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Jurem a O liveira LITER A TU R A P O R TU GU ESA E LU SO -A FR ICA N A M O D ER N A E CO N TEM P O R Â N EA O objetivo deste livro é estabelecer os parâmetros primordiais da transição da literatura portuguesa da fase modernista para o período contemporâneo, bem como apresentar os princípios norteadores da construção identitária da literatura africana de língua portuguesa, mais especificamente de Cabo-Verde, Angola e Moçambique. Assim, as experiências poéticas e ficcionais das tendências mais recentes da literatura portuguesa e luso-africana serão a base do discurso estético e crítico desta obra. Código Logístico 57203 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6395-6 9 788538 763956 Literatura portuguesa e luso-africana: moderna e contemporânea IESDE BRASIL S/A 2018 Jurema Oliveira Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ O47L Oliveira, Jurema Literatura portuguesa e luso-africana : moderna e contem- porânea / Jurema Oliveira. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE Brasil, 2018. 138 p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6395-6 1. Literatura portuguesa - História e crítica. 2. Literatura africana - História e crítica. 3. Gêneros literários. I. Título. 18-51615 CDD: 809 CDU: 82.09 © 2018 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: SOUZA-CARDOSO, Amadeo de. Trou de la serrure parto da viola bon ménage fraise avant-garde. c. 1916. Óleo sobre tela: color: 70 x 58 cm. Museu Nacional de Arte Contemporânea (Museu do Chiado), MNAC, Lisboa, Portugal. Jurema Oliveira Pós-doutora em Letras pela Universidade Federal Fluminense (FAPERJ/UFF). Doutora em Letras pela UFF. Mestre em Literatura Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Especialista em Literatura Portuguesa pela UFRJ. Graduada em Letras pela UFRJ. Sumário Apresentação 9 1 Gêneros literários e tradição oral 11 1.1 A figura do narrador 13 1.2 A moderna literatura africana 14 1.4 Angolanidade, moçambicanidade, cabo-verdianidade e são-tomensidade 16 2 Sophia de Mello Breyner e os mistérios literários 21 2.1 A narrativa de Sophia de Mello Breyner Andresen 21 2.2 A poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen 23 3 Claridade e Certeza 31 3.1 Pressupostos teóricos da revista Claridade 32 3.2 Pressupostos teóricos da revista Certeza 35 3.3 A renovação e a ampliação com Claridade 36 3.4 Os poetas e prosadores pós-Claridade e Certeza 36 4 A poesia africana na contemporaneidade 41 4.1 A poesia de Arlindo Barbeitos 43 4.2 A poesia de José Luís Mendonça 44 4.3 A poesia de Ruy Duarte de Carvalho 45 4.4 A poesia de Eduardo White 46 4.5 A poesia de Luís Carlos Patraquim 47 5 Agostinho Neto e a modernidade literária em Angola 51 5.1 A poesia denunciatória 52 5.2 Mensagem: espaço de resistência 54 5.3 A formação do romance angolano 56 5.4 Os anos de luta libertária no discurso literário 57 6 José Craveirinha e a moçambicanidade 61 6.1 Características da poesia de José Craveirinha 61 6.2 A musicalidade da poética moçambicana 64 6.3 A reinvenção vocabular 66 6.4 Uma estética da oratória 67 7 O musseque como matriz: a narrativa de José Luandino Vieira 71 7.1 Musseque: um espaço marginalizado 71 7.2 Bairros periféricos: cenário de violência 72 7.3 O real diário como base discursiva 73 7.4 A formação matricial africana 73 7.5 A força das mulheres do musseque 75 7.6 A história literária e a construção identitária angolana 76 8 O mosteiro e o discurso contemporâneo 79 8.1 A casa das Teixeiras ou a casa de Avis 80 8.2 Uma casa em construção 80 8.3 Belchior: a voz da reescritura narrativa 83 8.4 O duplo loucura–sanidade 85 8.5 Perda identitária 86 9 A costa dos murmúrios: uma autoanálise do destino português 89 9.1 Revolução dos Cravos 90 9.2 Uma crítica à colonização 90 9.3 Um conceito de romance 91 9.4 O discurso do outro 94 10 José Saramago: história, ficção e identidade 99 10.1 O memorial em Saramago 100 10.2 Reescrevendo a história 101 10.3 As incertezas da contemporaneidade 102 10.4 A escrita de um novo tempo 103 10.5 Fernando Pessoa segundo Saramago 105 11 Mia Couto e a narrativa contemporânea moçambicana 111 11.1 A narrativa pós-colonial 111 11.2 Conceituando o conto a partir de Cada homem é uma raça 112 11.3 O hibridismo literário 114 11.4 Um discurso reinventado 115 12 O romance em Angola: ficção e história em Agualusa 121 12.1 Narrativa pós-colonial 122 12.2 A conjura: a crônica como caminho 123 12.3 Nação crioula: um passeio pelo século XIX 125 12.4 Estação das chuvas: um tempo de expurgar a dor 126 12.5 O vendedor de passados e suas histórias 128 Gabarito 133 Apresentação O objetivo deste livro é estabelecer os parâmetros primordiais da transição da literatura portuguesa da fase modernista para o período contemporâneo, bem como apresentar os princípios norteadores da construção identitária da literatura africana de língua portuguesa. Assim, as expe- riências poéticas e ficcionais das tendências mais recentes da literatura portuguesa e africana serão a base do discurso estético e crítico deste livro. O primeiro capítulo, trata da questão dos “gêneros literários e tradição oral”. Aspecto, inclu- sive, que influenciou as gerações de poetas e escritores portugueses do século XX. No segundo ca- pítulo, com o intuito de explorar características inerentes à poesia e prosa de cunho testemunhal e memorialista, estuda-se “Sophia de Mello Breyner e os mistérios literários”. Os elementos oriundos da tradição oral se fazem presente em toda produção literária dessa escritora, já que em entrevista concedida a Eduardo Prado Coelho para a Revista n. 6 do ICALP (Instituto de Cultura e Língua Portuguesa) Sophia de Mello Breyner faz a seguinte afirmação: “comecei a contar histórias para meus filhos a partir de fatos e lugares da minha infância (sobretudo lugares)”. No terceiro capítulo, intitulado “Claridade e Certeza”, procura-se traçar os parâmetros sustentadores da literatura de Cabo Verde, já que esse país apresenta características bastante diver- sificadas por ser um arquipélago. Dessa forma, em sua formação inicial, contou com a participação de africanos de diversas regiões, logo, em Cabo Verde nasce de uma miscigenação necessária ao de- senvolvimento da colonização portuguesa naquela parte do continente africano. Diante disso, para dar continuidade às análises críticas acerca da poesia, desenvolve-se o quarto capítulo, enfatizando a temática “a poesia africana na contemporaneidade”. Seguindo uma linha paradigmática, o quinto capítulo foi dedicado ao mentor da nação an- golana, Agostinho Neto – poeta e primeiro presidente da República Democrática de Angola – bem como à modernidade da literatura em Angola, desde os seus primeiros passos para a promoção da luta libertária até a atualidade. Com o intuito de fechar o ciclo poesia, constrói-se o sexto capítulo sobre o poeta fundador da estética de valorização da cultura de Moçambique. Assim, sob o título “José Craveirinha e a moçambicanidade”, procura-se estabelecer os conceitos de africanidade, a musicalidade como marca específica da poética de Moçambique e a reinvenção vocabular do poeta da Mafalala, José Craveirinha. Os capítulos subsequentes serão dedicados à prosa de autores que valorizam o espaço fic- cional de Angola, como Luandino Vieira, o cenário português, como Agustina Bessa-Luís, que estabelece um diálogo entre a Revolução dos Cravos e a história dos feitos portugueses. Nessa dinâmica discursiva, destaca-se também Lídia Jorge, autora de A Costa dos Murmúrios, romance que denuncia a relação violenta entre o colonizador e o colonizado. Nesse processo de traçar os perfisde uma literatura contemporânea de África de língua portuguesa e de Portugal não se pode deixar de estudar José Saramago, um autor que, desde a sua primeira obra, redimensiona a ideia de história, ficção e identidade para estabelecer a dinâmica do pensamento da contemporaneidade. 10 Literatura portuguesa e luso-africana: moderna e contemporânea Assim, se Portugal tem um Saramago que se consagrou como ficcionista que recorre à História para recontá-la de forma inovadora, Moçambique tem um Mia Couto, um autor capaz de articular tradição oral com aspectos oriundos da cultura portuguesa para criar uma prosa poética híbrida. No capítulo final, intitulado O romance em Angola: ficção e história em Agualusa, explora-se, entre outras questões, a narrativa pós-colonial que desconfia daquele discurso sacra- lizado pela urgência histórica. 1 Gêneros literários e tradição oral O momento em que se verifica o início de uma regularidade na atividade literária e cultural na África (nos moldes ocidentais) está intimamente ligado à implantação e ao desenvolvimento do ensino privado ou sancionado pelo Governo da Metrópole. As primeiras iniciativas governamentais relacionadas com a educação na África datam de 1740, mas só a partir da segunda metade do século XIX foram tomadas as medidas cabíveis para desenvolver o ensino em Cabo Verde, primeira colônia portuguesa a ser beneficiada pelo projeto de “instrução pública no ultramar”. Nos documentos oficiais (boletins) de Cabo Verde, verificam-se algumas das providências acerca da instrução pública ultramarina, como: “escolas principais, materiais de ensino, provi- mento, vencimentos, jubilação e aposentadoria dos professores, criação dos conselhos inspetores de instrução primária, sua composição e deveres” (FERREIRA, 1987, p. 9). Cabe ressaltar que o prelo1 foi instalado nas colônias portuguesas nas seguintes datas: Cabo Verde, 1842; Angola, 1845; Moçambique, 1854; São Tomé e Príncipe, 1857; Guiné-Bissau, 1879. A instalação do prelo em Angola abre espaço para a publicação de Espontaneidades da Minha Alma (1849), de José da Silva Maia Ferreira, primeira obra de língua portuguesa impres- sa na África, mas não a primeira produção literária de autor africano. Segundo Manuel Ferreira, Tratado breve dos reinos (ou rios) da Guiné, de autoria do caboverdiano André Álvares de Almada, foi escrito em 1594. A produção literária nos países africanos divide-se em duas fases: a da literatura colonial e a das literaturas africanas. A primeira exalta o homem europeu como herói mítico, desbravador das terras inóspitas, portador de uma cultura superior. A segunda constitui-se inversamente, pois nela o mundo africano passa a ser narrado por outra ótica. O negro é privilegiado e tratado com solidariedade no espaço material e linguístico do texto, embora não sejam excluídas as persona- gens europeias (de características negativas ou positivas). É o africano que normalmente preenche os apelos da enunciação e é ele quase exclusivamente, enquanto personagem ficcional ou poético, o sujeito do enunciado. Os cuidados e os esmeros do sujeito enunciador são os de organicamente mol- dar o enunciado com os ingredientes significativos e representativos da especi- ficidade africana. Se colocados lado a lado dois textos, um de literatura colonial e outro de literatura africana, é como se procedêssemos a uma justaposição de brusco contraste. (FERREIRA, 1987, p. 13-14) Diante disso, pode-se dizer que o universo literário e cultural dos naturais da terra, nas litera- turas africanas, é valorizado e explorado significativamente, pois, quando os autores negam a legiti- midade do colonialismo no discurso literário, fazem da revelação e valorização do mundo africano 1 Imprensa oficial ligada à administração da colônia. Literatura portuguesa e luso-africana: moderna e contemporânea12 a raiz primordial tanto na ficção quanto na poesia, que, inicialmente, foram registradas em jornais ou folhetins. As literaturas africanas de língua portuguesa, do ponto de vista linguístico, contam com numerosos termos, expressões, provérbios oriundos das línguas faladas nos vários grupos étnicos em Angola e Moçambique, enquanto em Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau se usam duas línguas: a portuguesa e a crioula. Cabe ressaltar que o crioulo falado em Cabo Verde é muito similar ao da Guiné-Bissau, e denominado crioulo pelo povo da terra; já em São Tomé e Príncipe era e é chamado de forro – denominação dada tanto à língua quanto aos naturais da terra – por ser usado primeiramente pelas camadas mais pobres, e iletradas, já que a língua portuguesa era falada apenas pela burguesia mestiça ou negra que lá se formava. Após a independência, o crioulo adquiriu autonomia e passou a ser valorizado e falado em todas as camadas sociais das ex-colônias cabo-verdiana, guineense e são-tomense. Em 1846, um ano após a instalação do prelo em Angola, publicaram-se no Boletim Oficial dessa colônia alguns textos literários. Por volta de 1874, verifica-se o aparecimento da Imprensa livre angolana, publicação de registros de experiências literárias e artigos, e cujo mérito era levantar a bandeira da democracia republicana almejada pelos intelectuais africanos e portugueses engajados na busca de uma imprensa propagadora das realidades africanas. Os estilos narrativos mais produtivos foram a crônica e o panfleto, este de caráter doutri- nário e político. Outro gênero literário valorizado nessa fase foi o folhetim, que agradava tanto aos africanos como aos portugueses. Eram publicados na colônia e algumas vezes reeditados na metrópole: Africanos, portugueses e brasileiros publicavam nos espaços comuns dos almanaques, boletins, jornais, revistas e folhetos. Não tinham surgido ainda as designações de literatura angolana, moçambicana ou são-tomense com cará- ter de sistema nacional, mas a escrita já deixara de ser espaço de europeidade absoluta para se tornar contaminação relativa de línguas. De facto, poetas portugueses, e angolanos intercalavam no texto em português, mais extenso, frases, diálogos, versos, lexemas em língua banta, quase que exclusivamente o quimbundo. A integração é perfeita, na coerência do sentido e da sonoridade e na coesão dos segmentos e dos ritmos. (LARANJEIRA, 1992, p. 11-12) Sendo assim, o trabalho literário aproxima os intelectuais que buscavam um caminho para fazer circular seus textos ficcionais, poéticos e de cunho político-ideológico. Destaca-se nesse estágio de despertar cultural Alfredo Troni – escritor, jornalista e advogado –, precursor da prosa moderna angolana, com a criação de Nga Mutúri, bem como Pedro Félix Machado, também jornalista, que cul- tivou a prosa de ficção, publicando em folhetim na Gazeta de Portugal a primeira edição do romance Scenas d’África, reeditado em 1882. No final do século XIX, floresceram nas colônias africanas de língua portuguesa várias asso- ciações recreativas, grêmios literários, diversos jornais, alguns de curta duração, mas geradores de motivação criadora bastante significativa. Cabo Verde, por exemplo, viu nascer em Praia, Gêneros literários e tradição oral 13 [...] desde 1858 treze associações recreativas e culturais, como a Sociedade de Gabinete de Literatura (1860) e a Associação Literária Grêmio Cabo-verdiano (1880). Assinala, ainda, que por essa altura, se cria a imprensa de Angola e Moçambique e que aí se dá um notável surto de jornalismo. Aparecem os pri- meiros periódicos, como A Aurora (1856), A civilização da África Portuguesa (1866), O Eco de Angola (1881), O futuro de Angola (1882), O farol do povo (1883), O serão (1886), O arauto africano (1889), Ensaios literários (1891), Luz e crença (1902-1903). (SANTILLI, 1985, p. 10) Vê-se, portanto, que surgiram muitos jornais entre o final do século XIX e início do XX, e, apesar da maior parte ter tido curta duração, até o final do século XIX enumeraram-se 46 deles, os quais contaram com a participação de europeus e africanos. Damesma forma como ocorreu em Angola e Cabo Verde, a imprensa moçambicana é ins- talada em 1854, quando nasce o Boletim Oficial. No entanto, é no século XX que a imprensa se estabelece com maior autonomia. 1.1 A figura do narrador De acordo com Barry (2000), durante séculos, antes que o fio da escrita, internamente e por todos os lados, costurasse o mundo negro a si mesmo, os griôs2 – por meio da voz e dos gestos – foram os demiurgos3 que construíram esse mundo, e suas únicas testemunhas. O griô tinha dupla função: romper o silêncio do esquecimento, usando a voz acompanhada de ritmos, e exaltar a vitória da tradição que sobreviveu aos impactos das guerras. Os gêneros lite- rários africanos descendem dessa matriz rica em ritmos que só o poder da oralidade pode captar. A tradição oral guarda a história acumulada pelos povos ágrafos, que transmitem oralmente seus conhecimentos de geração a geração. Nessas comunidades, o ancião é o narrador por excelência, aquele personagem capaz de irrigar a memória coletiva de forma prazerosa e festiva. O papel do griô é manter viva a chama que alimenta a existência de toda uma coletividade. Nesse sentido, o ritual de transmissão de conhecimento exige que haja entre o contador e o ouvinte uma perfeita harmonia, um equilíbrio que garanta a sobrevivência do passado no presente. Essa cumplicidade entre o velho e o novo mantém viva a consciência africana de resistência ao domínio branco-europeu. No dizer de Laura Cavalcante Padilha (1995, p. 47), O ancião liga o novo ao velho, estabelecendo as pontes necessárias para que a ordem se mantenha e os destinos se cumpram [...], tentando preservar os pilares de sustentação da identidade [africana], antes, durante e depois do advento do fato colonial. Na figura do narrador, concentra-se a ligação mais profunda entre a fonte de conhecimen- tos, as experiências vividas e a textura do narrado. Conhecedor das tradições e costumes do grupo 2 Guardião das tradições orais nas sociedades ágrafas, sem escrita. BARRY, Boubacar. Senegâmbia: o desafio da história regional. Rio de Janeiro: UCAM, 2000, p. 5. 3 O artesão divino ou o princípio organizador do universo que, sem criar de fato a realidade, modela e organiza a ma- téria caótica preexistente através da imitação de modelos eternos e perfeitos (HOUAISS, 2009). Literatura portuguesa e luso-africana: moderna e contemporânea14 a que pertence, o contador de histórias mantém acesa a chama da oralidade, num “jogo gozoso ar- mado entre o narrador e seu ouvinte, vive-se a vida que não teme a morte” (PADILHA, 1995, p. 65). O vasto conhecimento da comunidade autóctone constitui uma rede de cumplicidades en- tre as cinco literaturas de língua portuguesa. Para manter vivo o sistema de vasos comunicantes, a produção literária africana precisa ser irrigada constantemente com as experiências individuais e coletivas, raiz primordial da arte milenar do contar e ouvir estórias. Nesse sistema cultural, o ato de narrar adquire um status mágico, ritualístico, um ato de iniciação ao universo da africanidade. Diante disso, pode-se dizer que a palavra tem força e quem a detém passa a ser respeitado pelo papel que desempenha no grupo: Assim, [...], nas antigas comunidades, um mesmo velho que se sentava ao sol, para tecer seu luando e/ou fumar seu secular cachimbo de água, no conselho dos anciãos se transformava em um ser luminoso e iluminado de cuja palavra dependia o próprio destino dos homens e do grupo. (PADILHA, 1995, p. 16) A dimensão histórica do narrador/contador, como se verifica na citação anterior, corporifica um sistema de valores estéticos que constitui a base da poética e da dicção africana em língua portuguesa. A voz conduz metaforicamente os fatos, e é “por ela que o contador de estórias libera a força do seu imaginário e a do seu grupo, fazendo do processo de recepção um ato coletivo” (PADILHA, 1995, p. 15). 1.2 A moderna literatura africana A dinâmica da discursividade, advinda da oralidade, constrói a base do que Inocência Mata chama de cumplicidade entre as cinco literaturas de língua portuguesa. Sendo a matriz a mesma, guardadas as devidas proporções, [...] os autores textualizaram temas específicos, actualizaram sentires e saberes diferentes segundo a imagem da nação a construir, a partir de signos, símbolos, motivos e formas – daí resultando um reconhecimento das individualidades nacionais [...]. Individualidades nacionais formuladas, literariamente, em ango- lanidade, cabo-verdianidade, moçambicanidade e são-tomensidade, embora com diferença de cronologia. (MATA, 2001, p. 18) A moderna literatura africana pertence a uma rede de cumplicidade, como bem define Inocência Mata. Rede essa cuja matriz primeira é a tradição, fonte que durante décadas vem alimentando as narrativas africanas. Nesse sentido, os escritores e os poetas estabelecem um pacto com suas origens e, convocando outras memórias, seguem o percurso dos contadores ancestrais. O espaço matricial é recuperado em vários níveis, o destaque, no entanto, é para a discursividade oralizada e a materialização de tal discurso, quando o autor “sangra o português” – língua padrão do texto – (PADILHA, 1995 p. 77) com o quimbundo, quicongo e outras línguas que representam o lugar da africanidade numa construção que busca estabelecer um diálogo com o leitor. Logo, no poema que destacamos aqui podemos perceber uma musicalidade típica da fala: autóctones: originários da região onde são encontrados. quicongo: nome de línguas locais faladas em Angola. Gêneros literários e tradição oral 15 Picada de marimbondo Junto da mandioqueira Perto do muro de dobe Vi surgir um marimbondo Vinha zunindo! cazuza! Vinha zunindo! Cazuza Era uma tarde em janeiro tinha flores nas acácias tinha abelhas nos jardins e vento nas casuarinas, quando vi o marimbondo vinha voando e zunindo vinha zunindo e voando! Cazuza! Marimbondo foi branco quem inventou... (LARA, 2004, p. 78) O hibridismo matricial – as recordações do autor e da comunidade a que ele pertence – presente nos textos de autores como Assis Junior, Agostinho Neto e Manuel Rui, de Angola; Manuel Lopes e Baltasar Lopes, de Cabo Verde; Francisco José Tenreiro, de São Tomé e Príncipe; José Craveirinha, de Moçambique; Abdulai Sila e Odete Semedo, da Guiné-Bissau e outros, constituem um paradigma do processo de formação da literatura africana de língua portuguesa. Cabe ressaltar, no entanto, que existe nesse processo uma diferença cronológica. A africanidade reclamada pelos autores já citados e por outros garante a sobrevivência daquelas marcas típicas da oralidade resistentes ao bombardeio sofrido com a chegada do outro, o invasor, que tentou silenciar a palavra, considerada pelos ancestrais como uma força vital capaz de dar vida a um texto que é ao mesmo tempo uma “narrativa da nação”, como bem define Manuel Rui (1987, p. 308) em seu ensaio: Quando chegaste mais velhos contavam estórias. Tudo estava no seu lugar. A água. O som. A luz. Na nossa harmonia. O texto oral. E só era texto não apenas pela fala, mas porque havia árvores, parrelas sobre o crepitar de braços da floresta. E era texto porque havia gesto. Texto porque havia dança. Texto porque havia ritual. Texto falado, ouvido, visto. Nesse cenário equilibrado, teorizado por Manuel Rui, a força que emana da palavra, matriz de todo o conhecimento envolto na cadeia da tradição, faz circular as várias formas de expressões literárias como “os mitos, contos, adivinhações, provérbios e enigmas” (SOW, 1977, p. 26). Essa prática narrativa é um exercício de sabedoria compartilhado, já que existe entre o contador e seus ouvintes uma interação capaz de criar a necessária cumplicidade para reiterar Literatura portuguesa e luso-africana: moderna e contemporânea16 a ideia de que “é preciso ser, na força da diferença, preservando-se, com isso, o vasto manancial do saber autóctone” (PADILHA, 1995, p. 15). A arte de narrar dos mais velhos – os mitos, as lendas,os provérbios e as estórias em geral –, só é recuperada pela ficção, poesia ou teatro por meio de mecanismos, isto é, técnicas de recriação, geradoras da reflexão sobre o próprio ato de narrar, poetizar e encenar. Tal encenação, presente em todas as formas de expressões artísticas africanas, constitui a estética fundadora das modernas literaturas africanas de língua portuguesa, como bem define Pathé Diagne (1977, p. 139): A narrativa oral tradicional do contador e do griot negro-africano utiliza uma técnica de caracterização e um modo de dramatização que se articulou sobre uma estrutura frequentemente simples. Os acontecimentos enxertam-se aí so- bre uma intriga linear. A riqueza das peripécias cria uma tensão permanente. O romance moderno, parece, paradoxalmente, embrenhar-se hoje nesta via, que se julgaria simplista depois de Joyce. Nessa linha teórica, destaca-se aqui, mais uma vez, a visão de Laura Cavalcante Padilha acer- ca da oralidade recriada, para reafirmar a herança matricial que funda “o encontro da magia da voz com a letra” (PADILHA, 1995, p. 14). 1.4 Angolanidade, moçambicanidade, cabo-verdianidade e são-tomensidade No encontro provedor da renovação literária africana, diferentes fontes – culturas – serão reinterpretadas pelos escritores e poetas dos países africanos de língua portuguesa. A oralidade constitui a marca da tradição e é convocada pelos escritores para o registro das experiências literá- rias e culturais nos cinco países africanos de língua portuguesa. Esse registro pode ser percebido na poética de Agostinho Neto, um membro da Geração “Vamos descobrir Angola”. Assim, com o intuito de denunciar e despertar o sonho libertário do homem angolano, Agostinho Neto escreve Sagrada Esperança (1974) que, de acordo com Maria Soares Fonseca (2018), [...] delineia uma proposta poética que recupera dados importantes do proces- so de conscientização encaminhado pelos intelectuais e escritores angolanos. A poesia de combate de feição pragmática recorre por vezes à intenção mais descritiva e compõe quadros em que o dia a dia dos angolanos toma o lugar das intenções pedagógicas tão comuns à poesia de desalienação. Dessa forma, se a poesia conta com a presença de Agostinho, figura emblemática da história de Angola, o romance – gênero singular no resgate das tradições – foi inaugurado por António Assis Júnior, com o livro O Segredo da Morta (1934), primeira obra do gênero na literatura angolana. Segundo Rita Chaves (1999, p. 21), desde a publicação dessa narrativa: A trajetória do romance em Angola vem deixando nítida a vontade de seus au- tores de, [por meio] da literatura, colocar em prática um projeto de investigação sobre as realidades que compõem o país. Potencializando a sua capacidade de analisar com certa dose de objetividade a matéria artisticamente transfigurada, o romance, naquele sistema literário, aproveita-se do senso de historicidade que também o define como gênero para oferecer ao leitor um instigante painel das múltiplas faces que particularizam o país. Gêneros literários e tradição oral 17 Nesse cenário de múltiplas visões da história ficcionalizada, encontram-se vários seguido- res de António Assis Júnior: Oscar Ribas, José Luandino Vieira, Pepetela, José Eduardo Agualusa, entre outros. Cabe ressaltar, no entanto, que a oralidade valorizada por Luandino Vieira advém dos “contos tradicionais, os missossos, narrativa tradicional de ficção, incluindo personagens hu- manos, animais e/ou monstros” (MACÊDO, 2002, p. 62). Guardadas as devidas proporções, a literatura de Moçambique tende a trilhar um caminho semelhante para estabelecer o paradigma de sua poética e, posteriormente, de sua prosa. A primeira obra de cunho moçambicano foi o conto escrito por João Dias intitulado “Godido e outros contos” (1952), mas o nome de destaque na formação da poética de Moçambique foi José Craveirinha, que, no final dos anos 1940, intensifica sua produção literária e é considerado um dos precursores da moçambicanidade. Como as demais literaturas africanas de língua portuguesa, esta se forma também num espaço híbrido, repleto de referências culturais oriundas de diversas fontes. As origens das discursividades africanas provêm de oralidades distintas, mas apesar disso, a moderna literatura africana apresenta uma história semelhante pelo papel que desempenhou na construção identitária de cada ex-colônia. No dizer de Inocência Mata (2001, p. 17), [...] a literatura funcionou também, por razões diversas, como subsidiária da luta anticolonial, conjugando-se numa frente de exortação cultural, o discur- so literário africano foi decorrente desse percurso histórico comum: daí os paralelismos e até as identificações temáticas, estilísticas e ideológicas entre esses sistemas. Num percurso semelhante encontra-se a literatura de Cabo Verde. Nela, o processo de ca- racterização dos gêneros literários ocorre a partir da publicação da revista Claridade (1936), marco fundacional da cabo-verdianidade. Nessa revista, lançou-se “Bia” – capítulo inicial do romance Chiquinho, de Baltasar Lopes, só publicado na íntegra em 1947 e que é, de acordo com Manuel Ferreira, o marco inaugural da narrativa de Cabo Verde, uma abertura para a pesquisa literária que busca a reinvenção da escrita, organizada a partir de signos, expressões ou formas sintáticas em crioulo, tendo em vista o bilinguismo do país. A evolução de São Tomé e Príncipe ocorre, em vários aspectos, paralelamente à de Cabo Verde. A obra fundamental da construção discursiva são-tomense foi Ilha de São Tomé (1961), de Francisco José Tenreiro, poeta expressivo da literatura de São Tomé e Príncipe. Essa ex-colônia, como Cabo Verde, também é bilíngue, logo, a busca identitária desse povo, como dos demais membros da comunidade lusófona na África, se dá em meio a um universo híbrido, composto por mais de uma matriz fundacional, já que nesse cenário miscigenado a cultura é transmitida por meio da língua portuguesa ou crioula. Esse painel dos gêneros literários dos países de língua portuguesa conclui-se com Guiné-Bissau, país bilíngue como Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, mas com um diferencial em termos de produção literária. Na Guiné-Bissau, o despertar para a valorização do país e de uma reescrita das tradições só se efetiva “em pleno período da luta ar- mada ou então já no período pós-libertação nacional” (FERREIRA, 1987, p. 105). Literatura portuguesa e luso-africana: moderna e contemporânea18 Dicas de estudo Leitura do livro intitulado Para quando a África?: entrevista com René Holenstein. Nesse li- vro, um dos maiores pensadores africanos de todos os tempos faz revelações esclarecedoras acerca de política, história, literatura, economia e várias outras áreas do conhecimento. Assistir ao filme: Palavra Encantada (2009). A diretora Helena Solberg construiu o fil- me com base em 18 entrevistas feitas com músicos, poetas, compositores e pensadores que ofereceram suas ideias e opiniões sobre a trajetória da música popular brasileira nas últimas seis décadas. São artistas e criadores, cada um com um processo individual muito especial. Eles revelaram suas descobertas na literatura escrita e oral, que eventualmente foram fonte de inspiração em seu processo criativo. Atividades 1. Defina com suas palavras a ideia de rede de cumplicidade na moderna literatura africana. 2. Os gêneros literários africanos originaram-se de qual matriz? Como Boubacar Barry define o perfil dessa origem? 3. Quem são os expoentes na poesia e no romance angolano? Referências BARRY, Boubacar. Senegâmbia: o desafio da história regional. Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes (UCAM), 2000. CHAVES, Rita de Cássia Natal. A formação do romance angolano: entre intenções e gestos. São Paulo: Via Atlântica, 1999. FERREIRA, Manuel. Literaturas africanas de expressão portuguesa. São Paulo: Ática, 1987. FONSECA, Maria Soares. Poesia em tempos sombrios: o projeto literário de sagrada esperança. Disponívelem: <https://www.ueangola.com/criticas-e-ensaios/item/267-poesia-em-tempo-sombrios-o-projeto-liter% C3%A1rio-de-sagrada-esperan%C3%A7a>. Acesso em: 25 jun. 2018. HOUAISS, A. Dicionário eletrônico Houaiss. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. 1 CD-ROM. LARA FILHO, Ernesto. In: Obra poética. Luanda: Edições Maianga, 2004. LARANJEIRA, Pires. De letra em riste: identidade, autonomia e outras questões na literatura de Angola, Cabo Verde, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Porto: Afrontamento, 1992. MACÊDO, Tania. Angola e Brasil: estudos comparados. São Paulo: Arte e Ciência, 2002. MATA, Inocência. Literatura Angolana: silêncios de uma voz inquieta. Lisboa: Mar Além, 2001. NETO, Agostinho. Sagrada esperança. Luanda: Edições Maianga, 2004. PADILHA, Laura Cavalcante. Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade na ficção angolana do século XX. Niterói: EDUFF, 1995. Gêneros literários e tradição oral 19 PATHÉ, Diagne. Renascimento e Problemas Culturais em África. In: SOW, Alpha; BALOGUN, Ola; Aguessy, HONORAT; PATHÉ, Diagne. Introdução à Cultura Africana. Lisboa, Edições 70, 1977. RUI, Manuel. Eu e outro: o invasor ou em poucas três linhas uma maneira de pensar o texto. In: Sonha ma- mana África. São Paulo: Epopeia, 1987. SANTILLI, Maria Aparecida. Estórias africanas: história e antologia. São Paulo: Ática, 1985. SOW, Alpha I. In: Introdução à cultura africana. Lisboa: Edições 70, 1977. 2 Sophia de Mello Breyner e os mistérios literários Mar, Metade da minha alma é feita de maresia (“Atlântico”. ANDRESEN, 2004, p. 272) Quando eu morrer voltarei para buscar Os instantes que não vivi junto do mar (“Inscrição”. ANDRESEN, 2004, p. 140) A produção literária de Sophia de Mello Breyner é bastante extensa. Destacam-se: Poesia (1944), Dia do mar (1947), Coral (1950), No tempo dividido (1954), Mar novo (1958), Livro sexto (1962), Dual (1972), Nome das coisas (1977), Musa (1994). Para crianças, ela publicou: O rapaz de bronze (1956), A menina do mar e a fada Oriana (1958), Noite de natal (1960), O cavaleiro da Dinamarca (1964), A floresta (1968) e Árvore (1985). De acordo com Maria Alzira Seixo, o prestígio de Sophia de Mello Breyner como contista há muito se encontra definido de modo preciso (1986, p. 233). Seguindo essa linha de raciocínio, podemos afirmar, ainda com Seixo, que a obra A Menina do mar é um dos grandes textos infantis da literatura portuguesa do século XX. O universo poético de Sophia é povoado por imagens marítimas. 2.1 A narrativa de Sophia de Mello Breyner Andresen Percorrendo a sua obra, quer poética ou ficcional, encontramos sempre presentes os quatro elementos primordiais do universo: a terra (jardim, flor e árvore), a água (rio, fonte, mar), o ar (vento e brisa). Esses três elementos são transformados pela ação do fogo (luz e sol), metaforizados em imagens que guardam uma densidade, mas também uma leveza presente no processo de: “Transferir o quadro o muro a brisa/ A flor o copo o brilho da madeira/ E a fria e virgem liquidez da água/ Para o mundo do poema limpo e rigoroso” (ANDRESEN, 2004, p. 134). Em Histórias da terra e do mar, Sophia leva a sua personagem a um baú repleto de histórias fantásticas. Nesse processo, a autora cumpre um ritual de visitação ao passado. Segundo Maria Alzira Seixo, o motivo casa é central em todos os contos: a casa como corpo físico, vivenciado pelas pessoas, mas autonomizado como centro propulsor de uma radicação do humano (1986, p. 234), logo, a casa é o coração da vida, tanto efetiva quanto sonhada. Em A menina do mar, a casa é ampla e repleta de mistérios que despertam a curiosidade infantil de várias gerações, como bem define a própria autora em entrevista concedida a Eduardo Prado Coelho para a Revista n. 6 do ICALP (Instituto de Cultura e Língua Portuguesa): [...] comecei a contar histórias para meus filhos a partir de fatos e lugares da minha infância (sobretudo lugares). Por isso a primeira que apareceu se chama “A menina do mar”. Era uma história que a minha mãe me tinha contado quando Literatura portuguesa e luso-africana: moderna e contemporânea22 eu era pequena, mas era uma história incompleta. A minha mãe tinha me dito que havia uma menina muito pequena que vivia nas rochas e como a coisa que eu mais adorava na vida era tomar banho de mar, essa menina tornou-se para mim o símbolo da felicidade máxima, porque vivia com as algas, os peixes... Então eu comecei a contar a história a partir disso. Depois os meus filhos ajuda- vam; primeiro porque não me deixavam parar e segundo porque perguntavam: ‘E o peixe que é que fazia? E o caranguejo?’. Essa história foi contada oralmente numa tarde. Quando a escrevi, tentei mantê-la como a tinha contado. Nessa dinâmica discursiva, a escritora dialoga com a sua tradição literária e redimensiona dialogicamente a atividade poética, pois “as personagens [...] começam a representar diferentes ‘vozes’ não unificadas por uma única verdade englobante de ordem ideológica (a filosofia do autor) ou de ordem psicológica (a personalidade do autor)” (MOISÉS, 1993, p. 58). Assim com um ce- nário povoado por mil e uma espécies que compõem a fauna real e imaginada pela autora, o texto A menina do mar reatualiza a ideia do “Era uma vez”, marca recorrente nas narrativas infantis que buscam manter o princípio norteador do conto de fadas. Essa abertura textual dá à narrativa fantástica a credibilidade, pois a remove de épocas e lu- gares familiares para o mundo do imaginário, alimentando os sonhos dos ouvintes ou leitores em momentos distintos. A menina do mar apresenta uma característica literária bastante produtiva, é uma obra aberta, no sentido pensado por Umberto Eco. Dessa forma, A literatura, mais que qualquer texto, exige a participação do leitor, exige que ele se comova com a leitura, ao mesmo tempo em que o remete a outras obras, histórias, a outros autores. Nessa rede de significações que se estende, a arte passa de mera comunicação previsível para o plano das expressões diversas. A perspectiva unívoca do processo de comunicação é resgatada de sua versão uniformizadora, conformadora, pelo reconhecimento de que ela se dá entre dois sujeitos falantes em que o ‘tu’ se transforma permanentemente em ‘eu’ [logo] a linguagem só é possível porque cada locutor é sujeito. A voz que res- ponde repõe, isto é, não pode ser apenas a voz que reproduz e devolve em eco o mesmo. (YUNES; PONDÉ, 1988, p. 48-49) 2.1.1 Análise das narrativas de Sophia de Mello Breyner Andresen Em A Fada Oriana, Sophia valoriza os elementos tradicionais do conto de fadas. Com uma temática que sinaliza a dicotomia bem-mal. A Fada Oriana apresenta seres fantásticos, dotados de poderes tanto para o bem como para o mal, logo, as más ações são castigadas e as boas recompen- sadas. A personagem central tem a função de cuidar dos seres da floresta, mas após ver seu rosto refletido no riacho, apaixona-se pela própria imagem, assim como ocorreu com Narciso, deixando de lado as suas funções. A partir desse momento, ela perde seus poderes, mas de acordo com a tra- dição do conto de fadas, recupera seus poderes e suas funções após refletir e reconhecer seus erros. O espaço e as personagens da história O rapaz de bronze pontuam mais uma vez o caminho trilhado por Sophia do ponto de vista temático: o jardim e as flores. As flores são as personagens principais que ganham vida e se comportam como as pessoas durante a noite. Assim, depois de Sophia de Mello Breyner e os mistérios literários 23 observarem um baile, resolvem fazer uma festa na Clareira dos Plátanos1. Como podemos observar nesta passagem: “– Olá! – disse o Rapaz de Bronze quando viu aparecer o Gladíolo – que vens fazer a este lugar solitário? – Preciso de te pedir um favor. Quero que me dê licença para que eu organize uma festa: uma festa aqui no jardim, uma festa de flores igual às festas dos homens” (ANDRESEN, 1977, p.18-19). A narrativa A árvore conta a história de uma árvore milenar numa pequena ilha doJapão, porém esse símbolo da vida cresceu demasiado e cobriu parte da ilha, logo metade da ilha ficava na sombra constantemente e o sol já não aquecia as casas. A população se reuniu em um conselho e decidiu cortar a árvore. Vários objetos foram construídos com sua madeira, mas o principal objeto foi uma barca, que funcionava como transporte para diversos produtos. Nesse cenário fantástico, o personagem principal simboliza múltiplos aspectos. Como bem de- fine Eliade, a imagem da árvore não foi escolhida unicamente para simbolizar o cosmos, mas também para exprimir a vida, a juventude, a imortalidade, a sapiência (2001, p. 124). Nesse sentido, podemos dizer que o ritmo da natureza metaforizado na imagem da árvore estabelece um diálogo entre a vida e a morte, o claro e o escuro, o mar e a terra para manter o equilíbrio da casa que abriga os sonhos. De acordo com Seixo (1986, p. 236): Entre as águas e a casa se encontra o vago campo onde o ser desenvolve o alado percurso da sua perdição ou encontro, arremessado tantas vezes do objeto ao devaneio; é neste terreno que privilegiadamente se situa a capacidade quase mágica de ficcionar que encontramos em Sophia de Mello Breyner Andresen, marcada por uma intensa claridade de narração que a noite, como tema e sím- bolo, vem por vezes turvar como poder de irrupção inesperada, mas inevitável, natural e também humana, que só o sono ou o sonho mascara. A obra O cavaleiro da Dinamarca é ambientada num cenário medieval e, como nas diversas narrativas de Sophia, a temática casa está presente. O texto conta a história de um cavaleiro que um dia decidiu sair da sua casa na Dinamarca com o intuito de conhecer a Terra Santa, onde pretendia passar um Natal na gruta, local do nascimento de Cristo. Nessa narrativa, a personagem percorre lugares símbolos da cultura da humanidade: Palestina, Itália, com as suas cidades de Florença e Veneza; Flandres e Antuérpia. Nesse caminho de busca pelo conhecimento, o cavaleiro ouve histó- rias sobre personagens importantes da arte, da literatura e da história de Portugal. 2.2 A poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen Ampliando nossas reflexões acerca da temática casa, procuraremos detectar na poesia de Sophia de Mello Breyner a imagem poética que abriga “a antiga casa”. Dessa forma, no poema Casa encontra-se a seguinte imagem: 1 De acordo com o Dicionário Houaiss (2009), os plátanos pertencem a uma família de “árvore[s] (Platanus orientalis) com casca que absorve elementos atmosféricos poluentes e se renova constantemente, folhas palmatilobadas e flores esverdeadas [...] nativa do Sudoeste da Europa ao Norte do Irã, e cultivada como ornamental”. Literatura portuguesa e luso-africana: moderna e contemporânea24 A antiga casa que os ventos rodearam Com suas noites de espanto e de prodígio Onde os anjos vermelhos batalharam A antiga casa de inverno em cujos vidros Os ramos nus e negros se cruzaram Sob o íman dum céu lunar e frio Permanece presente como um reino E atravessa meus sonhos como um rio (ANDRESEN, 2004, p. 172) No espaço poético, a imagem, a singularidade da experiência passada “permanece presente como um reino / E atravessa meus sonhos como um rio” para redimensionar o “tempo de areia fina”. Como bem define Benjamin (1992, p. 224), a verdadeira imagem do passado perpassa, veloz, e só se deixa fixar como imagem que relampeja irreversivelmente, momento em que é reconhecida como um reflexo, pois “A casa está na tarde/ Actual mas nos espelhos/ Há o brilho de um tempo antigo/ Que se debate emerge balbucia” (“Portas da vila”. ANDRESEN, 2004, p. 174). Diante disso, pode-se dizer que o poema tem com a experiência suscetível uma ligação sen- sível, que coloca a língua no limiar da sensação, quando o sujeito poético constata que “a noite reúne a casa e o seu silêncio/ Desde o alicerce desde o fundamento/ Até a flor imóvel/ Apenas se ouve bater o relógio do tempo” (“A noite e a casa”. ANDRESEN, 2004, p. 168). Segundo Alain Badiou, “o poema seria, como o sofista, um não pensamento que se apresenta no poder de linguagem de um pensamento possível” (2002, p. 32); no entanto, se houver um con- ceito do poema, ou seja, se o poema for um conceito em si mesmo, esse conceito é inseparável do sensível, é um conceito que não pode ser diferenciado ou isolado dos limites da língua. Desse ponto de vista, “o poema é um pensamento impensável [...] um pensamento que pre- cisamente só existe na medida em que é pensável” (BADIOU, 2002, p. 32), como figuração de um tempo em que: Dia Meu rosto se mistura com o dia Nuvens telhados ramagens e Dezembro Apaixonada estou dentro do tempo Que me abriga com canto e com imagens Tão abrigada estou dentro da hora Que nem lamento já a tarde antiga Tudo se torna presente e se demora Será que o dia me pede que eu o diga? (ANDRESEN, 2004, p. 142) Sophia de Mello Breyner e os mistérios literários 25 2.2.1 Análise de poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen O poema autodefine-se como pensamento. Ele não se efetiva, enquanto pensamento disposto no cerne da língua, mas é a completude das intervenções produzidas nela que leva esse pensamento a se pensar. O termo luz – marca recorrente na poética de Sophia – constitui-se num relampejo que ilumina as palavras para deixar mais legível o sentido do discurso fragmentado, repleto de ausências expostas na cena poética absorvida. Ausência Num deserto sem água Numa noite sem lua Num país sem nome Ou numa terra nua Por maior que seja o desespero Nenhuma ausência é mais funda do que a tua. (ANDRESEN, 2004, p. 107) A intensidade das imagens poéticas evocadas em Sophia é um mecanismo de meios dispostos com um significado preciso, um motivo para o poema estabelecer imageticamente a apresentação sensível na configuração de um pensamento, que transita entre a ausência e a presença, a retração e a atração, casas antigas e casas ainda por construir. Como podemos verificar no poema “Casa branca”: Casa branca em frente ao mar enorme, Com o teu jardim de areia e flores marinhas E o teu silêncio intacto em que dorme O milagre das coisas que eram minhas. A ti eu voltarei após o incerto Calor de tantos gestos recebidos Passados os tumultos e o deserto Beijados os fantasmas, percorridos Os murmúrios da terra indefinida. Em ti renascerei num mundo meu E a redenção virá nas tuas linhas Onde nenhuma coisa se perdeu Do milagre das coisas que eram minhas. (ANDRESEN, 2004, p. 34) Segundo Badiou (2002), o poema moderno é menos a forma sensível da ideia e bem mais o sensível que se apresenta como nostalgia subsistente e impotente da ideia poética. No poema “As pessoas sensíveis”, Sophia mistura os sentidos, as sensações humanas, com imagens ligadas ao campo do sagrado por um viés só compreendido no discurso poético: Literatura portuguesa e luso-africana: moderna e contemporânea26 As pessoas sensíveis não são capazes De matar galinhas Porém são capazes De comer galinhas O dinheiro cheira a podre e cheira À roupa do seu corpo Aquela roupa Que depois da chuva secou sobre o corpo Porque não tinham outra O dinheiro cheira a podre e cheira A roupa Que depois do suor não foi lavada Porque não tinham outra “Ganharás o pão com o suor do teu rosto” Assim nos foi imposto E não: “Com o suor dos outros ganharás o pão” Ó vendilhões do templo Ó construtores Das grandes estátuas balofas e pesadas Ó cheios de devoção e de proveito Perdoai-lhes Senhor Porque eles sabem o que fazem (ANDRESEN, 2004, p. 151) Sendo assim, por intermédio da manifestação de movimentos contraditórios “as pessoas sensíveis” não são capazes de agir de acordo com o mandamento inicial, mas criam novas formas para obter os bens necessários. O poema atravessa com uma força imanente o que a imagem sen- sível capta. Não nos apresenta uma ideia mimética do mundo visível, mas sugestiva de um mundo transcendente em que o sujeito poético pede ao Senhor que perdoe os “vendilhões do templo”. A poesia de Sophia de Mello Breyner torna-se verdade múltipla ancorando-se paraalém dos limites da língua. Na leitura do texto intitulado O poema, observam-se os ecos da memória. Assim, pode-se visualizar também o canto da desilusão, de as experiências empíricas adquirirem signifi- cados na junção dos termos ligados à natureza para efetivar o encontro entre o mundo sensível, que pode ser percebido pelos sentidos, e aquele intemporal, transcendental, e só reconhecível pelo pensamento poético, porque: O poema me levará no tempo Quando eu já não for eu E passarei sozinha Entre as mãos de quem lê O poema alguém o dirá Às searas Sua passagem se confundirá Com o rumor do mar com o passar do vento Sophia de Mello Breyner e os mistérios literários 27 O poema habitará O espaço mais concreto e mais atento No ar claro nas tardes transparentes Suas sílabas redondas (Ó antigas ó longas Eternas tardes lisas) Mesmo que eu morra o poema encontrará Uma praia onde quebrar as suas ondas E entre quatro paredes densas De funda e devorada solidão Alguém seu próprio ser confundirá Com o poema no tempo (ANDRESEN, 2004, p. 135) A escrita de Sophia nasce numa época de mudanças expressivas em Portugal e no mundo. Os movimentos de lutas libertárias contra o fascismo em Portugal, o nazismo em várias partes da Europa e, em especial, contra o colonialismo na África são impulsionados com o auxílio de escri- tores que emprestam sua palavra para valorizar o direito à vida e à liberdade de expressão tão cara numa época de profunda solidão. Trilhando um caminho muito particular, Sophia integra essa legião de autores que acreditaram na possibilidade de “O poema [habitar] /O espaço mais concreto e mais atento”. A poética de Sophia estabelece uma nova proposição do pensamento literário portu- guês. Nesse sentido, ela cria um novo meio para o uso poético da língua, e não somente um prazer intenso visível no presente textual. Emprega no seu discurso um conjunto de símbolos e alegorias que fazem lembrar Fernando Pessoa, poeta que foi para ela uma referência. A memória das coisas e dos espaços em Sophia constitui-se numa teorização acerca da arte e do real, como podemos perceber na passagem retirada do seu discurso durante a entrega do Grande Prêmio de Poesia atribuído ao Livro Sexto: A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro do qual estava, poisada em cima duma mesa, uma maçã enorme e vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e inteira. Não era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a própria presença do real que eu descobria. Mais tarde a obra de outros artistas veio confirmar a objetividade do meu próprio olhar. Em Homero reconheci essa felicidade nua e inteira, esse esplendor da presença das coisas. E também a re- conheci, intensa, atenta e acesa na pintura de Amadeo de Souza-Cardoso. Dizer que a obra de arte faz parte da cultura é uma coisa um pouco escolar e artificial. A obra de arte faz parte do real e é destino, realização, salvação e vida. Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso Literatura portuguesa e luso-africana: moderna e contemporânea28 esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. Aquele que vê o fenômeno quer ver todo o fenômeno. É apenas uma questão de atenção, de sequência e de rigor. (“A coisa mais antiga de que me lembro”. ANDRESEN, 2004, p. 155) O poeta reconstitui fatos, fazendo uso da dupla utilização de lembrar, torna possível o des- locamento entre lembrar o vivido e lembrar vozes ou imagens alheias, distantes no tempo. Sendo assim, em um processo não habitual, isto é, subjetivo, Sophia lembra em termos de experiências fatos experimentados pelo sujeito, mas também pelos sujeitos coletivamente. A poética da “pós- -memória da geração seguinte àquela que sofreu, ou protagonizou os acontecimentos” (SARLO, 2007, p. 91), constitui uma vibração na poesia de Sophia: Sinto os mortos no frio das violetas E nesse grande vago que há na lua. A terra fatalmente é um fantasma, Ela que toda a morte em si embala. Sei que canto à beira de um silêncio, Sei que bailo em redor da suspensão, E possuo em redor da impossessão. Sei que passo em redor dos mortos mudos E sei que trago em mim a minha morte. Mas perdi o meu ser em tantos seres, Tantas vezes morri a minha vida, Tantas vezes beijei os meus fantasmas, Tantas vezes não soube dos meus atos, Que a morte será simples como ir Do interior da casa para a rua. (ANDRESEN, 2004, p. 45) A perspectiva diferencial da pós-memória para a memória-lembrança – vivida pelo sujeito que narra poeticamente suas experiências – é que aquela inevitavelmente vem mediada pelas lem- branças alheias das vidas dos sujeitos e de seu entorno imediato. Nesse sentido, o sujeito poético traça a geografia das coisas, dos espaços, da cidade, porque “a memória é redundante: repete os símbolos para que a cidade comece a existir” (CALVINO, 1990, p. 23). Como podemos perceber no poema a seguir: Há cidades acesas na distância, Magnéticas e fundas como luas, Descampadas em flor e negras ruas Cheias de exaltação e ressonância. Há cidades acesas cujo lume Destrói a insegurança dos meus passos, E o anjo do real abre os seus braços Em nardos que me matam de perfume. Sophia de Mello Breyner e os mistérios literários 29 E eu tenho de partir para saber Quem sou, para saber qual é o nome Do profundo existir que me consome Neste país de névoa e de não ser. (ANDRESEN, 2004, p. 44) Nos seus textos há um apelo aos sentidos, logo, o sujeito poético valoriza as sensações visuais, táteis, olfativas e auditivas para estabelecer a relação com uma realidade criada por meio das pala- vras. Sophia utiliza com frequência termos cheios de valor mágico que configuram cenários ligados ao mar, à casa, à praia, à noite e aos valores associados a esses termos – mistério, sonho, justiça, vida e morte – bem como as figuras mais recorrentes em sua produção literária: fadas, deuses e animais. Nesse sentido, a literatura surge como o único espaço capaz acolher “todo o milagre, toda a maravi- lha [...] /As flores, as manhãs, o vento, o mar” (ANDRESEN, 2004, p. 61). Dicas de estudo A revista Metamorfoses apresenta um artigo sobre a obra poética de Sophia e um ensaio feito por ela acerca da poética de Cecília Meireles: Revista Metamorfoses, n. 1. Lisboa: Edições Cosmos e Cátedra Jorge de Sena, 2000. O site da Porto Editora apresenta a biografia da autora, bem como suas obras publicadas. Disponível em: <https://www.portoeditora.pt/autor/sophia-de-mello-breyner-andresen>. Acesso em: 18 jul. 2018. Atividades 1. Quais são as características básicas da poesia e da prosa de Sophia de Mello Breyner Andresen? 2. De que maneira Sophia de Mello Breyner Andresen estabelece um diálogo com as tradições? 3. A temática casa é recorrente na poética de Sophia de Mello Breyner Andresen, de que forma o tema se apresenta e que tipo de casas estão presentes na sua poesia? Referências ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. In: Revista Metamorfoses, n. 1. Lisboa: Edições Cosmos e Cátedra Jorge de Sena, 2000. _______. A árvore. Porto: Figueirinhas, 1985. _______. O rapaz de bronze. Lisboa: Moraes Editores, 1977. _______. Poemas escolhidos. ARÊAS, Vilma (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2004. BADIOU, Alain. Pequeno manual de inestética. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. Literatura portuguesa e luso-africana: moderna e contemporânea30 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1992. CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. 2. ed.São Paulo: Companhia das Letras, 1990. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2001. MOISÉS, Leyla Perrone. Texto, crítica, escritura. 2. ed. São Paulo: Ática, 1993. OLIVEIRA, Jurema. No limite entre a memória e a história: a poesia. Luanda: União dos Escritores Angolanos / UEA, 2009. SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007. SEIXO, Maria Alzira. A palavra do romance: ensaios de genealogia e análise. Lisboa: Livros Horizonte, 1986. YUNES, Eliana; PONDÉ, Glória. Leitura e leituras da Literatura Infantil. São Paulo: FTD, 1988. 3 Claridade e Certeza De acordo com Manuel Ferreira, Cabo Verde conheceu no final do século XIX, no plano literário e cultural, um desenvolvimento significativo, mas como o grupo mais atuante era de descendentes de portugueses, esses foram buscar um Portugal o espaço mais promissor para suas carreiras intelectuais. A experiência lisboeta abriu espaço para a formação de muitos escritores cabo-verdianos, desenraizados da terra natal, mas produtores de obras de prestígio na história literária de Cabo Verde. Destacam-se “António Gertrudes Pusich (1875-1924) e Henrique de Vasconcelos (1875-1924) – Flores Cinzentas (poesia, 1893), A Mentira Vital (contos, 1895) –, ambos com vasta obra publicada” (FERREIRA, 1987, p. 25). Assim, como Angola e Moçambique, Cabo Verde também contou com o impulso dos jornais para dinamizar sua criação ficcional e poética. Seu primeiro periódico de destaque foi o Almanach Luso-Africano (1894 e 1899), que registrou colaborações literárias tanto em português como em crioulo, língua usada pelo idealizador do almanaque, o cônego António Manuel Teixeira. Ao contrário de Angola e Moçambique, Cabo Verde não viu florescer uma literatura colonial nos moldes tradicionais. A partir da segunda metade do século XIX, a colônia adquire feição própria, pois a posse da terra ia sendo pouco a pouco transferida para as mãos de uma burguesia cabo-verdiana mestiça, fosse branca ou negra. Nesse processo, não ocorre ali uma relação tradicional visível nas demais colônias, isto é, colonizado versus colonizador, mas sim explorado versus explorador, semelhante àquela presente no sistema capitalista, guardadas as devidas proporções, já que não podemos negar a especificidade colonial estabelecida entre o poder político e as comunidades. Ainda de acordo com Manuel Ferreira, uma narrativa que explicita a dinâmica diferen- ciada nas relações sociais e de poder em Cabo Verde é a obra O Escravo (1856), de José Evaristo de Almeida: Uma das virtudes desse texto está em que a quase totalidade das personagens são cabo-verdianas (negros, mestiços, mulatos). E o espaço é o da escravidão, abrindo-se a nós hoje para a compreensão de um mundo longínquo no tempo, a permitir uma perspectiva social diacrônica de largo alcance. Assim, e em ter- mos da escrita, ficamos a saber, ao vivo, que havia senhores de escravos entre os próprios africanos: pelo menos, mulatos. (FERREIRA, 1987, p. 25) O escravo aparece no cenário cabo-verdiano como exemplo de um projeto literário que se formava no século XIX e começo do século XX. Outras produções foram escritas nesse período, como: Amores de uma Crioula (1911) e Vinte Anos Depois (1911) de António de Arteaga (século XIX – XX); Bosquejos d’um Passeio ao interior da Ilha de S. Thiago (1912), 11 contos singelos – Nhô José Pedro ou Scenas da Ilha Brava” (FERREIRA, 1987, p. 27), entre outros. Esses autores tiveram seus textos publicados em A voz de Cabo Verde (1911 – 1919), periódico importante na divulgação da literatura cabo-verdiana. Literatura portuguesa e luso-africana: moderna e contemporânea32 A voz de Cabo Verde acolheu os intelectuais mais importantes daquela época. O século XX viu nascer um projeto nacional cabo-verdiano, que foi bem representado pela geração de Claridade (1936), de Certeza (1944) e do Suplemento cultural (1958), sendo esse último o marco para se con- solidar definitivamente o projeto literário cabo-verdiano: O projeto da geração da Claridade opera a transgressão, o deslocamento da visão europeia para uma visão cabo-verdiana. Daí o rompimento com os mo- delos temáticos europeus e uma radical consciência regional. O ideário da Certeza enriquece a tomada de posição da Claridade pela introdução de uma visão dialética dada pelo marxismo. (FERREIRA, 1987, p. 56) Segundo Benjamin Abdala Junior (2003), a história da literatura de Cabo Verde divide-se em duas fases: antes e depois de Claridade (1936-1960). O percurso dessa revista está ligado aos aspec- tos de ordem política, social, histórica e literária. Na década de 1930, os escritores cabo-verdianos começam a questionar qual seria de fato a identidade da literatura produzida por eles. Tal identidade estava presa inicialmente às características regionais do arquipélago e aos va- lores portugueses, mas vai evoluindo pouco a pouco para uma ruptura definitiva com a metrópole que os acolheu em períodos anteriores. Em seguida, essa identidade se inscreve num contexto de investigação em que os escritores envolvidos na produção discursiva buscam, acima de tudo, criar uma literatura de caráter nacional. Os cabo-verdianos começavam a ver o arquipélago como um espaço carente de uma nar- rativa de cunho nacional, capaz de acolher todas as vozes ali fixadas. Esses intelectuais passam a criar com os olhos fixos “no chão crioulo, próprio da mesclagem étnica e cultural de seu país” (ABDALA, 2003, p. 209). 3.1 Pressupostos teóricos da revista Claridade Na visão de Manuel Ferreira (1989), a morte do discurso metropolitano se dá com o nasci- mento de Claridade. A especificidade da literatura cabo-verdiana é a diferença, isto é, a oposição intrínseca que esta estabelece com as demais (a colonial, a africana e a brasileira). Os “claridosos” precisavam reinventar suas raízes, logo, o caminho primordial seria saber qual a origem da pátria imaginada. Primeiramente, tinham que se desvencilhar “da pátria imperial, da pátria externa”, para criar no vazio simbólico a imagem mítica da “cabo-verdianidade”. José Lopes e Pedro Cardoso criam uma poética capaz de desempenhar um papel fundamental no estabelecimento da “nova cosmogonia”1, construída a partir da lenda e do mito. Ambos os autores, metaforicamente, reatualizam “a lenda da Atlântica” e fundam na poesia uma ideia de que a nação pode ter uma narrativa que a fundamente na sua cabo-verdianidade. Em Claridade essa temática tem um perfil mais realista e dinâmico, distinto daquele pautado pela corrente que antecedeu o nascimento 1 A cosmogonia é um termo que refere-se a teorias sobre a origem do universo geralmente fundada em lendas ou em mitos e ligada a uma metafísica. Como não houve testemunhas, as teorias da formação do mundo assentam-se na fé (cosmogonias religiosas) ou no cálculo (cosmogonias astronômicas). DICIONÁRIOS DE FILOSOFIA. Cosmo, Cosmologia, Cosmogonia, Cosmovisão. Disponível em: <https://sites.google.com/view/sbgdicionariodefilosofia/cosmo-cosmologia- cosmogonia-cosmovis%C3%A3o>. Acesso em: 18 jul. 2018. Claridade e Certeza 33 da revista. Com ela nasce um novo projeto, o da “cabo-verdianidade”. O tempo, culturalmente, era outro, logo: É verdade que alguns dos temas fundamentais dos “claridosos” haviam sido objetos de preocupação literária dos poetas do período anterior, que designa- mos por cabo-verdianismo. Mas agora, com a Claridade, esses mesmos temas são tratados não de um ponto de vista realista, enquadrados no concreto social. Estamos, pois, em tempo cultural diferente, que permite a concretização de uma literatura marcada pelo ‘realismo crítico’, no conceito de Lukács. Não se trata, pois, como dizíamos de uma moda, de uma escola, mas de alguma coisa re- transformada e transformadora, que possui, em si mesma, o germe do impulso dinâmico, conferindo a ela a categoria de movimento, e não apenas de escola, o que pressupõeuma nova visão do universo crioulo. (FERREIRA, 1987, p. 43-44) As temáticas recebem, como afirma Ferreira, uma nova roupagem, consequentemente, um novo olhar do universo crioulo. A crioulidade, na proposta da revista Claridade, está intima- mente ligada à experiência literária e cultural e aos valores de Cabo Verde: Claridade iniciava-se com um testemunho vivo do respeito pelos valores cabo- -verdianos, privilegiando, num lugar de destaque, a língua crioula, que durante anos de colonialismo foi objeto de repressão. Era, assim, um desafio à autorida- de, assumindo como defesa das raízes mais profundas do povo. (LARANJEIRA, 1995, p. 190) Esse posicionamento desencadeia uma revolução discursiva, já que os “claridosos” estão voltados completamente para um empreendimento de construção identitária. Segundo Manuel Duarte, os “intelectuais do grupo Claridade, [...] empreenderam a tarefa coletiva e histórica de enraizar as letras cabo-verdianas (LARANJEIRA, 1995, p. 643). 3.1.1 Claridade Inicialmente, Claridade apresenta o arcabouço dos principais norteadores da poética da cabo- -verdianidade, tanto pelos propósitos estabelecidos pela revista como pelo conteúdo veiculado nos seus exemplares. Os colaboradores-fundadores foram Baltasar Lopes, Jorge Barbosa e Manuel Lopes. Os primeiros números são edificados entre março de 1930 e março de 1937. Além dos nomes já ci- tados, destacam-se Pedro Corsino de Azevedo e José Osório de Oliveira. Este escrevia e divulgava a literatura cabo-verdiana entre portugueses e brasileiros. Do ponto de vista político-ideológico, a intenção da revista era criar um ideário próprio para afastar definitivamente os escritores de Cabo Verde dos “cânones portugueses e [levá-los a] exprimir a voz coletiva do povo cabo-verdiano, naquilo que ele possui de mais autêntico” (LARANJEIRA, 1995, p. 190). A confirmação do distanciamento literário das obras canônicas de além-mar se dá logo no primeiro e segundo números de Claridade, em que os poemas de abertura estão escritos em crioulo. “No 1º número, ‘Lantuna & 2 motivos de finançom’, conjunto que faz parte dos cantares e batuque da Ilha de Santiago. No 2º número, uma morna de Xavier da Cruz (conhecido também como Beleza)” (LARANJEIRA, 1995, p. 190). Literatura portuguesa e luso-africana: moderna e contemporânea34 A revista apresentava traços puramente literários e publicava com maior frequência poemas, contos e artigos que definiam as características sociais de Cabo Verde. Diante disso, pode-se dizer que Claridade é o divisor de águas entre a produção de um discurso literário quase que exclusivamente preso ao discurso português, e uma outra bastante atenta à busca das raízes insulares, capaz de exprimir uma poética renovada, tendo como base os valores e motivações próprios da terra cabo-verdiana. De acordo, ainda, com Manuel Ferreira (1987, p. 43): De todas as iniciativas, porém, nunca será demais colocar a tônica na Claridade, tão profunda e duradoura foi a transformação por ela operada na história e na evolução da vida literária e cultural do arquipélago. Os textos literários e culturais de Baltasar Lopes (‘Oswaldo Osório’), Manuel Lopes e Jorge Barbosa, a que vie- ram juntar-se tantos outros, exprimem uma nova maneira de encarar a realidade cabo-verdiana e, consequentemente, uma nova maneira de exprimi-la linguistica- mente, criando-se uma diferente e atualizada linguagem artística. Não se trata de uma escola, de uma moda. Trata-se de uma mudança total. A dimensão literária estabelecida pela circulação de Claridade gera entre os intelectuais da época um produtivo questionamento acerca do que havia de novo no cenário literário, até então desconhecido deles. Em A aventura crioula (1985), Manuel Ferreira faz a seguinte afirmação: “Alguma coisa de insólito se desenrola no panorama das literaturas africanas de língua portuguesa, talvez sem que, de todo, os responsáveis de Claridade se dessem conta do salto qualitativo alcançado” (FERREIRA, 1985, p. 231). Claridade constitui, então, na consolidação definitiva dos contornos de um siste- ma literário nacional em Cabo Verde. Cabe ressaltar que essa revista surge em um período sócio-histórico-político-cultural repleto de conflitos em várias partes do mundo, gerados pe- los reflexos da queda da bolsa em 1929, pelo nazismo e fascismo em voga na Europa e pelo advento da guerra civil espanhola. Paralelamente a esse contexto conturbado, surge no mundo um processo de conscientização gerador da corrente Negritude2, cujos mentores foram Aimé Césaire, Léopold Senghor e Leon Damas, além da criação de condições especiais em várias comunidades africanas. Nesse cenário de consolidação literária, é preciso considerar que, se na poesia havia uma tradição, em decorrência das relações estabelecidas com os poetas portugueses – tradição esta abandonada em prol da nova expressão de envolvimento definitivo no contexto humano do arqui- pélago –, em relação à narrativa o caminho seguido foi o do diálogo com os brasileiros. No dizer de Manuel Ferreira, “a aprendizagem literária desses autores foi, dominantemente, veiculada pelo texto em português e, como já dissemos, pelo texto brasileiro” (FERREIRA, 1987, p. 73). 2 Negritude (originariamente do francês Négritude ) foi o nome dado a uma corrente literária que agregou escritores negros francófonos. Este movimento tinha do ponto de vista ideológico, o objetivo de valorizar a cultura negra, libertar os negros africanos e todos aqueles afrodescendentes que viviam experiências de opressão resultantes de práticas colonialistas fora da África, ou seja, na diáspora. Claridade e Certeza 35 3.2 Pressupostos teóricos da revista Certeza O projeto iniciado com Claridade encontra eco na revista Certeza (1944): O grupo de Certeza vem perfilhar o ponto de vista neorrealista. São, portan- to, marxistas. Quando os componentes do grupo tomaram conhecimento de Claridade e logo a seguir da proposta dos neorrealistas portugueses, abando- naram os possíveis liames com um passado ‘hesperitano’ e assumiram na ilha, em modos ideológicos, o drama coletivo em que se debatia a humanidade: a Segunda Guerra Mundial. (FERREIRA, 1987, p. 51-52) A Segunda Guerra Mundial modifica por completo a visão de escritores e intelectuais en- volvidos com um projeto poético-literário de cunho anticolonialista. Sendo assim, a juventude que formou a equipe de Certeza, na fase em que trilhavam seus primeiros passos na poesia e despertava seu interesse pela literatura e por problemáticas afins, apesar de terem informação sobre os três primeiros números de Claridade, não se interessaram ou leram mal sua mensagem tão importante para a história literária de Cabo Verde. 3.2.1 Certeza As fontes inspiradoras de Certeza continuaram a ser José Lopes e Januário Leite. Os dois grandes nomes da poética cabo-verdiana, Jorge Barbosa, que escrevia em língua portuguesa, e Eugénio Tavares, que escrevia em crioulo, não receberam dos jovens de Certeza a devida atenção. O distanciamento das temáticas ligadas à terra-mãe tem a ver com a solidariedade desse gru- po com o drama generalizado de homens envoltos no desencontro de uma época repleta de pro- messas, mas, também, carregada de desilusões causadas pela Segunda Guerra Mundial, que estava no auge naquela fase. O fato de os jovens tomarem partido do drama mundial abriu uma lacuna entre os ideais pensados por Claridade acerca dos problemas do Arquipélago e os novos parâme- tros esboçados pelo grupo de Certeza. Se a primeira revista direcionou todos os esforços para criar uma narrativa nacional, a segunda lutava contra as formas sociais estabelecidas e estabilizantes e deixou de lado o amor à terra, os estudos das culturas locais e os contrastes sociais do arquipélago para promover em seu discurso uma solidariedade com os homens de outras terras. Por outro lado, a falta de experiência dos jovens responsáveis por Certeza põe por terra toda uma preparação cultural construída pelo grupo de Claridade. Umdado importante de di- ferenciação entre os dois grupos é que, politicamente, os membros de Certeza estavam tolhidos, sem estrutura, não dispunham de um órgão cultural capaz de aglutinar o grupo em torno de uma proposta mais consistente, de preocupação com os problemas literários e com a pesquisa acerca das realidades de Cabo Verde. Certeza, apesar de representar um período ímpar na evolução da cultura e da literatura cabo-verdiana, teve curta existência, “sem garra para calar fundo no devir das letras do arquipé- lago. Mas longe de poder ser ignorada e muito menos esquecida, dado que é com ela que se intro- duz, em Cabo Verde, o discurso literário e cultural de índole marxista” (FERREIRA, 1985, p. 273). Certeza não passou do número 2, já que a censura se encarregou de silenciar o grupo quan- do iria sair o número 3. Nesse ínterim, Claridade também teve sua circulação prejudicada pela Literatura portuguesa e luso-africana: moderna e contemporânea36 ausência de Baltasar Lopes da Silva, seu principal mentor. O estágio de reflexão literária foi silen- ciado temporariamente, mas retomado em 1947 – nove anos depois da publicação do número 3 –, com o retorno de Baltasar Lopes ao arquipélago. 3.3 A renovação e a ampliação com Claridade A renovação e a ampliação da abrangência de Claridade se deu com o lançamento dos nú- meros 4 e 5 da revista: Claridade alargava as suas margens e reconquistava o lugar de órgão aglutina- dor verdadeiramente representativo da intelligentzia do arquipélago, feição que nunca mais viria a perder. E neste fecundo e soberbo empenhamento se furtava a tornar-se bandeira de um grupo para desempenhar o papel mais ambicioso de expressão total da cabo-verdianidade. (FERREIRA, 1985, p. 275) Claridade circulou durante 10 anos entre ascensão, silêncio e renovação literária. Durante esse tempo, experimentou o auge e o amadurecimento do grupo com o lançamento do oitavo exemplar, que trazia um panorama local da poesia, ficção, etnografia, sociologia etc. Dos nomes acolhidos por Claridade vale lembrar também os de Teixeira de Sousa e Félix Monteiro, que pro- duziram valiosos estudos acerca do homem cabo-verdiano e das estruturas sociais do arquipélago. Além dos nomes já citados, o percurso poético cabo-verdiano – que nasce e renasce des- de Claridade até Certeza – contou com a participação de novatos como Terêncio Anahory, Jorge Pedro, Obídio Martins, Onésimo Silveira e, na ficção, Virgílio Pires. Sendo Cabo Verde um país bilíngue, o número 8 de Claridade lança aquele que se tornou um grande poeta em crioulo, Sérgio Frusoni, bem como dois poetas de língua portuguesa, Corsino Fortes e Virgílio de Melo. Nesse cenário literário em formação, o diálogo com autores brasileiros tornou-se significati- vo. Em seu livro Angola e Brasil: literaturas comparadas (2002, p. 49), Tania Macêdo sinaliza a par- ticipação de escritores africanos de língua portuguesa no grupo da revista Sul: “O que desejamos realçar com esse exemplo é que a revista Sul, ao abrir diálogo com as literaturas africanas em língua portuguesa, acabou também por ser, em face da situação dos países sob colonialismo, um espaço onde se guardaram momentos importantes da história de Angola, Moçambique e São Tomé”. 3.4 Os poetas e prosadores pós-Claridade e Certeza Os caminhos trilhados pelos poetas e prosadores de Cabo Verde até o nascimento de Claridade eram bastante ambíguos. Tais características só se dissiparam completamente quando “o silêncio se abate na noturna ausência (a morte) do colonizador (o pai)” (FERREIRA, 1989, p. 189). O novo sopro de vida foi, sem dúvida, a revista Claridade (1936). No entanto, o complexo edipiano3 – que ainda vigorava em alguns textos – só desaparecerá por completo do cenário literário cabo-verdiano com a revista Certeza (1944). Certeza foi aglutinadora de jovens colaboradores apesar de sua curta existên- cia, que encontraram um campo fértil já solidificado pela geração anterior, e para efeito de conclusão do percurso literário cabo-verdiano durante o Império Português na África, cabe aqui citar o papel 3 “Relativo à ou próprio da interpretação psicanalítica da tragédia Édipo Rei (diz-se de conflito, triângulo, período, estrutura etc.); edípico” (HOUAISS, 2009). Claridade e Certeza 37 de Suplemento cultural (1958), que enterra de vez o suposto pai (o colono) para elevar Cabo Verde ao lugar de nação – mátria e pátria – estabelecedora da ordem social e cultural. Nesse sentido, a verdadeira literatura cabo-verdiana é aquela que resgata a cabo-verdianidade, isto é, a produção de textos que exprimem valorativamente o real do povo com várias vertentes político-ideológicas, mas o século XX viu nascer com Claridade um caminho que jamais retroce- deu por completo. Em todos os movimentos de mudanças estruturais ocorrem retrocessos, mas avanços importantes também: Os intelectuais e escritores, a partir de Claridade, [...], projetaram o seu esforço criador nos grandes segmentos que representavam ou simbolizavam a parte viva da sua pátria, ou seja, aquela que não adotava os critérios e os padrões que serviam o colonialismo; e assim, aberta ou implicitamente, condenaram tudo quanto viesse de fora desse projeto nacional. (FERREIRA, 1987, p. 33) No final do colonialismo, o olhar de angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos, guineenses e são-tomenses se volta para o Brasil com a ideia de “forjar uma identidade cultural multiétnica e ao mesmo tempo unificada” (HAMILTON, 2003, p. 145), semelhante àquela imaginada por eles acerca do Estado brasileiro. Sendo assim, nos anos 1930, os intelectuais cabo-verdianos começam a construir a tese de uma sociedade crioula nos moldes da brasileira. Essa visão cabo-verdiana tem a ver com a história do povoamento do arquipélago. Os estudiosos dos sistemas coloniais conside- ravam aquele pequeno país como um exemplo bem-sucedido do Atlântico Sul: Na década de 1930, um núcleo de intelectuais e escritores cabo-verdianos re- unia-se em torno de Claridade, uma revista de arte e letras lançadas em 1936. Na cidade do Mindelo, na ilha de São Vicente, os poetas e ensaístas da geração de Claridade cultivam a ideia da compatibilidade entre o seu etos, ou seja, a sua imagem de si perante o mundo e aspectos salientes, e a seu ver atraentes, do luso-tropicalismo. (HAMILTON, 2003, p. 145) O discurso intertextual presente na revista Claridade (1936) foi reforçado mais tarde por Jorge Barbosa, integrante do grupo de poetas ilustres que nela escreviam. Em seus poemas ocorre uma evocação ao Brasil como nação inspiradora dos avanços anticolonialistas e aos poetas que sabiam como ninguém onde cantavam os sabiás. Um outro integrante de Claridade que se inspirou nos brasileiros foi Osvaldo Alcântara, pseudônimo de Baltasar Lopes da Silva, poeta e romancista que teve a oportunidade de visitar o Brasil e o homenageia com um poema, escrito durante sua estada no Rio de Janeiro, intitulado “Saudade do Rio de Janeiro”. Em 1951, o luso-tropicalista, como ficou conhecido entre os africanos da época, Gilberto Freyre visita Cabo Verde com o intuito de pesquisar sobre as “constantes portuguesas” em Cabo Verde e as semelhanças de seu povo com o Brasil. Conclui que nenhuma das duas hipóteses eram verdadeiras. Esse fato gerou em Baltasar Lopes uma grande decepção, mas não impediu que a visão sobre o Brasil em Cabo Verde fosse se ampliando. Como bem salienta Manuel Ferreira, a importância da literatura brasileira na produção li- terária angolana, moçambicana e cabo-verdiana é indispensável. Romancistas como Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rêgo, e poetas como Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira muito contribuíram para a efetivação das trajetórias que se estabeleciam na Literatura portuguesa e luso-africana: moderna e contemporânea38 África portuguesa, conjuntamente ao projeto político-ideológico da construção do Estado-nação que cada comunidade buscava concretizar. As redes de cumplicidades estabelecidas
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