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Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
O LEGADO DE DARWIN
e a pesquisa agropecuária
2ª edição
José Roberto Moreira
Marcelo Brilhante de Medeiros
Editores Técnicos
Embrapa
Brasília, DF
2014
Embrapa Recursos Genét icos e Biotecnologia
Parque Estação Biológica (PqEB)
Av. W5 Norte (final)
CEP 70770-917 Brasília, DF
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Unidade responsável pelo conteúdo
Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia
Comitê Local de Publicações
Presidente: João Batista Teixeira
Secretário-executivo: Thales Lima Rocha
Membros: Jonny Everson Scherwinski Pereira, Lucília Helena Marcelino, Lígia Sardinha Fortes, Márcio Martinelli Sanches,
Samuel Rezende Paiva, Vânia Cristina Rennó Azevedo
Unidade responsável pela edição
Embrapa Informação Tecnológica
Coordenação editorial: Selma Lúcia Lira Beltrão, Lucilene Maria de Andrade, Nilda Maria da Cunha Sette
Supervisão editorial: Wyviane Carlos Lima Vidal
Revisão de texto: Jane Baptistone de Araújo
Revisão do e-book: Maria Cristina Ramos Jubé
Normalização bibliográfica: Celina Tomaz de Carvalho, Iara Del Fiaco Rocha
Editoração eletrônica: Cínthia Pereira da Silva, Alexandre Abrantes Cotta de Mello, Leandro Sousa Fazio
Capa: Carlos Eduardo Felice Barbeiro
Ilustrações (p. 27, 28, 29, 65, 74, 79, 96, 98, 99, 104, 106, 107, 109, 111, 112, 113, 116, 118, 136, 137, 143, 144, 146, 151, 152,
153, 155, 161, 166, 176, 177, 178, 179, 184, 185, 194, 204, 209, 210, 213, 214, 218, 220, 225, 230, 234, 238, 250, 253, 261, 274,
296 e encartes 1 e 2): José Roberto Moreira
1ª edição
1ª impressão (2014): 1.000 exemplares
2ª impressão (2014): 1.000 exemplares
2ª edição
E-book (2014)
http://www.embrapa.br
http://www.embrapa.br/fale-conosco/sac
http://www.embrapa.br/livraria
mailto:livraria@embrapa.br
Todos os direitos reservados.
Para uso exclusivo de GRAZIELLA. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação
dos direitos autorais (Lei n° 9.610).
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Embrapa Informação Tecnológica
O legado de Darwin e a pesquisa agropecuária / José Roberto Moreira, Marcelo Brilhante de Medeiros, editores técnicos. –
Brasília, DF : Embrapa, 2014.
E-book : il. color. + 2 encartes online
E-book, no formato ePub, convertido do livro impresso.
ISBN 978-85-7035-405-1
1. Pesquisa agrícola. 2. Cientista. I. Moreira, José Roberto. II. Medeiros, Marcelo Brilhante de. III. Embrapa Recursos
Genéticos e Biotecnologia.
CDD 630.5
© Embrapa 2014
Autores
José Roberto Moreira
Engenheiro-agrônomo, Ph.D. em Ecologia, pesquisador da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, Brasília, DF
Marcelo Brilhante de Medeiros
Biólogo, doutor em Ecologia, pesquisador da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, Brasília, DF
Ludmilla Moura de Souza Aguiar
Bióloga, doutora em Ecologia, professora do Instituto de Ciências Biológicas, Universidade de Brasília, Brasília, DF
Artur Jordão de Magalhães Rosa
Zootecnista, Ph.D. em Genética, pesquisador da Embrapa Cerrados, Planaltina, DF
Agradecimentos
Nosso objetivo, ao escrever esta obra, é disponibilizar uma publicação que auxilie na
disseminação do conhecimento evolutivo e estimule a consciência sobre a preservação do
fantástico patrimônio que é a biodiversidade de nosso planeta.
Este livro teve origem durante as seguintes comemorações: em 2008, os 150 anos da teoria
da evolução e, em 2009, os 200 anos do nascimento de Darwin e os 150 anos da
publicação do livro A origem das espécies. A construção de nossa obra nos fez “navegar por
mares pouco navegados” e, mais do que fruto de nosso conhecimento, é resultado de
nossa paixão pelo legado de Darwin e pela vida moldada nos 4 bilhões de anos de evolução.
Para sua realização, contamos com a ajuda de muitos. Várias versões preliminares dos
capítulos foram lidas por diversos pesquisadores. Gostaríamos de agradecer às seguintes
pessoas pelos comentários construtivos durante a revisão e avaliação dos capítulos:
Amarílis de Vicente Finageiv Neder, Carla dos Anjos de Souza, Clóvis Wagner Maurity,
Débora Viecili Costa Masini, José Luiz de Andrade Franco, Luciano de Bem Bianchetti,
Márcio de Carvalho Moretzsohn, Marília Lobo Burle, Nivaldo Peroni, Pablo Rodrigues
Gonçalves, Paulo Dias Ferreira Júnior, Rafael Antônio Machado Balestra, Rosana Tidon,
Rosane Garcia Collevatti e Suelma Ribeiro Silva. Versões preliminares dos capítulos foram
revisados por Lucia Salles França Pinto, José Augusto de Alencar Moreira e José Eduardo
de Alencar Moreira, a quem somos gratos. Também gostaríamos de agradecer a Susan
Catherine Casement pelas muitas sugestões na composição do livro e pelo constante apoio.
Finalmente, não podemos deixar de agradecer à equipe da Embrapa Informação
Tecnológica: Erika do Carmo Lima Ferreira (editora) e Jane Baptistone de Araújo (revisora),
por todo o tempo, empenho e dedicação despendidos na edição da obra; e a Carlos
Eduardo Felice Barbeiro, o Caseda, pelo lindo trabalho realizado na diagramação desta
obra.
Apresentação
Há menos de 450 anos, todos os acadêmicos europeus acreditavam não somente que a
Terra ocupava o centro do Universo – o qual teria alguns milhões de quilômetros de
extensão –, mas também que, em torno desse centro, giravam os planetas, o Sol e as
estrelas. Trezentos anos mais tarde, ainda imperava o pensamento de que uma divindade
suprema criara todos os organismos e que eles não haviam mudado. A aplicação do método
científico de inferência, a partir dos resultados de experimentos ou da observação, foi o que
transformou nossa visão a respeito de nossas origens e do funcionamento do mundo a
nossa volta.
A teoria que explicou a origem das espécies por meio da seleção natural e seus princípios foi
publicada, há pouco mais de 150 anos, por Charles Robert Darwin. O arcabouço teórico da
evolução ainda incorporou, ao longo de várias décadas, muitos outros conceitos e
mecanismos que surgiram em novos campos das ciências naturais, como a genética, a
biologia molecular e a biologia evolutiva do desenvolvimento. Nesse período de tempo,
também ocorreu expressivo acúmulo de experimentos, evidências e observações em
paleontologia, fisiologia, biogeografia, botânica e zoologia, além dos avanços mais recentes
em genética e biologia molecular, os quais explicaram aspectos novos e diversificados da
evolução.
A complexidade e a importância da teoria da evolução para a compreensão do mundo
natural têm implicações em diversas áreas da ciência. Particularmente para a pesquisa
agropecuária, a compreensão dos processos evolutivos é parte de um referencial de
conhecimentos que abrange desde o processo de domesticação até o controle de insetos e
doenças, bem como o desenvolvimento de novas cultivares e sistemas de cultivo mais
sustentáveis.
Este livro apresenta o histórico e um amplo referencial teórico sobre a evolução, desde o
início – quando o mecanismo da seleção natural foi descrito por Darwin – até as mais
recentes descobertas científicas. Também fornece informações sobre as relações entre a
agricultura e os processos evolutivos. Esta publicação contribui para preencher uma lacuna
de informações na literatura nacional no tocante a uma descoberta científica que, há mais
de um século, mudou o modo de estudar a vida no planeta.
Mauro Carneiro
Chefe-Geral
Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia
Prefácio
[...] qualquer coisa verdadeira para E. coli deve também ser verdadeira para o
elefante1 (MONOD; JACOB, 1961, p. 393).
O início de século XXI tem sido, sem dúvida, marcante para o conhecimento evolutivo, pelo
destaque nas celebrações do legado a nós deixado por Charles Darwin. Em 1º de julho de
2008, comemoramos 150 anos da publicação, pela SociedadeLinneana de Londres, do
artigo intitulado On the tendency of species to form varieties and on the perpetuation of
varieties and species by natural means of selection2, de autoria de Charles Robert Darwin e
Alfred Russel Wallace. Com essa publicação, em 1858 foram apresentadas à comunidade
científica as raízes da teoria da evolução.
O mundo inteiro celebrou, no dia 12 de fevereiro de 2009, os 200 anos de nascimento de
Charles Darwin e, em 24 de novembro de 2009, os 150 anos da publicação do influente livro
On the origin of species by means of natural selection, or the preservation of favoured races
in the struggle for life3, de sua autoria. É tempo de reverenciar o gênio e enaltecer o legado
de Darwin.
Tal legado é fenomenal. A sua teoria da evolução, por exemplo, foi descrita pelo
proeminente ecologista inglês Richard Dawkins como a mais importante ideia que ocorreu à
mente de um homem. O conceito da evolução biológica é uma das mais importantes ideias
geradas pela aplicação da metodologia científica ao mundo natural. “Nada na biologia faz
sentido exceto sob a luz da evolução”
4
 – essa declaração feita pelo renomado geneticista
ucraniano Theodosius Dobzhansky (1964, p. 449) também destaca a importância da teoria
da evolução como o pilar central para o entendimento do mundo natural.
A evolução é o caminho. As ideias de Darwin inspiraram, nesses últimos 150 anos, o
pensamento científico e da humanidade. O conhecimento sobre a evolução da vida na Terra
encontra-se no âmago das pesquisas relacionadas às áreas de genética, bioquímica,
biotecnologia, neurobiologia, ecologia, morfologia, botânica, zoologia, fisiologia,
antropologia, psicologia e, até mesmo, inteligência artificial. A revolução darwiniana é,
portanto, considerada, por muitos, um dos mais importantes eventos em toda a história do
intelecto humano.
Evolução é a verdade. Hoje, a ciência considera a existência da evolução como um dos
mais consagrados fatos científicos em razão do enorme número de indícios que a
comprovam. Evolução é fato. As evidências encontram-se estampadas nos registros
fósseis, na distribuição geográfica das espécies, na proximidade genômica entre
organismos, nas estruturas e nos padrões de comportamento comuns entre espécies
diferentes, nas semelhanças existentes com os processos de domesticação de espécies de
plantas e animais, na capacidade de adaptação, bem como nas semelhanças no
desenvolvimento dos organismos.
Evolução é a vida. Apenas a evolução nos apresenta um contexto coerente para explicar a
surpreendente diversidade e a extrema complexidade da vida em nosso planeta. Sob sua
ótica, é possível reconhecer a universalidade da vida na Terra – descendemos todos de um
ancestral comum – e as similaridades genéticas, morfológicas e ecológicas entre diferentes
organismos. Essas semelhanças genéticas indicam um passado de ligação entre espécies
que hoje são muito diferentes. Ela também reconhece as similaridades entre o homem e
seus parentes mais próximos – os outros primatas. Toda a vida na Terra está interligada,
cada espécie é um mero graveto na árvore da vida.
O legado de Darwin se disseminou por diversas ciências. A agricultura também se beneficiou
do conhecimento evolutivo. A evolução orientou o conhecimento para a descoberta de
novas possibilidades e melhor controle de pragas na agricultura, para a compreensão das
relações entre plantas e animais domésticos com seus parentes selvagens e para o
desenvolvimento de tecnologias que visam ao melhoramento tanto das plantas como dos
animais. A sustentabilidade da produção agrícola pode ter suas bases também no
conhecimento evolutivo, considerando que muitos desafios e problemas da produção
agrícola intensiva, como a proliferação de doenças e patógenos, podem ser compreendidos
e solucionados sob sua ótica.
Nesse contexto, a Embrapa deve reverenciar o legado deixado por Darwin. Afinal,
parafraseando Dobzhansky, nada faz sentido na pesquisa da Embrapa se não for sob a luz
da evolução. Para tanto, buscamos contribuir com a publicação deste livro esclarecedor
sobre a teoria da evolução e o legado de Darwin.
O primeiro capítulo do livro – O legado de Darwin e a pesquisa agropecuária –apresenta a
vida de Darwin, a história da publicação de sua influente teoria e a controvérsia político-
religiosa da evolução e do criacionismo. Também mostra que, infelizmente, a ciência não
alcança todas as camadas da sociedade da mesma forma. Ainda que a ciência consagre a
teoria da evolução como fato, ela continua sendo incompreendida ou desconhecida por uma
parcela significativa da população. Em continuidade à construção da teoria da evolução por
Darwin e Wallace, o segundo capítulo apresenta um histórico sobre o desenvolvimento do
conhecimento evolutivo. Discorre sobre os pensamentos evolutivos desde a Grécia antiga,
passando pelos pensadores muçulmanos e cristãos, por Lamarck, até chegar aos dois
renomados biólogos. Ainda apresenta as novas descobertas e o desenvolvimento do
conhecimento evolutivo pós-Darwin. Mostra, também, que foram necessários dez anos para
que a teoria da evolução fosse plenamente aceita pela ciência. E mais de 100 anos para a
aceitação da seleção natural como um dos seus principais mecanismos.
Após esses dois capítulos introdutórios, o livro passa a apresentar as atualizações do
conhecimento evolutivo: o Capítulo 3 contém uma visão atualizada da teoria da síntese
evolutiva e discute os principais mecanismos de evolução. Em face do desconhecimento de
muitos sobre a evolução, o Capítulo 4 apresenta as evidências existentes para a sua
constatação. Demonstra, por exemplo, como novas formas transicionais estão sendo
descobertas, cada vez mais rotineiramente, no registro fóssil e relata que as infindáveis
homologias genéticas são mais abrangentes do que se pensava há bem pouco tempo.
Muitos acreditam que o inspirador livro de Darwin – A origem das espécies – obteve sucesso
ao demonstrar a existência da evolução, mas não mostrou como a vida surgiu e diversificou-
se neste planeta. Assim, o Capítulo 5 discorre sobre o conhecimento atual relativo à
formação e ao desaparecimento de espécies. Por sua vez, o sexto capítulo trata das
hipóteses atuais sobre a origem da vida na Terra e sobre a história da evolução da vida, que
levou à atual biodiversidade do planeta, incluindo a evolução do homem.
O sétimo e último capítulo descreve as aplicações do conhecimento evolutivo na agricultura
nos dias de hoje, que têm por trás a herança do influente livro A origem das espécies. São
apresentadas as tecnologias desenvolvidas pela pesquisa agropecuária para o aumento da
produção agrícola, para o controle biológico de pragas e para a conservação de recursos
genéticos e sua relação com a evolução.
O livro O legado de Darwin e a pesquisa agropecuária foi pensado para atingir o público
leigo, interessado no desenvolvimento e no conhecimento da ciência, assim como para
atualizar estudantes de ensino médio e de graduação nos temas básicos da evolução.
Tendo em mente que o livro trata de diferentes tópicos e busca um público diversificado,
imaginamos que alguns termos específicos não sejam de conhecimento de todos os leitores.
Assim, incluímos um glossário de termos tratados no livro. Também incluímos dois encartes
(disponíveis online): um apresenta os períodos geológicos da Terra e o outro mostra a
evolução da vida e a intrincada relação entre os organismos.
Este livro é obra de pesquisadores apaixonados pelo legado de Darwin à ciência e à
humanidade. Foi escrito como uma reverência ao gênio e ao intelecto de Darwin e por
nossa admiração pela diversidade e beleza da vida em nosso planeta. Buscamos mostrar
neste livro, como bem disse Darwin (1859, p. 490)
5
 no parágrafo final do seu, que “[...] existe
uma grandeza nessa visão da vida”.6
José Roberto Moreira
Marcelo Brilhante de Medeiros
1 “[…] anything found to be true of E. Coli must also be true of elephants.”
2 A tendência das espécies de formar variedades e a perpetuação das variedades e espécies por meios naturaisde seleção.
3 Sobre a origem das espécies por meio de seleção natural, ou a preservação de raças favorecidas na luta pela vida.
4 “Nothing makes sense in biology except in the light of evolution.”
5 Ver lista de referências do Capítulo 1.
6 “There is grandeur in this view of life.”
Capítulo 1
Darwin e a teoria da evolução
José Roberto Moreira
Charles Robert Darwin (1809–1882) ao final de sua vida.
"Quando deixei a escola, eu não estava nem adiantado nem atrasado para a minha idade; e
acredito que era considerado por todos os meus professores e pelo meu pai como um rapaz
bastante comum, mas intelectualmente abaixo da média" (CHARLES DARWIN, em sua
autobiografia de 1876, publicada por BARLOW, 1958, p. 28).
"When I left the school I was for my age neither high nor low in it; and I believe that I was
considered by all my masters and by my Father as a very ordinary boy, rather below the
common standard in intellect."
O homem removido do centro do Universo
Há pouco mais de 150 anos, no dia 1o de julho de 1858, a publicação de um artigo científico
fazia ruir de vez a concepção do homem como centro do Universo. De autoria de Charles
Robert Darwin e Alfred Russel Wallace (DARWIN; WALLACE, 1858) e publicado pela
Sociedade Linneana de Londres, o artigo intitulado On the tendency of species to form
varieties and on the perpetuation of varieties and species by natural means of selection1
apresentou à comunidade científica as raízes da teoria da evolução por seleção natural. A
publicação, adicionada na última hora ao programa da referida sociedade, foi apresentada
ao final da reunião, razão pela qual poucos da audiência puderam perceber a importância da
mensagem ali apresentada e de suas consequências. Sem qualquer alarde e de maneira
despercebida, a humanidade acabara de ser destituída do “berço da Criação”. Em razão
disso, em seu discurso de fim de ano, Thomas Bell – presidente da sociedade – declarou:
“[...] o ano que passou realmente não foi marcado por nenhuma daquelas impressionantes
descobertas que, digamos, de imediato revolucionam o Departamento de Ciência do qual
fazem parte”
2
 (KEYNES, 2001, p. 318).
Esse artigo levou Darwin a publicar, em 24 de novembro de 1859, o influente livro On the
origin of species by means of natural selection, or the preservation of favoured races in the
struggle for life3 (DARWIN, 1859), hoje conhecido apenas por A origem das espécies. Sua
importância foi imediata para a comunidade científica, pelo fato de ter desvinculado todas as
ciências do cabresto místico. Transformou a biologia em uma disciplina científica, ao fazer
que deixasse de ser um mero exercício de catalogação. Diferentemente do artigo publicado
em 1958, o livro de Darwin teve impacto que repercutiu além da comunidade científica e
mudou a maneira pela qual a sociedade via o mundo à sua volta, estimulando a criação de
movimentos culturais controversos, influenciando a cultura, as artes, a literatura, o
comportamento e muitos outros aspectos da vida humana. Como disse o paleontólogo
Stephen Jay Gould (1998, p. 173), foi “[...] a maior revolução biológica na história do
pensamento humano”
4
. Pode-se dizer, ainda, que essa revolução não terminou, porque suas
ideias e consequências ainda não foram digeridas por todas as camadas da sociedade
humana.
A publicação conjunta nos anais da reunião da Sociedade Linneana de Londres instituiu
Darwin e Wallace como coautores da teoria da evolução por seleção natural. Ela é, sem
dúvida, a mais respeitada e, ao mesmo tempo, a mais ultrajada concepção já formada na
história humana. As circunstâncias que levaram à publicação do artigo e do livro de Darwin
têm um caráter histórico importante e merecem ser conhecidas. De igual modo, os impactos
gerados pela apresentação da teoria ao grande público, bem como as reações que
perduram até hoje, valem ser revistos e ampliados.
Um estudante desatento
Charles Robert Darwin nasceu em uma família de médicos, investidores e empresários da
pequena nobreza fundiária inglesa (DESMOND; MOORE, 1992). Sua condição financeira
era tal que, caso fosse de seu interesse, não precisaria trabalhar. Seu pai, Robert Darwin,
era um médico e investidor de sucesso. Sua mãe, Susannah Wedgwood, vinha de uma
família de empresários de indústrias de louças finas. Darwin nasceu em Shrewsbury, no
condado de Shropshire, Inglaterra, em 12 de fevereiro de 1809, na residência de sua família
(the Mount).
Robert Waring Darwin (1766–1848), médico e investidor inglês, pai de Charles Robert
Darwin e filho do também médico Erasmus Darwin.
Fonte: cortesia da família Mostyn Owen
The Mount, local de nascimento de Darwin (12 de fevereiro de 1809) e residência de
sua família em Shrewsbury, condado de Shropshire, na Inglaterra. A casa onde
Darwin nasceu é, na atualidade, um escritório do governo para cobrança de
impostos.
Foto: José Roberto Moreira
Durante sua infância, Darwin frequentava a igreja unitarista da família de sua mãe. Por sua
vez, seu pai, ainda que anglicano, era um livre-pensador (DARWIN, 1887a), assim como seu
avô paterno, Erasmus Darwin, um conhecido filósofo natural inglês, que, em seu longo
poema The temple of nature5, apresentou ideias consideradas precursoras da teoria da
evolução. O poema traça a progressão da vida desde os microrganismos até a sociedade
civilizada, em uma visão lamarckista da evolução, segundo a qual os genitores transmitem
aos descendentes as adaptações adquiridas durante suas vidas (DARWIN, 1803).
A morte da mãe, quando tinha apenas 8 anos de idade, fez que Darwin passasse a ser
cuidado por suas irmãs mais velhas (era o quinto de seis filhos). Em sua infância, gostava de
colecionar insetos, conchas, ovos de pássaros, pedras e minerais. O pai estimulava-o em
tais atividades, especialmente durante as férias no País de Gales (DARWIN, 1887a). Aos 9
anos, Darwin passou a estudar em um internato, em Shrewsbury, onde um dos professores
considerou-o um estudante desatento. Na adolescência, o interesse do menino Darwin
pelos insetos transformou-se em impulso pela caça. Seu pai, frustrado por ver o filho
buscando assuntos considerados irrelevantes, disse-lhe um dia: “Você não se importa com
nada que não seja caça, cães e captura de ratos, e será uma desgraça para si e para a sua
família”
6
 (DESMOND; MOORE, 1992). Tentando envolver Darwin em atividades mais
“nobres”, o pai o tirou da escola mais cedo (aos 15 anos) para que o filho o acompanhasse
em seu trabalho como médico (DESMOND; MOORE, 1992).
Em outubro de 1825, aos 16 anos, Darwin foi estudar medicina na Universidade de
Edimburgo, na Escócia. Rapidamente percebeu que era sensível à visão de sangue, achava
as aulas de medicina tolas e entediantes; e as cirurgias, brutais. Entretinha-se lendo
romances emprestados da biblioteca e seus livros de história natural, entre eles o livro
Zoonomia; or the laws of organic life7, de autoria de seu avô Erasmus Darwin. Nesse
período, também aprendeu taxidermia com um ex-escravo das Guianas. Nos fins de semana
e durante as férias, fazia coleta de animais e anotava tudo aquilo que observava sobre eles
e sobre história natural (DARWIN, 1887a).
Na Universidade de Edimburgo, Darwin tornou-se membro de uma sociedade estudantil de
naturalistas (Sociedade Pliniana) e pupilo de Robert Edmund Grant, um anatomista de
pensamentos lamarckistas. Grant propiciou a Darwin o primeiro contato com ideias novas
relacionadas à biologia, como homologia e origem comum das espécies. As aulas sobre
geologia estratigráfica, ministradas pelo professor Robert Jameson, permitiram a Darwin o
acesso ao Museu da Universidade de Edimburgo, que, à época, era um dos maiores do
mundo. Na Universidade de Edimburgo, Darwin conheceu o sistema natural de classificação
de Augustin de Candolle, que se baseia na ideia de que a natureza é uma “guerra” entre
espécies em competição (DESMOND; MOORE, 1992).
Ainda que Darwin fosse um dedicado estudante de história natural, seu pai não estava
satisfeito com seu pouco progresso no estudo da medicina. Constatandoque o filho não
tinha futuro como médico, resolveu transferi-lo, em 1827, para a Universidade de
Cambridge, a fim de se qualificar como clérigo. Na época, ser pároco anglicano permitia uma
carreira promissora, que possibilitava uma renda confortável (DESMOND; MOORE, 1992). A
maioria dos naturalistas ingleses era formada por clérigos que viam como um de seus
deveres explorar as “maravilhas da Criação de Deus”.
Christ’s College, na Universidade de Cambridge, em Cambridge, Inglaterra, onde
Darwin estudou teologia de 1828 a 1831. Foto tirada na segunda metade do século
XIX.
Em Cambridge, Darwin se uniu ao seu primo William Darwin Fox no interesse por colecionar
besouros. Dedicou-se ao assunto com tanto afinco que alguns de seus exemplares foram
descritos no livro Illustrations of British entomology8, de James Francis Stephens, no qual foi
reconhecida sua autoria nas coletas. Para auxiliar seu trabalho de classificação, Darwin
assistiu às aulas de botânica ministradas pelo reverendo John Stevens Henslow e tornou-se
um de seus pupilos (DARWIN, 1887a).
Ainda que suas pesquisas sobre besouros, bem como as leituras sobre história natural e o
contato com pesquisadores tivessem aberto a mente de Darwin para uma visão mutável das
espécies, em 1831 ele terminou seus estudos teológicos em Cambridge encantado com a
lógica expressa pelo reverendo William Paley, em seu livro Natural theology9, que pressupõe
o fato de que a complexidade e a perfeita relação entre indivíduos e seus ambientes eram
provas irrefutáveis da existência e da ação de Deus (DARWIN, 1887a). Segundo Paley
(1802, citado por DARWIN, 1887a), o “complacente Deus” criara leis universais e uniformes
para controlar o “auspicioso mundo natural”. A quebra dessas leis eram ações do demônio.
Darwin terminou o seu curso de teologia em décimo lugar entre 178 estudantes aprovados
(DESMOND; MOORE, 1992).
Após o final do curso universitário, e depois de ler o livro de Alexander von Humboldt
intitulado Le voyage aux régions equinoxiales du Nouveau Continent10, no qual descreve sua
expedição à Amazônia, Darwin entusiasmou-se com a possibilidade de coletar animais e
plantas nos trópicos e conhecer toda a sua biodiversidade. Passou a planejar uma viagem
às Ilhas Tenerife, na costa da África, com colegas de turma (DARWIN, 1887a). Para melhor
se preparar para tal expedição, passou a ter aulas de campo em geologia com o reverendo
Adam Sedgwick, que partilhava as mesmas ideias de Paley quanto à religião, à moral e à
história natural. Segundo Sedgwick, fósseis de espécies extintas eram provas da ocorrência
de catástrofes (como o Dilúvio). As espécies que desapareciam em decorrência dessas
catástrofes eram repostas por meio de novas criações. Essa linha de pensamento é
conhecida por teoria catastrofista (ver Capítulo 2).
Após o trabalho de campo com Sedgwick, Darwin retornou, em 29 de agosto de 1831, à
residência da família em Shrewsbury. Lá recebeu uma carta de Henslow, seu professor de
botânica, na qual o convidava a participar da segunda viagem de pesquisa do navio Her
Majesty Ship (HMS) Beagle. A proposta era de uma viagem de dois anos à Terra do Fogo,
na América do Sul, retornando pelas Índias Ocidentais (Caribe). Darwin não era convidado a
viajar como naturalista, mas sim como um cavalheiro, acompanhante do capitão Robert
FitzRoy, que fosse qualificado para coletar, observar e fazer anotações de tudo aquilo que
fosse relevante sobre a história natural (KEYNES, 2001).
John Stevens Henslow (1796–1861), professor de botânica de quem Darwin foi
pupilo. Foi Henslow quem, após ter recusado a proposta de vir a ser o naturalista do
navio, indicou Darwin para participar da viagem no HMS Beagle. Durante a viagem
de Darwin no Beagle, Henslow publicou as cartas recebidas de seu pupilo. Graças a
ele Darwin já se tornara conhecido no mundo científico quando retornou à Inglaterra.
A volta ao mundo
A participação de Darwin na segunda viagem do Beagle foi um marco para o
desenvolvimento de seu pensamento sobre a teoria da evolução por seleção natural e para
sua carreira como naturalista. Durante a viagem, Darwin fez importantes descobertas
geológicas e estudou minerais, plantas e animais. Coletou grande quantidade de espécimes
e enviou-as para Cambridge com suas anotações. Fez muitas observações sobre a
distribuição geográfica das espécies, especialmente daquelas existentes em ilhas. Nessa
viagem, o trabalho de Darwin fez dele um renomado geólogo e coletor de fósseis mesmo
antes de seu retorno ao Reino Unido (DESMOND; MOORE, 1992).
Inicialmente, o pai achou que a viagem de Darwin no Beagle seria uma perda de tempo e
desaconselhou o filho a empreendê-la. Porém, com o auxílio de seu tio Josiah Wedgwood II,
Darwin apresentou a seu pai as vantagens que a viagem proporcionaria para sua educação
e experiência de vida (KEYNES, 2001). Convencido, Robert Darwin decidiu dar a assistência
necessária (£500 de custo) para a participação de seu filho na expedição.
Em 27 de dezembro de 1831, o Beagle partiu de Plymouth, na Cornualha, Inglaterra. A
bordo, Darwin teve muitos problemas de enjoo e, por conta disso, procurava ficar a maior
parte do tempo em terra durante a expedição (KEYNES, 2001). Ainda que o tempo
planejado de viagem tivesse sido de dois anos, ela durou quase cinco; no entanto, Darwin
passou apenas 18 meses a bordo. Antes de sair da Inglaterra, o capitão FitzRoy deu a
Darwin um exemplar do primeiro volume do livro Principles of geology11, de Charles Lyell, que
descrevia as formas geológicas terrestres como resultado de processos graduais de
mudança por longos períodos (LYELL, 1830). A essa teoria – que se opunha ao
catastrofismo de Sedgwick – foi atribuído o termo uniformitarismo (ver Capítulo 2). Darwin
passou os primeiros dias da viagem lendo esse livro (KEYNES, 2001).
Vice-almirante Robert FitzRoy (1805–1865), capitão inglês do HMS Beagle, durante
a viagem em que Darwin participou como cavalheiro acompanhante do capitão. Por
pouco Darwin não foi aceito para a viagem no Beagle por causa do formato de seu
nariz. FitzRoy acreditava que as formas do rosto indicavam a personalidade das
pessoas. Durante a viagem, Darwin teve alguns atritos de opinião com FitzRoy,
especialmente sobre escravidão. Após a viagem de circum-navegação, Darwin e
FitzRoy entraram em conflito pela independência de Darwin na publicação de seu
livro A viagem do Beagle e quanto às possíveis consequências morais do livro A
origem das espécies. FitzRoy foi ainda meteorologista, hidrógrafo e governador da
Nova Zelândia. Suicidou-se aos 60 anos.
Já no início da viagem, Darwin colocou em ação seu caráter questionador sobre o
pensamento reinante na área de biologia. Utilizando uma rede de plâncton e observando a
grande variedade e beleza dos espécimes coletados tão distante dos olhos do homem,
comentou em seu diário (KEYNES, 2001, p. 22): “Muitas dessas criaturas, tão inferiores na
escala da natureza, são exuberantes em suas formas e ricas cores. Isso gera um
sentimento de admiração de que tamanha beleza tenha sido aparentemente criada para tão
pouca finalidade”
12
. Mais adiante, na passagem pelo arquipélago de Cabo Verde, Darwin
observou uma camada de rocha branca incrustada de corais e conchas quebradas sobre
uma camada de lava negra. Para interpretar essa evidência, Darwin utilizou as ideias
uniformitaristas de Lyell, e não as catastrofistas de seu professor Sedgwick (DESMOND;
MOORE, 1992). Para Darwin, a rocha era o resultado de um processo gradual de
soerguimento e acomodação da crosta terrestre ocorrido por longos períodos, e não a
consequência do Dilúvio.
Mapa do roteiro percorrido pela segunda viagem do HMS Beagle ao redor do mundo, no período de 27 de dezembro de 1831
a 2 de outubro de 1836. As setas e linhas vermelhas mostram o roteiro inicial da viagem após a saída do navio da Inglaterra, e
as azuis apresentam seu retorno.
Em 28 de fevereiro de 1832, o Beagle aportou na América do Sul, em Salvador, na Bahia.
No Brasil, Darwin visitou os arquipélagos de São Pedro e São Paulo,de Fernando de
Noronha, as ilhas de Abrolhos e as cidades de Salvador e do Rio de Janeiro. Na parada no
Rio de Janeiro, o biólogo Robert McCormick, com ciúmes da preferência que o comandante
FitzRoy demonstrava por Darwin, abandonou a expedição e retornou ao Reino Unido. Por
sua vez, Darwin fez uma expedição até Macaé e visitou duas fazendas. Ele permaneceu no
Brasil por cinco meses e, durante esse período, pôde apreciar a vegetação luxuriante da
floresta, a diversidade da fauna e da flora e a maravilhosa paisagem das montanhas e
praias. Porém, Darwin detestou a burocracia brasileira, a falta de educação e cortesia de
muitos e, principalmente, deplorou a escravidão (DARWIN, 1913).
Darwin no Brasil
Mapa do roteiro percorrido pelo HMS Beagle em sua passagem pelo Brasil. As
setas e linhas vermelhas mostram a rota percorrida em sua vinda da Inglaterra, em
1832, e as azuis o seu retorno, em 1836.
Brasil e Cabo Verde foram os dois países nos quais Darwin, a bordo do HMS
Beagle, aportou tanto na viagem de ida quanto na de volta para o Reino
Unido (DARWIN, 1913). O Brasil suscitou sentimentos extremos no jovem
Darwin (KEYNES, 2001). Em Salvador, presenciou a festa de Carnaval, que
à época consistia mais em uma guerra de água. Para evitar ser atacado
pelos carnavalescos, durante uma caminhada Darwin permaneceu na mata,
fora da cidade de Salvador, esperando anoitecer. No entanto, no caminho de
volta, teve de enfrentar um temporal e, com isso, provavelmente ficou mais
molhado do que se tivesse enfrentado os foliões.
Durante os três meses que passou no Rio de Janeiro, Darwin empreendeu
uma viagem ao interior, até a Fazenda Sossego, em Conceição de Macabu.
Ficou maravilhado pela beleza da vegetação tropical. Antes de desfrutar da
viagem à Fazenda Sossego, porém, Darwin teve de se submeter à
desagradável burocracia a fim de conseguir permissão para adentrar o
interior (KEYNES, 2001, p. 52):
Nunca é muito agradável submeter-se à insolência de homens que
exercem um cargo público; mas ter de se submeter aos brasileiros,
que são tão desprezíveis em suas mentes quanto miseráveis como
pessoas, é quase intolerável. Mas a perspectiva de florestas
selvagens habitadas por lindas aves, macacos e preguiças, e de
lagos habitados por capivaras e jacarés, fará qualquer naturalista
lamber a poeira até mesmo dos pés de um brasileiro.1
As cenas de crueldade no tratamento de escravos chocaram Darwin. Aquela
que mais o ofendeu foi uma disputa comercial, em que o proprietário dos
escravos, um inglês residente no Brasil, ameaçou vender separadamente os
membros de trinta famílias (DARWIN, 1913).
Na viagem de regresso, em passagem por Salvador, Darwin fez uma última
caminhada pela mata sabendo que não teria novamente a oportunidade de
vislumbrar tais belezas (DARWIN, 1913, p. 496-497):
Enquanto eu caminhava em silêncio pelos caminhos sombreados e
admirava cada paisagem sucessiva, desejava encontrar palavras
para expressar as minhas ideias. Epíteto após epíteto era muito
pouco para exprimir, para aqueles que não visitaram as regiões
tropicais, a sensação de prazer que a mente experimenta. [...] Na
minha última caminhada, eu parei mais e mais vezes para vislumbrar
essas belezas e tentar fixar na minha mente, para sempre, uma
impressão que, naquela época, eu sabia que mais cedo ou mais
tarde desapareceria. As formas da laranjeira, do cacaueiro, da
palmeira, da mangueira, da samambaiaçu, da bananeira
permanecerão claras e separadas; mas as mil belezas que as unem
em uma perfeita cena desvanecerão: ainda assim, elas deixarão,
como um conto ouvido na infância, uma gravura cheia de indistintas,
mas lindas figuras.2
Por sua vez, Darwin detestou Recife: “Todas as partes da cidade são
nojentas”
3
 (KEYNES, 2001). Ansioso por retornar à sua terra natal, Darwin
ficou feliz e aliviado em partir de Pernambuco: “Agradeço a Deus por nunca
mais ter de visitar um país escravocrata”
4
 (DARWIN, 1913, p. 499).
Mapa do roteiro percorrido por Darwin em sua viagem pelo interior do Rio de
Janeiro, em 1832. As setas e linhas vermelhas mostram o roteiro de ida a
Conceição do Macabu, enquanto as azuis apresentam seu retorno ao Rio de
Janeiro.
1 “It is never very pleasant to submit to the insolence of men in office; but to the Brazilians who are as
contemptible in their minds as their persons are miserable it is nearly intolerable. But the prospect of wild
forests tenanted by beautiful birds, Monkeys & Sloths, & Lakes by Cavies & Alligators, will make any
naturalist lick the dust even from the foot of a Brazilian.”
2 “Then quietly walking along the shady pathways, and admiring each successive view, I wished to find
language to express my ideas. Epithet after epithet was found too weak to convey to those who have not
visited the intertropical regions the sensation of delight which the mind experiences. […] In my last walk I
stopped again and again to gaze on these beauties, and endeavoured to fix in my mind for ever an
impression which at the time I knew sooner or later must fail. The form of the orange-tree, the cocoa-nut,
the palm, the mango, the tree-fern, the banana, will remain clear and separate; but the thousand beauties
which unite these into one perfect scene must fade away: yet they will leave, like a tale heard in childhood,
a picture full of indistinct, but most beautiful figures.”
3 “The town is in all parts disgusting.”
4 “I thank God, I shall never again visit a slave-country.”
Em Bahia Blanca, Argentina, Darwin descobriu inúmeros fósseis de grandes mamíferos
extintos. Não encontrou sinais de catástrofes nas proximidades e interpretou que as
camadas geológicas seriam o resultado de lentas deposições de marés. Muitos desses
fósseis foram enviados para a Inglaterra e, mesmo antes de seu retorno, foram identificados
como espécies próximas de animais viventes na América do Sul (DARWIN, 1913). Nessa
época, também recebeu da Inglaterra o segundo volume do livro de Lyell. Nele é defendida a
ideia de um criacionismo progressivo, contra a evolução, incorporando a existência de
“centros de Criação Divina”, na qual espécies seriam gradativamente criadas após extinções
(LYELL, 1832).
Nessa expedição, o Beagle trazia de volta à Terra do Fogo três patagões (indivíduos
nativos da Patagônia) que tinham sido levados à Inglaterra por ocasião da primeira
expedição. Os três tinham sido treinados para que fossem missionários e tentassem
transmitir os hábitos civilizados aos nativos que ali habitavam. Darwin ficou espantado, pois,
após o regresso ao local de origem, os três imediatamente retornaram aos seus hábitos
selvagens e não manifestaram o desejo de retomada dos comportamentos “civilizados”.
Chegou a comentar em seu diário: “Eu não poderia imaginar quão grande era a diferença
entre o homem selvagem e o civilizado: é maior que aquela entre o animal selvagem e o
domesticado”
13
 (DARWIN, 1913, p. 16).
Fueguinos, habitantes da Terra do Fogo. O navio HMS Beagle aparece ao fundo no
Estreito de Magalhães, ao sul do continente sul-americano. A viagem no navio
Beagle foi importante para Darwin no que se refere ao aprendizado nas áreas de
biologia e geologia e ao desenvolvimento da teoria da evolução. A observação do
comportamento dos fueguinos e a percepção das diferenças para os civilizados
europeus foram importantes para que Darwin percebesse as ligações entre o
homem e os animais.
Darwin vivenciou um terremoto quando esteve no Chile. O cataclismo destruiu várias
cidades chilenas (Concepción foi uma das mais afetadas) e foi possível constatar a elevação
de terra ocorrida em diversos locais. O capitão FitzRoy encontrou ostras aderidas às pedras
da costa até 10 m acima do nível anterior (DARWIN, 1913). Era a constatação prática do
processo gradual de elevação do continente da teoria de Lyell.
Nas Ilhas Galápagos (Equador), Darwin observou a mais extraordinária característica na
história natural de espécies em toda a sua viagem – a especiação em ilhas. Essa
característica peculiar à história natural de ilhas surpreendeu Darwin de tal maneiraque
descreveu espantado (DARWIN, 1913, p. 419):
[...] as diferentes ilhas, até certa extensão, são habitadas por um grupo diferente de
seres. [...] Eu nunca sonhei que ilhas, separadas por 50 a 60 milhas [80 a 97 km] de
distância, e a maioria delas à vista umas das outras, formadas pelas mesmas
rochas, com um mesmo clima, de mesma altitude, pudessem ser habitadas de
forma diferente.14
Inicialmente Darwin não deu a devida atenção ao vice-governador das ilhas, senhor Lawson,
que afirmara poder identificar, apenas pelo formato da carapaça, de que ilha eram as
tartarugas de Galápagos (KEYNES, 2001). A desatenção de Darwin teve consequências
mais adiante em seus estudos, pois ele não identificara o nome da ilha em cada uma de suas
amostras coletadas em Galápagos. Darwin foi salvo pelas meticulosas anotações de seu
auxiliar de campo, Syms Covington, que tivera esse cuidado (DARWIN, 1913).
As tartarugas das Ilhas Galápagos (subespécies de Geochelone nigra) apresentam
diferenças nas formas do casco de acordo com o ambiente em que vivem. Aquelas
de ambientes com vegetação herbácea têm carapaça baixa (A), enquanto aquelas
que vivem sob vegetação arbustiva têm carapaça elevada (B), que permite ao
animal consumir folhas dos arbustos. A percepção das adaptações desses animais
aos diferentes ambientes contribuiu para o desenvolvimento da teoria de Darwin.
Foto A: Karelj
Foto: B. Davey
O retorno de Darwin à Inglaterra só ocorreu em 2 de outubro de 1836, quando o Beagle
aportou em Falmouth, na Cornualha, quase cinco anos após sua partida do porto de
Plymouth. O navio fez a volta ao mundo e, no retorno, passou por Taiti, Nova Zelândia,
Austrália, Ilhas Cocos, Ilhas Maurício, África do Sul, além de uma breve parada em Salvador
(Bahia) e em Recife (Pernambuco). Darwin chegou à Inglaterra como um renomado
naturalista graças aos seus fósseis e às publicações por Henslow de suas cartas enviadas
durante a viagem (DESMOND; MOORE, 1992). Em reconhecimento pelo trabalho na
viagem, seu pai deu-lhe uma generosa pensão que permitia que abrisse mão de outras
carreiras e se dedicasse aos seus estudos científicos.
Dúvidas sobre a imutabilidade das espécies
Por já ser considerado uma celebridade nos círculos científicos, a recepção a Darwin em
seu retorno à Inglaterra foi muito calorosa. Dessa forma, logo ao final do ano foi convidado
a dar uma palestra na Universidade de Cambridge. Ainda nesse mesmo ano, apresentou um
artigo para a Sociedade Geológica de Londres. Ser o foco de tanta atenção o fez sentir
“[...] como um pavão admirando seu rabo
15
” (DESMOND; MOORE, 1992).
As primeiras providências que tomou no seu retorno relacionaram-se à organização e
catalogação de suas coleções, bem como à distribuição de seus exemplares a especialistas
para identificação. Henslow ficou com as coletas botânicas, e os fósseis com o promissor
anatomista Richard Owen. As amostras geológicas foram recebidas prontamente por
geólogos, mas as amostras animais tiveram de esperar mais tempo em razão do grande
trabalho acumulado pela maioria dos zoólogos da época (DESMOND; MOORE, 1992).
Darwin tinha ainda outro grande compromisso: escrever um livro sobre sua viagem no
Beagle. O capitão FitzRoy já estava comprometido com uma editora para a publicação das
memórias da viagem. Tendo visto as anotações de Darwin, FitzRoy pediu que escrevesse a
parte relativa às coletas biológicas da expedição. O livro de Darwin viria a ser o terceiro
volume da publicação sobre a viagem do Beagle dentro do trabalho de FitzRoy (DESMOND;
MOORE, 1992).
As primeiras identificações de fósseis coletados por Darwin mostraram-se extremamente
reveladoras. Um crânio gigantesco que Darwin coletara na Argentina, o qual se acreditara
ser de um parente de rinoceronte, foi identificado por Owen como sendo de um roedor
(nomeado Toxodon), talvez parente de uma capivara. Owen também identificou fósseis
aparentemente relacionados às atuais preguiças, tatus e lhamas, todos eram animais
restritos à região neotropical (DARWIN, 1887a). Ao mesmo tempo, as aves coletadas por
Darwin nas diversas ilhas do arquipélago de Galápagos, que estavam sendo identificadas
pelo ornitólogo John Gould, também indicavam ser aparentadas a espécies da América do
Sul. Já as tartarugas de Galápagos, que Darwin supusera que tivessem sido introduzidas
por piratas, foram identificadas pelo zoólogo Thomas Bell como únicas do local (DARWIN,
1887a).
 
Inicialmente identificado como um roedor, o Toxodon hoje é
reconhecido como um membro da extinta ordem dos
Notoungulados, animais de cascos, placentários, restritos à
região neotropical. Era um animal herbívoro de grande porte
(1,5 m de altura por 2,7 m de comprimento), habitante de
regiões áridas ou semiáridas. O toxodonte foi extinto
durante o Pleistoceno (de 2,59 Ma a 0,0117 Ma),
provavelmente por competição com outros herbívoros que
colonizaram a América do Sul após a ligação através do
Istmo do Panamá. A relação entre os fósseis coletados e
as espécies atuais permitiu a Darwin perceber a ocorrência
de especiação a partir de ancestrais do local. No caso do
toxodonte, Darwin supôs que fosse o ancestral da capivara.
A partir de março de 1836, durante o período final da viagem do Beagle, Darwin já vinha
tendo dúvidas sobre a imutabilidade das espécies. Raciocinando sobre as variações entre
ilhas de suas amostras de pássaros de Galápagos, Darwin comentou em suas anotações
feitas ainda no Beagle (KEYNES, 2001, p. XX): “[...] esses fatos podem minar a estabilidade
das espécies”
16
. No entanto, os resultados da identificação de seus fósseis, apresentados
pelos especialistas após seu retorno ao Reino Unido, não deixavam dúvidas: ficava claro
que espécies imigrantes se alteravam e se tornavam uma gama de novas espécies. Acredita-
se que Darwin tornou-se um evolucionista no período de 7 a 12 de março de 1837, quando
se encontrava em descanso na casa de seu pai (DE BEER, 1960). Foi nessa época que ele
iniciou suas anotações em uma caderneta, a qual deu o nome de “caderno de transmutação
de espécies”.
As várias espécies de tentilhões das Ilhas Galápagos foram importantes para a
argumentação de Darwin na defesa da evolução, comparando suas diferenças em
morfologia (especialmente na forma do bico), habitat e comportamento. Elas
também indicavam especiação a partir de ancestrais da América do Sul e adaptação
aos diferentes ambientes das ilhas.
Caderno de anotações (caderno B) sobre transmutação de espécies, no qual
Darwin, em março de 1837, fez seu primeiro desenho de uma árvore evolutiva. Lê-
se no topo da página: “eu penso”.
Os pensamentos evolucionistas de Darwin eram considerados completamente heréticos
para seus amigos anglicanos da comunidade científica. Ideias materialistas tinham sido
aproveitadas no Reino Unido por agitadores socialistas, e o clero acreditava que elas
atacavam a base divina da ordem social que estava ameaçada pela recessão e pela
desordem. Darwin não queria se associar a essas ideias blasfemas; era reservado e
bastante cuidadoso até mesmo em seus comentários sobre elas com os amigos. Abria-se,
apenas, a seu irmão Erasmus. Porém, era com seus amigos da comunidade científica com
quem estava, na realidade, ansioso por partilhá-las (DESMOND; MOORE, 1992).
Toda esta situação de tensão levou Darwin a ter problemas de saúde. Sua doença era
agravada pela ansiedade, pelo estresse e pela excitação. Os sintomas eram dores de
cabeça, palpitação, dores de estômago, vômitos, tremores e calores (DESMOND; MOORE,
1992). Darwin carregou esses problemas pelo resto de sua vida, o que, por vezes, resultou
em atrasos em seu trabalho. Tentativas de tratamento pouco ajudaram, mesmo testando os
mais diversos métodos anticonvencionais. Na atualidade, especula-se que Darwin tenha
contraído a doença de Chagas quando esteve no Chile, pois descreve em seu diário que foi
picado por um barbeiro. Recentemente sugeriu-se que ele teria a síndrome do vômito
cíclico, uma doença genética (HAYMAN, 2009).
Confessando um assassinato
Darwin passou a buscar evidênciasque comprovassem sua teoria a respeito da
transmutação de espécies (como a evolução era conhecida naquela época) e dos
mecanismos que pudessem explicar como isso acontecia. Passou a comunicar-se com
melhoristas de animais domésticos e realizou diferentes leituras no intuito de encontrar
detalhes sobre a seleção artificial de caracteres desejáveis. Nessas buscas, deparou-se com
um folheto do melhorista John Sebright com o seguinte texto (DESMOND; MOORE, 1992,
p. 247-248):
Um inverno rigoroso, ou a escassez de alimentos, ao destruir os fracos e os
doentes, tem todos os bons efeitos da mais habilidosa seleção. [...] o fraco e o
doente não vivem para disseminar suas mazelas.17
Em setembro de 1838, Darwin leu o livro An essay on the principle of population18, de Thomas
Malthus (1798), no qual o autor argumenta que a população humana cresce rápido
enquanto houver abundância de alimentos. Quando o alimento se torna escasso, o tamanho
populacional se estabiliza. Darwin percebeu a relação entre os argumentos de Malthus e a
seleção natural de indivíduos de uma população na natureza. Como já tinha conhecimento
da seleção artificial realizada por criadores de animais domésticos, percebeu que o mesmo
que acontece sob condições artificiais poderia estar acontecendo na natureza, em razão da
escassez de recursos. A evolução seria o resultado da sobrevivência e da competição
reprodutiva entre indivíduos da mesma espécie (DARWIN, 1887a).
Darwin também passou a buscar estabilidade em sua vida emocional. Em 29 de janeiro de
1839, casou-se com sua prima Emma Wedgwood, nove meses mais velha que ele, filha de
seu tio Josiah Wedgwood II. Para o casamento, seu tio deu um dote de £5.000 mais £400
por ano. Robert Darwin, seu pai, acrescentou £10.000 para investimentos. Após um período
morando em Londres, a família mudou-se em 17 de setembro de 1842 para uma casa no
interior – Down House – ao sul de Londres, em uma vila hoje conhecida por Downe
(DESMOND; MOORE, 1992). O casamento e a vida no campo permitiram que Darwin
desfrutasse da tranquilidade da qual precisava para concentrar-se em seu trabalho de
pesquisa; no entanto, continuou tendo problemas de saúde quando ficava muito estressado.
Em 1º de junho de 1839, foi finalmente publicado o livro de FitzRoy sobre a viagem do
Beagle, cujo terceiro volume teve a contribuição de Darwin. O lançamento fora adiado
diversas vezes por causa de atrasos no término dos volumes de FitzRoy. O volume escrito
por Darwin foi sucesso imediato e, posteriormente, passou a ser publicado separadamente,
como livro avulso, sob o nome de Journal of researches into the natural history and geology
of the countries visited during the voyage of H.M.S. Beagle round the world, under the
command of Capt. Fitz Roy, R.N.19 (hoje conhecido por A viagem do Beagle) (DARWIN,
1913). Darwin dedicou o livro ao geólogo Charles Lyell, de quem se tornara próximo.
No início da década de 1840, Darwin decidiu que precisava avaliar o impacto da exposição
de suas ideias evolucionistas e passar a redigi-las. Inicialmente escreveu para Lyell, que
ficou chocado. Em maio de 1842, após a finalização de alguns compromissos editoriais,
Darwin e a família foram passar uns dias de férias com os Wedgwood em sua residência em
Maer, e com seu pai em Shrewsbury. Nesses dois meses de retiro familiar, Darwin redigiu um
esboço de sua teoria com 35 páginas (DARWIN, 1909a). Outro biólogo que Darwin utilizou
como confidente de suas ideias foi o botânico Joseph Hooker, com quem fizera amizade.
Darwin escreveu-lhe mencionando sua opinião sobre transmutação. Desculpando-se de tal
suposta calúnia, apontou que sua declaração era “como confessar um assassinato”
20
(DARWIN, 1887b, p. 23). Em sua resposta, Hooker apenas mencionou que gostaria de
saber como Darwin acreditava que as mudanças aconteciam nas espécies, já que nenhuma
das opiniões que conhecia o tinha convencido. Darwin passou então a transformar seu
esboço em um ensaio que, em setembro de 1844, já tinha 231 páginas (DARWIN, 1909b).
Preocupado em tornar suas ideias públicas, Darwin preparou uma carta a ser aberta por sua
esposa em caso de sua morte, na qual solicitava a publicação desse ensaio.
Nesse ínterim, em outubro de 1844, foi publicado o livro Vestiges of the natural history of
creation21. O livro, escrito por Robert Chambers (mas publicado anonimamente), apresentava
ideias lamarckistas (ver Capítulo 2) e tornava pública a noção de transmutação das
espécies. Tinha um estilo populista de escrita e se transformou na sensação da classe
média britânica. As informações relacionadas à geologia e à zoologia, porém, eram pobres.
As reações geradas pelo livro nos naturalistas clericais anglicanos foram ferozes. Para
Darwin, as objeções ao livro deixaram claro que a comunidade científica anglicana se
opunha completamente à transmutação e que essa seria a reação às suas ideias caso se
tornassem públicas (DESMOND; MOORE, 1992).
Era preciso encontrar argumentos para justificar suas teses. Com a ajuda de Hooker,
Darwin buscou achar fundamentos e explicar fatos de sua teoria que eram duvidosos
(DARWIN, 1887a). Emma também foi consultada e indicou trechos que não estavam bem
descritos. Apenas em 5 de janeiro de 1847, Darwin finalmente entregou a Hooker uma cópia
de seu “ensaio” para as tão desejadas críticas. Em 1850, Hooker passou a ajudar Darwin
também na busca por comprovações da evolução e a testar ideias evolucionistas (DARWIN,
1887b).
Darwin começou seu trabalho com cracas em 1º de outubro de 1848 (DARWIN, 1887a).
Esse trabalho atrasou consideravelmente a publicação de seu livro sobre evolução, mas foi
muito instrutivo. Permitiu que percebesse que a ligação entre diversos grupos de cracas,
quanto à sua classificação zoológica, estava relacionada a uma ancestralidade comum. Para
Darwin, as homologias entre diferentes cracas mostravam como órgãos poderiam mudar de
função e atender a novas condições ambientais. O livro de Darwin sobre esses crustáceos
foi publicado apenas em 1854 e fez dele, à época, o maior especialista sobre o assunto
(DESMOND; MOORE, 1992).
Nesse período, duas mortes na família afetaram profundamente o pensamento de Darwin.
Em novembro de 1848, faleceu seu pai e, em 23 de abril de 1851, sua filha mais velha –
Anne – aos 10 anos de idade. “Nós perdemos a alegria da casa e o consolo de nossa
velhice”
22
 (DARWIN, 1887a, p. 134). Em razão disso, Darwin perdeu toda a fé em um Deus
beneficente e passou a ver o Cristianismo como algo fútil (DESMOND; MOORE, 1992). A
morte de seu pai e de sua filha também teve forte influência em seu pensamento evolutivo,
pois passou a ver os eventos da natureza como tragicamente incidentais, desvinculando-os
do controle divino.
Anne Elizabeth Darwin, filha mais velha de Darwin (segunda entre os filhos), que
faleceu em 23 de abril de 1851, aos 10 anos de idade, após ter contraído escarlatina
(a morte provavelmente foi causada por tuberculose). Com sua morte, Darwin
passou a considerar como incidentais os processos de nascimento, reprodução e
morte.
Em setembro de 1855, a publicação de um artigo na revista Annals and magazine of natural
history aceleraria a apresentação da teoria da evolução. Tratava-se do artigo de autoria de
Alfred Russel Wallace, intitulado On the law which has regulated the introduction of new
species23, o qual transformou o trabalho de Darwin (WALLACE, 1855). O envolvimento de
Wallace no desenvolvimento do pensamento evolutivo deu um novo rumo e demandou
urgência na publicação da teoria de Darwin.
Um naturalista na Amazônia e no arquipélago malaio
Alfred Russel Wallace, filho de uma família de origem escocesa, nasceu em 8 de janeiro de
1823, em Llanbadoc, próximo de Usk, no País de Gales. Nasceu quase 14 anos depois de
Darwin. Sua família era modesta, de uma decadente classe média britânica, sem a
prosperidade e posição social da família de Darwin. Wallace era o oitavo filho de nove
irmãos. A família mudou-se do País de Gales para Hertford, ao norte de Londres, quando
Wallace tinha 5 anos de idade(MARCHANT, 1916).
Por causa do agravamento da situação financeira de seu pai, Wallace teve de deixar a
escola aos 13 anos. Trabalhou na empresa de um de seus irmãos como carpinteiro ou
fazendo levantamentos topográficos para as novas estradas de ferro britânicas, enquanto
assistia às aulas à noite. Nesse trabalho, Wallace percorria grandes extensões do interior da
Inglaterra e do País de Gales, o que fez desenvolver seu interesse por história natural. Mais
tarde, com o declínio da empresa do irmão, Wallace passou a dar aulas de desenho
topográfico, confecção de mapas e topografia em uma escola em Leicester (Inglaterra) e,
posteriormente, de ciência e engenharia em Neath (no País de Gales), entre 1844 e 1846
(MARCHANT, 1916).
Enquanto estava em Leicester, em 1845, Wallace leu avidamente. Entre os livros que leu,
encontravam-se An essay on the principle of population, de Malthus (1798), o controverso
livro Vestiges of the natural history of creation, de Robert Chambers (1844), o Principles of
geology, de Lyell (1830), e a segunda edição, em 1845, do livro de Darwin, A viagem do
Beagle (DARWIN, 1913). Nesse período, tornou-se amigo de um naturalista que veio a ser
um famoso evolucionista – Henry Walter Bates (MARCHANT, 1916).
Thomas Robert Malthus (1766–1834), economista político e demógrafo inglês, que,
com seu livro An essay on the principle of population, publicado em 1798, influenciou
Darwin e Wallace na descoberta da seleção natural como o principal mecanismo
evolutivo. Darwin e Wallace perceberam que a evolução seria o resultado da
sobrevivência e da competição reprodutiva entre indivíduos.
Compelido por seu amor à biologia, Wallace decidiu ganhar a vida coletando espécimes
biológicos nos trópicos. Juntos, Wallace e Bates realizaram uma viagem pela Amazônia em
busca de espécimes e de respostas a perguntas evolucionistas. Chegaram à Amazônia em
26 de maio de 1848 e ficaram a maior parte do primeiro ano fazendo coletas em torno de
Belém, no Pará. Junto com Bates, Wallace fez muitas descobertas importantes durante os
quatro anos em que ficou na Amazônia, mas os dois não chegaram a nenhuma resposta às
suas perguntas evolucionistas. Parte dos espécimes coletados por Wallace foi perdida em
um incêndio no navio, durante a viagem de volta ao Reino Unido (WALLACE, 1889).
Ainda que tenha perdido parte de suas anotações da viagem, Wallace publicou seis artigos
científicos e dois livros nos 18 meses em que ficou em Londres. Em 1854, partiu para uma
nova viagem de coleta de espécimes, dessa vez para o arquipélago malaio (Malásia e
Indonésia). Chegou a Cingapura em 20 de abril e permaneceu oito anos na região. Nessa
viagem, Wallace coletou quase 110.000 insetos, 7.500 conchas, 8.050 aves e 410 mamíferos
e répteis. Mais de 1.000 espécies novas para a ciência. Descobriu, em sua viagem, um limite
de distribuição que separa a fauna oriental da fauna australiana, mais tarde chamado de
“linha de Wallace” (WALLACE, 2001). Hoje, a linha de Wallace é reconhecida como produto
de movimentos tectônicos de placas (deriva continental).
Wallace cresceu no ambiente da classe operária britânica, em razão disso ele era mais
aberto a novidades do que Darwin. Esse fato também o tornou muito menos temeroso das
reações públicas às suas opiniões (GHISELIN, 2008). Quando partiu para sua viagem pela
Amazônia, em 1848, Wallace já acreditava na transmutação das espécies. Lá ele percebeu
que barreiras geográficas, como os grandes rios da Amazônia, poderiam por vezes separar
a distribuição de espécies aparentadas (WALLACE, 1889).
Wallace enviou da Indonésia, para que fosse publicado na Inglaterra, o artigo On the law
which has regulated the introduction of new species24. Nesse artigo, ele aponta que uma nova
espécie tem origem de outra similar, ideia que ele já vinha desenvolvendo desde sua viagem
pela Amazônia (WALLACE, 1855). Era o mais importante artigo sobre evolução até então
publicado. Distribuído em setembro de 1855, o artigo foi lido tanto por Lyell quanto por
Darwin e despertou a atenção de muitos cientistas. Darwin, até então, não havia publicado
nada explícito sobre evolução (GHISELIN, 2008).
Suas palavras realmente se tornaram verdade
A publicação do artigo de Wallace (1855) despertou a atenção de Lyell. A impressão foi tal
que ele passou a fazer anotações em um caderno denominado “caderno de espécies”. Em
meados de abril de 1856, Lyell visitou Darwin em Down House e, tendo conhecimento de
que Darwin vinha trabalhando na transmutação de espécies, pediu que narrasse sobre suas
pesquisas. Darwin relatou-lhe suas opiniões sobre a seleção natural (a respeito da qual
vinha trabalhando há 20 anos em segredo). Percebendo que Wallace estava trabalhando na
mesma linha de raciocínio, Lyell encorajou Darwin a publicá-las (GHISELIN, 2008). Em maio
de 1856, Darwin começou a escrever um longo livro sobre sua teoria.
Darwin era um dos clientes de Wallace em suas coletas na Indonésia. Em uma das
correspondências, em 1º de maio de 1857, Darwin mencionou sobre seu trabalho
(MARCHANT, 1916, p. 129):
Percebi que pensamos de forma muito parecida e que, até certo ponto, chegamos
às mesmas conclusões. [...] Nesse verão, fará 20 anos desde que iniciei meu
primeiro caderno sobre como as espécies e as variedades diferem entre si [...]
acredito que só vá para publicação após dois anos.25
O botânico americano Asa Gray era outro correspondente de Darwin. Em 20 de julho de
1856, Darwin comunicou, em uma carta, que estava trabalhando na teoria da evolução. Já
em setembro de 1857, Darwin lhe escreveu a respeito do princípio da seleção natural
(GHISELIN, 2008). Asa Gray viria a se tornar testemunha do pensamento evolutivo de
Darwin.
Em fevereiro de 1858, pouco tempo após receber uma carta de Darwin na qual o encorajava
a teorizar sobre evolução, Wallace teve um ataque de malária na ilha de Halmahera, na
Indonésia. Posteriormente, ele mencionou (WALLACE, 1905, p. 361):
Todo dia, durante os sucessivos ataques de frio e calor, eu tinha que me deitar por
várias horas; nesse tempo, eu não tinha nada a fazer a não ser refletir sobre
assuntos que particularmente me interessavam.26
Com isso, Wallace pensou a respeito das doenças e da fome e sobre como elas
controlavam as populações humanas. Também pensou nas evidências recentes que
mostravam que a Terra deveria ser muito antiga. Com base nisso, concluiu que populações
que apresentassem variações e que fossem mais adaptadas ao ambiente durariam por mais
tempo e eventualmente se tornariam novas espécies ajustadas às novas condições. Wallace
preparou um manuscrito com sua descoberta sobre o mecanismo para a transmutação e o
enviou a Darwin (MARCHANT, 1916). Logo para quem! Pedia a Darwin que apresentasse o
artigo para Lyell, se achasse de valor, e solicitou que os dois o enviassem para publicação
em alguma revista importante.
Em 18 de junho de 1858, o manuscrito de Wallace chegou às mãos de Darwin, que ficou
atônito com a mensagem. Imediatamente ele entrou em contato com Lyell e perguntou-lhe o
que deveria fazer. Na carta a Lyell, Darwin afirmava (DARWIN, 1887b, p. 116):
Há mais ou menos um ano atrás, você me recomendou um artigo de Wallace,
disponível em “Annals”, que havia interessado você, e, como eu estava me
correspondendo com ele e sabia que isso o agradaria muito, contei-lhe a respeito.
Ele me mandou o seguinte anexo hoje e pediu que o enviasse para você. Parece-
me que vale a pena ser lido. As suas palavras se tornaram uma forte realidade – de
que alguém me anteciparia. Você me disse isso, quando lhe expliquei aqui
resumidamente as minhas opiniões sobre a “Seleção Natural” depender da luta pela
existência. Eu nunca vi maior coincidência: se Wallace estivesse de posse do
esboço da minha monografia escrita em 1842 não teria feito um resumo melhor!
Até mesmo meus capítulos usam seus termos como título.27
Darwin também pediu a opinião de Hooker. Tendo conhecimento dos estudos de Darwin,
tanto Lyell quanto Hooker desejavam dar a ele o maior crédito pela descoberta. Assim,
optaram porpublicar a teoria em um trabalho em conjunto. Wallace não foi consultado sobre
essa decisão, nem os autorizou a fazer a publicação conjunta. Ademais, não haveria tempo
hábil para consultá-lo. Darwin pouco se envolveu no processo, pois, durante esse intervalo,
em 28 de junho, seu filho mais novo (Charles, de um ano e sete meses de idade) faleceu
após ter contraído escarlatina. Nem Darwin nem Wallace compareceram à reunião da
Sociedade Linneana de Londres em 1o de julho de 1858, quando o trabalho conjunto foi
apresentado. Darwin se recuperava da morte de seu filho e Wallace ainda se encontrava no
arquipélago malaio (GHISELIN, 2008).
Joseph Dalton Hooker (1817–1911) foi um grande botânico inglês e diretor, por 20
anos, do Jardim Botânico Real em Kew. Hooker ajudou Darwin a encontrar
evidências da evolução e argumentos para justificá-la. Foi ele quem revisou os
textos do livro de Darwin.
Alfred Russel Wallace (1823–1913), importante biólogo e geógrafo britânico que
desenvolveu a teoria da evolução por seleção natural, independentemente de
Charles Darwin. Wallace desenvolveu suas pesquisas tanto na Amazônia quanto na
Indonésia. As descobertas de Wallace pressionaram Darwin a publicar sua teoria.
Charles Lyell (1797–1875), grande geólogo inglês que advogou e popularizou o
conceito do uniformitarismo. Tornou--se amigo próximo de Darwin e confidente
sobre a teoria da evolução por seleção natural, ainda que dela discordasse. Lyell e
Hooker foram os cientistas que apresentaram o trabalho conjunto de Darwin e
Wallace na reunião da Sociedade Linneana de Londres, em 1º de julho de 1858.
Asa Gray (1810–1888), botânico americano com quem Darwin se correspondia e de
quem recebeu muitas informações que o ajudaram no desenvolvimento da teoria da
evolução por seleção natural. Darwin também trocou confidências com Asa Gray
sobre sua teoria.
O artigo foi estruturado em quatro partes: uma carta de apresentação de Lyell e Hooker; o
rascunho de um capítulo não publicado de Darwin, escrito em 1844; o resumo de uma carta
de Darwin a Asa Gray, datada de 5 de setembro de 1857, em que menciona sua teoria; e o
manuscrito de Wallace (GHISELIN, 2008). A carta de apresentação (de Lyell e Hooker)
aponta que Darwin e Wallace chegaram independentemente à mesma teoria a respeito do
aparecimento e da perpetuação de variedades e formas específicas em nosso planeta. Além
disso, pede que os dois sejam merecidamente reconhecidos como os pensadores originais
dessa linha de pesquisa e mostra que Darwin, por diversas vezes nos anos anteriores, foi
encorajado pelos autores da carta a publicar suas opiniões. Para dar ênfase ao trabalho de
Darwin, as partes de sua autoria são apresentadas antes da parte de Wallace e têm a
intenção de provar que ele tinha descoberto a seleção natural muitos anos antes da referida
publicação. A carta a Asa Gray busca provar que ele já tinha discutido o assunto sobre
seleção natural com vários colegas próximos e que vinha escrevendo um livro a respeito. A
parte de Wallace é uma nota preliminar que buscava a opinião de Darwin, mas que expunha
claramente os princípios da seleção natural (GHISELIN, 2008).
Grande parte da audiência não deve ter entendido o que estava sendo apresentado e as
grandes implicações não foram óbvias. O manuscrito foi publicado em agosto de 1858
(GHISELIN, 2008). Seria fácil aceitar que a seleção natural pudesse dar origem a raças e
variedades, como escrito no manuscrito. Porém, seria bem mais difícil aceitar que o
mecanismo pudesse dar origem a novas espécies e, até mesmo, permitir que todos os
organismos vivos descendessem de um ancestral comum. Essa consequência da teoria da
evolução tornou-se evidente apenas com o livro de Darwin publicado no ano seguinte.
Wallace só tomou conhecimento do ocorrido por carta de Hooker. Darwin ficou preocupado
com sua reação, mas, em 6 de outubro de 1858, Wallace escreveu uma carta a Hooker na
qual comunicava estar de acordo com a iniciativa dele e de Lyell e que ficara satisfeito de ter
persuadido Darwin a publicar seu livro (MARCHANT, 1916).
Grandeza nessa visão da vida
Darwin queria divulgar suas ideias ao grande público e apresentá-las em detalhes,
embasando-as em evidências. Após um curto descanso em razão do trauma pela morte do
filho, Darwin passou a trabalhar duro em seu manuscrito. Deixou de lado a intenção de
escrever um grande livro e resolveu publicar um resumo de suas ideias. Nesse meio tempo,
surgiram as poucas reações à publicação conjunta de Darwin e Wallace (DARWIN, 1887a, p.
157). O zoólogo Alfred Newton comentou:
Teria Darwin roubado a teoria de Wallace?
Dedicatória feita por Wallace a Darwin, em seu livro The Malay Archipelago [O
Arquipélago Malaio] (2001), na qual se lê: “A Charles Darwin, [...] eu dedico este livro,
não apenas como uma prova de estima pessoal e amizade, mas também para
expressar a minha profunda admiração pelo seu intelecto e seus trabalhos”.
A teoria da evolução por seleção natural é de Darwin ou de Wallace? O
melhor é dizer que ela é dos dois. Na realidade, durante a segunda metade
do século XIX, a teoria era creditada aos dois. Porém, ao final do século XIX
e início do século XX, a seleção natural como mecanismo da evolução
passou por um período de descrédito. Assim, a teoria caiu um pouco no
esquecimento. A popularidade do livro de Darwin o manteve lembrado
(DESMOND; MOORE, 1992). O esquecimento da participação de Wallace
na teoria da evolução levantou suspeitas sobre a lisura do processo de
publicação do artigo conjunto na Sociedade Linneana de Londres, em 1º de
julho de 1858, especialmente por aqueles desejosos de sensacionalismo
(QUAMMEN, 1997). Alguns argumentam, baseados no tempo que os navios
demoravam para retornar do arquipélago malaio e chegar à Inglaterra, que
Darwin teria recebido a correspondência em maio de 1858, e não em meados
de junho como por ele foi anunciado.
Hoje, a vida de Darwin é um livro aberto, com a publicação de centenas de
cartas por ele enviadas e recebidas (DARWIN, 1887b). A vida de Wallace
também (MARCHANT, 1916). Hoje é sabido que, quando Darwin se tornou
um evolucionista, Wallace tinha apenas 14 anos e ainda nem trabalhava com
história natural. Wallace, por sua vez, tornou-se um evolucionista apenas em
1845, quando Darwin já tinha dado conhecimento de suas ideias
evolucionistas com a apresentação a Hooker de seu ensaio sobre evolução
por seleção natural. Na realidade, as cartas mostram até mesmo que
Wallace chegou às suas conclusões sobre a seleção natural auxiliado pela
correspondência entre ele e Darwin. A seleção natural foi uma brilhante ideia
que Darwin e Wallace tiveram. Porém, foi o enorme peso das evidências
apresentadas por Darwin, em seu livro, que a fizeram crível.
Darwin e Wallace desenvolveram uma grande admiração e respeito um pelo
outro. Para não deixar dúvidas sobre a lisura da descoberta, Wallace
frequentemente destacava que Darwin tinha mais direito à ideia da seleção
natural e, até mesmo, deu a um de seus livros o título de Darwinismo
(MARCHANT, 1916). Darwin, por sua vez, deu amplamente a Wallace o
crédito de codescobridor da seleção natural.
A reação do anatomista Thomas Huxley não foi muito diferente: “Como fui idiota de não ter
pensado nisso!”
29
 (DARWIN, 1887a, p. 197).
Thomas Henry Huxley (1825–1895), anatomista inglês que foi grande defensor da
teoria da evolução, conhecido como o “buldogue de Darwin”. Antes da publicação
do trabalho conjunto de Darwin e Wallace, Huxley não acreditava na transmutação
de espécies. Os dois se tornaram muito próximos após a publicação do livro A
origem das espécies, apesar de não serem confidentes.
A saúde de Darwin não ajudou na confecção de seu livro. Com tanta excitação, raramente
conseguia escrever sem dores de barriga. Hooker e Lyell foram imprescindíveis na revisão
dos textos e Darwin acabou fazendo grandes alterações no texto original. Lyell, entretanto,
continuava preocupado com o fato de “a dignidade do homem estar em jogo”
30
. Quando o
livro foi para impressão, Darwin foi descansarem um spa, pois foi acometido de vômitos e
calores, e tinha a pele coberta por erupções e inchaços nas pernas. De lá enviou para
muitos cientistas as cópias de cortesia com comentários, pois já previa antecipadamente
suas reações. A Stevens Henslow comentou: “Eu temo que você não concorde com seu
pupilo”
31
 (DARWIN, 1887a, p. 218). A Richard Owen escreveu: “parecerá uma obscenidade”
32
.
Embora o livro tenha sido posto à venda em 22 de novembro de 1859, seu lançamento só
ocorreu em 24 de novembro (DESMOND; MOORE, 1992).
On the origin of species by means of natural selection, or the preservation of favoured races
in the struggle for life (DARWIN, 1859) é o único grande tratado científico que foi escrito,
deliberadamente, como literatura popular. A teoria está estruturada em quatro partes: a)
indivíduos de uma mesma espécie diferem entre si de uma maneira hereditária; b) mais
indivíduos nascem em uma população do que é possível sobreviver; c) alguns indivíduos
possuem características que lhes dão maior chance de sobrevivência e reprodução do que
outros da mesma espécie; d) essas características favoráveis vão sendo passadas para as
gerações futuras e são acumulativas. A simplicidade dessas ideias permitiu que fossem de
fácil compreensão para o público comum.
Ainda que, em seu livro A origem das espécies, Darwin tenha procurado não
mencionar sobre a origem do homem, a interpretação ficou óbvia para os leitores. A
imprensa aproveitou a controvérsia para estampar caricaturas que, muitas vezes,
apresentavam Darwin com corpo de macaco. Darwin explicitou suas opiniões sobre
a origem do homem em seu livro The descent of man, and selection in relation to sex
[A descendência do homem e a seleção em relação ao sexo] (1871).
As reações ao livro foram imediatas. Adam Sedgwick comentou em uma carta a Darwin em
dezembro de 1859 (DARWIN, 1887c, p. 248):
Li seu livro com mais dor do que prazer. Partes dele admirei bastante; em partes, ri
até não poder mais; outras partes li com muita tristeza, pois acredito que sejam
completamente falsas e desagradavelmente maliciosas.33
Adam Sedgwick (1785–1873), geólogo inglês que foi professor de Darwin em
pesquisa de campo no País de Gales. Após a publicação do livro A origem das
espécies, Sedwick passou a ser um dos principais adversários da teoria da
evolução.
Os críticos também foram impiedosos. Ainda que Darwin tenha evitado controvérsias no
livro, a interpretação de que o homem tinha como origem o macaco foi imediatamente
destacada pela imprensa.
Owen apontou que o livro era exemplo do “abuso da ciência”. Com tanta pressão dos
religiosos, Darwin amenizou o tom das edições seguintes. Uma das mudanças foi feita em
sua frase final do livro (DARWIN, 1859, p. 490):
Existe uma grandeza nessa visão de vida, com seus diversos poderes,
originalmente soprados em algumas formas ou em uma só; e isso, enquanto esse
planeta gira de acordo com as leis fixas da gravidade; de um início tão simples, as
mais lindas e maravilhosas, infinitas formas evoluíram e estão evoluindo.34
A partir da segunda edição, Darwin mudou para “soprados pelo Criador” (DARWIN, 1860).
Richard Owen (1804–1892) foi o mais eminente zoólogo, anatomista e paleontólogo
inglês da época de Darwin. Seu legado nos estudos de anatomia comparada de
invertebrados e de vertebrados e de fósseis é fenomenal. Foi ele quem criou o
termo “dinossauro”. Também foi ele o responsável pela construção do Museu de
História Natural de Londres e pelo conceito atual de museu como uma instituição de
exibição e de educação para o grande público. Porém, por muitos, e até mesmo por
Darwin, Owen foi considerado a pessoa mais odiosa, ardilosa e enganadora. Por
causa de seu egocentrismo, não deixou nenhum discípulo. Era conhecido também
pelo seu desprezo, desconsideração e, até mesmo, por ter se apropriado do
trabalho de outros cientistas e pelas intrigas e disputas pelo poder. Ainda que seus
estudos indicassem uma modificação das espécies ao longo dos tempos, Owen foi
o principal adversário de Darwin e crítico da evolução por seleção natural após a
publicação do livro A origem das espécies.
A consequência óbvia de tanto alarde foi o aumento da curiosidade sobre o livro. A origem
das espécies estava nas ruas sendo amplamente consumido. As 1.250 cópias esgotaram-se
rapidamente e, no início de dezembro, outras 3.000 estavam sendo impressas para atender
à crescente demanda. Em maio de 1860, o livro já estava sendo publicado nos Estados
Unidos (DESMOND; MOORE, 1992).
Apoio também não faltou. Huxley e Hooker escreveram críticas em jornais enaltecendo o
livro. O antigo professor de Darwin em Edimburgo, Robert Grant, dedicou um livro a Darwin
com o comentário: “Com um rápido toque da varinha da verdade, você espalhou aos ventos
os vapores pestilentos acumulados pelos inventores de espécies”
35
 (GRANT, 1861, p. VI). No
Brasil, o zoólogo alemão Fritz Müller escreveu a marcante apologia Für Darwin, que mais
tarde viria a ser traduzida para o inglês sob o título Facts and arguments for Darwin36. E os
debates públicos entre os opositores e defensores do livro estavam por vir, para os quais
Huxley estava “afiando seu bico e suas garras”
37
 (DARWIN, 1887c, p. 232).
Wallace, que veio a ser um dos principais defensores da teoria da evolução e do livro de
Darwin, retornou à Inglaterra apenas em 1º de abril de 1862. Encontrou-se com Darwin
pouco tempo após sua chegada. Ele ficou profundamente impressionado pelo detalhamento
do livro. Em uma carta para Bates comentou (MARCHANT, 1916, p. 73):
Eu não sei como e a quem expressar completamente a minha admiração pelo livro
de Darwin. Para ele, parecerá adulação, para outros, autoexaltação; mas eu
honestamente acredito que, apesar de toda a paciência com que trabalhei e estudei
sobre o assunto, eu nunca teria coberto a amplitude do seu livro – o seu vasto
acúmulo de evidências, a sua argumentação avassaladora e o seu admirável tom e
espírito. Fico agradecido por não ter sido o responsável por tornar essa teoria
pública. O senhor Darwin criou uma nova ciência e uma nova filosofia, e eu acredito
que nunca uma ilustração tão completa de um novo ramo do conhecimento foi
atribuída ao trabalho e à pesquisa de um único homem. Nunca uma tão vasta gama
de fatos, amplamente dispersos e previamente desconexos, foi combinada em um
sistema e usada para o estabelecimento de uma filosofia tão grande, nova e
simples!38
A luta pela aceitação de uma teoria
Cento e cinquenta anos após a publicação do livro A origem das espécies, a teoria da
evolução continua sendo rejeitada por uma grande parcela da população humana. Isso
ocorre pelo fato de, muitas vezes, existir a crença de que a remoção do homem do berço
da criação poderia levar à falta de sentido na vida ou, até mesmo, à perda de valores éticos
e morais por parte de nossa sociedade. Darwin temia que essa fosse a forma com que a
sociedade reagiria a seu livro. E ela não foi diferente: em novembro de 1859, seu professor
Adam Sedgwick, em carta a Darwin, mencionou que “[...] passagens do seu livro, como
aquelas às quais aludi (e há outras quase tão ruins), foram um grande choque à minha
apreciação moral”
39
. Ainda apontou que, se as afirmações de Darwin fossem verdade, “[...] a
humanidade, a meu ver, sofreria um dano que poderia brutalizá-la e afundá-la ao grau mais
baixo de degradação”
40
. Ao terminar a carta, em tom de ameaça, Sedgwick diz a Darwin que,
caso eles agissem em conformidade com as revelações de Deus, eles se “encontrariam no
céu”
41
 (DARWIN, 1892, p. 217-218). Até hoje vemos que a suposta ameaça aos valores
éticos e morais continua sendo o principal entrave à aceitação do trabalho de Darwin.
Após a publicação do livro A origem das espécies, Darwin passou o resto de sua vida
buscando a aceitação de sua teoria e apresentando respostas a dúvidas e argumentações
contra ela. Além de reeditar A origem das espécies e seus livros antes publicados,
atualizando o conhecimento e respondendo a críticas, publicou dez novos livros, os quais

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