanto, sua compreensão da História, apesar da oposição aos equívocos do Iluminismo, dificilmente poderia ser qualifica- da como democrática, no sentido da igualdade dos homens, · tema inaugurado pela Revolução Francesa. A rigor, a proble- mática popular tem pouco a ver com os direitos, restringindo- -se aos aspectos do distanciamento entre governante e gover- nados. O essencial para Herder são os dilemas que rondam o ser nacional. A monarquia podia muito bem acomodar-se à realidade social, desde que o rei fosse o representante legítimo dos anseios nacionais. Há portanto uma diferença entre povo e classes populares. Essas, no contexto de uma sociedade aris- tocrática, não podiam ser assimiladas à positividade do popu- lar-nacional. Os pobres são despossuídos de cidadania política e cultural. Ou como dirá Herder: "A canção do povo não tem que vir da ralé e ser cantada para ela; povo não significa a ralé nas ruas, que nunca canta ou cria canções mas grita e mutila as verdadeiras canções populares"26• Existem pois, os excluí- dos do organismo-nação. Não é a cultura das classes popula- res, e_nquanto modo de vida concreto, que suscita a atenção, mas sua idealização através da noção de povo. O critério sócio- -econômico toma-se então irrelevante; interessa mapear os arquivos da nacionalidade, a riqueza da alma popular. "Povo" significa um grupo homogêneo, com hábitos mentais simi- lares, cujos integrantes são os guardiães da memória esque- cida. Daí o privilégio pela compreensão do homem do cam- po. Entretanto, o camponês não será apreendido na sua função social; ele apenas corresponde ao que há de mais isolado da civilização. Os costumes, as baladas, as lendas, os folguedos, são contemplados, mas as atividades do pre- sente são deixadas de lado. Movimento de imigração para a cidade, formas de produção, inserção do camponês na so- ciedade nacional, são esses os temas ausentes, tabus; eles escapam à própria definição do que seria o popular. Esta concepção terá grande influência no pensamento posterior; ela estabelece a base de identificação entre os intelectuais e seu objeto de estudo. Tudo se passa como se ROMÂNITCOS E FOLCLORISTAS 27 mpo da cultura popular fosse análogo ao de uma forma- M •ol()gi a. Na superfície encontraríamos o pensamento ,, <· m suas veleidades racionais e reflexivas. Descendo ·amadas sociais, penetraríamos no segredo das jazidas las. Por isso os pobres e os trabalhadores são per- MC.'ns secundários da curiosidade romântica; é necessá- 1 mais fundo, tocar os grupos incólumes, afastados da . O intelectual, como um geólogo, caminharia c•arnadas intermediárias, para finalmente recuperar os arqueológicos cobertos pela poeira da História. llohsbawm, em "A Invenção da Tradição", se refere à · c 1 d ' rituais e de regras que buscam traçar uma conti- k ·om o passado28• Gesta-se desta forma uma memó- JII<' funciona como um estoque de lembranças. No en- ,, rwrn tudo o que ela abarca é realmente passado; várias 111s manifestações são recentes, mas surgem para as , 1 ·orno algo há muito existente. Neste sentido, pode- ralar da invenção de tradições - como no caso dos -•ttln >~ <.1 Ossian, das saias escocesas C um produto tardio 111 1 )ria), ou de algumas cerimônias mais recentes con- las pela monarquia inglesa. O fato de celebrá-l~s faz 'qcw s esqueça sua idade, sua origem atual, camuflada I ·mpo imag· ado. A "tradição criada" confere a ilusão JK'It'nidade, reabilitando o nexo entre o presente e o l rllo reconstruído. Em nosso caso, deveríamos talvez l ela Invenção do conceito de "tradição". O entendimen- 1 c·ullura popular só é possível quando referido a uma 1. nda de cultura" pertencente ao passado. Allmlmcnte, são comuns os estudos que se contrapõem lt• ponto de vista. E.P.Thompson pode compreender o rlv~trl orno uma manifestação pré-política das classes ul~trcs, c Mandrou o florescimento da literatura' de cor- c·omo um processo de alienação das massas camponesas Jll<' • duvidoso]29• Nada de semelhante existe na literatura nlka. Para seus autores, o cordel está ligado à imagem rt•l , príncipes e cruzadas; fenômenos como o carnaval, lc·s1as religiosas, dificilmente poderiam conter uma 28 RENATO ORTIZ consciência de contestação ou de protesto. Isto não se deve apenas ao preconceito, ou ao conservantismo político; o resultado das análises decorre de seu suporte epistemológico. Os conflitos culturais e políticos são excluídos "naturalmen- te"; eles representam a aridez contemporânea, dimensão que escapa aos olhos do pesquisador. Entre o Ideal Romântico e o Espírito Científico É somente na segunda metade do século XIX que os estudiosos da cultura popular vão considerar-se "folcloristas". Esse neologismo inglês, cunhado tardiamente, não é apenas uma inovação terminológica - ele encobre uma disposição que redefme o estudo das tradições populares. Pode-se captar esta mudança, quando focalizamos a Folklore Society, criada na Inglaterra em 1878. A escolha não é arbitrária - são os ingleses que fundam a primeira associação de folclore cuja ambição é transformá-lo em uma nova ciência. A Folklore Society agrupava um conjunto de intelectuais e, através de publicações, palestras, congressos, pretendia organizar e divulgar o estudo da cultura popular de forma sistemática e dinâmica30. Seus membros participaram ativamente do pri- meiro Congresso Internacional do Folclore (Paris, 1889) e promoveram em Londres um segundo Congresso Interna- cional (1891). Seu principal orgão de publicação, o "Folk- -Lore Record", que alguns anos depois muda o título para "Folklore Journal", trazia artigos sobre os mais variados as- suntos. A revista estava também aberta à participação de autores estrangeiros, e publicava regularmente resenhas da bibliografia escrita nos mais diferentes países. Ela cultivava uma visão internacionalista, e sua influência incentivou a formação de sociedades homólogas em outros lugares do mundo. Na verdade, ela é um modelo; não é por acaso que a palavra "folclore",escolhida para denominar a nova disci- ROMÂNTICOS E FOLCLOIUSTAS 29 , tk·ntro de poucos anos, acabou sendo aceita univer- 1\l •. Até então, a noção possuía um significado vago e -.~",.~"' 'ISO: cr'.t simplesmente uma denominação recente para Ih t prática de antiquário. Quando Thoms, ocupando flcamente o cargo de presidente da Sociedade, escre- lntrodução do primeiro número de "Folk-lore Record", •nhum momento ele se preocupa em delimitar os con- , de uma disciplina científica31 • O tom é outro, quando w l..ang, um dos membros mais ativos da entidade, o prefácio do volume 11 da revista; pela primeira vez mama "ciência do folclore"32• É com base neste ideário lko, ou melhor cientificizante, como veremos, que o , fundador da Folklore Society vai desenvolver um es- , d • organização e de convencimento que ultrapassa as I ,as do território inglês. A aceitação do termo reflete a mia e a consagração de um determinado tipo de • da cultura popular; ele vem agora marcado pelo ro da ciência positivista. Por exemplo, o italiano Pitrê, 1•. d · 1870 vinha publicando seus textos sob a rubrica I mopsicologia", no final do século, a contragosto, passa 11 porar o vocábulo inglês33• O primeiro número de 1 hlt'" - revista que agrupa estudiosos franceses - ltt. 111 ·nção à palavra, mas o segundo, publicado em trdta-a sem maiores dificuldades em substituição à '111111111fthtu ... n ,> francesa, "tradições populares". "Mélusine" realça '' t•mpreendimento inglês, sua seriedade e sua dili- lt na promoção da nova ciência; o mesmo sentimento dmlm~·: o e de respeito manifesta-se na "Révue des lllon,'i I' pulaires", fundada por Sébillot em 188634. A t'tlaç·: o do folclore se realiza sob a égide do pensa- ' H •stado pelas Ciências Sociais do século XIX. O lvl mo de Auguste Comte e de Spencer tem uma in- li d •t ·rminante na compreensão dos fenômenos so- A 1 ·r •nça na possibilidade de se fundar uma ciência lv 1 ('111 t dos os domínios do conhecimento, anima o lntd · tua! da época. Os folcloristas acreditam ser 30 RENATO ORTIZ apenas um desses grupos, que aplicadamente levam o es- clarecimento científico ao domínio popular. Não se deve esquecer, que este é o momento em que é publicado o libro de Darwin, "A Origem das Espécies". No século XIX, as idéias de progresso, evolução e ciência são dominantes, e praticamente sinônimas. Mas é importante distinguir duas vertentes que incidem sobre a reorientanção do pensamen- to. Uma, que floresce junto ao mundo acadêmico, outra que se caracteriza como cientificismo. Evidentemente há uma relação estreita entre elas; seria entretanto um equívoco identificar inteiramente os desdobramentos científicos ex- clusivamente ao campo da ideologia. Mas nossa discussão é outra. Basta sublinharmos que paralelamente ao desenvolvi- mento do saber universitário, temos a popularização do entendimento científico. Um exemplo disso, na Inglaterra, são os Institutos de Mecânica, cuja finalidade é esclarecer os trabalhadores sobre o progresso da humanidade. Na França a doutrina de Allan Kardec integra os ensinamentos de Comte para, positivamente, descobrir as leis que regem o universo dos espíritos35. Os folcloristas encontram-se a meio caminho entre o universo das ciências e a popularização do saber. Ambigüidade que irá acompanhá-los, marcando de maneira indelével a disciplina que pretendem construir. A aceitação do ideal científico não deixa de trazer al- guns dilemas. Face às exigências de um novo paradigma, tem-se a necessidade de rever o substrato das correntes que alimentavam as reflexões anteriores. Se por um lado o Ro- mantismo dá um impulso para a compreensão das curiosi- dades populares, por outro, ele destoa da atmosfera reinan- te no final do século. Para se consolidar como "ciência", o folclore tem de reinterpretar seu passado, procurando dese- nhar, de maneira inequívoca, suas novas fronteiras. Para isso, é crucial que se estabeleça uma distinção entre os folcloristas e os românticos que os antecedem. Desde meados do século, o Romantismo tinha pratica- mente desaparecido como gênero literário. São várias as I MÂNTICOS E FOLCLORISTAS 31 qu · · ncorrem para isso - autonomização do cam- n 11 ·o, transformações econômicas, mudanças políti- '1 • dmcnto do público leitor36• Existe no entanto um ' recorrentemente empregado pelos intérpretes na falai para o movimento o excesso literário. O abu- lmaHinação teria distanciado o escritor de seu público. nlt•m ·me, este tipo de explicação não dá conta do , crn questão, mas o que importa é entender como rc•lmlld para o plano do folclore. Os escritores român- n·kbrados anteriormente, devido à sua imaginação rhada, passam agora a ser criticados como 11 •do res da essência popular, adulterando-a com seu art íslico e egocêntrico. Como dirá um historiador • onr pa deste período: •Jt 1:1 a iência do folclore, o interlúdio romântico entre lllrlua do racionalismo [Iluminismo] e os métodos do I mo, trouxe vários perigos. Ele interrompeu a pesquisa d;~ busca de dados folclóricos de primeira mão, e des- 1 ai ·nção para a evocação da emoção atmosférica e . I >c' p nto de vista da literatura isto não tinha nenhum la, mas do ponto de vista do folclorista os resultados d<·saslrosos: a apresentação das tradições folclóricas hrhc·rada e diluída pelo maneirismo literário"37. 11111 1111aticamente, valoriza-se a sobriedade do antiquário c 1 llrllimo romântico. Ih ncy .aidoz e Paul Sébillot também distinguem duas no ·studo do folclore. A primeira, dominada pelos 11 clorl's" românticos, e a subseqüente, quando "o lc•z.un ·nto e as preocupações literárias foram deixados c lc 1: passou-se a escutar o povo para reproduzir suas com uma fidelidade escrupulosa"38• Alejandro 11 11 y Si rra, quando escreve uma história do folclore 1 •u, r<'I Oma esta distinção; há os que retratam "fielmen- ,., :1d dade da cultura popular, e os que a desvirtuam. c c 1111pr · ·nsivo para com os escritores romântico ele 1 po. sív I separar os "utilizadores simpatizantes",' isto lll' t'Om Walter Scott ou George Sand, que não possu- 32 RENATO ORTIZ íam as técnicas científicas para a coleta de dados, mas ti- nham boa intenção naquilo que faziam, dos "utilizador s egoístas", que adulteravam sem nenhum escrúpulo o saber popular. A demarcação revela em que medida o espírito científico colocava sob suspeita as pesquisas anteriores. Muitas delas tinham sido feitas por pessoas que tiveram sua reputação associada à dos falsários. O caso mais notório é o de ]ames Macpherson, tradutor dos poemas de Ossian. Em 1760, ele forja uma versão épica, fazendo-a passar por um relato anônimo; de maneira imaginosa ele reconstrói a gloriosa história do povo celta, que numa idade remota teria habitado a Escócia39• Os poemas, que influenciaram pensa- dores como Herder, transformaram-se em uma longa con- trovérsia, a ponto de, em 1797, a Higbland Society o f Scoltland criar uma comissão para averiguá-los. A conclusão foi que o conjunto deles, embora parciàlmente contivesse alguns traços de autenticidade, correspondia a uma farsa montada pelo autor. Acontecimentos como esse desqualificavam, e até mesmo minavam a credibilidade das análises. Diante do futuro incerto de uma disciplina em busca de definição, como estratégia, só restava aos folcloristas uma vigilância redobrada dos arroubos da imaginação. Dentro do quadro da época deve-se particularmente levar em conta o impacto do livro de Tylor - "Cultura Primitiva" -publicado em 1871; sua argumentação constitui o funda- mento das pesquisas sobre cultura popular. Sua influência no entanto, não se limitou ao ensinamento teórico, o livro despertou vocações em pessoas como Edward Clodd e Andrew Lang, membros fundadores da Folklore Societyw. Quando se lê a biografia desses autores, tem-se uma idé ia clara de como o espírito cientificista, e no caso, especifica- mente a obra de Tylor, penetra as diversas camadas da vida intelectual inglesa.Edward Clodd, em suas memórias, con- fessa que sofreu uma verdadeira conversão após a leitura de "Cultura Primitiva"; convicto, ele abandona sua velha curio- sidade, a astronomia, para abraçar a ciência do folclore. Tylor considera a mente humana como universal, única, mas que as diferentes culturas a ajustam aos níveis de evolu- nOMÂNTICOS E FOLCLOniSTAS 33 ·iul. Evolucionista, ele propõe uma deftnição antropoló- d ·ultura ("todo complexo que inclui conhecimentos nne, moral, leis, costumes, hábitos"), e insiste na im~ de se estudar a humanidade, conectando os aconte- à totalidade evolutiva que preside a existência indi- u livro, como o título sugere, focaliza o pensamento - IIUo•t•m O que atrai os foldoristas são as passagens que o homem primitivo do "selvagem moderno". Por 'J'ylor dirá do homem do campo: para o moderno camponês europeu usando sua - •u11ma ou sua enxada; se considerarmos que as coisas lm e não se alteraram ao longo de vários séculos •stabelecer um quadro em que existem poucas dife~ ntrc um lavrador inglês e um negro da África Central"4I utor introduz ainda a noção de sobrevivência pa~ Ir a deAsu~erstição. Ele se dedica assim a compreen- rmanencra de certas sobrevivências no mundo in- 1 - canções infantis, jogos de azar, ocultismo _ lllllll'llu.u. que seriam análogas ao pensamento do ho- lrnltlvo. lnllu ~ncia de Tylor na conceptualização do folclore r facilmente traçada. Basicamente, os folcloristas t'Nt:tbelecem uma divisão de trabalho entre as áreas oc:upam das coisas primitivas. Reconhecendo a im- ela Antropologia, eles reinvidicam como objeto a lu ·ultura selvagem no seio das sociedades moder- toma-se assim a analogia sugerida anteriormente: n lc 1-s ' dos selvagens para os camponeses da Europa lt, lka-se surpreso quando se percebe que até 0 momento as mesmas condições de pensamento t•r discernidas nos lugares que não foram tocados luc· ~~·:lo moderna, pela Revolução Industrial e Comer- t)hlrnos cem anos"42• As sobrevivências são portanto J de hábitos milenares. Sua persistência possibilita a , de um domínio especffico do conhecimento. Os I da nova disciplina podem então ser delineados: lll(' lll <.~ fal ando, o folclore concerne as lendas, costu-) 34 RENATO ORTIZ mes, crenças do povo, das classes que foram menos alte r::t - das pela educação e que participam menos do progress . Mas o estudo do folclore logo mostra que essas classes nã progressivas retêm várias crenças e maneiras dos selvagens"~J. O aspecto primitivista configura-se em traço definidor. folclore seria, "a ciência que trata das sobrevivências arca i- cas na Idade Moderna", uma "Antropologia do fenômen psicológico do homem não civilizado"44• A camada geológi- ca a que eu me referia, pode então ser tratada como objet de ciência, e não mais como matéria para a inspiração po- ética. O longínquo, o distante, de alguma maneira desen- cantado pelo Positivismo, torna-se palpável graças ao olhar penetrante dos arqueólogos do mundo moderno. Mas a influência de Tylor não se resume à Inglaterra. O argumento de que a mentalidade primitiva se prolongaria nas sociedades modernas permeia toda a reflexão folclórica, a ponto de tomar-se senso comum. O primeiro número da "Révue des Traditions Populaires", traz uma referência ex- plícita a Tylor. Os editores observam que sua Antropologia "se associa estreitamente às tradições populares: os contos a canções explicam certos costumes, e inversamente os mitos antes obscuros, se esclarecem quando se aproxima os usos antigos aos existentes ainda em certos lugares. A Etnografia é portanto um elemento essencial, cujo estudo se impõe a todos que tentam tirar conclusões dos mitos populares"~5 . Até mesmo nos pontos polêmicos há uma convergência quanto aos princípios. Quando Emmanuel Cosquin, se in- surge contra a interpretação de Andrew Lang, de que os con- tos populares seriam oriundos de um único tipo de mentalida- de, ele contesta apenas uma parte de seu argumento. Difusionista, adepto das teses de Max Müller, Cosquin acre- ditava que as narrativas populares seriam originárias da India; deste centro irradiador, matriz da cultura indo-européia, elas teriam sido difundas para todos os cantos do mundo46• A va- riedade das interpretações seria o resultado da associação entre a mentalidade primitiva e uma história local. Com este artifício, IH IMAN'I'I S E FOLCLOIUSTAS 35 IIJ(tlldad ·do aporte indo-europeu, cronologica- 11• 1 lo ·orno superior ao estágio anterior. De 11 o m ·locínio repousa na suposição da existên- m llll' ln('apaz de entender a riqueza da literatura nt 1 t•m contacto. A perda da origem seria fruto I um pensamento "pré-lógico" (expressão de I 1 1'11m os estudiosos as coisas são claras: a igno- 1 rlmdramente as idéias supersticiosas, a igno- 11~·· o as perpetuam. O elemento primitivo é nda que desvenda o passado. \'• o da cultura popular ao elemento selva- 11111 problema interessante; não estariam os lomando a velha ótica negativista, anterior ao 1111(11111 ? Para responder à pergunta, é neces- r t'Omo a imagem do selvagem era percebida . l.ouis Chevalier observa que, contrariamente rouss •auiana, é neste período que as classes • o a . .;;similiadas à idéia de classes perigosas47• via no proletariado uma plêiade de atributos 11110 o nomadismo da mão-de-obra, a vida imun- ' d 1 h ·blda, as doenças venéreas; práticas que 111 111 ll'f'dade, constituíam uma ameaça, pois refor- p llil~'ilo ele um grupo, do restante da sociedade. 1 rovlnha de um conflito potencial entre civilização A luta d classes, que neste momento é aguda rc•t ' ·m-industrializados da Europa, é traduzida I 11110. m rais e ideológicos. 11111 pode ser dito em relação aos camponeses, h • t •;a ,.;;o, a dimensão explosiva não se coloque da n 1\t'ha . Eug n Weber observa que na França são te• u·munhos que os assimilam ao estado selva- mu• t' dizia na época, não era preciso viajar à 1 11 t•nrontrá-lo- ele se manifestava nas provín- 1 1 at r:1.-.adas em relação ao ritmo do progresso. 11 utltana se contrapõe assim à vida bárbara e 1l11 (':tmpo. Na verdade, este embate ideológico 1111111 ltua~·: na qual a França tem dificuldades em 36 RENATO ORTIZ se constituir como nação. Não há ainda uma consciência c letiva que integre a diversidade social na totalidade naciona I. Em 1863, cerca de um quarto de sua população não falava o francês; a língua oficial era portanto estranha para um conjun- to considerável de seus habitantes. Por outro lado, a comuni- cação entre os espaços e as pessoas era precária, o número de estradas era pequeno, elas encontravam-se em péssimo esta- do, e o país só pôde contar com uma rede ferroviária a partir de meados do século. Com isso, nos lugares mais isolados, ou de difícil acesso, os hábitos culturais do passado encontravam condições propícias para se reproduzir. Blanqui dizia que na França, existiam "dois diferentes povos, vivendo em uma mesma terra vidas tão diversas, que eles parecem estranhos uns aos outros". Para o citadino, o camponês vivia como um troglodita, em cabanas sórdidas, perpetuando maneiras que o coloca- vam à margem da sociedade: faltava-lhe civilização. Ciente çlo problema, o Estado francês empreende uma política de integração do campesinato; entre 1860 e 1880 a ideologia que justifica o desenvolvimento das escolas primárias, fun- damenta-se numa pedagogia civilizatória, induzindo o pro- gresso nas regiões culturalmente atrasadas da zona rural. Analisando os relatórios dos instrutores públicos. Eugen Weber mostra como a escola vai aos poucos substituindo "as maneiras rudes e selvagens pelos hábitos de contenção e de polidez", _e como os velhos costumes são "varridos pela civilização". O contraste entre civilização e barbárie revela pois o processo de formação da nacionalidade. Fruto de uma época, os ideais civilizatórios não podiam deixar de se exprimir nos debates sobre o folclore. Quando uma autora inglesa justifica suas atividades,ela diz: "Ao se entender os motivos do homem deseducado, as pessoas aprendem como tratar com eles, e como reconciliá- -los com os princípios da cultura moderna e da civilização"49• Um folclorista italiano afirma: "[O folclore é] um movimento de homens de elite, que através da propaganda assídua, se esforça para despertar o povo e' iluminá-lo na sua ignorância e no seu preconceito"50• J( MÂNTICOS E FOLCLORISTAS 37 llnrtland, participante do núcleo decisório da \'udt ty, quando compara o camponês ao selvagem I lllo( : "Quando maior é nosso interesse [pelos cam- nualor nossa simpatia por eles, podemos nos iden- 11 nclm mais completa com seu modo de pensamen:- nwlor será nossa influência sobre eles. O conflito de massas, do qual se-ouve tanto falar atualmente, se >r causa do abismo educacional que se abriu entre h lxo51 • O argumento político é explícito. Caberia J r:unbém uma função pedagógica. n . uma dúvida, esta dicotomia entre civilização e I' ria Igualmente parte da ideologia burguesa? Es- te ,J ·Joristas partilhando do mesmo ponto de vista ,-- ........ ,tor s do mundo moderno industrial? Creio que unos diante de uma concordância aparente. Ela VI II<) •s que se comunicam, mas no fundo são I . A welstanchauung do progresso não encontra foldoristas seus melhores defensores. n ·am •nto das elites dominantes, ao identificar ig- r rcupcrstição, desvaloriza imediatamente qualquer ·c )fll a ultura popular. Esta se apresenta como um c•xi~l!ncias do progresso. Os folcloristas porém, r as superstições como sobrevivências, abrem- outro horizonte. Assim, um livro intitulado, "As 'la Su pcrstições Populares", contrariamente ao que IIJ(c'rir uma pedagogia repressiva, prescreve em c·uhura popular, "uma pesquisa simpatizante por p kológicos e científicos do maior interesse"52• luc, quand estuda as lendas da Bretanha, caminha na lln·~·~to: l'llllrn ·ntos deste povo, tal como eles se apresen- lc•ndas, c mesmo nas superstições, parecem dar tpul:a~·· o uma idéia que está longe de ser desfavorá- 1111 nrlv •rmos à tradição oral, que é uma imagem 11 ·I dos sentimentos populares, tem-se a impressão ttlljllnlo de qualidades médias, com idéias de carida- 38 RENATO ORTIZ de bastante impressionantes e um sentido de justiça que se manifesta nas punições que recaem sempre sobre os maus"53• Na introdução do primeiro número da "Révue des Traditions Populaires", propõe-se: "Nós compreenderemos o estudo [do folclore] no senti- do mais abrangente, e procuraremos tomar amável esta ciên- cia praticamente desconhecida entre nós. Tentaremos, sem- pre continuando científicos, mostrar ao público que as tra- dições populares são geralmente divertidas e charmosas, e quase sempre ingênuas e poéticas"54• Poderíamos multiplicar as manifestações de simpatia pelos costumes populares, inclusive quando se admite a ignol"ância como a causa desta mentalidade. Há certamente neste ponto uma filiação romântica, embora contida pela .razão científica. Uma passagem de Tylor, comparando o homem selvagem à classe proletária, ilustra bem a dimensão que quero ressaltar: "Em nossas grandes · cidades, as chamadas classes peri- gosas estão afundadas numa miséria horrenda e na depra- vação. Se quisermos estabelecer uma comparação entre os papuas da Nova Caledônia e a comunidade européia de mendigos e ladrões, temos que conceder que possuímos em nosso meio algo pior do que a selvageria. Mas isto não é selvageria, é civilização decadente. O pensamento selvagem se devota essencialmente a ganhar substância da natureza, o que a vida proletária não faz. Em minha opinião frases como selvagens da cidade ou árabes de rua parecem com- parar uma casa arruinada a um pátio bem cuidado"55• A oposição não está muito distante da que Herder esta- belecia entre o povo e a canalha, mas para além do julga- mento de valor, que situa a classe operária no nível da barbárie, tem-se que a noção de selvagem possui uma di- mensão positiva. A cultura primitiva, embora considerada inferior à da civilização industrialista, quando comparada pela escala da evolução social, analisada no tempo e no espaço que lhe correspondem, é superior à decadência. Neste sentido, existe uma diferença entre o selvagem e o bárbaro. ROMÂNTICOS E FOLCLORISTAS 39 h trutor da escola primária republicana francesa, ao qual h•rla Eugen Weber, assim como o empresário moderno 111l ressa apenas pela prosperidade de seus negó- o incapazes de entender esta sutileza. Para eles o -·nn1rc•m, indolente, preguiçoso, é o antípoda dos ideais de <K'I ·dade na qual o trabalho é uma categoria central. - I\ICI'ICl'l < JUC se ajustam mal ao mecanismo da máquina social; ou operários, são pensados como improdutivos, por- h. rharos. Isto não ocorre com o folclorista, para quem lmltlvo é o testemunho da Tradição (com maiúscula). I c 1 o folclore é concebido como "o corpo de conheci- mo dos homens deseducados, incluindo os costumes, as lllai~· •s, as superstições, as práticas médicas, e muitas I t'Oisas além das histórias"56• Visão que se afasta do tlvl.o;mo f'àcionalista: "O povo é um verdadeiro relicário, I c mt · de achados, um conglomerado de remanescência h hltos, pensamentos e costumes perdidos, um verda- muscu de antiguidades, cujo valor e preço é inteira- ti ·sconhecido por aquele que o possuía; o povo é o lvc, da tradição"57• Outros dirão que o sabet: popular é lqula de um passado não gravado"58. :oauo s românticos, os folcloristas cultivam a tradição. I nwnto selvagem encerra portanto uma positividade, Indo aproximá-lo da riqueza das pedras preciosas. O rio tinha um afã colecionador, o folclorista, respalda- lc 1 P sitivismo, cria o museu das tradições populares. 1 cll~ Michel de Certeau, ele se contenta em mirar a do morto", pois o que lhe interessa é o passado em lc• c•xt inção59• Diga-se que o folclorista tem plena cons- 1 t das mutações sociais que vivenda. Andrew Lang qu ·"as relíquias de um estado de pensamento primi- jllt' c•stão morrendo na Europa, existem em várias partes mundo"60. Um depoimento pungente é o de Sébillot, nd no fmal de sua vida, e rememorando a idade de <lc• suas investigações. Para ele: INc•, I · período os pesquisadores] puderam explorar e 11,., c 1 I ·souro maravilhoso da alma popular, interrogan- 40 RENATO ORTIZ do as pessoas que contavam o que elas haviam aprendido das gerações passadas. As tradições ancestrais eram perpe- tuadas e transmitidas oralmente, algumas depois de milha- res de anos, junto aos camponeses, que até lá tinham vivido isolados do resto do mundo, habitando, de século em sécu- lo a mesma aldeia ou o mesmo condado. Elas estavam ' inscritas na memória fiel, como num disco virgem, nenhuma outra leitura tinha podido transformá-la. Elas ainda estavam intactas, precisas, vivas. Depois - constatemos sem deplo- rar- veio a escola obrigatória, o serviço militar, a leitura dos jornais e dos livros, os deslocamentos fáceis, a diminui- ção da fé religiosa e seu corolário, o ceticismo em relação às numerosas crenças populares"61 • O tom nostálgico é revelador; trata-se de lutar contra o tempo. O esforço colecionador identifica-se à idéia de sal- v.ação; a missão é agora congelar o passado, recuperando- -o como patrimônio histórico. Se lembrarmos da defmição de intelectual, proposta por Gramsci, podemos dizer que os instrutores da escola públi- ca assim como os políticos e os administradores da máquina estatal, são os intelectuais orgânicos de uma nova ordem. A barbárie significa o que está em descompasso com este mundo em construção; ela deve ceder lugar ao progresso. O Estado tem por função resolver esta contradição, integrando as partes desconexas da sociedade no todo nacional. Maurice Agulhon, no título de seu livro, "La République au Village", captou muito bem este movimento. Para chegar até aos confins do país, o Estado teve de expandir a nova consciên- cia de cidadania para todos os setores e recantos da socie- dade62. Osfolcloristas, no entanto, se assemelham mais aos intelectuais de província, que Gramsci descreve como tradi- cionais. Reconhecendo a radicalidade das mudanças em curso, eles se voltam para uma operação de resgate. Os intelectuais orgânicos caminham a favor do tempo histórico, os tradicionais nadam contra a corrente, e procuram armaze- nar, em seus museus e bibliotecas, a maior quantidade possível de uma beleza morta. ROMÂNriCOS E FOLCLORISTAS 41 I ncia e Método <.las coisas mais difíceis de encontrar na literatura é a explicitação da metodologia empregada na dados. Os folcloristas são unânimes em dizer que deve ser recolhido diretamente do povo, e neste a investigação dos irmãos Grimm é uma referência Com a absorção do Positivismo, a exigência de h ·lccer um procedimento metodológico torna-se lva, mas paradoxalmente, são raríssimas as reflexões o modo de realizá-lo. Contrariamente aos antropólo- IUl' fizcr.am do trabalho de campo o ponto forte de sua lna, com os folcloristas tudo tende a se tomar implí- m seus livros e artigos esquecem sempre de meneio- uno o trabalho foi realizado. Por exemplo, diante da - '"'"luóldc de a disciplina delinear suas fronteiras, o I )f· J umal" incentiva toda uma reflexão sobre a ciên- l lc 1! ·!ore. Entretanto, no debate travado em suas pági- qu ·stão metodológica não é tratada uma única vez. É t' a precisão científica, reverentemente cultivada, não · s • um destaque na constituição do campo discipli- 'l'tKiavia, o trabalho empírico desempenha uma função nl • na ideologia professada, é através dele que os as pensam distinguir-se de seu antecessores. A pes- o álibi da cientificidade. OI'J.( • Gomme, quando define o folclore, nos lembra • u estudo não pode ser um simples divertimento de rio, ou a mania de se observar tudo o que é curioso t "ordinário, mas uma ciência". De uma maneira um hKtüente ele continua seu raciocínio: •l(u r ·clamo para o Folclore a posição e a função de , o que significa que se deve passar de uma vez por do •studo fragmentado de pedaços de fatos curiosos e para um estudo defmitivo e diferente que possui pro- pró prios e trabalha suas conclusões a serem demons- K la é evidentemente a diferença entre o mero literato 'llllosidade antiquária e uma ciência histórica"63• 42 RENATO ORTIZ Existe nesta estratégia uma dupla intenção: isolar o pas- sado e interpretá-lo à luz das novas imposições. Antiquários e românticos podem ser vistos como precursores, mas suas contribuições se situariam no plano pré-científico. Um novo patamar seria alcançado quando as sondagens erráticas fos- sem superadas pela pesquisa sistemática. Daí a coleta de dados ser encarada como uma atividade prioritária64• No entanto, é justamente este o ponto falho da proposta; as dificuldades que envolvem a discussão metodológica, expri- mem a meu ver, a incapacidade de o folclore se transformar em verdadeira disciplina acadêmica. Um dos poucos manuais de folclore que existem, e tal- vez um dos primeiros a ser escrito, é o de George Gomme; nele, um dos capítulos é dedicado ao procedimento empírico. Segundo o autor, para chegar a seu término, uma pesquisa deveria responder a quatro tipos de perguntas. De maneira rigorosa o pesquisador deveria anotar: a) a localidade em questão; b) a data de quando o fenômeno foi observado pela última vez; c) se o costume é ainda de uso local; d) o nome e ocupação social do informante. Munido dessas in- formações, o ciclo de investigação estaria completo. Mas qual deveria ser a atitude do pesquisador diante de seu objeto? Como captá-lo? O manual nos ensina: "A melhor coleção é aquela que é feita por acaso, viven- do junto do povo e cultivando os dizeres e as histórias que caem de tempos em tempos. Mas ninguém pode completar uma coleção desta forma, e uma busca deliberada é neces- sário, o que é uma tarefa difícil; ela deve ser sempre um divertimento agradável, calculada para trazer um diversão durante um feriado no campo"65 . A sugestão é no mínimo ingênua, já que encontra-se em causa a fundação de um novo tipo de saber. Conseguiria uma ciência positiva erigir-se sobre um alicerce tão frágil e conjuntural? Nosso autor parece não se dar conta dessas contradições, e seu encaminhamento envereda por um ter- reno cada vez mais instável e movediço. A quem perguntar sobre as tradições populares? Evidentemente aos velhos ROMÂNTICOS E FOLCLORISTAS 43 111 ·s, vi tos como os guardiães da memória, mas raro- no padr , ao advogado, ao fazendeiro, ao doutor, isto pt•ssoas educadas que estão em contato com as cama- Inferiores. George Gomme é explícito a esse respeito: •A superstições não podem ser coletadas junto às clas- 1 lxas, embora aí floresçam; o povo não compreende o que as superstições significam, por isso não que o cavalheiro chegue a elas. As perguntas s ·r feitas junto à classe dos pequenos empregados, o um pouco mais cultivados do que o povo trabalha- mas tem ainda uma familiaridade suficiente com as , , a ponto de conhecê-las bem, e participar de um n(uncro delas"66• l1odt•ríamos objetar que o "Manual" apresenta a visão 1lar de um autor; entretanto, debruçando-se sobre a 1r.1 disponível, percebemos que seu ponto de vista é lizado. Um interessado no assunto, escrevendo pa.IQ. ~· o de notícias da revista "Folk-Lore Record", assim llln1 sua atividade: •cok·tar as tradições populares é uma arte que se apren- om a prática. Quando eu coletei as baladas e as histórias o que fiz principalmente em Estocolmo, freqüente- nas casas pobres, eu chegava num domingo quieto 1 1 <'Ste velho povo, e lhes contava tal ou tal estória, ob- 'dt·sta maneira, as variantes das velhas histórias- tudo durante o café, para o qual eu convidava este povo deli- Eu •stou certo de que várias pessoas, padres e senhoras, 1r ·s c professoras primárias, e outros, poderiam fa- uma rica colheita, mas eles devem saber como agir, e ouvir as palavras usadas pelo povo. ~7 'l't•<\fllo 13raga, quando compõe seu livro sobre os contos uwwscs, nos dá um exemplo que vai na mesma dire- Na introdução do texto ele fornece algumas informa- ohr · material obtido, agradecendo aos que o ajuda- I <'<>mpletá-lo. O depoimento de um certo doutor Ira · sugestivo: "Aconteceu outro dia passar por aqui 11« lll<' a Maria e a Ignácia. Chamei-as para as interrogar 44 RENATO ORTIZ sobre os contos populares a que o povo chama de casos. Desculparam-se pela falta de memória juvenil para entrarem francamente neste campo; contudo disseram bastante para me deixarem estupefato. Que peripécias, que maravilhoso, que poesiallÓS. Já um outro colaborador, tem como. infor- mante privilegiado uma criança: "Redação pura, sem mcon- gruência do improvisador momentâneo, nem o artifúico do literato. Parece-nos este o verdadeiro meio de obter a forma definitiva, simultaneamente étnica e artística do conto; fazê- -los redigir por crianças, verdadeiro ponto de ·transmissão entre a alma popular e a inteligência culta"69• Evidentemen- te este encanto romântico leva a uma parcialidade in~erpretativa, desconsiderando os relatos feitos pelas mu- lheres adultas, "eivadas de explicações e considerações re- ligiosas". A triagem interessada permite assim escolher a versão mais adequada da ingenuidade irúantil. À primeira vista, os exemplos mostram a inexistência de qualquer procedimento metodológico; mas esta ausência é um elemento intrínseco do olhar folclorista. Um primeiro aspecto, diz respeito à acidentalidade: "um fim de semana divertido no campo", "um domingo quieto e tranquilo em Estocolmo", "uma criada que passava em frente da casa". Tudo indica que a melhor coleção é aquela formada casu- almente. Isto significa que o pesquisador não precisa neces- sariamente ser um profissional; basta estar com os ouvidos · atentos, e captar as preciosidades dispersas do saber popu- lar. Esta certeza justifica a relativa indiferença em relação à escolha dos informantes. Como afirma uma folclorista: "Existem milhares
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