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Júlia Figueirêdo - DOR PROBLEMA 3 – INTERMEDIÁRIA: DOR E ACIDENTES VASCULARES CEREBRAIS: A DOR NO ACIDENTE VASCULAR ENCEFÁLICO: Os Acidentes Vasculares Encefálicos (AVE) correspondem a déficits neurológicos focais com evolução rápida, incapazes de serem explicados por outras causas que não vasculares. 80% dos casos correspondem ao subtipo isquêmico, e 20%, à classificação hemorrágica (AVEH), ambos principalmente em idosos com mais de 65 anos. Os indivíduos sobreviventes sofrem com diversas sequelas e complicações, como disfagia, disfasia, fraqueza, transtornos de humor, dor e espasticidade, comprometendo sua qualidade de vida. Esses déficits são influenciados por diversos fatores, como a dependência prévia, comorbidades associadas ao AVE e o tempo de internação. Impacto parenquimatoso dos tipos de AVE O AVE isquêmico é dividido de acordo com o segmento cerebral afetado e os mecanismos fisiológicos para surgimento do quadro (aterotrombótico ou tromboembólico). O AVE hemorrágico, por sua vez, é ainda classificado como subaracnoide (5%) ou intraparenquimatoso. Nota-se que cefaleia é observada apenas no curso de pacientes com AVEH. Acidentes vasculares encefálicos hemorrágicos são causados pelo rompimento espontâneo de vasos sanguíneos internos ou superficiais ao parênquima cerebral. As possíveis alterações que provocam esse desgaste podem ser de origem congênita (malformação vascular), adquirida (decorrente de HAS, por exemplo) ou mista. As apresentações do AVEH possuem características específicas, a saber: Hemorragia intracerebral (ou intraparenquimatossa) – HIP: é a forma mais prevalente de AVEH, causada principalmente pela HAS e suas complicações vasculares, destacando-se os aneurismas de Charcot-Bouchard. Os principais focos para esses rompimentos são regiões de bifurcação arterial do tálamo, núcleos da base e ponte, além de áreas de substância branca lobares. Aneurismas de Charcot-Bouchard Malformações vasculares, distúrbios da coagulação, tumores e o uso de fármacos também podem contribuir para o surgimento de arteríolas espiraladas, principalmente frente a hemorragias cerebrais sem história de HAS. A gravidade do acometimento da HIP é estratificada pela avaliação de diversos fatores, pontuação baixa na ECG, Júlia Figueirêdo - DOR origem infratentorial, volume > 30 mL, sangramento intraventricular e idade > 80 anos. A presença de ao menos 6 destes indica mortalidade extremamente elevada. O quadro clínico da HIP se dá com náuseas, vômitos, cefaleia e rebaixamento de consciência. Há elevação da PA na maioria dos casos e, ocasionalmente, crises convulsivas. A cefaleia que ocorre na HIP é de hipertensão intracraniana, repentina e holocraniana, se agravando na posição deitada. O paciente também pode se queixar de diplopia. Em pacientes com HAS grave, a herniação uncal é uma possível complicação, precedida pela tríade de Cushing (hipertensão, bradicardia e alterações respiratórias). Hemorragia subaracnóidea – HSA: corresponde a 25% dos casos de AVH, acometendo principalmente indivíduos com mais de 60 anos. Esse é um quadro de elevada gravidade (mortalidade de mais de 32%), causado principalmente pela ruptura de aneurismas saculares intracranianos próximos ao polígono de Willis (artérias comunicantes anterior, posterior e média). Fatores congênitos são os principais causadores desses aneurismas, mas esse risco pode ser aumentado pela presença de comorbidades como HAS, tabagismo e aterosclerose, além de diversos distúrbios de caráter autoimune. Apenas a presença de aneurismas não causa sintomas. Com o crescimento deste, podem surgir cefaleia e alterações na motricidade do globo ocular. Pequenos sangramentos (hemorragias sentinelas) podem ocorrer semanas antes da ruptura total do aneurisma. O quadro de cefaleia nesses pacientes é súbito e intenso, afetando todo o crânio, acompanhado por tontura, sinais de irritação meníngea, náuseas e vômitos. Crises convulsivas ocorrem em até 15% dos casos, também podendo ocorrer déficits motores, perda de consciência, alterações na fala e paresia de nervos cranianos. Disfunções autonômicas também são comuns. Nos AVE isquêmicos (80% dos casos), causados pelo fluxo sanguíneo inadequado ao cérebro, duas apresentações podem ocorrer: AVE Isquêmico Trombótico: ocorre devido à interrupção do fluxo sanguíneo por um coágulo formado por lesão endotelial. A aterosclerose é um importante fator de risco para o desenvolvimento desse quadro, uma vez que o estreitamento dos vasos favorece a impactação de trombos. Mecanismo de impactação do AVE Isquêmico Trombótico A HAS e a DM também são comorbidades que elevam o risco para a formação de trombos, acelerando a degradação vascular. Ataques Isquêmicos Transitórios, com déficits cerebrais focais, de duração inferior a 1h, precedem os AVE em 30 a 50% dos casos. Júlia Figueirêdo - DOR Os sintomas surgem lentamente, podendo evoluir por até 72h, acompanhado o desenvolvimento de edema. A perda de consciência não é comum no primeiro dia da doença, exceto em casos de complicações hemorrágicas ou compressão do tronco encefálico. AVE Isquêmico Embólico: segunda causa mais frequente de AVH, essa manifestação ocorre por meio da obstrução vascular por um êmbolo (trombo circulante), normalmente de formação no endocárdio. Disfunções cardiovasculares são os principais fatores de risco para formação dessas estruturas, mas elas também podem surgir de fragmentos de osso, gordura ou ar. Impactação de um êmbolo em bifurcação arterial, causando um AVE Isquêmico embólico Os sintomas se instalam de forma rápida, com pouca chance de desenvolvimento de circulação colateral. A complexidade dos efeitos depende da extensão do tecido infartado e do período em privação de fluxo sanguíneo. A sintomatologia dos AVE não difere muito entre seus tipos, tendo intensidade variada conforme o foco da lesão e sua extensão. Dentre os impactos motores, destacam-se redução de mobilidade, alterações na fala, déficit respiratório e incapacidade funcional (destruição de neurônios do trato piramidal – acometimento contralateral). Funções cognitivas, como a percepção espacial, além da fala e do controle emocional, também são afetados. DOR PÓS-AVC: A atuação médica em Acidentes Vasculares Encefálicos normalmente é limitada à prevenção de recidivas após o manejo inicial do doente, o que dificulta o seguimento destes quanto ao desenvolvimento de quadros secundários de dor. A Síndrome de Dor Central Pós-AVE (SDCP) é marcada por dor neuropática e anormalidades somatossensoriais decorrentes de um AVE, afetando mais de 50% desses pacientes. Essa evolução é frequente em quadros nas regiões parietal, capsular e dorsolateral da medula, ao longo da via somatossensorial. O diagnóstico desse quadro é complexo graças à fisiopatologia e manifestações cínicas variadas, e ao intervalo de tempo decorrido entre o AVE e o surgimento da síndrome (pode ser imediato, mas normalmente se dá nos meses seguintes a ele). Principais apresentações da SDCP As principais manifestações associadas à SDCP são: Dor central: denominada também como dor talâmica, essa manifestação é caracterizada pelo processamento alterado de estímulos sensitivos ou nociceptivos, frequente em AVE com lesões na artéria cerebral posterior. Júlia Figueirêdo - DOR A principal teoria para o surgimento desse quadro é a da desinibição termossensitiva, na qual as projeções das vias do trato espinotalâmico medial e dos feixes límbicos associados aos centros moduladores da dor no tronco encefálico, além do gânglio dorsal medular, sofrem lesões vasculares. Essecomprometimento altera a percepção térmica e dolorosa, além de alterar os potenciais de resposta evocados, provocando hipo ou hiperestesia. Caso seja infligido dano às lacunas talâmicas e haja envolvimento da porção caudal do núcleo ventral posterolateral do tálamo, haverá diminuição da sensibilidade ao frio. Anatomia do diencéfalo Comprometimentos insulares podem causar disfunções na percepção térmica e mudanças no processo de percepção emocional da dor, fomentando quadro de “assimbolia”, no qual há ausência ou reações inadequadas a estímulos lesivos. Por fim, há a possibilidade de que a lesão de núcleos reticulares GABAérgicos promova a hiperexcitação do corno dorsal medular e de suas aferências, impedindo a modulação inibidora da dor. Essa apresentação pode se estender por segmentos extensos da pele, irradiando-se para todo um hemicorpo ou ser segmentar, em hemiface e extremidades. Quando a lesão ocorre na região talâmica ventral e posterior, as crises álgicas serão localizadas em um hemisfério. No dano vascular bulbar, a dor se dá em hemiface ipsilateral e hemicorpo contralateral, devido à lesão no trato e núcleo espinal do trigêmeo e do feixe espinotalâmico do mesmo lado da agressão. Correlação entre sítio do AVE e comprometimentos observados O quadro álgico central pode ser descrito como uma manifestação intensa, lancinante, tipo queimadura ou choque eléctrico, podendo ser intermitente ou constante, e com intensidade variável. A hiperanalgesia e a alodinia são comuns. Critérios diagnósticos para a dor central pós-AVE O tratamento farmacológico da dor central é feito por meio de antidepressivos (amitriptilina) e anticonvulsivantes (gabapentina ou pregabalina). Júlia Figueirêdo - DOR O uso de opioides (tramadol) pode ser recomendado para pacientes refratários, bloqueando a recaptação de serotonina e noradrenalina, além de impedir a ativação dos receptores NDMA. A neuromodulação (TENS), estimulação cortical por meio de impulsos elétricos medulares, também é uma estratégia significativamente eficaz, porém deve ser aplicada em indivíduos com comprometimento motor mediano. Uma outra forma de modulação direta sobre estruturas perceptiva é a neuroablação por radiofrequência, procedimento pouco usado em detrimento demais, sendo capaz de induzir a destruição de fibras nervosas condutoras de estímulos ao tálamo. Dor por patologias musculoesqueléticas: corresponde à causa mais frequente de sintomas dolorosos em pacientes pós-AVE, ainda que o desenvolvimento do quadro não seja exclusivo destes. Comprometimentos motores e sensitivos podem causar a sobrecarga de músculos e tendões nos membros sadios, levando a microlesões e à aceleração de patologias de caráter degenerativo. O quadro clínico desses déficits normalmente é o mesmo da população geral, porém a dificuldade na acreditação sintomática de indivíduos com sequelas pode atrasar esse processo. A existência de outros déficits decorrentes do AVE pode levar ao aumento no risco de traumatismos, principalmente quedas. Para evitar lesões crônicas, é fundamental a participação familiar no cuidado do indivíduo e a realização de adaptações ao domicílio. Ainda que pouco comum, a ossificação heterotópica pode acometer o hemicorpo impactado por déficits motores, sendo manifestada pelo surgimento de tecido ósseo em regiões periarticulares. O aparecimento da calcificação pode ocorrer desde 3 semanas após o AVE. A fisiopatologia dessa condição ainda não é conhecida, porém supõe-se que essa diferenciação óssea indevida seja fruto da imobilização, da desregulação entre os níveis de PTH e calcitonina, da hipóxia tecidual, da secreção de prostaglandinas ou de alterações no SNAS. A apresentação clínica dessa disfunção se dá por meio de sinas flogísticos associados à área afetada, acompanhados por dor e limitação de movimentos. O diagnóstico é feito por meio da associação da história clínica com exames laboratoriais (fosfatase alcalina elevada) e de imagem (radiografia ou cintilografia óssea – ossificação visível após 4 semanas). Raio-x com destaque para um foco de ossificação ectópica na cabeça do fêmur Não há um consenso sobre o tratamento da ossificação ectópica, sendo mais frequentes relatos do uso de AINES (indometacina), mobilização delicada da articulação e crioterapia local. Omalgia: conhecida também como ombro doloroso do hemiplégico, é a manifestação dolorosa mais comum após o AVE, podendo afetar até 80% dos Júlia Figueirêdo - DOR indivíduos no 1º ano de desenvolvimento dessa paralisia. Normalmente, é um quadro subagudo ou crônico que deve ser tratado prontamente de forma a evitar comprometimento da qualidade de vida. Pacientes com déficits motores mais graves tendem a sofrer mais com essa complicação, de forma que um dos mecanismos propostos para o desenvolvimento da dor esteja associado à fraqueza muscular da cintura escapular. Essa situação altera a congruência articular do ombro, que já é pouco estável, podendo provocar subluxações glenoumerais com ou sem caráter doloroso. Anatomia óssea da região escapular A dor é sempre de aspecto mecânico. Os fatores preditivos mais comuns associados à omalgia são alterações motoras e de tônus muscular, distúrbios sensitivos e limitação na amplitude de movimento do ombro. Principais causas para a omalgia do hemiplégico Interação entre déficit motor, alterações autonômicas e a omalgia O diagnóstico é realizado por meio de uma radiografia simples, podendo ser necessários outros exames na suspeita de mais lesões musculoesqueléticas. Comparação radiográfica entre um ombro com subluzação (esq.) e um ombro sadio (dir.) A prevenção do quadro ocorre por meio do posicionamento adequado do membro superior desde os primeiros dias após o AVE, mantendo um apoio fixo (“tipoia”). A prática de exercícios de fortalecimento dos músculos deltoide e supraespinhoso pode evitar sua atrofia e, consequentemente, o risco de subluxação. Dor associada à espasticidade: o aumento involuntário do tônus muscular e na velocidade de seus reflexos é bastante frequente em pacientes com lesões nos motoneurônios superiores. A dor referida pode ser associada diretamente a esse fenômeno como também às contraturas musculotendíneas resultantes dos posicionamentos inadequados. Júlia Figueirêdo - DOR Posicionamento do membro superior em portadores de espasticidade Após o AVE, o equilíbrio entre a musculatura agonista e antagonista pode ser modificado, com predomínio dos primeiros, de forma que movimentos de flexão prevaleçam sobre os demais. Essa dinâmica prejudica a abdução, flexão e a rotação externa do ombro, contribuindo para a omalgia hemiplégica. O tratamento segue os parâmetros da condição anterior. Outras estratégias possíveis envolvem a infiltração de toxina botulínica A na musculatura espástica (impede a liberação de Ach), com indícios de melhora funcional do indivíduo. Síndrome Dolorosa Regional Complexa: corresponde à dor neuropática crônica decorrente de lesões musculares e ósseas (tipo I) ou de nervos (tipo II), comum principalmente em extremidades (daí a nomenclatura “Síndrome Ombro-Mão”). A etiologia dessa síndrome está associada a traumatismos repetidos de fibras nervosas, sejam eles diretamente induzidos pelo AVE ou desenvolvidos pela mobilização incorreta do membro superior. Quanto à fisiopatologia, acredita-se que o desenvolvimento e manutenção desse quadro é decorrente de múltiplas mudanças ao longo te todo o sistema nervoso. A ação de inflamações neurogênicas basais dá origem aos sintomas da fase inicial (edema, vasodilatação e sudoreseexcessiva). A dosagem elevada de diversos mediadores séricos de inflamação corrobora essa teoria, sendo secretados tanto pelos vasos quanto pelas próprias fibras nervosas. Essa condição é responsável por gerar mudanças morfofuncionais nas fibras aferentes, que se tornam hiperexcitáveis (sensibilização periférica). Com essa alteração, o próprio corno dorsal da medula passa a responder mais intensamente aos estímulos aferentes (efeito Wind-up), levando assim à sensibilização central. Um exemplo do efeito desses processos de sensibilização é a extensão do déficit sensorial e hiperalgesia para áreas afastadas do ponto inicial de dor. A ação do SNAS, descrita anteriormente, ocorre a partir de um estado de denervação autonômica, que pode ou não ser compensado na evolução do quadro. Para se adaptar à redução do número de fibras, há um aumento na densidade de receptores α-adrenérgicos nos vasos, o que pode desencadear hiperexcitabilidade simpática, contribuindo para a manutenção da dor por meio de conexões entre esse sistema e fibras aferentes nociceptivas tipo C (ocorre tanto na periferia quanto na medula). Esse quadro apresenta, em teoria, três estágios, inflamatório (inicial), de regressão (supressão inflamatória e sensibilização) e de atrofia (comprometimento neuromuscular). O principal sintoma associado à síndrome é a dor em queimação e penetrante, porém é comum a ocorrência de alterações na pele (coloração pálida, avermelhada ou cianótica, com mudança Júlia Figueirêdo - DOR de temperatura) alodinia térmica, dor miofascial e sinais de hiperatividade simpática (hipertricose ou perda de cabelo, e crescimento exagerado das unhas). Extremidades afetadas em um paciente com SCDR O diagnóstico é essencialmente clínico, devendo ser observada a presença de alodinia/hiperalgesia, edema no local afetado, e serem descartadas outras comorbidades indutoras de dor. Essa síndrome pode se instalar entre 2 semanas a 3 meses após o AVE, nunca ultrapassando 5 meses do evento. O tratamento ainda não é consolidado, porém deve ter abordagem multidisciplinar de modo a estimular a recuperação funcional. Algoritmo para conduta em caso de síndrome dolorosa regional complexa Algumas particularidades são identificadas quanto ao tratamento da dor em pacientes pós-AVE, como a contraindicação de AINES, que podem sofrer interações com o ácido acetilsalicílico, comumente empregado com finalidade antiagregante plaquetária após AVE isquêmico, e de anticoagulantes orais, a exemplo da varfarina. Certas técnicas não farmacológicas, como a termoterapia ou impulsos elétricos para analgesia, devem ser prescritas com cautela em pacientes com déficit verbal ou sensitivo devido ao risco de queimaduras ou choques.
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