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Análise do conto Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector Sthefani I. Oliveira1 O conto Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector é um dos vinte e cinco contos reunidos na obra intitulada com o mesmo nome. Com um cunho autobiográfico, a narrativa analítica de Lispector, conta a história de duas meninas, não nomeadas por ela, e de sua infância no Recife, cidade onde a própria autora passou a infância e boa parte de sua vida. O enredo é baseado na busca de uma das personagens, uma menina apaixonada por leitura, pelo livro Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, um de seus objetos desejo, mas que não era acessível para ela e que fora prometido pela filha do livreiro. Durante toda a história, acompanhamos a busca da menina pelo livro prometido, cuja a entrega é adiada pela outra, busca que durou muito tempo até que um dia a mãe da filha do livreiro interferiu na conversa das meninas e percebeu a atitude a filha e fez com que a mesma emprestasse o livro a outra menina por tempo indeterminado. Narrado em primeira pessoa, a narradora é colocada em uma posição intradiegética, conhecendo todas as partes da história, como um narrador onisciente, porém sem níveis de transcendência, pois, além de narrador também é personagem. A autora traz duas personagens e uma delas está inserida na história também como narradora, o que não permite que ela tenha onisciência total dos fatos, e nem dos pensamentos dos outros personagens como a filha do livreiro. É possível demarcar a presença de um protagonista e um antagonista no conto. O protagonista é representado pela narradora, descrita pela autora como imperdoavelmente bonitinha, esguia, altinha, de cabelos livres. Nela são encontradas características como humildade, paciência e resignação, traços típicos e um herói. E como antagonista se tem a filha do livreiro, descrita como gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados, a quem são atribuídas características como mesquinhez e perversidade, aumentando ainda mais a distância entre as duas personagens. 1 Graduada em Letras- Português/Inglês pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e Pós-Graduanda em Literatura brasileira pela Faculdade Frassinetti do Recife (FAFIRE). O conto é narrado em tempo passado que é classificado por Genette, (1995, p. 216) como a“ [...] posição clássica da narrativa no passado, sem dúvida, e de muito longe, a mais frequente”. Esse tempo é marcado pelos verbos utilizados pela autora e que aparecem já nas primeiras linhas do conto quando a narradora afirma “Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados.”. Porém apresenta um narrador presente que projeta o futuro. Lispector opta por uma linguagem subjetiva durante todo conto, utilizando um discurso pessoal que é marcado pela própria narradora e por suas impressões, como quando ela acredita que a menina não gosta de garotas como ela por serem mais bonitinhas e terem os cabelos mais soltos. Com cabelos mais soltos a personagem quer dizer cabelos lisos, mais bem arrumados. O uso de metáforas como no trecho: “Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam” deixam o conto mais belo e trazem a sensação de esperança ao leitor que acompanha toda a busca e as expectativas da personagem. O tempo cronológico é marcado no conto por meio da contagem de dias em que a narradora vai até a casa da filha do livreiro em busca do livro, mas sem sucesso. Durante esse processo sofrido pela narradora é possível perceber que a narrativa se acelera um pouco, o que representa o coração da menina batendo forte com a expectativa de possuir o livro e logo depois se desacelera ao receber o não da outra menina. Como é comum em outras obras de Lispector, o fluxo de consciência também se faz presente no conto, por meio dessa narrativa lenta e entrecortada. A narradora passeia de uma casa a outra sempre com a esperança de que este seria o dia em que teria o livro em suas mãos e poderia desfrutar com todo o prazer e expectativas de sua leitura, mas essas expectativas são quebradas ao chegar na casa da outra e novamente escutar que o livro não estava lá e que não poderia ser emprestado. Surgem perguntas de até quando o sofrimento da personagem vai durar, quando o momento epifânico tão presente nas obras de Lispector vai finalmente chegar e iluminará a personagem. Esse momento chega quando em uma das idas da narradora a casa da filha do livreiro, a mãe da menina aparece na porta e parece entender o que está acontecendo, reprovando a atitude descabida da filha de fazer com que a menina caminhe todos os dias, mesmo que leve sempre um não, por um livro que sempre esteve ali. Com isso, a mãe faz com que a menina sádica ao sentimento alheio empreste o livro a outra garota por tempo indeterminado. O desfecho do conto se dá com o deleite da menina em ter o livro para si, sem ter que se preocupar em lê-lo rápido depois de tudo que passou para conseguí-lo. Por vezes a personagem afirma que se faz esquecer do livro só para sentir a sensação de surpresa de perceber que o tem. A autora traz um conto curto, com uma narrativa simples e que expressa o quão clandestina é a felicidade, e por clandestina a autora que dizer ilícita, fora da lei ou da moral. O fato da menina possuir o livro da outra, realizando assim o seu desejo, torna sua felicidade proibida quase como se representasse um crime, como se para a sua felicidade fosse preciso o sofrimento de uma outra pessoa. Na última frase do conto, Lispector compara a relação da menina com o livro à relação de uma mulher com o seu amante. “Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.” A autora faz uma projeção, atribuindo ao livro sentimentos e intenções positivas originadas nela mesma. Também é um exemplo de situação epifânica: a menina que se torna “amante” do livro. . REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
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