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Marina Ribeiro Portugal MARINA RIBEIRO PORTUGAL CASO 6: LOMBALGIA 1 1. Introdução As lombalgias são um dos principais motivos de consulta médica em todo o mundo. Seu tratamento é clínico, na imensa maioria dos casos. Trata-se de uma grande variedade de situações clínico-patológicas está relacionada com o desenvolvimento de lombalgia ou lombociatalgia. A grande maioria dos casos é benigna e auto-limitada. Porém, o clínico deve estar apto a reconhecer precocemente as situações mais graves, evitando assim sequelas ou perda de mobilidade. É preciso ressaltar que apesar do bom prognóstico da maioria dos casos, as doenças da coluna lombar constituem a causa mais comum de invalidez relacionada a problemas musculoesqueléticos. Por outro lado, há uma crescente pressão para que se faça um diagnóstico preciso e uma terapia eficiente, sem gastos desnecessários. Sendo assim, uma vez que a maioria das crises agudas de lombalgia evolui para a cura, independentemente do tratamento proposto, uma investigação mais detalhada deve se limitar aos casos em que a dor é persistente, progressiva ou quando existir suspeita de doenças mais graves. Dor crônica, de acordo com o MeSH (Medical Subject Headings), é uma sensação dolorosa com duração de alguns meses, podendo ser ou não associada a trauma ou doença e persistir mesmo após a lesão inicial ter cicatrizado. Dor lombar (DL) é um dos problemas de saúde mais comuns em adultos. É definida como dor e desconforto localizados abaixo do rebordo costal e acima da linha glútea superior, com ou sem dor referida no membro inferior, sendo crônica se persistir por mais de três meses. 2. Epidemiologia A dor lombar baixa (DLB) é a segunda doença mais frequente da humanidade, atrás apenas do resfriado comum. Sua prevalência nos países industrializados varia de 10 a 50%. Cerca de 80% da população já apresentou pelo menos um episódio de DLB, que constitui a principal causa de ausência no trabalho nestes países. Nos Estados Unidos, são realizadas mais de 4 milhões de consultas/ano em decorrência de problemas relacionados com a coluna lombar. O custo com o tratamento da DLB nos Estados Unidos supera a marca anual de 50 bilhões de dólares. Na verdade, a metade dos episódios agudos melhora em uma semana. Após oito semanas, cerca de 90% dos casos evoluem para a cura, apesar de uma alta taxa de recidiva. A DL é um problema que afeta 80% dos adultos em algum momento da vida, está entre as 10 primeiras causas de consultas a internistas e, em cada ano, de 5 a 10% dos trabalhadores se Marina Ribeiro Portugal MARINA RIBEIRO PORTUGAL CASO 6: LOMBALGIA 2 ausentam de suas atividades por mais de sete dias em razão dessa doença. Estudo realizado pelo grupo das doenças crônicas não-transmissíveis do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, revelou prevalência, no total da população de Salvador, de 14,7%, e constatou diferenças estatisticamente significantes entre os maiores de 60 anos (18,3%). 3. Fatores de risco Entre os fatores de risco para a cronicidade, fatores clínicos, psicológicos e ocupacionais têm um papel importante. Do ponto de vista ocupacional, trabalhos que envolvem levantamento de peso superior à capacidade física do operário, ou em posições especiais, favorecem o desenvolvimento de DLB. Quanto ao aspecto psicológico, a histeria, a neurose e quadros conversivos são causas frequentes de DLB, enquanto que a depressão é uma complicação frequente das lombalgias crônicas. Finalmente, fumo e obesidade também estão relacionados com maior risco para desenvolvimento de DLB. 4. Anamnese As lombalgias são situações multifatoriais. A história clínica tem um papel importante, porém aspectos psicoafetivos e socioprofissionais também. Além disso, a origem da lombalgia pode estar em diferentes órgãos e sistemas, muitas vezes não relacionados diretamente com a coluna lombar. Ficar atento nos seguintes aspectos: ❖ Raça, idade e sexo → as diferentes patologias da coluna incidem preferencialmente em diferentes grupos populacionais; ❖ Início da dor → quadro súbito e intenso sugere uma hérnia discal, enquanto que sintomatologia insidiosa sugere patologias degenerativas. A presença de fatores desencadeantes esportivos, profissionais e traumáticos pode levar ao diagnóstico correto; ❖ Localização da dor → difusa ou localizada em algum segmento específico da coluna; ❖ Irradiação da dor → com ou sem trajeto radicular específico. A dor irradiada abaixo do joelho geralmente é radicular. Dor irradiada apenas até o joelho pode estar relacionada com estruturas próprias da coluna (articulações posteriores, músculos e ligamentos); ❖ Ritmo da dor → a dor que piora ao repouso e melhora com o movimento sugere patologia inflamatória como as espondiloartropatias. A dor que piora aos movimentos e melhora pelo menos parcialmente ao repouso sugere patologia mecânico-degenerativa. A dor fixa, de intensidade crescente, sem fatores de melhora, sugere patologia infecciosa ou tumoral; ❖ Características da dor → a dor radicular costuma ser lancinante, acompanhada de parestesias. Já a dor psicogênica costuma ser descrita em termos de sofrimento ou punição e não segue um trajeto dermatomérico específico, a dor da lombalgia mecânica costuma ser descrita como uma dor “surda”, profunda e mal delimitada; ❖ Presença de febre e perda de peso: são sinais de alerta para a pesquisa de infecção e tumores; ❖ Apreciar o envolvimento psicoafetivo; ❖ Avaliação da situação socioprofissional com suas possíveis consequências no diagnóstico e tratamento; Marina Ribeiro Portugal MARINA RIBEIRO PORTUGAL CASO 6: LOMBALGIA 3 ❖ Avaliação dos antecedentes pessoais e familiares que possam orientar um diagnóstico etiológico. 5. Exame físico O exame inicia-se com o paciente em ortostase. Inspeção → A visão posterior permite identificar desvios no plano sagital, assimetria das cristas ilíacas, pregas glúteas e joelhos. *A visão lateral permite observar a presença de hiperlordose ou retificação da lordose. Atenção especial deve ser dada ao exame da pele, à presença de sinais inflamatórios, como edema e eritema, ao trofismo muscular e à presença de obesidade. Mobilização → A mobilização da coluna lombar inclui flexão anterior, extensão e flexão lateral. Na flexão anterior, deve-se observar um movimento suave de reversão da lordose lombar normal. A presença de movimentos anormais devido uma contratura muscular localizada deve ser anotada. Às vezes, o paciente mantém a lordose e flexiona os quadris. Em geral, a dor na flexão é considerada originária dos elementos anteriores, como o disco, enquanto que a dor à extensão se relaciona com os elementos posteriores, particularmente as articulações facetárias. Dor à extensão com melhora à flexão sugere também estreitamento do canal lombar. Na flexão lateral, também se deve observar uma curva harmoniosa, que pode estar interrompida nos casos de contratura muscular localizada. O exame da marcha permite observar atitudes viciosas, bem como alterações das demais estruturas do membro inferior. Alguns testes motores ajudam no diagnóstico de lesões radiculares. Sendo assim, a lesão da raiz S1 dificulta a marcha na ponta dos pés. Já a lesão da raiz L5 dificulta a marcha nos calcanhares. A lesão L5 também pode ser investigada pelo teste de Trendelenburg. Pede-se ao paciente ficar apoiado sobre apenas um pé. A queda da bacia para o lado oposto da perna afetada revela fraqueza dos abdutores da coxa. Palpação → Com o paciente em decúbito ventral, coloca-se um pequeno travesseiro sob o abdome para diminuir a lordose lombar e facilitar o exame. Palpa-se os planos musculares, as apófises espinhosas e os espaços discais à pesquisa de pontos dolorosos e alterações ósseas. Exame osteoarticular → Parte essencialdo exame, permite diferenciar problemas oriundos da coluna lombar daqueles provenientes de outras estruturas articulares. Especial atenção deve ser dada ao exame do quadril e das articulações sacroilíacas. A medida do comprimento dos membros permite identificar, ainda, uma diferença que poderia justificar uma sobrecarga mecânica. Exame neurológico → Parte obrigatória e extremamente importante do exame da coluna. O exame motor, da sensibilidade e dos reflexos permite estabelecer uma topografia radicular típica. As raízes acometidas com mais frequência são as raízes L4, L5 e S1, que merecem atenção especial. A força de flexão da coxa é papel da raiz L4, enquanto que a dorsiflexão do pé é função da L5. A função motora da S1 pode ser examinada pela marcha nas pontas dos pés. A sensibilidade deve ser examinada ao longo Marina Ribeiro Portugal MARINA RIBEIRO PORTUGAL CASO 6: LOMBALGIA 4 dos membros inferiores. Quando há suspeita de síndrome da cauda eqüina, deve-se investigar a sensibilidade da região perineal. Testes especiais: ❖ Sinal de Lasègue → Com o paciente em decúbito dorsal, eleva-se o membro, mantendo o joelho estendido. O teste é positivo quando houver dor entre 30 e 70 graus de extensão, indicando compressão radicular L5 ou S1. ❖ Teste do estiramento femoral → Com o paciente em decúbito ventral e o joelho fletido, a coxa é elevada acima da cama. A presença de dor na região anterior da coxa sugere compressão radicular L2 ou L3 e a dor na face medial da perna sugere envolvimento da raiz L4. ❖ Teste de Babinski → É essencial ainda a diferenciação de compressão radicular, que ocorre principalmente nas hérnias discais, e quadros de neuropatia periférica ou de compressões tronculares. O examinador deve também ficar atento à presença dos sinais da síndrome da cauda eqüina com Lasègue bilateral, hipoestesia em sela e hipotonia de esfíncteres. 6. Investigação diagnóstica *Casos em que exista a dúvida da presença de doença sistêmica, particularmente em idosos, a pesquisa da velocidade de hemossedimentação, a eletroforese de proteínas e a contagem hematológica estão indicadas. Outros exames laboratoriais são utilizados apenas em casos específicos. Marina Ribeiro Portugal MARINA RIBEIRO PORTUGAL CASO 6: LOMBALGIA 5 7. Síndromes clinicas Lombalgia mecânica comum → Este tipo de lombalgia caracteriza-se por dor lombar baixa, normalmente unilateral, às vezes central, irradiando-se para a região sacral e nádegas. Em geral, a dor ocorre após um esforço físico maior ou esforços repetidos em posições de estresse para a coluna. A investigação laboratorial e radiológica costuma ser normal. O ponto crítico para o clínico é diferenciar a lombalgia comum das lombalgias sintomáticas causadas por diversas patologias subjacentes. Muito embora não seja possível estabelecer com exatidão a estrutura anatômica responsável pela dor, a evolução é favorável na imensa maioria dos casos. Porém, não existe um único tipo de tratamento que seja efetivo para todas as formas de lombalgias mecânicas. Mesmo assim, 98 a 99% dos casos são tratados de forma conservadora. Espondilolistese → Espondilolistese é o deslizamento parcial ou total de uma vértebra sobre a outra. Espondilolise é a fratura do pars interarticularis. A espondilolistese pode ser classificada de uma maneira simplificada em congênita; adquirida; traumática (fraturas agudas ou fraturas de estresse); iatrogênica; patológica; degenerativa. A forma congênita pode estar associada com processos articulares displásicos ou outras alterações anatômicas que se tornam instáveis permitindo o deslizamento. A forma adquirida pode estar relacionada com uma fratura do pars interarticularis (espondilolise), que ocorre principalmente em crianças a partir dos 5 a 7 anos de idade. Esta forma de espondilolistese tem um forte fator hereditário. Por outro lado, está fratura pode ocorrer após um trauma grave. Fraturas de estresse do pars interarticularis são frequentes nos atletas jovens. A espondilolistese degenerativa resulta de uma instabilidade crônica de um segmento da coluna lombar. Esta forma é seis vezes mais frequentes nas mulheres e sua incidência aumenta após a quarta década de vida. A espondilolistese com ou sem espondilolise é uma observação radiológica comum em portadores de lombalgia com dor principalmente à extensão da coluna. Muitas vezes, porém, é observada em pacientes totalmente assintomáticos. O tratamento conservador é geralmente suficiente para alívio da dor. Casos graves, com dor intratável ou manifestações neurológicas podem ser submetidos a fusão vertebral. Osteoartrose e discopatia → As alterações degenerativas do disco e facetas são extremamente comuns na população. São alterações que surgem com o envelhecimento e, ainda hoje, se discute se devem ser consideradas patológicas ou fisiológicas. A presença de calcificações discais, porém, deve alertar o médico para a presença de uma patologia metabólica subjacente, particularmente a ocronose, a hemocromatose e a doença por depósito de pirofosfato de cálcio. A maioria dos portadores de osteoartrose radiológica é assintomática. Os pacientes com sintomas se comportam como os portadores de artrose Marina Ribeiro Portugal MARINA RIBEIRO PORTUGAL CASO 6: LOMBALGIA 6 de uma articulação periférica qualquer. A dor é mecânica, porém pode ser observado um certo grau de rigidez matinal. O tratamento é idêntico ao da artrose de uma maneira geral. Agentes analgésicos e anti-inflamatórios não-hormonais são, em geral, suficientes para o alívio sintomático da dor. Casos específicos se beneficiam de infiltrações facetárias, porém não existe ainda um consenso na literatura quanto a sua utilidade. Assim como nas demais causas de lombalgias mecânicas, a reabilitação e os exercícios físicos são extremamente importantes no tratamento evolutivo destes pacientes. Infecções da coluna → Diferentes agentes etiológicos relacionados com quadros clínicos diversos podem causar infecções na coluna lombar. A suspeita de infecção deve ser levantada sempre que houver dor persistente, presente no repouso e piorando aos movimentos, associada ou não à febre. Os quadros bacterianos costumam ser agudos. O exame físico revela uma diminuição da mobilidade, espasmo muscular e dor à percussão local. Febre é observada em apenas 50% dos casos. O principal agente da osteomielite vertebral é o Staphylococcus aureus. A infecção da vértebra ocorre por disseminação hematogênica de outro foco, geralmente geniturinário, cutâneo ou respiratório. O disco intervertebral costuma ser atingido secundariamente à infecção vertebral. Nos idosos ou imunossuprimidos, germes Gram-negativos também costumam ser encontrados. A radiografia pode revelar a presença de osteopenia localizada, porém as lesões radiológicas aparecem tardiamente. O diagnóstico precoce pode ser feito pelo mapeamento ósseo ou pela ressonância magnética. A velocidade de hemossedimentação está consistentemente alterada. O tratamento é sempre conservador no início. Consiste em repouso no leito e antibioticoterapia. A resposta terapêutica é monitorada pela melhora da dor, do espasmo muscular e pela diminuição da velocidade de hemossedimentação. A cirurgia está indicada apenas nos casos com comprometimento neurológico ou resistentes ao tratamento antibiótico. A discite infecciosa, por sua vez, é uma infecção de bom prognóstico quando ocorre na infância. No adulto, porém, a discite infecciosa costuma ser iatrogênica e grave. Esta forma de complicação pode ocorrer após qualquer procedimento que aborde o disco intervertebral. Geralmente, provoca dor intensa sem fatores de melhora, que piora com qualquer tentativa de mobilização. O diagnóstico deve ser confirmado pela RNM e o tratamento antibiótico deve ser guiado pelo agente infeccioso isolado.A tuberculose ainda é uma patologia frequente em países subdesenvolvidos. Ela afeta a coluna secundariamente a um foco primário, em geral pulmonar. O quadro clínico típico é de lombalgia associada a uma gibosidade, porém pode ser insidioso, levando meses ou anos para o diagnóstico. As principais estruturas acometidas são a região peridiscal, a região central do corpo vertebral e a região anterior da vértebra, frequentemente associadas a abcesso em psoas. O disco só costuma ser acometido tardiamente na evolução do processo. As alterações vertebrais podem levar a deformidades e, quando ocorre colapso da vértebra, pode se desenvolver paraplegia. O tratamento da fase ativa da doença é conservador, com quimioterapia antituberculosa. A má resposta terapêutica, a presença de abscessos ou a progressão de sintomas neurológicos indicam tratamento cirúrgico para debridamento. Na infância, recomenda-se a artrodese posterior para impedir a progressão da cifose. A brucelose, rara em nosso meio, é observada principalmente em trabalhadores que manipulam carne e derivados. Tumores da coluna → Os tumores da coluna são relativamente raros. Por este motivo, o diagnóstico de patologia tumoral requer sempre um alto grau de suspeita. A presença de dor persistente e progressiva na intensidade deve alertar o clínico para a possibilidade de patologia tumoral. A maioria dos pacientes com tumores da coluna tem dor lombar como Marina Ribeiro Portugal MARINA RIBEIRO PORTUGAL CASO 6: LOMBALGIA 7 sintoma inicial. Os tumores benignos da coluna geralmente produzem dor localizada, enquanto que as neoplasias malignas produzem dor mais difusa, às vezes associada à manifestações sistêmicas. De uma maneira geral, os tumores benignos envolvem o arco posterior da vértebra, enquanto que os tumores malignos envolvem inicialmente o corpo vertebral. O tumor benigno mais comum na coluna lombar é o hemangioma. Trata-se de uma lesão geralmente assintomática encontrada em cerca de 10% da população. O osteoma osteóide ocorre em adultos jovens. A dor piora tipicamente à noite e melhora com doses baixas de anti-inflamatórios não-hormonais. A presença de escoliose de início recente associada a espasmo muscular em um paciente jovem é extremamente sugestiva de osteoma osteóide. A radiologia tem aspecto característico de nidus radioluscente rodeado de uma área bem definida de osso esclerótico. O tratamento é cirúrgico com retirada do nidus e da área esclerótica ao redor. A retirada incompleta pode favorecer a recidiva. Raramente, o osteoma osteóide evolui para cura espontânea. Outros tumores benignos que podem afetar a coluna são o osteoblastoma, o osteocordoma, o tumor de células gigantes, o cisto ósseo aneurismático e o granuloma eosinofílico. As metástases são 25 vezes mais frequentes que os tumores primários na coluna. Neoplasias de mama, pulmão, próstata, rim, tireóide, bexiga e cólon são os principais responsáveis. A radiografia pode revelar lesões osteolíticas (tumores de rim e tireóide), osteoblásticas (tumores de cólon) ou mistas (tumores de mama, pulmão, próstata e bexiga). O mieloma múltiplo e sua forma localizada – o plasmocitoma– são os tumores malignos mais frequentes na coluna. Ocorre preferencialmente nos pacientes com mais de 50 anos de idade. A presença de lombalgia é o sintoma inicial em 35% dos casos, porém sintomas sistêmicos diversos, como púrpura, artralgias e hipercalcemia são também frequentes. A radiografia demonstra áreas de osteólise sem esclerose reativa, poupando os elementos posteriores. O plasmocitoma isolado, por sua vez, pode ter inúmeros aspectos radiológicos diferentes. Ao contrário da maioria das lesões de origem tumoral, a cintilografia é negativa nos casos de mieloma múltiplo. O tratamento é quimioterápico. A cirurgia está reservada para casos de compressão nervosa. Além do mieloma múltiplo, condrossarcoma, cordoma e linfoma são outros tumores malignos que podem, raramente, envolver a coluna. Finalmente, existem ainda os tumores intra-durais, que podem levar a quadros neurológicos variados como o neurofibroma, meningioma, ependimoma e astrocitoma. Doenças inflamatórias → Com frequência, as espondiloartropatias levam a quadros de lombalgia tipicamente inflamatória. Os pacientes relatam rigidez matinal importante com mais de uma hora de duração. Às vezes, dor noturna também está presente. Neste grupo de doenças, está a espondilite anquilosante, a síndrome de Reiter, a artrite psoriática e a artropatia enteropática (relacionada à doença de Chron e retocolite ulcerativa). Pacientes portadores de espondiloartropatias tipicamente apresentam elevação da velocidade de hemossedimentação associada à sacroileíte precoce. O quadro descrito associado às alterações sistêmicas e de articulações periféricas, típicas dessas doenças, auxiliam no seu diagnóstico e tratamento precoce. O diagnóstico de polimialgia reumática também deve ser lembrado nos pacientes idosos com aumento do VHS e lombalgia. Trata-se de pacientes com quadros poliálgicos afetando principalmente as cinturas pélvicas e escapulares. O aumento do VHS e a resposta a doses baixas de prednisona auxiliam o diagnóstico. Fraturas patológicas das vértebras → Várias doenças podem levar à desmineralização óssea vertebral. Como consequência, ocorrem fraturas espontâneas ou após trauma mínimo. A osteoporose é a principal causa, particularmente em mulheres na pós- Marina Ribeiro Portugal MARINA RIBEIRO PORTUGAL CASO 6: LOMBALGIA 8 menopausa. Outras doenças metabólicas, como a osteomalácia e o hiperparatireoidismo, bem como a doença de Paget, a sarcoidose e inúmeras doenças hematológicas podem ser responsáveis por quadros de fratura vertebral patológica. Muito embora essas fraturas possam ser diagnosticadas fortuitamente em exame radiológico de rotina, a maioria dos pacientes apresenta dor súbita e intensa, localizada no segmento afetado. A dor melhora com repouso e piora mesmo aos pequenos movimentos. Em geral, o quadro evolui com melhora progressiva após 2 a 3 meses. Ao exame físico, observa-se dor à palpação local com espasmo muscular reativo. A investigação laboratorial deve incluir a pesquisa do metabolismo do cálcio e vitamina D, fosfatase alcalina (muito aumentada na doença de Paget), estudo hematológico e outros. O exame radiológico auxilia no diagnóstico da osteoporose, ou revela as alterações típicas da doença de Paget. O tratamento inclui analgesia, repouso e tratamento específico da doença de base. Dor visceral referida → Diversas patologias viscerais podem causar dor referida na região lombossacra. A lombalgia é raramente o único sintoma destas patologias, porém a presença de dor com ritmo próprio que não melhora com o repouso deve levar à suspeita de dor referida. Fibromialgia → A fibromialgia é um quadro poliálgico, articular e muscular acompanhado de sono não reparador, cefaléia e fadiga persistentes. A lombalgia é uma queixa comum entre os pacientes fibromiálgicos. O diagnóstico é clínico, apoiado nos dados da história e a presença de dor em uma série de pontos preestabelecidos para o seu diagnóstico. A investigação laboratorial é normal e o tratamento inclui antidepressivos tricíclicos e exercícios. Hérnia discal → A hérnia discal é definida como o deslocamento do núcleo pulposo além dos limites do anel fibroso. O núcleo herniado pode permanecer sob o ligamento comum posterior, migrar em direção cefálica ou caudal, ou ainda romper o ligamento, quando é chamada de hérnia extraligamentar. Finalmente, a hérnia é dita exclusa quando ocorre uma solução de continuidade do núcleo. Mais de 90% das hérnias lombares ocorrem no quarto e no quinto espaço intervertebral lombar. Em cada espaço discal, dois níveis de raízes podem ser comprometidos. Por exemplo, hérnias póstero-laterais no espaço L4-L5 comprimem a raiz L5. Uma hérniade localização extremo-lateral no mesmo espaço irá comprimir a raiz L4. Raramente uma hérnia central volumosa pode comprimir vários nervos da cauda eqüina ou produzir uma sintomatologia bilateral em báscula. Quando o tratamento conservador falha e o paciente deseja uma solução cirúrgica, é necessário, inicialmente, reavaliar o quadro clínico para a persistência de sinais radiculares. Marina Ribeiro Portugal MARINA RIBEIRO PORTUGAL CASO 6: LOMBALGIA 9 *O sofrimento da raiz nervosa não é apenas uma consequência da compressão pelo material nuclear. Sabe-se que o edema e a congestão da raiz também têm um papel preponderante no desenvolvimento dos sintomas. Na verdade, a etiopatogenia da dor ciática é complexa. A existência de um conflito disco-radicular é um fator necessário, porém, não suficiente para o desenvolvimento da dor. A hérnia discal pode ser confirmada na RNM ou TC em até 30% de assintomáticos. Da mesma forma, após a cura medicamentosa da dor ciática, a imagem de hérnia em conflito com a raiz permanece inalterada na maioria dos casos. O papel da inflamação local como fator algogênico tem ficado cada vez mais claro. A maioria dos pacientes com quadros de hérnia discal relata vários episódios de lombalgia aguda que se iniciaram ao redor da segunda década de vida. Estes ataques são normalmente precipitados por levantamento de peso ou outra atividade física importante. A radiculalgia costuma aparecer cerca de 10 anos após os primeiros episódios de lombalgia. Portanto, a incidência de hérnias discais se dá principalmente na terceira ou quarta década de vida. Com frequência, os pacientes se queixam de dor intensa e aguda que piora em ortostase, longos períodos em posição sentada, aos movimentos e à tosse. A dor melhora parcialmente com o repouso. A topografia da dor permite situar a localização do conflito disco-radicular. Ao exame físico, observa-se uma atitude antálgica, com contratura paravertebral importante do lado da hérnia e mesmo diminuição da lordose lombar fisiológica. Os movimentos da coluna estão limitados. O sinal de Lasègue é positivo. O exame neurológico pode ser normal ou demonstrar alterações menores, principalmente sensitivas. Às vezes, um déficit no reflexo aquíleo ou uma paresia motora relacionada às raízes L5 ou S1 são observadas. O inquérito deve sempre procurar a presença de distúrbios esfinctereanos no sentido de investigar a presença da síndrome da cauda eqüina, que representa uma emergência cirúrgica. Cruralgia → O nervo crural é constituido pela união, na altura do músculo psoas, da terceira e quartas raízes lombares. Qualquer compressão deste nervo a nível radicular ou troncular leva ao quadro clínico típico, que se caracteriza por uma dor na face anterior da coxa. A dor pode ser reproduzida pela extensão da coxa sobre a bacia (sinal do crural). Nos casos de sofrimento da raiz L4, a dor irradia-se pela crista tibial e o reflexo rotuleano pode estar diminuído. Casos mais graves podem desenvolver uma amiotrofia do quadríceps. O exame físico e o interrogatório permitem diagnosticar as diversas causas de dor inguino- crural. Conforme foi ressaltado, inúmeras patologias extra-espinais podem se manifestar como uma pseudo-cruralgia. Uma vez estabelecido o diagnóstico de cruralgia, é necessário, ainda, determinar se a lesão é radicular ou troncular. A principal causa de cruralgia é a hérnia discal L3-L4 e, menos frequentemente, L2-L3. Porém, as causas tronculares, particularmente a compressão por tumores anexiais, não são tão raras como nos casos de ciatalgia. Sendo assim, toda mulher com diagnóstico de cruralgia deve passar por um exame ginecológico. Marina Ribeiro Portugal MARINA RIBEIRO PORTUGAL CASO 6: LOMBALGIA 10 ❖ Meralgia parestésica (ou neuralgia fêmoro-cutânea) → A neuralgia do nervo fêmoro- cutâneo está ligada ao sofrimento em algum ponto do seu trajeto, radicular ou troncular. O nervo é exclusivamente sensitivo. Seu comprometimento leva a um quadro clínico característico, de dor e parestesia na topografia do nervo. ❖ Neuralgia do obturador→ Produz um quadro sensitivo-motor. O quadro sensitivo situa- se na face interna da coxa e o quadro motor caracteriza-se por alterações nos músculos abdutores da coxa. ❖ Neuralgia gênito crural → Muito rara, puramente sensitiva. Quando de origem radicular, está relacionada com o disco L1-L2. Estenose do canal lombar → A estenose do canal lombar (ECL) pode ser definida como qualquer tipo de estreitamento do canal medular que resulta em compressão das raízes nervosas lombossacrais ou cauda eqüina A ECL pode ser classificada em congênita ou degenerativa. A forma degenerativa afeta pacientes acima dos 50 anos de idade e sua incidência aumenta de forma progressiva com o avançar da degeneração que acomete os elementos ósseos e tecidos moles da coluna lombar. Do ponto de vista anatômico, pode ainda ser classificada como estenose central, do recesso lateral ou do forame intervertebral. Não existe um critério diagnóstico estabelecido para a síndrome de ECL. A relação entre os achados radiológicos e clínicos ainda não está bem estabelecida. Cerca de 60% de uma população idosa assintomática tem RNM alterada. Da mesma forma, também foram descritos casos com quadro de compressão e sem evidência radiológica de estenose. Na verdade, a ECL é uma síndrome clínico-anatômica cujo diagnóstico deve se basear na associação de dados da história clínica, do exame físico e dos exames radiológicos. O tratamento conservador tem se tornado uma alternativa importante ao tratamento cirúrgico. *Normalmente, diversos elementos degenerativos contribuem para diminuir o diâmetro do canal. A hipertrofia do ligamento amarelo, as protrusões e as hérnias discais, as hipertrofias ósseas e das articulações facetárias e a espondilolistese contribuem em graus variados para a progressiva diminuição da luz do canal que pode se tornar clinicamente sintomática, sobretudo nos pacientes com canal constitucionalmente mais estreito. Apesar disso, a compressão direta pelo processo degenerativo não é suficiente para explicar o desenvolvimento dos sintomas. Na atualidade, acredita-se que fatores vasculares que prejudicam a nutrição dos componentes nervosos tenham um importante papel etiopatogênico nos sintomas da ECL. A maioria dos pacientes tem mais de 50 anos ao diagnóstico. Os principais sintomas da ECL são a dor lombar, a radiculalgia e a claudicação neurogênica. A claudicação neurogênica é o aspecto clínico mais característico da ECL, mas nem sempre está presente. A dor nos membros é mais frequente que a claudicação, podendo ser uni ou bilateral, mal localizada ou com padrão radicular típico. Muitas vezes Marina Ribeiro Portugal MARINA RIBEIRO PORTUGAL CASO 6: LOMBALGIA 11 o trajeto é variável, uma vez que o processo degenerativo pode afetar diferentes elementos nervosos da coluna. A claudicação neurogênica deve ser diferenciada da claudicação vascular. Outras patologias que devem ser consideradas no diagnóstico diferencial são neuropatias periféricas, neoplasias, doenças desmielinizantes e alterações degenerativas do quadril ou do joelho. 8. Fisiopatologia da dor Mecanismo periférico → O primeiro passo na sequência dos eventos que originam o fenômeno doloroso é a transformação dos estímulos agressivos em potenciais de ação que, das fibras nervosas periféricas, são transferidos para o sistema nervoso central. Os receptores específicos para a dor estão localizados nas terminações de fibras nervosas Aδ e C e, quando ativados, sofrem alterações na sua membrana, permitindo a deflagração de potenciais de ação. As terminações nervosas das fibras nociceptivas Aδ e C (nociceptores) são capazes de traduzir um estímulo agressivo de natureza térmica, química ou mecânica, em estímulo elétrico que serátransmitido até o sistema nervoso central e interpretado no córtex cerebral como dor. As fibras Aδ são mielinizadas e as fibras C não são mielinizadas e possuem a capacidade de transmitir estímulos dolorosos em diferentes velocidades. As fibras Aδ, em função da presença da bainha de mielina, transmitem o estímulo doloroso de forma rápida, enquanto as fibras C são responsáveis pela transmissão lenta da dor. Ambas são classificadas em subtipos Aδ1, Aδ2, C1 e C2 (Tabela I). O tipo de fibra nociceptiva parece estar envolvido com alterações periféricas distintas nas diversas síndromes dolorosas, e poderá, no futuro, contribuir para o tratamento mais eficaz da dor. Os nociceptores, então, são sensibilizados pela ação de substâncias químicas, denominadas algiogênicas, presentes no ambiente tissular: acetilcolina, bradicinina, histamina, Marina Ribeiro Portugal MARINA RIBEIRO PORTUGAL CASO 6: LOMBALGIA 12 serotonina, leucotrieno, substância P, fator de ativação plaquetário, radicais ácidos, íons potássio, prostaglandinas, tromboxana, interleucinas, fator de necrose tumoral (TNFα), fator de crescimento nervoso (NGF) e monofosfato cíclico de adenosina (AMPc) (Figura 1). Quando o estímulo provoca a lesão tecidual, há o desencadeamento de processo inflamatório seguido de reparação. As células lesadas liberam enzimas de seu interior, que no ambiente extracelular degradam ácidos graxos de cadeia longa e atuam sobre os cininogênios, dando origem à formação de cininas. As cininas são pequenos polipeptídeos da α2-calicreína presente no plasma ou nos líquidos orgânicos. A calicreína é uma enzima proteolítica que é ativada pela inflamação e outros efeitos químicos ou físicos sobre o sangue ou os tecidos. Ao ser ativada, a calicreína atua imediatamente sobre a α2-globulina, liberando a cinina denominada calidina, que é, assim, convertida em bradicinina por enzimas teciduais. Uma vez formada, a bradicinina provoca intensa dilatação arteriolar e aumento da permeabilidade capilar, contribuindo para a propagação da reação inflamatória. Também, a ação da fosfolipase A na membrana celular provoca a liberação de ácido araquidônico. Este é metabolizado por três sistemas enzimáticos principais: a cicloxigenase, de cuja atuação obtêm-se as prostaglandinas, os tromboxanos e as prostaciclinas; a lipoxigenase, que provoca a produção de leucotrienos e lipoxinas; e o citocromo P-450, que origina os denominados produtos da via da epoxige- nase. Essas substâncias, sobretudo as prostaglandinas E2 (PGE2), promovem diminuição do limiar de excitabilidade dos nociceptores. Do mesmo modo, células inflamatórias, macrófagos e leucócitos liberam citocinas que vão contribuir para a migração de novas células para o local da lesão. Há produção e liberação de interleucina-1 e 6, fator de necrose tumoral, selectina, fatores quimiotáticos, óxido nítrico e substâncias oxidantes. Novos receptores, então, são recrutados e passam a fazer parte do processo inflamatório. A substância P e a neurocinina A produzem vasodilatação e aumento da permeabilidade vascular, contribuindo também para a manutenção do processo inflamatório. A bradicinina, a prostaglandina E2, o fator de crescimento nervoso (NGF) e as interleucinas, contudo, parecem exercer papel fundamental na nocicepção periférica. A prostaglandina e a bradicinina causam alterações em receptores específicos (TRPV1) acoplados a canais iônicos ligante-dependente via ativação do AMPc, e das proteínas cinases A (PKA) e C (PKC), reduzindo o tempo pós-hiperpolarização da membrana neural, causando redução do limiar para disparo da fibra nervosa. As neurotrofinas aumentam a síntese, o transporte axonal anterógrado e quantidade de SP e CGRP nas fibras C tipo 1 e reduzem a atividade do ácido gama-aminobutírico (GABA), tanto nas terminações nervosas periféricas quanto nas centrais. Ao lado disso, provocam mudanças nos receptores vanilóides (VR1) de fibras Aδ acoplados a canais iônicos ligante- dependente e acionam as proteínas cinases ativadas por mitógenos (MAPK) que podem fosforilar o AMPc e iniciar a transcrição genética responsável por alterações fenotípicas, as quais contribuem para a amplificação da eficácia sináptica. A persistência da agressão causa modificações no sistema nervoso periférico e sensibilização de fibras nervosas, com consequente hiperalgesia e aumento dos níveis de AMPc e cálcio nos nociceptores. Esse fenômeno ocorre por ação dos mediadores inflamatórios e conseqüente atividade espontânea dos neurônios, aumento da resposta a estímulos supraliminares e diminuição do limiar de ativação dos nociceptores. Um tipo particular de nociceptor é referido como nociceptor silente, o qual é ativado após inflamação ou depois de ter ocorrido lesão tissular. As estimativas são de que 40% das fibras C e 30% das fibras Aδ contribuem com Marina Ribeiro Portugal MARINA RIBEIRO PORTUGAL CASO 6: LOMBALGIA 13 nociceptores silentes. Após a liberação dos produtos químicos da lesão, esses receptores previamente silenciosos são ativados por estímulos térmicos e mecânicos e desenvolvem descargas espontâneas, tornando-se capazes de responder de maneira intensa a estímulos nociceptivos e não-nociceptivos (Figura 2). *Em resumo, a agressão tecidual resulta na acumulação de metabólitos do ácido araquidônico. A produção de prostaglandinas e de leucotrienos leva a degranulação de mastócitos e a ativação direta de fibras nervosas, macrófagos e linfócitos. Há liberação de mediadores, como potássio, serotonina, substância P, histamina e cininas. Ocorrem alterações na permeabilidade vascular, no fluxo sanguíneo local e produção dos sinais clássicos inflamatórios de rubor, calor, dor, tumor e impotência funcional. Tem início o processo de sensibilização periférica com consequente exacerbação da resposta ao estímulo doloroso. Os neuromediadores periféricos levam a despolarização da membrana neural por tempo prolongado, com conseqüente aumento da condutividade dos canais de sódio e cálcio e redução do influxo de potássio e cloro para o meio intracelular. Os canais de sódio estão envolvidos na gênese da hiperexcitabilidade neuronal e podem estar e podem ser classificados em dois grandes grupos: os sensíveis à tetrodotoxina (TTXs), que estão presentes nas fibras Aδ, em todo sistema nervoso e no gânglio da raiz dorsal; e os resistentes à tetrodotoxina (TTXr), que são encontrados especialmente nas fibras C do gânglio da raiz dorsal. Apesar de a lesão periférica da fibra nervosa tipo C provocar redução no corno dorsal da medula espinhal de SP, de neurotrofinas (BDNF), de receptores (VR1 e P2X3), de canais de cálcio tipo N de alta voltagem, há regulação ascendente de canais TTXs tipo III e existe a translocação do corpo celular para o neuroma de canais de sódio (TTXr), facilitando o aumento da excitabilidade nervosa . O exposto acontece caso a fibra nervosa esteja intacta (inflamação), ou seja, existe um aumento de neuromediadores excitatórios no corno dorsal da medula espinhal e uma maior expressão de canais de sódio (TTXr), fato que facilita a hiperexcitabilidade neuronal e dificulta a resposta ao tratamento com anestésicos locais. Também pode haver em ambas as situações descritas, sobretudo na lesão de fibras C, aumento de SP e BDNF nas fibras Aβ (mecanorreceptores de baixo limiar), assim como brotamento dessas no local das conexões aferentes das fi-bras C (lâmina II), ampliando o campo receptivo do neurônio e facilitando a interpretação de estímulos mecânicos periféricos inócuos como agressivos. Isso explica, por exemplo, a alodinia mecânica que acontece na neuralgia pós-herpética. Outra possibilidade seria a do brotamento de axônio noradrenérgico simpático no gânglio da raiz dorsal, ao redor de neurônios de diâmetro largo (fibras Aδ), sugerindo a hipótese da ativação defibras aferentes sensitivas após a estimulação simpática. Além disso, pode existir alguma desproporção entre as vias excitatórias e as de supressão da dor, com redução da atividade inibitória da glicina, da GABA e dos opioides. Mecanismo central → A transmissão dos estímulos nocivos através da medula espinhal não é um processo passivo. Os circuitos intramedulares têm a capacidade de alterar o estímulo e a consequente resposta dolorosa. A interação entre esses circuitos medulares determinará as mensagens que atingirão o córtex cerebral. Estudos clínicos e experimentais têm demonstrado que estímulos nocivos provocam alterações no sistema nervoso central, modificando os mecanismos desencadeados pelos estímulos aferentes. A estimulação persistente de nociceptores provoca dor espontânea, redução do limiar de sensibilidade e hiperalgesia. Esta pode ser classificada como hiperalgesia primária e secundária. A hiperalgesia primária é conceituada como sendo o aumento da resposta ao Marina Ribeiro Portugal MARINA RIBEIRO PORTUGAL CASO 6: LOMBALGIA 14 estímulo doloroso no local da lesão, enquanto a hiperalgesia secundária é aquela que se estende para áreas adjacentes. A presença de todos esses elementos sugere que a sensibilização periférica não é o único fenômeno responsável por todas essas mudanças e que deve haver envolvimento do sistema nervoso central neste processo. A sensibilização central implica alterações dos impulsos periféricos, com adaptações positivas ou negativas. Ocorre redução do limiar ou aumento da resposta aos impulsos aferentes, descargas persistentes após estímulos repetidos e ampliação dos campos receptivos de neurônios do corno dorsal. Impulsos repetidos em fibras C amplificam sinais sensoriais em neurônios espinhais, enviando mensagens para o encéfalo. Lesões periféricas induzem plasticidade em estruturas supra- espinhais por meio de mecanismos que envolvem tipos específicos de receptores para o glutamato. Após a agressão tecidual há liberação de neurotransmissores, como substância P, somatotastina, peptídeo geneticamente relacionado com a calcitonina, neurocinina-A, glutamato e aspartato. Essas substâncias estão relacionadas com a ativação de potenciais pós-sinápticos excitatórios e dos receptores N-metil-D-aspartato (NMDA) e não-NMDA. Estímulos frequentes dos aferentes geram a somação dos potenciais de ação e consequente despolarização pós-sinápticas cumulativa. Depois da ativação de receptores NMDA pelo glutamato há remoção do íon magnésio do interior do receptor e o influxo de cálcio para a célula, do que resulta à amplificação e o prolongamento da resposta ao impulso doloroso. O aumento do cálcio tem como consequência a ativação da enzima óxido nítrico-sintetase e a estimulação da transcrição de protoncogenes. Estes são genes localizados no sistema nervoso central e estão envolvidos na formação de dinorfinas e encefalinas. As encefalinas têm ação antinociceptiva e estão envolvidas no processo de redução da neuroplasticidade e hiperalgesia. Entretanto, as dinorfinas têm um efeito complexo, já que possuem ação algogênica e antinociceptiva. Estudos recentes têm sugerido que a ativação do c-fos e cjun promove a transcrição de RNA mensageiro responsável pela síntese de proteínas fundamentais, as quais estão envolvidas na alteração da expressão fenotípica e, consequentemente, na perpetuação da hipersensibilidade neuronal (Figura 3). Marina Ribeiro Portugal MARINA RIBEIRO PORTUGAL CASO 6: LOMBALGIA 15 A sensibilização do corno dorsal da medula espinhal pode ser de diferentes modalidades: wind up, sensibilização sináptica clássica, potencialização de longo termo, fase tardia da potenciação de longo termo e facilitação de longo termo. A sensibilização sináptica clássica é causada por uma sequência sincronizada de estímulos periféricos nociceptivos repetidos por uma única estimulação nociceptiva assíncrona, aumentando a resposta de aferentes de fibras Aδ e C (potencialização homossináptica) e de aferentes de fibras Aβ não-estimulados (potenciação heterossináptica). Isto é consequência da liberação de aminoácidos excitatórios, peptídeos e de neurotrofinas no corno dorsal da medula espinhal. Os aminoácidos excitatórios são representados pelo glutamato e pelo aspartato e se ligam a receptores específicos do tipo ionotrópico ou metabotrópico. Os receptores ionotrópicos, ou receptores rápidos, são aqueles nos quais o local de ligação do neurotransmissor é parte integrante de um canal iônico, enquanto os receptores metabotrópicos ou receptores lentos são ligados à proteína G. Dentre os receptores para os aminoácidos excitatórios destacam-se o AMPA, o cainato e o N-metil-D-aspartato (NMDA), que são ionotrópicos, e o receptor Mrglu, que tem a sua ação mediada pela proteína G, sendo portanto um receptor metabotrópico. Os peptídeos, a substância P e o peptídeo geneticamente relacionado com a calcitonica (CGRP) ligamse as neurocininas do tipo NK-1 e NK-2, enquanto as neurotrofinas possuem como receptores as tirocinases tipo A e B (trkA, trkB). Após a liberação de aminoácidos excitatórios, peptídeos e neurotrofinas e sua interação com receptores específicos, há a ativação de segundos mensageiros, do tipo AMPc, PKA, PKC, fosfotidilinositol, fosfolipase C, fosfolipase A2. Isto promove a abertura de canais de cálcio, e, consequentemente, a produção de prostaglandinas e óxido nítrico. Estes migram do intracelular em direção à fenda sináptica e causam a liberação de glutamato, aspartato, substância P e CGRP, contribuindo para a ampliação do processo álgico. O wind up é o resultado da somação de potenciais sinápticos lentos após estimulação aferente repetida de baixa frequência, inferior a 5 Hz, e por tempo prolongado. Isto estimula a liberação de neurotransmissores excitatórios, glutamato e aspartato, no corno dorsal da medula espinhal e produz a despolarização relacionada com a remoção do bloqueio voltagem-dependente exercido pelo magnésio nos receptores NMDA. Ocorre, então, aumento da condutividade ao cálcio e a resposta à dor, a cada estímulo repetido e da mesma intensidade. A potencialização de longo termo, embora mais estudada no hipocampo e nas áreas corticais, pode ser decorrente de sequência de estímulos nociceptivos breves e de alta frequência. Isso provocaria a ativação de receptores AMPA e NK1 e de canais de cálcio, ocorrendo resposta pós-sináptica prolongada e excitatória, sobretudo em neurônios da lâmina I. Os mecanismos que contribuem para o aumento da eficácia da transmissão sináptica seriam decorrentes da fosforilação dos receptores de membrana e das alterações do tempo de abertura dos canais iônicos, ou da formação e do transporte de substâncias excitatórias do interior da célula para a fenda sináptica. Além disso, no corno dorsal da medula espinhal, as proteinocinases ativadas por mitógenos (MAPK) modulam a fosforilação dos receptores NMDA e AMPA, amplificando a resposta nociceptiva. A facilitação de longo termo envolve a ativação de fatores de transcrição e alterações na transcrição. Os fatores de transcrição modulam a relação entre o complexo receptorneuromediador e as alterações na expressão gênica. O estímulo nociceptivo aciona a mesma cascata de receptores e segundo mensageiros descritos para a sensibilização sináptica clássica; contudo, também provoca a expressão de genes de Marina Ribeiro Portugal MARINA RIBEIRO PORTUGAL CASO 6: LOMBALGIA 16 formação imediata c-fos (B,C,D), c-jun, de enzimas COX-2 e de genes de resposta lenta que codificam a pródinorfina, o receptor NK1 e a trkB no corno dorsal da medula espinhal. Ocorre regulação ascendente das vias para síntese de citocinas, quimiocinas e moléculas de adesão. Assim, há mudança fenotípica no gânglio da raiz dorsal. Respostas segmentarese supra-segmentares → As fibras nociceptivas cruzam a linha média no nível do corno dorsal da medula espinhal e ascendem pelos tratos espinotalâmicos, espinorreticular, espinomesencefálico, coluna dorsal pós-sináptica e sistema espinopontoamigdaliano. Algumas dessas fibras terminam no núcleo talâmico ventroposteromedial (VPM) e depois ascendem para o córtex cerebral somestésico (S1 e S2), córtex insular e cingular anterior. Outros neurônios projetam axônios para o hipotálamo, formação reticular, substância cinzenta periaquedutal, núcleo medial e intratalâmico, e estruturas encefálicas anteriores que são responsáveis pelas respostas neuroendócrinas e emocionais a dor. A ativação de fibras nociceptivas periféricas provoca migração retrógrada de fator de crescimento nervoso (NGF) para a medula espinhal e induz resposta segmentar reflexa, com transporte anterógrado de substância P para a periferia, ocasionando vasodilatação, aumento da permeabilidade vascular, atração de células do sistema imune para o local da lesão e degranulação de mastócitos com liberação de diversos neuromediadores. Desse modo, a substância P ajuda na manutenção e na expansão do processo inflamatório para o campo receptivo de fibras nervosas adjacentes à área lesada, constituindo a hiperalgesia secundária. Por outro lado, as fibras adrenérgicas, além de contribuírem com o processo supracitado, aumentam a sensibilidade de fibras nociceptivas à ação de bradicinina. Potencializam esses efeitos, o vasoespasmo e o espasmo muscular, reflexos que proporcionam liberação de radicais ácidos e, conseqüentemente, a redução do limiar “para disparos” da fibra nociceptiva. Do ponto de vista da resposta supra-segmentar, a pessoa com dor crônica parece apresentar possível inabilidade de aumentar a secreção de hormônios do eixo hipotálamohipofisário e adrenal ou amplificando a resposta simpática ao lidar com o estresse físico e emocional. Isso repercute nos níveis de secreção do cortisol, da adrenalina, da noradrenalina, do hormônio do crescimento (GH), dos tireoidianos e dos gonadais, tornando o sistema de defesa hipoativo. Esse modelo tenta explicar a fibromialgia ou a dor miofascial; nessas doenças, é possível que aconteça aumento da secreção hipotalâmica de CRH com regulação descendente dos receptores na hipófise, níveis elevados de ACTH e baixos de cortisol, e resistência periférica a ação do cortisol. O eixo hipotálamo-hipofisário parece interagir, então, com o processo doloroso em vários níveis ou estágios. A ausência de glicocorticóide pode: 1) diminuir a conversão do glutamato, neurotransmissor excitatório, para glutamina, aumentando a neurotoxicidade do glutamato no sistema nervoso central; 2) aumentar a produção de fator de crescimento nervoso (NGF) e da substância P; e 3) aumento da produção de citocinas e, conseqüentemente, de NGF. A lesão do tecido e do neurônio resulta em sensibilização de nociceptores e facilitação da condução nervosa periférica e central. Marina Ribeiro Portugal MARINA RIBEIRO PORTUGAL CASO 6: LOMBALGIA 17 Referências bibliográficas Livro de Clínica Médica da USP volume 5 Brazil, A. V., Ximenes, A. C., Radu, A. S., Fernades, A. R., Appel, C., Maçaneiro, C. H., ... & Landin, E. (2004). Diagnóstico e tratamento das lombalgias e lombociatalgias. Revista brasileira de reumatologia, 44(6), 419-425. DIRETRIZES, P. (2001). Diagnóstico e Tratamento das Lombalgias e Lombociatalgias. Associação Médica Brasileira e Conselho Federal de Medicina, São Paulo. Almeida, D. 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