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Zumé Boletim Eletrônico do Núcleo de Pesquisa e Extensão em História, Filosofia e Patrimônio (NATIMA), Juazeiro do Norte, vol. 1, nº 3, 2019. ISSN 2675-0201 ~ 60 ~ O RASGAR DOS CORPOS1 ASSIS DANIEL GOMES Doutorando em História pela Universidade Federal do Ceará A arte de punir deve, portanto, repousar sobre toda uma tecnologia da representação. A empresa só pode ser bem-sucedida se estiver inscrita numa mecânica natural.2 Pensar o corpo é perceber a contingência e as marcas do tempo em sua expressividade física e simbólica. Esses traços não representam uma perda da fortaleza e juventude somática, mas 1 Uma versão ampliada desse artigo está publicada no seguinte livro: GOMES, Assis Daniel. Os corpos dilacerados: certos cheiros do Cariri cearense. São Paulo: Editora PerSe, 2017. 2FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Rio de Janeiro: VOZES, 2009, p.100. signos de nossa subjetividade, dos quadros e brechas que a constituem. Para Porter (1992), quando nos debruçamos em analisar a história do corpo devemos perceber as várias percepções que o fabricam, ver as suas linhas naturais e culturais, seus fios de ligação e transmutação. Portanto, “evidentemente devemos enxergar o corpo como ele tem sido vivenciado e expresso no interior dos sistemas culturais particulares, tanto privados como públicos, por eles mesmos alterados através dos tempos”3. I A arte de disciplinar os corpos perpassa um sistema de punição em que a violência em sua diversidade move reações em prol de mantê-los em repouso e encarcerar os seus traços transgressores. O que, então, entendemos por transgressão? A 3 PORTER, R. História do Corpo. In: BURKE, P. (org). A escrita da história. São Paulo: UNESP, 1992, p.295. Zumé Boletim Eletrônico do Núcleo de Pesquisa e Extensão em História, Filosofia e Patrimônio (NATIMA), Juazeiro do Norte, vol. 1, nº 3, 2019. ISSN 2675-0201 ~ 61 ~ transgressão, para Nietzsche, é um ato de violação do posto como certo, mas essa posição não se dá em uma atitude de crítica aleatória. Essa se alicerça em um desejo de criação e invenção que parte de sua dessimetria com o defendido como certo a fim de produzir o novo e o diferente. Olhá-la, dessa forma, nos possibilita descontruir nossa moral, criticá-la interna e exteriormente, bem como nos torna senhores de nossos desejos e afetos. Isso não significa que nos esqueceremos do pertencimento a uma espécie animal, biologicamente falando, mas que temos uma subjetividade singular que se move pela razão e desrazão. Não somos nem um ou outro, mas ficamos nas fronteiras dos dois, às vezes avançamos mais para um lado do que para o outro, mas temos a capacidade de se refazer constantemente, mesmo com as imposições exteriores. Concordamos com Castoriadis (1990), que a sociedade exerce um poder sobre os indivíduos e que esse infrapoder4 advém de uma história imemorial. Consoante Berten, essa não origem de tal poder seria a “razão pela qual a instituição da sociedade exerce um poder radical, que ninguém pode colocar em questão. A sociedade, tal como ela é, é o resultado de uma instituição (no sentido efetivo do termo) de um imaginário instituinte”5. Contudo, não sabermos de sua origem não a torna determinante. A sua desnaturalização se faz necessária, sua exposição, enquanto uma produção humana, é importante para a sua transgressão no sentido aqui defendido. Levamos em consideração que a sua existência não é ser passiva a ela, mas produzir linhas de fuga que possibilitem destrui-la em suas bordas. Tendo em vista que essa sua parte é mais frágil que o centro, possuidor de um suposto miolo duro. Esse olhar para as bordas6 é verificar os transgressores colocados em seus 4 CASTORIADIS. A Instituição imaginária da Sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. 5 BERTEN, 2004, p.58. 6 DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. Campinas: Papirus, 2000. Zumé Boletim Eletrônico do Núcleo de Pesquisa e Extensão em História, Filosofia e Patrimônio (NATIMA), Juazeiro do Norte, vol. 1, nº 3, 2019. ISSN 2675-0201 ~ 62 ~ domínios, sem direitos e espaços de expor as suas escolhas e subjetividades: os infratores de uma moral castradora, disciplinar e controladora; que, por sua vez, são usados em certos discursos7 oficiais como elementos afirmadores da manutenção de uma sociedade machista, intolerante e homofôbica. Levá-las em consideração é entender que não estamos sozinhos no mundo, fomos forjados por contratos sociais e relações de poder8 que desfazem, constroem e destroem suas bases de sustentação. Esse contrato não se faz apenas pelo viés jurídico e político, mas nas micro-práticas cotidianas que 7 Para Veyne, “o discurso comanda, reprime, persuade, organiza; ele é “o ponto de contato, de atrito, eventualmente de conflito” entre as regras e os indivíduos” (VEYNE, P. Foucault, seu pensamento e sua obra. São Paulo: Civilização Brasileira, 2011, p.169). 8 Conforme Veyne, “em parte alguma podemos escapar às relações de poder: em compensação, sempre podemos, e em toda parte, modificá-las; pois o poder é uma relação bilateral; ele faz par com a obediência, que somos livres (sim, livres) para conceber com mais ou menos resistência. Contudo, bem entendido, essa liberdade não flutua no vazio e não pode querer qualquer coisa em qualquer época; a liberdade pode ultrapassar o dispositivo do momento presente, mas é esse dispositivo mental e social que ela ultrapassa; não se pode exigir do cristianismo antigo que ele tivesse pensado em abolir a escravidão” (2011, p.168). reforçam uma tradição moral e a transforma. A sua transgressão imposta e intencionalmente aceita, ou não, visa um fim e não meios. Representava, para Nietzsche (2008), uma das formas mais sutis de subjugação dos diferentes. Conforme o referido autor, “interpretou-se a origem de uma ação no sentido mais preciso, como derivando de uma intenção. Concordava-se em crer que o valor de uma ação residia no valor de sua intenção. A intenção seria toda a origem e pré-história de uma ação. Partindo deste pressuposto elogiou-se, censurou-se, julgou-se e filosofou- se moralmente quase até os nossos dias”.9 Construir uma moral absoluta é dominar os corpos que a incorpora e projeta. Essa ação não se dá apenas por um processo de alienação10, mas também pelas cargas culturais que constituem a subjetividade desses sujeitos e a sua escolha em assumi-la e protegê-la. 9 NIETZSCHE, F.W. Para além do bem e do mal. São Paulo: Abril Cultural, 2008, p.62. 10 MARX, K. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1989. Zumé Boletim Eletrônico do Núcleo de Pesquisa e Extensão em História, Filosofia e Patrimônio (NATIMA), Juazeiro do Norte, vol. 1, nº 3, 2019. ISSN 2675-0201 ~ 63 ~ Seria ingênuo afirmar que a educação formal liberta os sujeitos de atitudes intolerantes e do desejo de dominar o outro. Pelo contrário, pode servir como suporte no Ocidente, por exemplo, para construir barreiras, reafirmar artimanhas e dispositivos de dominação dos corpos e das subjetividades. Pois, transmite valores, seja de forma clara ou velada, promovendo certas transformações quando os sujeitos se colocam abertos para se nutrir dela em uma posição de transvalorizá-la, como em um movimento introspectivo reflete sobre os afetos que o marcaram. É essa escolha de entrar em constante crise que constitui a mudança. O que significaria tal afirmativa? II A crise é um estado, ou seja, move-se, transforma-se, torna-se outras dentro dela mesma, não é homogênea e única, mas plural e contingente. Falaríamos,então, de crises subjetivas, econômicas, sociais, morais etc. Para o filósofo Teixeira, “a crise é um tempo de provação e de provocação. Na crise, o homem é provocado a construir e a demolir. A provação é um ingrediente da condição humana”11. Essa demolição se dá internamente e externamente, por isso, defende-se a sua existência e sua permanência no, para e pelo contingente. A sua duração se exerce pelo confronto com a moral da sociedade que está engajada. Esse infrapoder permanece em seu vigor e as mudanças ocorrem lentamente em sua constituição. Dessa forma, compuseram espaços de transgressão dentro de um macro que procura sustentar uma postura homogênea desses valores, colocando o seu contrário como patológico, pecado, incivilizado, dentre outros. Essa crise transforma-se por dentro, move-se pelos conflitos externos, demuda a subjetividade de quem passa por ela. Essa incorporação é singular, as estratégias de sobrevivência são múltiplas, por exemplo, até uma negação do corpo e dos desejos seria uma maneira para conseguir tal finalidade. Essa 11 TEIXEIRA, 2003, p.66. Zumé Boletim Eletrônico do Núcleo de Pesquisa e Extensão em História, Filosofia e Patrimônio (NATIMA), Juazeiro do Norte, vol. 1, nº 3, 2019. ISSN 2675-0201 ~ 64 ~ sublimação, para Freud (2010), emprega-se como um maquinismo de defesa do eu, ou seja, a fuga dos impulsos irracionais seria dominada pela razão e canalizada para uma atividade, considerada pelo sujeito, positiva12. Tal positividade nada mais é do que a permanência de uma máscara para a sociedade em que os desejos são camuflados por um discurso hipócrita de lealdade a uma moral. Essa incorporação da disciplina do próprio corpo, enquanto escolha pessoal, passa pelo medo do conflito com o exterior e, principalmente, com o interior, pois as máscaras13 construídas pela sociedade para esses sujeitos, e mantidas por eles, correriam nesse encontro o risco de cair. Tal acontecimento fomentaria reações impensadas e incontroláveis. Portanto, esse medo do fluxo e de si mesmo promoveriam um bom argumento à defesa de certo eu. 12 FREUD, S. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1989. 13 GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 2002.
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