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Olá ! Este é o Literatura Oral, podcast de leitura e comentários literários. Eu sou Sabrina Siqueira, jornalista com doutorado em literatura. No episódio anterior, terminei a leitura de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Antes da leitura de hoje, vou falar sobre o que está acontecendo no dia da gravação deste episódio, 14 de agosto de 2020, em termos de mercado editorial, no Brasil. O governo federal estuda uma nova taxação de imposto sobre os livros, de forma a encarecer e assim dificultar o acesso do povo aos livros. Qual é o interesse do governo em encarecer livros? Porque alternativas para lucrar com impostos existem, como taxar as grandes fortunas e cortar pensões com filhas de militares. Segundo o site G1, a proposta de um novo imposto sobre valor agregado, com o nome de Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços, faz parte das ações previstas para a reforma tributária. Da forma como é hoje, o mercado editorial não paga esses impostos que passarão a incidir, o que é assegurado na Constituição de 1988. Uma notícia do G1 de 11 de agosto, da jornalista Thaís Matos, cita que “Na proposta de reforma tributária, essa isenção de contribuição deixa de existir. Consequentemente, o valor das obras para o consumidor final se tornaria mais alto.” Não é surpresa que o governo federal ataque livros. Porque quem lê, se torna crítico. E quem se torna crítico, pondera sobre o que é melhor pra si e para o seu entorno. E quem pondera sobre o que é melhor pra si e para o ambiente, não apóia e não vota em políticos como os que ocupam o governo federal atualmente, defensores de armas e contrários à ciência. Tem uma frase do educador Paulo Freire, eu não consegui achar de qual livro dele é, mas essa frase circula como exemplar da forma dele de pensar a educação: “Seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceberem as injustiças sociais de maneira crítica.” É claro que o mercado editorial não é perfeito, porque muitas vezes privilegia para publicação e distribuição obras de homens, brancos e elites. Mas quanto mais taxação sobre a produção e circulação de livros, mais caro fica pra gente, leitores e interessados em literatura. Está acontecendo um manifesto online em defesa do livro. Se você escutar este episódio ainda durante essa movimentação, por favor, participe e se manifeste em favor da cultura e educação, que são os valores que os livros representam e propagam. Vamos continuar lendo. E pensando criticamente. Voltando a minha proposta de leitura, hoje eu começo com o fragmento de uma música que remete ao título do podcast, Literatura Oral. Vamos escutar: Scarborough Fair editado Bonito, né? Coloquei só esse pedaço pra não desrespeitar os direitos autorais. Essa música se chama Scarborough Fair. É uma canção tradicional das ilhas inglesas, de autoria desconhecida. Ela me remete à ideia do conto que eu vou ler neste episódio. A um tempo remoto, em que o mundo era muito diferente do que se tem hoje. O título da canção se refere à feira de Scarborough, uma cidade da Inglaterra. Na Idade Média, essa feira foi um dos maiores pontos de referência comercial da Inglaterra. A cidade de Scarborough fica na costa do Mar do Norte, no condado de North Yorkshire. A versão que a gente ouviu um pedaço é do grupo irlandês Celtic Woman, mas já teve vários intérpretes, incluindo a cantora inglesa Sarah Brightman e até uma banda brasileira, chamada Trio Amadeus. Recentemente, uma novela da Globo teve essa música como abertura, na voz da cantora norueguesa Aurora. Essa canção fala de um tempo em que o comércio dependia da organização de algumas feiras regionais, na Idade Média. As pessoas viajavam longas distâncias, a cavalo, de carroça, a pé, para conseguir alguns produtos, tecidos, mantimentos. Então essas feiras eram uma oportunidade de se abastecer, ver gente, conhecer um povoado diferente da sua propriedade, ou da área rural em que a maioria das pessoas viviam, e claro, de saber notícias, saber das novidades, porque ainda não existiam jornais e meios de comunicação eficientes como hoje. Na letra da música, uma mulher pergunta a alguém, provavelmente um viajante, se ele está indo à feira de Scarborough. Eu imagino essa mulher interpolando um viajante que parou nas terras dela pra descansar, ou pra beber água, perguntando a ele por notícias, por novidades. A letra diz assim: “Are you going to Scarborough Fair?/ Parsley, sage, rosemary and thyme/ Remember me to one who lives there/ He once was a true love of mine.” A tradução é: “Você está indo à feira de Scarborough?/ Sálsa, sálvia, alecrim e tomilho/ Lembro de alguém que vive lá/ Uma vez ele foi meu verdadeiro amor” A referência aos temperos é porque eram um tipo de produtos que as pessoas iam longe pra buscar, entre outras mercadorias. Acontece que essa mulher da canção, provavelmente já com uma certa idade, indagando um viajante que passa pelas terras dela sobre a feira para onde ele está indo e onde ela já viveu um amor, me lembra um conto de João Simões Lopes Neto. Lopes Neto foi um escritor, jornalista e empresário gaúcho, da cidade de Pelotas. Essa cidade fica bem no sul do RS. Ele viveu entre 1865 e 1916 e é considerado o maior autor regionalista do Rio Grande do Sul, porque ele valorizou a história e os costumes gaúchos. Lopes Neto viveu e morreu em Pelotas, mas passou uma parte da vida estudando no RJ. Nos contos dele, reunidos no título Contos Gauchescos, de 1912, ele faz referência às tradições e ao linguajar do gaúcho. Uma inovação do Lopes Neto foi escrever como falavam os gaúchos, com as marcas do falar regional. Em Contos Gauchescos, o narrador é Blau Nunes, um gaúcho típico, que já serviu no exército, já foi peão em estância e agora é idoso e conta causos, como a gente diz aqui no RS, conta umas histórias do tempo de moço dele pra um interlocutor. Ah, quando eu falar “estância”, eu to me referindo a uma propriedade rural. Esse interlocutor não aparece na narrativa. Então ele pode ser, por que não?, o leitor. É um interlocutor implícito na narrativa. Uma das características da narrativa do Simões, nos contos, que colabora também para que ele seja reconhecido pela crítica literária como grande autor regionalista, é que Contos Gauchescos vai além do “o que” é dito e passa por um “como é dito”. O Lopes Neto organiza os contos com um influência clara da narrativa oral, tendo na figura do narrador Blau Nunes o sujeito que narra para um ouvinte/leitor implícito, uma pessoa mais jovem e que não conheceu a vida de outrora, e que ele, Blau, coloca a par a partir de relatos de experiência própria, seja por ter vivido as aventuras ou por ter ouvido falar diretamente de quem as viveu. Lendo Lopes Neto e se deixando levar pelo narrador/protagonista, Blau Nunes, a gente pode imaginar essa figura, esse senhor, sentado em frente a um fogo de chão, onde esquenta a água pro chimarrão em uma chaleira preta, cotovelos sobre os joelhos, segurando uma cuia, saboreando um mate amargo e contando o que lhe vem à memória, com as pausas e as expressões típicas do falar gauchesco e do contar histórias oralmente. Por isso, os contos do Lopes Neto se prestam muito a essa leitura em voz alta. O conto “O mate do João Cardoso” tem um enredo parecido com a história da música, com um estancieiro que se aproveita da passagem de um viajante pra ficar sabendo das notícias das aglomerações urbanas, já que ele está em uma área rural meio isolado de informações. Então os viajantes, tanto lá na Idade Média, quanto na nossa realidade rural até poucas décadas atrás, antes que o acesso à tecnologia chegasse ao campo, eram também responsáveis pela propagação das notícias, e a chegada de um viajante desses era esperada e festejada. No conto, o João Cardoso oferece um chimarrão pra esse viajante, e enquanto esperam o mate, o protagonista tenta extrair dele o máximo de informações. Vamos conferir? O amargo a que se refere o protagonista é o chimarrão, a bebida típica do RS,também chamada por aqui de mate, de mate amargo. É um chá, que se bebe quente, em uma cuia, que é um porongo, com uma bomba de metal. To explicando isso pra quem não conhece a cultura do sul, de beber chimarrão. No conto, Blau Nunes narra o caso de um estancieiro que faz questão que os viajantes parem em sua propriedade pra poder extrair deles as novidades, perguntar sobre as notícias mais recentes. E então ele oferece um chimarrão, um mate aos visitantes, em troca das informações. Só que o João Cardoso não tem erva mate, para preparar o chimarrão. Ele sabe que não tem erva, mas deixa a culpa pela demora do mate que não vem pro empregado. No início do conto, parece que Blau, o narrador, está viajando a cavalo com o seu interlocutor, pra quem ele está contando essas histórias dos contos, e parece que eles haviam parado em uma estância, em uma propriedade, pra almoçar. Os anfitriões teriam demorado muito em servir a fritada, e Blau brinca que parece que esperaram as franguinhas se tornar galinhas, e depois botar os ovos, pra então fazer a fritada. E essa demora em servir o almoço faz o narrador lembrar da história do mate do João Cardoso, que nunca vinha. Apesar de curto, o conto pode ser dividido em 3 fases. O presente diegético do conto, ou seja, o tempo presente dentro da narrativa é o momento em que Blau está comentando sobre como demorou o almoço nesse lugar que eles pararam. Então essa é a primeira fase, depois, Blau se reporta a um tempo passado, em que João Cardoso viveu e ganhou fama, e na terceira fase do conto, volta ao presente diegético, ao tempo em que o narrador Blau está conversando com o seu interlocutor, dizendo que às vezes, em algumas situações, parece que escuta o João Cardoso, porque é alguma situação que tem alguém enrolando, demorando. O termo “diegese” é pauta nos estudos literários, e estudado com os conceitos de narratologia. É um termo de origem grega e foi muito usado nos estudos literários pelos estruturalistas, como Roland Barthes e Tzvetan Todorov, para designar o conjunto de ações que formam uma história narrada. Fala-se em tempo diegético, em espaço diegético. Em “O mate do João Cardoso”, Lopes Neto aborda, indiretamente, o tema da escravidão. Quando João Cardoso chama o crioulo pra trazer o chimarrão, é possivelmente a um escravo que faz referência. Há um teor de preconceito racial no conto, na forma como o estancieiro e o narrador se referem a esse empregado, ou escravo: eles chamam crioulo, bandalho, e carvão, que são termos pejorativos. O autor foi neto de fazendeiros e deve ter convivido com a presença de trabalhadores em regime de escravidão ou de semi-escravidão, ou com escravos libertos, na estância do avô. Lopes Neto começa a escrever justamente no ano de 1888, ano da abolição da escravatura. E o avô dele, O Visconde da Graça, em 1887, foi escolhido pela comissão do manifesto abolicionista, nomeada por uma assembléia geral em Porto Alegre, a capital gaúcha, para fazer parte da comissão encarregada de promover no município de Pelotas a libertação dos últimos escravos ainda existentes. Essa informação consta no livro A cidade de Pelotas, de Fernando Osório. Então, se pelo conto “O mate do João Cardoso” pode até não parecer que o autor tenha optado por um posicionamento crítico no que diz respeito à abolição, a gente sabe pela história que a família dele desempenhou algum papel nessa empreitada abolicionista. Ainda que se saiba que a abolição da escravidão tenha tido um impacto muito mais teórico do que prático, porque não foi acompanhada de uma mudança de mentalidade daqueles que se julgavam no direito de ter escravos, e que muito dessa mentalidade não tenha mudado até hoje, o documento é um marco, sem dúvida, importante. Lopes Neto não teve sucesso literário em vida. Os seus contos ficaram mais conhecidos depois da morte dele, aos 51 anos, quando foram reunidos sob o título Contos Gauchescos e Lendas do Sul, em uma edição crítica, em 1949, organizada pela editora Globo e com apoio do escritor gaúcho Erico Veríssimo. Para quem tiver oportunidade de visitar o sul do Rio Grande do Sul, existe na cidade de Pelotas o Instituto João Simões Lopes Neto, que fica na casa em que o autor morou entre 1897 e 1907. E tem até uma estátua dele lá, se tu quiser uma selfie com o Lopes Neto! Além de “O mate do João Cardoso”, Contos Gauchescos têm outros 18 contos. A compilação dos contos está disponível no site do domínio público, WWW.dominiopublico.gov.br. O arquivo foi disponibilizado pela Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro, da USP, e foi de onde eu li para o episódio de hoje. E eu aproveito para agradecer às professoras doutoras Valéria de Castro Fabrício e Simone Xavier Moreira, pesquisadoras do Lopes Neto, minhas colegas na pós-graduação e que me passaram informações sobre o autor enquanto eu fazia o roteiro deste episódio. Hoje o Literatura Oral deu uma volta, desde a costa do Mar do Norte, na Inglaterra, até o extremo sul do Brasil. No próximo episódio, inicio outra leitura. Abraço, se puderem fiquem em casa para não espalhar o vírus e até o próximo episódio!