Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Etiologia A hepatite infecciosa canina (HIC), causada pelo adenovírus canino (CAV)1, tem homogeneidade sorológica mundial e similaridades imunológicas com os adenovírus humanos. Sinônimos históricos da doença incluem a encefalite de raposas e a doença de Rubarth. O CAV1 é antigênica e geneticamente distinto do CAV2, que causa doença respiratória em cães (ver Etiologia, no Capítulo 6). Variantes genéticas do CAV2 foram isoladas do intestino de um filhote canino com diarreia hemorrágica e de cães de canis que apresentaram diarreia. Adenovírus humanos foram usados como vetores para testar a vacina recombinante em cães.26 Como outros adenovírus, o CAV1, por ser altamente resistente à inativação ambiental, sobrevive à desinfecção com várias substâncias químicas, como clorofórmio, éter, ácido e formol, e é estável quando exposto a certas frequências de radiação ultravioleta. O CAV1 sobrevive durante dias à temperatura ambiente em restos no solo, permanece viável por meses a temperaturas abaixo de 4°C e é inativado após 5 min a 50 a 60°C, o que torna a limpeza a vapor um meio plausível de desinfecção. A desinfecção química também foi bemsucedida com o uso de iodo, fenol e hidróxido de sódio, mas todos são potencialmente cáusticos. O CAV1 causa doença clínica em cães, coiotes, raposas, lobos e outros membros das famílias Canidae e Ursidae (ursos). Foi relatada infecção fatal em uma lontra (Lutra lutra).31 Além desses carnívoros, também foram detectados anticorpos séricos em mamíferos marinhos, inclusive morsas (Odobenus rosmarus) e leõesmarinhos (Eumetopias jubatus).5,32,35 A alta prevalência de anticorpos séricos neutralizantes de ocorrência natural na população canina silvestre e selvagem não vacinada sugere que a infecção subclínica esteja disseminada.2,14,16,17,38 O CAV1 foi isolado de todos os tecidos corporais e secreções de cães durante os estágios agudos da doença. Por volta de 10 a 14 dias pós inoculação (PI), o vírus pode ser encontrado nos rins e é excretado na urina por pelo menos 6 a 9 meses. A transmissão do vírus por aerossol via urina é improvável, e foi observado que cães suscetíveis mantidos a espaços de 15 cm dos que eliminavam o vírus não se infectaram. Pode ocorrer disseminação viral por contato com fômites, incluindo utensílios usados para a alimentação dos animais e as próprias mãos. Ectoparasitas podem abrigar o CAV1 e estar envolvidos na transmissão natural da doença. Patogenia Após exposição oronasal natural, o vírus inicialmente localizase nas tonsilas, de onde se dissemina para linfonodos regionais e linfáticos antes de alcançar o sangue pelo ducto torácico. A viremia, que dura 4 a 8 dias após a infecção, resulta na disseminação rápida do vírus para outros tecidos e secreções corporais, inclusive a saliva, a urina e as fezes. As células parenquimatosas hepáticas e endoteliais vasculares de muitos tecidos, inclusive do sistema nervoso central (SNC), são os principais alvos de localização viral e lesão. A lesão celular inicial do fígado, dos rins e dos olhos está associada aos efeitos citotóxicos do vírus. Uma resposta de anticorpo suficiente por volta do sétimo dia após a infecção elimina o vírus do sangue e do fígado e restringe a extensão do dano hepático. Necrose hepática centrolobular a panlobular disseminada costuma ser fatal em cães infectados experimentalmente, com título de anticorpos neutralizantes persistentemente baixo (inferior a 4). A necrose hepática aguda pode ser autolimitada e centrolobular restrita, pois ocorre regeneração hepática em cães que sobrevivem a essa fase da doença. Os cães que demonstram título de anticorpo neutralizante parcial (superior a 16, inferior a 500) por volta de 4 a 5 dias após a infecção podem desenvolver hepatite ativa crônica e fibrose hepática. A inflamação hepática persistente continua, provavelmente como resultado da infecção hepática crônica latente com o vírus. Geralmente, os cães com títulos suficientes de anticorpos neutralizantes (pelo menos 500) no dia da infecção exibem pouca evidência clínica da doença. Os cães imunes ao desafio parenteral com o CAV1 ainda são suscetíveis à doença respiratória via partículas virais aerossolizadas. Tanto cepas virulentas quanto cepas vivas modificadas do CAV1 causam lesões renais. No início, o vírus detectado por imunofluorescência positiva e avaliação ultraestrutural localizase no endotélio glomerular na fase virêmica da doença e causa lesão glomerular inicial. Aumento de anticorpos neutralizantes aproximadamente 7 dias após a infecção está associado a deposição glomerular de complexos imunes circulantes (CIC) e proteinúria transitória. O CAV1 não é detectado no glomérulo em período superior a 14 dias após a infecção, mas persiste no epitélio tubular renal. A localização tubular do vírus está associada principalmente a virúria e observase proteinúria apenas transitória. Observase nefrite intersticial focal discreta nos cães que se recuperam, mas, ao contrário do que ocorre na doença hepática, não foi possível encontrar evidência de que a doença renal crônica progressiva resulte de HIC. Ocorrem complicações clínicas da localização ocular do CAV1 virulento em aproximadamente 20% dos cães com infecção natural e em menos de 1% dos cães após vacinação subcutânea com a vacina contra o CAV1 contendo o vírus vivo modificado (VVM). O desenvolvimento de lesões oculares começa durante a viremia, que ocorre 4 a 6 dias após a infecção; o vírus entra no humor aquoso a partir do sangue e se replica nas células endoteliais da córnea. Uveíte anterior grave e edema de córnea surgem 7 dias após a infecção, período correspondente a aumento no título de anticorpos neutralizantes (Figura 4.1). A deposição de CIC com fixação de complemento resulta em quimiotaxia das células inflamatórias na câmara anterior e dano endotelial extenso na córnea. A ruptura do endotélio intacto da córnea, que serve como uma bomba de líquido da córnea para a câmara anterior, causa acúmulo de líquido edematoso dentro do estroma da córnea. Geralmente a uveíte e o edema são autolimitantes, a menos que ocorram outras complicações ou destruição endotelial maciça. O término do edema de córnea coincide com a regeneração endotelial e o restabelecimento do gradiente hidrostático entre o estroma da córnea e o humor aquoso. A recuperação ocular normal costuma ser aparente por volta de 21 dias após a infecção. Se as alterações inflamatórias forem graves o suficiente para bloquear o ângulo de filtração, o aumento da pressão intraocular poderá resultar em glaucoma e hidroftalmia. Figura 4.1 Patogenia sequencial da infecção ocular pelo CAV1. A. Durante o período virêmico, o CAV1 entra no olho pelo trato uveal, localizandose nas células endoteliais vasculares da coroide e causando uveíte leve. O vírus também entra no humor aquoso e se localiza nas células endoteliais da córnea. B. A resposta específica de anticorpo ao CAV1 aumenta no sangue, alcança o olho pelo trato uveal e entra no humor aquoso quando há vírus. C. Vírus livre no humor aquoso e nas células endoteliais, com formação de complexo viralanticorpo e de corpúsculos de inclusão intranucleares. D. Fixação de complemento nos complexos do vírus com anticorpos livres e nas células endoteliais para quimiotaxia de neutrófilos. Ocorrem uveíte mais grave e lesão endotelial da córnea. E. Detalhe mostrando perda do endotélio e a bomba do humor aquoso acarretando influxo de humor aquoso para a córnea. F. A perda de células endoteliais na córnea faz com que o humor aquoso penetre na córnea, causando edema de córnea (olho azulado).Depois que os fagócitos mononucleares removem os complexos de vírus e anticorpos e a inflamação diminui, o endotélio da córnea se regenera. G. A inflamação da úvea pode ocasionar bloqueio do ângulo de filtração e glaucoma subsequente. (Arte de Brad Gilleland, © 2010 University of Georgia Research Foundation Inc.) As complicações em geral estão associadas à patogenia da HIC. Os cães são mais propensos a ter pielonefrite bacteriana como resultado do dano renal após a infecção pela HIC. A coagulação intravascular disseminada (CID), uma complicação frequente da HIC, começa no início da fase virêmica da doença e pode ser desencadeada pelo dano a células endoteliais, com ativação disseminada do mecanismo da coagulação, ou pela incapacidade do fígado doente de remover os fatores da coagulação ativados. A síntese hepática diminuída de fatores da coagulação ante o consumo excessivo responde pelo defeito hemorrágico. Embora a causa da morte na HIC seja incerta, o fígado é o local primário da lesão viral. A insuficiência e a encefalopatia hepáticas podem resultar em um estado de semicoma e na morte. Alguns cães morrem tão subitamente que não há tempo para a ocorrência do dano hepático com insuficiência hepática resultante. A morte nesses cães pode resultar de dano cerebral, pulmonar e a outros órgãos parenquimatosos vitais ou do desenvolvimento de CID. Achados clínicos A HIC é observada com maior frequência em cães com menos de 1 ano de idade, embora cães não vacinados de todas as idades possam ser acometidos. Os cães com acometimento mais grave ficam moribundos e morrem em questão de horas após o início dos sinais clínicos. Os proprietários em geral acreditam que o animal tenha sido envenenado. Os sinais clínicos nos cães que sobrevivem ao período virêmico agudo incluem vômitos, dor abdominal e diarreia, com ou sem evidência de hemorragia. Os achados físicos anormais na fase inicial da infecção incluem aumento da temperatura retal (39,4 a 41,1°C) e frequências de pulso e respiratória aceleradas. A febre pode ser transitória ou bifásica no início da evolução da doença. O aumento das tonsilas, em geral associado a faringite e laringite, é comum. Tosse e sons respiratórios ásperos mais baixos à auscultação são manifestações de pneumonia. É comum observarse linfadenomegalia cervical com edema subcutâneo da cabeça, do pescoço e de partes pendentes do tronco. Sensibilidade abdominal e hepatomegalia em geral são aparentes no cão com a enfermidade aguda. Pode ocorrer diátese hemorrágica demonstrada por hemorragias petequiais disseminadas e equimoses, epistaxe e sangramento em locais de punção venosa. Icterícia é incomum na HIC aguda, mas é encontrada em alguns cães que sobrevivem à fase fulminante aguda da doença. A distensão abdominal é causada pelo acúmulo de líquido serossanguinolento ou hemorragia. Podem surgir sinais do SNC, incluindo depressão, desorientação, convulsões ou coma terminal em qualquer momento da infecção. Em raposas e em raros casos de filhotes caninos domésticos, podem ser vistos sinais do SNC na ausência de outras manifestações sistêmicas.7 Cães com acometimento leve podem recuperarse após o primeiro episódio febril. Os sinais clínicos desses casos de HIC sem complicações costumam durar 5 a 7 dias antes da melhora. É possível encontrar sinais persistentes em cães com uma infecção viral concomitante, como a cinomose, ou naqueles que desenvolvem hepatite crônica ativa. Ocorrem outros sinais clínicos ou mais graves em cães infectados concomitantememte com outros patógenos.9,10,33 Geralmente ocorrem edema de córnea e uveíte anterior quando a recuperação começa, e essas podem ser as únicas anormalidades clínicas observadas em cães com infecção inaparente (ver também Hepatite infecciosa canina, no Capítulo 92). Cães com edema de córnea apresentam blefaroespasmo, fotofobia e secreção ocular serosa. O embaçamento da córnea em geral começa no limbo e se dissemina em direção central (Figura 4.2) (ver Figura 92.17). A dor ocular, presente durante os estágios iniciais da infecção, em geral diminui quando a córnea fica completamente embaçada. No entanto, a dor pode voltar com o desenvolvimento de glaucoma ou ulceração e perfuração da córnea. Nos casos sem complicações, o desembaçamento da córnea começa no limbo e se dissemina na direção central. Diagnóstico Os achados hematológicos iniciais na HIC incluem leucopenia com linfopenia e neutropenia. Neutrofilia e linfocitose ocorrem mais tarde em cães com recuperação clínica sem complicações. É possível encontrar um número elevado de linfócitos (ativados) corados em escuro e eritrócitos nucleados. As alterações na proteína sérica, detectáveis apenas à eletroforese sérica, são aumento transitório na globulina α2 7 dias após a inoculação e aumento tardio na globulina γ, que atinge o máximo 21 dias após a inoculação. Figura 4.2 Olho azul característico da HIC viral e dano imunológico subsequente ao endotélio da córnea. (Fotografia de Craig Greene © 2004 University of Georgia Research Foundation Inc.) O grau de aumento na atividade da alanina aminotransferase (ALT), da aspartato aminotransferase e da fosfatase alcalina sérica depende do momento em que é obtida a amostra e da magnitude da necrose hepática. Tal aumento continua até 14 dias após a inoculação, depois do que há um declínio, embora seja possível observar elevações persistentes ou recorrentes em cães que desenvolvem hepatite crônica ativa. Bilirrubinúria moderada a acentuada é frequente, em decorrência do baixo limiar renal para a bilirrubina conjugada no cão; hiperbilirrubinemia é incomum. De importância diagnóstica, o aumento na ALT, uma medida de necrose hepatocelular, é desproporcionalmente maior do que na bilirrubina sérica, apesar da natureza difusa da lesão hepática. Tal disparidade, típica da HIC e que a diferencia da maioria das outras causas de necrose hepática disseminada resulta da natureza centrolobular predominante da necrose em torno das vênulas hepáticas. Em contrapartida, as regiões periportais e lobulares periféricas em torno do ducto biliar são poupadas. As medidas da função hepática, como os níveis séricos de amônia ou a retenção de ácido biliar, podem estar aumentadas durante a evolução aguda da HIC ou mais tarde em cães que desenvolvem fibrose hepática crônica. De maneira similar, é possível detectar hipoglicemia em cães na fase terminal da doença. As anormalidades da coagulação características da CID são mais pronunciadas durante os estágios virêmicos da doença.30 Trombocitopenia com ou sem alteração na função plaquetária em geral é aparente. O tempo de protrombina em um estágio, o de tromboplastina parcial ativado (aPTT; do inglês, activated partial prothrombin time) e o de trombina estão variavelmente prolongados. É provável que o prolongamento precoce do aPTT resulte do consumo de fator VIII, cuja atividade está reduzida, havendo aumento dos produtos de degradação do fibrinogênio. Disfunção plaquetária e prolongamento do aPTT provavelmente resultam do aumento dos produtos da degradação do fibrinogênio. Na maioria dos casos, o prolongamento do tempo de protrombina é menos notável. A proteinúria (primariamente albuminúria) é um reflexo do dano renal causado pelo vírus e em geral pode ser detectada na urinálise aleatória, porque a concentração está acima de 50 mg/dℓ. O aumento na permeabilidade glomerular pode resultar da localização do vírus nos estágios iniciais da infecção. Como alternativa, à medida que a doença progride, os glomérulos ficam danificados pelos CIC ou como efeito da CID. À paracentese abdominalobtémse um líquido cuja cor varia de amarelo transparente a vermelhobrilhante, dependendo da quantidade de sangue presente. Em geral, tratase de um exsudato com células inflamatórias e teor de proteína superior a 5,29 g/dℓ (e densidade acima de 1,020). A citologia da medula óssea reflete a alteração notável nos leucócitos da circulação periférica. Não há megacariócitos ou seu número está diminuído durante o estágio virêmico da doença, e os presentes podem ter a morfologia alterada. O líquido cerebrospinal está dentro dos limites de referência em cães com sinais neurológicos causados pela hepatoencefalopatia e geralmente é anormal em cães que desenvolvem encefalite não supurativa a partir da localização do vírus dentro do cérebro. A concentração de proteína (acima de 30 mg/dℓ) aumenta com pleocitose mononuclear (superior a 10 células/μℓ). O humor aquoso também tem concentrações elevadas de proteína e células, em associação a uveíte anterior. Os resultados de procedimentos laboratoriais previamente discutidos são sugestivos de HIC e o principal meio de estabelecer o diagnóstico na prática clínica. A confirmação antes da morte, embora não seja indispensável para se instituir o tratamento adequado, pode ser obtida por sorologia, isolamento do vírus e coloração imunofluorescente para o vírus intralesional. A sorologia inclui neutralização do vírus, hemaglutinação indireta, fixação do complemento, imunodifusão e ensaio imunossorvente ligado a enzima (ELISA; do inglês, enzymelinked immunosorbent assay), que em geral mostram altos títulos após infecção com o vírus virulento, em contraste com as infecções causadas pelas vacinas que contêm o VVM. O CAV1 pode ser isolado por ser altamente resistente e de fácil replicação em cultura de células de várias espécies, inclusive a canina. A citopatologia típica induzida por adenovírus inclui aglomeração de células do hospedeiro e descolamento em monocamadas, com a formação de inclusões intranucleares. Quando a viremia começa, no quinto dia PI, o CAV1 pode ser cultivado a partir de qualquer tecido ou secreção do corpo. O vírus é isolado na câmara anterior durante a fase leve da uveíte, antes da infiltração de anticorpos e da formação de complexo imune. A cultura do vírus a partir do fígado de cães em geral é difícil porque a arginase hepática inibe a replicação do ácido nucleico viral. O vírus não foi isolado a partir do fígado depois de 10 dias PI, mesmo em cães com hepatite crônica ativa, talvez porque se desenvolva latência viral. O rim é a localização mais persistente do vírus, e é possível isolar o CAV1 da urina por pelo menos 6 a 9 meses após a infecção inicial. Técnicas de imunofluorescência são usadas experimentalmente para confirmar se há vírus em vários tecidos. Tais métodos ajudaram a detectar locais de replicação do vírus, sua disseminação nas células e a existência do antígeno viral em corpúsculos de inclusão. Procedimentos com imunoperoxidase, aplicados a tecidos fixados em formol e embebidos em parafina, detectaram o vírus em tecidos hepáticos armazenados até há 6 anos. As técnicas de reação em cadeia da polimerase (PCR; do inglês, polymerase chain reaction) foram desenvolvidas para detectar o CAV1 em amostras biológicas e distinguilo do CAV2 em amostras clínicas.8,20,30 Achados patológicos Os achados de necropsia ou em biopsias de tecidos de cães em geral podem confirmar o diagnóstico de HIC. Cães que morrem durante a fase aguda da doença costumam estar com a musculatura boa, apesar do edema e da hemorragia de linfonodos superficiais e no tecido subcutâneo cervical. A icterícia é discreta ou não costuma ser evidente. A cavidade abdominal pode conter líquido, que varia de transparente a vermelhobrilhante. Hemorragias petequiais e equimóticas estão presentes em todas as superfícies serosas. O fígado está aumentado, com aspecto escuro e manchado, em geral apresentando exsudato fibrinoso proeminente na superfície e nas fissuras interlobares (Figura 4.3). Tipicamente, a vesícula biliar está espessada e edematosa, com aspecto opaco azulesbranquiçado. A fibrina pode depositarse em outras superfícies serosas abdominais, o que lhes dá um aspecto de vidro. Hemorragia gastrintestinal intraluminal é um achado frequente. O baço está aumentado e fica protuberante na superfície de corte. As lesões macroscópicas variáveis em outros órgãos incluem infartos corticais renais hemorrágicos multifocais. Os pulmões têm múltiplas áreas de manchas de consolidação cinzentas a vermelhas. São encontrados linfonodos brônquicos hemorrágicos e edematosos. Áreas hemorrágicas dispersas, presentes ao corte coronal do cérebro, estão localizadas primordialmente no mesencéfalo e no tronco cerebral caudal. As lesões oculares, quando presentes, caracterizamse por opacificação da córnea e embaçamento do humor aquoso. É possível os cães que sobrevivem à fase aguda da doença apresentarem lesões, as quais podem ser encontradas durante a necropsia. O fígado daqueles com fibrose hepática crônica pode estar pequeno, firme e nodular. Os rins de muitos cães que se recuperam apresentam múltiplos focos brancos (com 0,5 cm de diâmetro), estendendose da pelve renal até o córtex mais externo. As sequelas oculares da doença aguda podem incluir glaucoma ou ftise bulbar. As alterações histopatológicas no fígado de cães que morrem de hepatite aguda incluem necrose disseminada centro ou panlobular. Em cães com necrose hepatocelular discreta, a margem entre os hepatócitos necróticos e os viáveis é muito bem definida dentro do lóbulo hepático (Figura 4.4). A preservação de estroma de sustentação subjacente possibilita a eventual regeneração hepática. Apenas nos casos graves a necrose de coagulação de lóbulos hepáticos inteiros impede a regeneração do fígado. Infiltrados neutrofílicos e de células mononucleares estão associados à remoção do tecido necrótico subjacente. O pigmento biliar raramente se acumula na maioria dos casos, por causa da natureza transitória da necrose hepatocelular e da ausência frequente de acometimento lobular periférico de radículas portais. As inclusões intranucleares inicialmente são encontradas nas células de Kupffer e depois em células parenquimatosas hepáticas viáveis. Doença hepática subaguda a crônica é assinalada por focos esporádicos de necrose com infiltração neutrofílica, mononuclear e plasmática, sendo encontrada em cães com imunidade parcial que sobrevivem aos estágios iniciais da infecção. Figura 4.3 Fígado tumefato e manchado com edema nas bordas e na vesícula biliar, característico de HIC. (Fotografia de Craig Greene © 2004 University of Georgia Research Foundation Inc.) Figura 4.4 Aspecto histológico de necrose centrolobular maciça em um caso fatal de HIC mostra poucos hepatócitos viáveis remanescentes (H) em torno de uma veia porta (P) na área lobular periférica (coloração com H&E, 250×). (Fotografia de Craig Greene © 2004 University of Georgia Research Foundation Inc.) Em termos históricos, o CAV1 foi observado com anticorpo fluorescente direto em hepatócitos de cães recuperados com inflamação hepática crônica. A PCR e a coloração histoquímica de tecidos foram usadas para examinar o CAV1 no fígado de cães com HIC de ocorrência natural, hepatite crônica ativa e fibrose hepática.8 Embora nos casos de HIC os resultados dos testes sejam positivos, o DNA ou os antígenos virais não foram detectados nas amostras dos outros animais. Em outros estudos, não foram identificados agentes infecciosos, incluindo o CAV1, na triagem por PCR do fígado de cães com achados de inflamação hepática agudaou crônica à necropsia.4 Ocorrem alterações histológicas disseminadas em outros órgãos como resultado da lesão endotelial causada pelo vírus. A vesícula biliar tem edema subseroso acentuado, mas o epitélio permanece intacto. Inclusões virais inicialmente são encontradas nos glomérulos renais, porém mais tarde no endotélio vascular tubular renal. Acúmulos intersticiais focais de neutrófilos e células mononucleares são encontrados no córtex e na medula renais. Geralmente, essas alterações discretas progridem para fibrose intersticial focal. Órgãos linfoides, inclusive linfonodos, as tonsilas e o baço, estão congestionados com infiltrados de neutrófilos e células mononucleares. Os folículos linfoides estão dispersos, com áreas centrais de focos necróticos. Inclusões intranucleares podem ser encontradas nas células endoteliais vasculares e em histiócitos. Os pulmões têm alvéolos espessados, com acúmulo peribrônquico de células septais e linfoides. Os alvéolos nas áreas consolidadas estão preenchidos com exsudato constituído por eritrócitos, fibrina e líquido. Edema de mucosa e submucosa com hemorragia subserosa focal é encontrado no trato intestinal. Degeneração vascular disseminada e hemorragia e necrose teciduais estão associadas à existência de trombos intravasculares de fibrina. Células epiteliais tumefatas e descamativas nos vasos meníngeos contêm inclusões intranucleares. Acúmulo mononuclear está presente em torno de pequenos vasos por todo o parênquima do SNC. A proliferação endotelial discreta e a infiltração perivascular mononuclear persistem por pelo menos 3 semanas após a recuperação clínica. As alterações oculares caracterizamse por iridociclite granulomatosa com ruptura do endotélio da córnea e edema de córnea. Os vasos da íris e ciliares estão congestionados, com células inflamatórias também presentes na íris e no ângulo de filtração. Os corpúsculos de inclusão vistos na HIC foram classificados como Cowdry do tipo A e estão presentes em tecidos tanto ectodérmicos quanto mesodérmicos e são abundantes no fígado, o que torna este órgão o melhor tecido para esfregaços por impressão obtidos por biopsia ou à necropsia (Figura 4.5). A hipertrofia inicial do núcleo celular é seguida por marginação periférica da rede de cromatina e do nucléolo, que forma um remanescente nuclear central corado em escuro e circundado por um halo de cromatina. As inclusões iniciais são acidófilas, mas tornamse basofílicas à medida que a cromatina vai para a margem. É preciso cuidado para distinguir entre inclusões e nucléolos de hepatócitos que se coram em cor clara. Tratamento O tratamento clínico de cães que desenvolvem HIC é primariamente sintomático e de suporte. A insuficiência hepática fulminante decorrente da necrose hepatocelular é uma causa comum de morte em cães que não sobrevivem aos estágios agudos da doença. Na ausência de fatores complicadores, a recuperação clínica e a regeneração hepatocelular podem ocorrer com necrose centrolobular. O tratamento é de suporte até que haja tempo suficiente para o reparo hepatocelular. Como em geral os cães estão semicomatosos, é impossível prever se os sinais neurológicos estão relacionados com a hepatoencefalopatia ou a encefalite viral. Contudo, essa questão pode ser parcialmente resolvida verificandose a glicemia ou as concentrações de amônia ao se instituir o tratamento. A colocação imediata de um cateter intravenoso permanente é uma necessidade em cães com acometimento grave; entretanto, como não há capacidade de coagulação, é preciso cuidado para evitar hemorragia excessiva. O tratamento hídrico com um líquido isotônico poliiônico como a solução de Ringer corrigirá perdas decorrentes dos vômitos e da diarreia e ajudará a baixar a temperatura corporal. Animais muito deprimidos ficam muito abatidos para beber água, e os que continuam a vomitar precisam receber reposição de manutenção diária com líquidos (45 mℓ/kg) por via parenteral. O tratamento da CID depende do estágio do déficit de coagulação. A remoção do estímulo desencadeador é o objetivo inicial do tratamento, mas isso não é possível nas doenças virais. Graças à síntese hepática insuficiente, poderá ser necessário repor os fatores da coagulação e plaquetas por meio da transfusão de plasma fresco ou sangue total, em conjunto com a terapia anticoagulante quando houver incapacidade acentuada da coagulação. Figura 4.5 Aspecto citológico de inclusões intranucleares em hepatócitos (setas) de um esfregaço por impressão de tecido hepático à necropsia (coloração de Wright, 400×) de um filhote canino que morreu em virtude de HIC. Comparar com o nucléolo (N) do hepatócito. (Fotografia de Craig Greene © 2004 University of Georgia Research Foundation Inc.) Devido à possibilidade de que a hipoglicemia seja responsável pelo estado de coma, devese administrar um bolo intravenoso (IV) de glicose a 50% (0,5 mℓ /kg) durante o período de 5 min. É provável que volte a ocorrer hipoglicemia se a infusão contínua de glicose hipertônica não for mantida. A infusão de glicose hipertônica deve prosseguir a velocidade não maior do que 0,5 a 0,9 g/kg/h para que seja utilizada de maneira eficiente. O tratamento para diminuir a concentração sanguínea de amônia é voltado para a redução do catabolismo proteico pelas bactérias do cólon e para a reabsorção de amônia nos túbulos renais. A produção de amônia a partir da degradação da proteína no intestino pode ser reduzida pela diminuição da quantidade de proteína ingerida e pela cessação da hemorragia gastrintestinal. O cólon pode ser evacuado por limpeza e mediante o uso de enemas acidificantes que aliviam a estase intestinal e retardam a absorção da amônia. Antibacterianos orais não absorvíveis como a neomicina têm sido defendidos para reduzir a quantidade de bactérias produtoras de amônia nos intestinos, mas sua eficácia é questionável. Também é possível acidificar o conteúdo colônico fornecendose lactulose oral para os animais que não estejam vomitando. A reabsorção oral da amônia pode ser reduzida com a administração parenteral ou oral de potássio e a correção da acidose metabólica. A acidificação urinária com um acidificante atóxico como o ácido ascórbico pode reduzir bastante a reabsorção da amônia pelos rins. O ácido poliinosínicopolicitidílico, um indutor de interferona, foi usado experimentalmente para reduzir a mortalidade de cães com infecção experimental pelo vírus da HIC, mas sua aplicação clínica é impraticável (ver Indutores de interferonas e outras citocinas, no Capítulo 2). Prevenção Imunidade materna A duração da imunidade passiva adquirida em filhotes caninos depende da concentração de anticorpos na cadela. A meiavida dos anticorpos contra o CAV1 é de 8,6 dias, em comparação com 8,4 dias dos anticorpos contra o vírus da cinomose, valores que se correlacionam bem com a meiavida da globulina canina (ver Imunidade materna e imunização, no Capítulo 100). Em geral, a imunização contra a HIC é bemsucedida quando os títulos de anticorpos maternos diminuem abaixo de 100, o que pode ocorrer a partir de 5 a 7 semanas de idade. O nível de anticorpos maternos contra a HIC em filhotes caninos recémnascidos cai para níveis negligenciáveis por volta de 14 a 16 semanas de idade. Vacinação A hepatite canina causada pelo CAV1 foi controlada de maneira eficaz e praticamente eliminada da população canina doméstica em razão da vacinação. Ainda são observados casos esporádicos em cães que não foram vacinados da maneira adequada quando filhotes. Uma vez que a doença em cães não vacinados é grave, o vírus é resistente no ambiente e tem um reservatório em carnívoros silvestres, é preciso continuar com a vacinação para fornecer o antígeno principala todos os cães. As vacinas com CAV1 e CAV2 inativados não são mais comercializadas, pois sua eficácia foi inferior à dos produtos com VVM e os adjuvantes necessários as tornaram alergênicas. A fabricação das vacinas com o VVM CAV1 também foi interrompida na maioria dos países, de modo que o antígeno do CAV2 como VVM está presente em praticamente todas as vacinas comercializadas. Embora as vacinas com o CAV1 como VVM proporcionem proteção imune sólida, as complicações após a vacinação constituem uma preocupação. Uma desvantagem potencial é que o CAV1 atenuado se localizou nos rins e causou nefrite intersticial subclínica leve e eliminação persistente do vírus vacinal. Foi necessário aumentar a passagem do vírus em cultura de células para reduzir a prevalência da eliminação urinária. A localização ocular com uveíte anterior associada ocorreu em aproximadamente 0,4% dos cães após injeção subcutânea. Quando administrada por via intravenosa, a vacina contra o CAV1 ocasionou uma doença sistêmica transitória caracterizada por pirexia e aumento tonsilar e a prevalência de 20% de uveíte anterior. As vacinas parenterais contra o CAV2 foram desenvolvidas como uma alternativa na prevenção da HIC. A vacina com o CAV2 vivo modificado raramente, quando acontece, causa doença ocular ou renal quando administrada pelas via intramuscular, subcutânea ou intranasal, embora o vírus possa localizarse no trato respiratório superior e daí ser eliminado. Quando injetado diretamente na câmara anterior, o vírus da vacina causa lesões oculares semelhantes às causadas pelas cepas do CAV1. Ao ser administrada pelas vias intravenosa ou intranasal, a vacina contra o CAV2 com o VVM pode ocasionar uma doença respiratória leve, com tosse associada a aumento tonsilar, embora tenhase mostrado que tal infecção é subclínica e autolimitante. No entanto, como precaução geral, devese ter cuidado para evitar a aerossolização inadvertida da vacina parenteral durante o uso. Os cães ficam bem protegidos contra a infecção pelo CAV1 pelo título de anticorpo heterotípico produzido quando se usa a vacina contra o CAV2, mas a resposta do anticorpo homotípico em geral é maior. A vacina contra o CAV2 foi administrada experimentalmente a filhotes caninos com 3 a 4 semanas de idade, como tentativa de superar os anticorpos maternos heterotípicos contra o vírus da HIC. Embora a vacinação parenteral nessa idade seja ineficaz, a administração intranasal da vacina resultou em resposta de anticorpo tardia ao CAV2 e resposta fraca ao CAV1 4 a 8 semanas depois. É provável que o VVM da vacina contra o CAV2 se localize no trato respiratório até que o nível de anticorpos maternos caia, e então se dissemine sistemicamente, estimulando uma resposta imune. Algumas cepas do CAV1 e do CAV2 são conhecidas como oncogênicas em hamsters, mas as existentes nas vacinas comerciais não parecem ocasionar tal efeito colateral. Não foram relatadas reações oncogênicas em cães durante mais de 20 anos de uso de campo desses produtos. Foi desenvolvida uma vacina de DNA experimental contra o CAV1, e os estudos preliminares indicaram proteção de camundongos vacinados como desafio, em comparação com camundongos não vacinados.27 As vacinas parenterais contra o CAV2 com VVM tornaramse a pedra fundamental da proteção contra a infecção pelo CAV1 virulento. O baixo índice de complicações após a vacinação e a proteção heteróloga adequada constituem vantagens significativas. As vacinas parenterais contra o CAV2 são aplicadas quando se pretende obter proteção contra a HIC, dispondose de preparações intranasais para proteção contra a infecção respiratória (ver também Capítulo 6, Doença Respiratória Infecciosa Canina). O esquema recomendado para qualquer vacina como proteção contra a HIC envolve pelo menos duas doses, administradas a intervalos de 3 a 4 semanas, a animais com 8 a 10 e 12 a 14 semanas de idade. É mais comum conseguir isso com a combinação desse antígeno com o protocolo de vacinação contra o vírus da cinomose e o parvovírus (ver Capítulo 100, Imunoprofilaxia). Podese aconselhar a vacinação mais cedo e mais frequente em áreas de alta prevalência. Quando as vacinações forem adiadas em filhotes caninos, será observada infecção esporádica por HIC. Nunca são relatadas infecções em animais adultos que tenham recebido uma série adequada da vacina. Para reforços, as vacinas com VVM podem ser aplicadas a cada 3 anos, conforme indicado por estudos de desafio.1,13 A vacinação anual, conforme praticada no passado, não é necessária por causa da longa duração da imunidade proporcionada pelas vacinas com VVM (ver Duração da imunidade e estudos de desafio, no Capítulo 100). Uma hepatite distinta da HIC e que se caracteriza por formas aguda, persistente ou crônica foi descrita na GrãBretanha.31 A evidência que leva a crer que essa síndrome tenha natureza infecciosa vem da alta prevalência do carcinoma hepatocelular em cães. O agente, o qual se suspeita que seja um vírus, não foi identificado, embora a doença possa ser reproduzida por inoculação bacteriologicamente estéril de homogeneizados hepáticos que não contenham CAV1 nem CAV2 de animais acometidos espontaneamente em cães de experimentação. Presumese que as infecções agudas com esse agente acarretem hepatite aguda a crônica, cirrose com hiperplasia multilobular e, em alguns casos, carcinoma hepatocelular.22 Os achados clínicos na fase inicial da doença podem ser vagos e incluem febre variável, inapetência, vômitos e dor abdominal, mas em geral não há febre. Os achados clínicos terminais incluem distensão abdominal com ascite, episódios de convulsões, anormalidades do estado mental e semicoma. As únicas anormalidades laboratoriais consistentes incluem aumento episódico da atividade da ALT e da fosfatase alcalina. O diagnóstico envolve o exame macro e microscópico do tecido hepático. Os achados macroscópicos de biopsia ou necropsia incluem hepatomegalia com arredondamento dos lobos hepáticos e aumento das tonsilas, dos linfonodos regionais e das placas de Peyer. Os cães com acometimento crônico podem ter o fígado reduzido de tamanho, com delineação exagerada das radículas portais ou proliferação nodular. O aumento do tecido hepático é evidente ao exame histológico, tanto na região central quanto na periférica. As células acidófilas estão dispersas por todas as lesões hepáticas e se caracterizam por citoplasma angular e acidófilo com núcleo hipercromático. O tratamento dessa condição é incerto e parece progredir com o tempo. A prevenção não pareceria plausível até que a natureza do agente infeccioso suspeito fosse determinada. Embora relatada apenas na GrãBretanha, pode ser que a doença esteja mais disseminada. Devese suspeitar dela ante relatos de alta frequência de hepatite crônica ativa ou fibrosa e carcinoma hepatocelular.
Compartilhar