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Júlia Figueirêdo - DOR PROBLEMA 1 – ABERTURA: FISIOPATOLOGIA E EPIDEMIOLOGIA DA DOR: ASPECTOS FISIOPATOLÓGICOS DA DOR: A dor resultante de lesões ou da degeneração de tecidos é percebida por meio dos já citados nociceptores, que são terminações nervosas livres distribuídos principalmente pela pele, em paredes de vasos e nas articulações, com concentração menor em áreas mais profundas. Os estímulos que promovem tais reações podem ser classificados como mecânicos, térmicos e químicos, sendo que as manifestações rápidas são fruto principalmente dos dois primeiros tipos, ao passo que a dor lenta pode ser causada pelas três origens. Ativadores térmicos e mecânicos são autoexplicativos, porém, dentre os principais agentes responsáveis pela agressividade química aos tecidos estão a serotonina, a histamina, acetilcolina, ácidos, bradicinina, íons K+ e enzimas proteolíticas. As prostaglandinas e a substância P podem agravar o quadro doloroso pela hiperssensibilização dos receptores, mas não causam sua ativação direta. Ao contrário das demais fibras nervosas, os nociceptores sofrem poucas adaptações frente à ativação repetida, sendo inclusive possível observar aumento da sensibilização destes em casos de dor crônica, processo denominado hiperalgesia. Essa “resistência” permite que o organismo continue a identificar a origem do incômodo enquanto ele persistir. O processamento dos estímulos captados pelos nociceptores percorrem duas vias distintas, uma para cada tipo de dor. Nas vias periféricas são encontradas fibras do tipo Aσ, que são pequenas e mielinizadas, transmitindo sinais entre 6 e 30 m/s, estando, portanto, associadas à dor aguda, e fibras tipo C, desmielinizadas e com menor velocidade de condução (0,5 a 2 m/s), atuantes principalmente nos processos dolorosos crônicos. Existem também fibras Aβ, normalmente associadas à percepção tátil, mas que podem adquirir a capacidade de reagir a estímulos dolorosos em contextos patológicos. Mesmo que exista uma certa preferência entre os nociceptores e a forma de dor gerada, ao se deparar com um estímulo danoso, o organismo recebe informações de ambas as fibras. Inicialmente, a resposta rápida alerta o indivíduo, permitindo que ele se afaste do agente lesivo, e, cerca de 1 s depois, a dor lenta surge e ascende em intensidade, provocando a necessidade de eliminar ou controlar a origem da irritação. Independentemente do nervo e da fibra ativados, o sinal doloroso irá penetrar na medula espinhal por meio de interneurônios nos cornos dorsais, região na qual novamente há uma separação no encaminhamento do estímulo ao encéfalo: Tracto neoespinotalâmico: é empregado no processamento da dor rápida de origem mecânica e térmica. As fibras Aσ, ao terminarem na lâmina marginal (I) dos cornos dorsais, ativam neurônios de segunda ordem do trato neoespinotalâmico, que se cruzam pela comissura anterior (processamento contralateral) e ascendem pelas colunas anterolaterais. Júlia Figueirêdo - DOR Associação entre as lâminas dos cornos dorsais, sua função sensorial e a fibra a ela aferente Ao chegar ao encéfalo, a maior parte dessas fibras se endereça ao tálamo, na região do complexo ventrobasal, mesma região que processa estímulos táteis. Nesse estágio, os impulsos são dirigidos para demais áreas basais, como o córtex somatossensorial. A dor rápida é normalmente bem- localizada, com as fibras do trato neoespinotalâmico sendo responsáveis por encaminhar aspectos discriminatórios do estímulo, como localização, intensidade e duração. No entanto, essa precisão diminui quando não há a ativação de sensores táteis. O glutamato é o principal neurotransmissor associado à ação das fibras Aσ, o que justifica a capacidade de condução acelerada de suas informações. Tracto paleoespinotalâmico: nessa via, as fibras, majoritariamente do tipo C (dor lenta), terminam nas lâminas II e III dos cornos dorsais (substância gelatinosa), onde fazem conexões com diversos interneurônios curtos que conduzem os impulsos até a lâmina V. Nesse ponto, os axônios projetados podem se unir àqueles que transmitem informações rápidas, também cruzando pela comissura anterior e ascendendo pela via anterolateral. O glutamato também é liberado nessa forma de sinalização, porém sua ação é bastante curta, o que faz com que outro neurotransmissor, a substância P, seja mais atuante para a dor lenta. A concentração desse composto se eleva após segundos ou minutos do estímulo inicial, justificando assim a existência da “dor dupla”. A via paleoespinotalâmica termina de forma pouco coesa no tronco cerebral, com apenas ¼ de suas fibras se dirigindo ao tálamo. Os três sítios mais comuns para o término das fibras são os núcleos reticulares na ponte, bulbo e no mesencéfalo, a área tectal do mesencéfalo, e a área cinzenta periaquedutal (ao redor do aqueduto de Sylvius). Quando atingem o tálamo, os núcleos intralaminar e ventrolateral são preferidos. o Os destinos da via de processamento da dor lenta são responsáveis pelos distúrbios do sono que afetam pacientes crônicos, uma vez que essas áreas são partes fundamentais dos sistemas de alerta do organismo. Esse tracto é responsável por modular as respostas autônomas de sofrimento em relação à dor, porém algumas fibras nervosas podem chegar até o hipotálamo, mediando assim respostas prazerosas a tais estímulos. Ao contrário da dor rápida, a localização de sua forma crônica é bastante difícil, Júlia Figueirêdo - DOR se atendo a uma parte ampla do corpo ao invés de um único ponto. Isso ocorre devido ao grande número de sinapses presentes na via paleoespinotalâmica. A percepção da intensidade da dor sofre modulação tanto de forma periférica quanto central, envolvendo a liberação de agentes excitatórios ou inibitórios sobre as vias de transmissão. Neurotransmissores inibidores ou excitatórios na modulação da dor Substâncias causadoras de dor e seus impactos Dentre os moduladores periféricos estão a hiperalgesia primária, mediada pela sensibilização das fibras por meio da liberação de agentes químicos nocivos supracitados, como histamina e bradicinina. O propósito dessa liberação é a produção de ácido araquidônico, que será metabolizado por cicloxigenases em prostaciclina e prostaglandina E2, capazes de ativar as terminações nervosas e potencializar os efeitos de mediadores inflamatórios, ou por lipoxigenases, que darão origem a leucotrienos, cujo papel ainda é desconhecido. A hiperalgesia secundária, também chamada de inflamação neurogênica, aumenta a sensibilidade das fibras após a lesão inicial, sendo evidenciada pela “tripla resposta de Lewis”, causadora de vermelhidão, edema e maior fragilidade do tecido afetado. Todo esse processo é deflagrado pela secreção de substância P, que estimula a secreção de histamina e serotonina, além de agir sobre os vasos sanguíneos e incentivar a cascata de inflamação. Já na modulação central da dor, três mecanismos são associados primariamente à maior sensibilização medular: Wind-up, causado por uma plasticidade temporária que torna os neurônios mais propensos à despolarização, mesmo na ausência de estímulos externos (ativação de receptores NDMA por glutamato), expansão do espectro dos receptores (WDR - uma fibra tipo C amplia sua área de influência, fazendo com que fibras irresponsivas passem a reagir a estímulos), e hiperexcitabilidade a espasmos. Os principais neurotransmissores envolvidos no processo de sensibilização central são a Júlia Figueirêdo - DOR substância P, o peptídeo intestinal vasoativo, a colecistocinina (CCK), a angiotensina, a galanina, e aminoácidos excitatórios (L-glutamato e L-aspartato).Ao serem secretadas, essas substâncias aumentam a sensibilidade da membrana ao se ligar com receptores acoplados à proteína G. A inibição central de estímulos dolorosos, por sua vez, pode ocorrer por meio de ações segmentares ou por vias descendentes de modulação. Na primeira modalidade, fibras nociceptivas isoladas da área acometida por lesão são ativadas, inibindo a ação de receptores WDR, usando o neurotransmissor GABA e seu receptor GABAB, além da glicina. Na segunda forma de controle central da dor, por meio de vias eferentes, fibras nervosas oriundas da área cinza periaquedutal, do núcleo da rafe e da formação reticular emitem axônios que agem de forma pré- sináptica sobre as fibras Aσ e C, e pós- sináptica nos interneurônios dorsais. Os receptores serotoninérgicos e α- adrenérgicos são particularmente ativos nesse processo. Há também a ação do sistema opioide endógeno, cuja “sede” é o núcleo magno da rafe, secretando múltiplas encefalinas e endorfina. Esses agentes causam a hiperpolarização pré-sináptica de fibras nociceptivas, impedindo assim a liberação de substância P. TRANSIÇÃO ENTRE DOR AGUDA E DOR CRÔNICA: A dor aguda normalmente cessa com a recuperação do tecido lesado e a retomada da homeostase, porém algumas situações incentivam a manutenção de estímulos nociceptivos, modificando todos os níveis de processamento da dor. No SNP, a repetição de sinais lesivos promove a manutenção da cascata inflamatória, que por sua vez causa maior sensibilização de fibras nociceptivas, aumento na produção de substância P, e fosforilação de proteínas envolvidas na produção de ácido araquidônico. Já na medula espinhal, as mudanças são ainda mais profundas, com a alteração do mRNA responsável por canais iônicos e receptores, tornando-os hiperexcitáveis. Os receptores NDMA, inativos na dor aguda graças a um tampão de Mg, são estimulados por meio da despolarização de neurônios no corno dorsal, que aumenta o influxo de íons Ca+ e rompem o bloqueio citado, permitindo que o glutamato provoque o efeito Wind-up. Nessa situação, neurônios Aβ começam a ser recrutados por meio do fenômeno WDR, causando alodinia (resposta dolorosa a estímulos inócuos). Com todos esses impactos, aumenta a secreção de substâncias inflamatórias, o que ativa células da glia, mantendo o estado constante de atividade imunológica. Mecanismo de surgimento da dor crônica a partir de um processo agudo, com destaque para o papel da cicloxigenase-2 e das prostaglandinas. EPIDEMIOLOGIA DA DOR CRÔNICA: PRINCIPAIS CAUSADORES DE DOR CRÔNICA: A dor crônica, seja ela de caráter nociceptivo, neuropático ou misto, pode ser causada por uma ampla variedade de lesões e doenças, a saber: Júlia Figueirêdo - DOR Síndromes de aprisionamento: são causadas pela compressão de nervos motores e/ou sensitivos por passagens anatômicas estreitas. A susceptibilidade individual a esse desfecho pode aumentar por meio de fatores genéticos ou por traumas repetidos. As fibras aprisionadas podem causar perda de sensibilidade ou de força, além de dor no segmento distal à área afetada. Um exemplo bastante comum é a compressão do nervo ciático, que causa dor intensa nas nádegas e pernas; Tabela com as principais neuropatias decorrentes de aprisionamento e os locais onde a dor é referida Dor miofascial: essa modalidade de dor é marcada por incômodo muscular, espasmos, rigidez e diminuição local da força. Alguns pontos desses tecidos apresentam uma maciez evidente, formando uma espécie de “nó”. A deflagração desse quadro ocorre por meio de trauma intenso ou de pequenas lesões repetitivas; Fibromialgia; Dor lombar: a dor nessa região apresenta um grande número de etiologias, podendo abranger desde a degeneração de discos intervertebrais até processos patológicos em vísceras abdominais. A força muscular da região posterior e lateral da perna pode ser afetada, bem como a capacidade de deambulação. Por seus impactos debilitantes, essa é uma das principais causas de afastamento das atividades ocupacionais; Dor neuropática: pode ser causada por sequelas de AVC, neuropatia diabética ou pela síndrome do membro fantasma. A dor é espasmódica e lancinante, muitas vezes apresentando sensação de queimação; Herpes-Zóster: a infecção pelo vírus Varicella-Zoster pode reaparecer após décadas da resolução de sua manifestação inicial, uma vez que o patógeno se aloja nas raízes dos gânglios dorsais. Os pacientes afetados de forma mais duradoura são aqueles maiores de 50 anos, que podem continuar a sentir incômodo mesmo após o desaparecimento da manifestação cutânea da doença. Cefaleia: quando isolada, normalmente não representa um indicativo de uma doença complexa, porém, como existem múltiplas etiologias e variações na manifestação dos sintomas, é necessário investiga-la. Pode abranger quadros oftalmológicos, neurológicos, vasculares, odontológicos ou até mesmo infecções sistêmicas; Dor abdominal; Dor associada ao câncer: neoplasias podem provocar dor por meio de diversos mecanismos, seja pelo próprio tumor, por metástases, complicações desses processos ou por sequelas terapêuticas. A DOR CRÔNICA NO BRASIL: Pesquisas que avaliem a prevalência da dor crônica na população brasileira ainda são escassas, no entanto é possível observar que esse é um fenômeno comum no país, Júlia Figueirêdo - DOR afetando cerca de 30% de seus habitantes, e com distribuição significativa em todos os estados, principalmente dentre indivíduos com 21 a 76 anos. Os locais mais acometidos por esse quadro são a região lombar, os joelhos, mãos, ombros e a cabeça. IMPACTOS BIOPSICOSSOCIAIS DA DOR: A convivência de um indivíduo com a dor por longos períodos de tempo impacta gravemente em sua qualidade de vida, não só graças às limitações de movimentação da área afetada e aos prejuízos ocupacionais oriundos dessa condição, mas também devido aos efeitos negativos no humor, no sono e no apetite. O surgimento de distúrbios como depressão e ansiedade é comum, havendo grave comprometimento das relações interpessoais do paciente. Dessa forma, o sofrimento de um portador de dor crônica não é somente físico, mas sim psíquico, uma vez que se torna necessário conviver com incapacidades e perda da independência pessoal, e sua experiência pode não ser validada pela comunidade que o circunda. Para direcionar a atenção da área da saúde para o manejo adequado da dor e a recuperação da qualidade de vida, essa sensação tem sido considerada, pela American Pain Society, como o 5º sinal vital, sendo assim necessário agir ativamente para sanar a origem desse incômodo. A finalidade dessa classificação é reconhecer e tratar a dor não aliviada previamente, com acompanhamento constante e eficiente por parte da equipe de saúde. Nesse contexto, a avaliação deve levar em consideração os classificadores da dor e a presença dos sinais de agravo supracitados, contando com a participação do paciente e de sua rede de suporte. No manejo de indivíduos com dor crônica, é necessário identificar a presença de sinais psicológicos de estresse e comportamentos nocivos, como a “catastrofização”, crença pessoal que identifica problemas ínfimos como sendo grandes calamidades, afetando a experiência pessoal de eventos, atividades e memórias. Outros exemplos de características de alerta são a rendição à dor, situação na qual o paciente apresenta capacidade de controlar ou lidar com a dor, e o ciclo de medo e repulsa, na qual o portador do quadro álgico passa a evitar a realização de quaisquer atividades minimamente associadas à dor, aumentando sua dependência. Representação gráfica do ciclo de medo e repulsa, evidenciandoa importância do autocontrole e do confronto para o rompimento da cadeia
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