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48 2CAPÍTU L O 22 N o Capítulo 1 vimos que a Antropologia do século XIX pensava a humanidade em uma escala evolutiva. Percebemos as implicações desse tipo de pensa- mento, principalmente naquilo que pode ser chamado de ideologia do colo- nialismo. No entanto, essas mesmas teorias que deram origem a perspecti- vas racistas ao longo do século XIX e do século XX trouxeram também algo novo: a ideia de colocar no mesmo barco todas as populações do mundo. Até o século XIX, na Europa, ainda se discutia se as populações nativas de outras regiões eram de fato humanas! Apesar de a bula Sublimis Deus, promulgada pelo papa Paulo III em 1537, estabelecer o direito à liberdade dos indígenas e a proibição de submetê-los à escra- vidão, na Espanha do século XVII existiam dúvidas e investigações sobre a existência ou não de alma nos indígenas. A inclusão de todas as populações em uma única história humana teve como base a hierarquia evolutiva. A Antropologia, porém, não se satisfez com essa perspectiva e, desde o final do século XIX, passou a criticar a teoria do evolucionismo. O principal instrumento para fundamentar essa crítica foi o conceito de cultura. Neste capítulo vamos discutir: 1 Civilização × cultura 2 Cultura, etnocentrismo e relativismo 3 Padrões culturais 4 O conceito de cultura no século XX 5 O conceito de cultura no século XXI NO TRESPASSING [NÃO INVADIR], grafi te de Banksy em São Francisco, Califórnia, Estados Unidos. Foto de 2010. M ic h a e l C u ff e /A c e rv o d o f o tó g ra fo 49 UNIDADE 1 | CAPÍTULO 2 1. CIVILIZAÇÃO × CULTURA No final do século XIX, o antropólogo alemão Franz Boas construiu uma críti- ca à ideia de civilização das teorias evolutivas descritas no Capítulo 1. Vimos que por trás da ideia de progresso havia uma ideia de civilização que estabelecia uma hierarquia: civilizados eram os europeus (e norte-americanos), enquanto as demais populações eram escalonadas entre mais e menos atrasadas. Ilustração do artista alemão Rudolf Cronau (1855-1939) mostra um conjunto de máscaras kwakiutl, população da ilha de Vancouver, no Canadá, estudada pelo antropólogo Franz Boas, especialmente quanto aos aspectos artísticos. Usadas em danças e rituais, as máscaras são consideradas manifestações de espíritos ancestrais e entidades sobrenaturais. Vemos ao lado uma foto de indivíduos do povo Balanta (que habita a atual Guiné-Bissau) na 1ª Exposição Colonial Portuguesa, realizada no Porto, Portugal, em 1934. Eles foram apresentados numa espécie de zoológico humano colonial como exemplos da população dominada pelo império português. Nessas exposições, as características das populações dominadas eram exibidas com exotismo ao público europeu. Acima, um dos cartazes de divulgação da Exposição. Essa ideia foi duramente criticada por Franz Boas (ver Perfil na próxima pági- na), pioneiro da Antropologia estadunidense. Embora não tenha sido o primeiro a utilizar o termo “cultura”, Boas foi o primeiro a empregar a palavra em seu sen- tido moderno, propriamente antropológico. Antes de Boas, cul- tura era sinônimo de “civilização” e um atributo dos países tidos como civilizados. Franz Boas inaugurou a utilização do conceito em uma perspectiva pluralista: ele fala em “culturas”, e não em “cultura”. Pode parecer uma pequena diferença, mas foi uma grande transformação. E por que foi uma grande transformação? Porque quando pensamos cultura no plural, torna-se possível desconstruir as hierarquias, tão importantes para o pensamento colonial e racis- ta em geral. Quando pensamos em culturas no plural e não es- calonamos as culturas em uma ordem qualquer, cada cultura passa a brilhar com luz própria, em seus próprios termos. Esse brilho individual, singular, é o que interessa à Antropologia des- de o final do século XIX, a partir do trabalho de Boas. Para Boas, as diferentes populações que existem no mundo têm diferentes culturas e é praticamente impossível estabelecer entre elas qualquer tipo de hierarquia. Analisando a história de vá- rias populações indígenas que vivem entre o noroeste estaduni- dense e o Alasca, o antropólogo chegou à conclusão de que é muito difícil estabelecer entre elas qualquer tipo de hierarquia, pois as histórias são tão particulares e preenchidas por interesses tão diferentes que qualquer comparação só seria possível se fosse utilizada uma medida de análise, que seria sempre arbitrária. Ou seja, a comparação para estabelecer uma hierarquia sempre de- veria adotar algum critério, tomado de alguma população, e nesse processo a própria comparação já seria injusta. R u d o lf C ro n a u /A rq u iv o d a e d it o ra D o m in g o s A lv ã o /A rq u iv o d a e d it o ra R e p ro d u ç ã o /A rq u iv o d a e d it o ra 50 PADRÕES, NORMAS E CULTURA 2. CULTURA, ETNOCENTRISMO E RELATIVISMO Franz Boas nasceu em Minden, Alemanha, em 1858. Filho de judeus libe- rais relativamente abasta- dos, iniciou sua carreira acadêmica nas áreas de Física e Geografia ao se doutorar na Universidade de Kiel em 1881, aos 23 anos. Seus interesses giravam em torno da relativi- dade das percepções físicas, e seu doutorado foi so- bre variações no entendimento da cor da água. Em 1883, participou de uma expedição ao Ártico, onde encontrou a população inuíte, o que marcou uma mudança em sua carreira. Passou a se interessar pela Antropologia. Em 1887, abandonou a carreira de geógrafo e se mudou para os Estados Unidos, onde passou por universidades e museus até se fixar na Universidade Columbia. Nessa instituição criou um departamento de Antropologia e um curso de doutorado, forman- do a primeira geração de antropólogos “acadêmi- cos” norte-americanos. Boas teve atuação política marcante, assumindo posição antirracista em um país profundamente mar- cado pela discriminação racial. Fundou a Associação Americana de Antropologia, hoje a maior e mais im- portante associação antropológica no mundo. Por ter formado antropólogos importantes para a história da disciplina e por sua contribuição teórica, Boas ficou co- nhecido como “o pai da Antropologia estadunidense”. A influência de suas ideias fez-se sentir no Brasil, principalmente na obra de Gilberto Freyre (1900- -1987), que afirmou, no prefácio do clássico Casa- -grande & senzala, de 1933, que a obra de Boas o ajudara a se libertar da visão negativa sobre a mes- tiçagem, então considerada um problema da forma- ção social brasileira. Franz Boas morreu em 1942, em Nova York, vítima de um infarto durante um jantar entre acadêmicos. PERFIL FRANZ BOAS VOCÊ JÁ PENSOU NISTO? Você já pensou na diversidade cultural como uma questão de poder? Dependendo da forma como é vis- ta, a diferença cultural pode signifi car desde um pensamento racista até um pensamento antirracista. A Antropologia adotou o lado antirracista dessa equação. Agora, tente pensar nisso a partir de sua situação particular: como o bairro em que você mora é visto em sua cidade? Como são descritas as pessoas como você? O que você pensa das pessoas diferentes de você? Se mora no campo, imagine como as pessoas da cidade pensam em você. Tente pensar em que lado da equação estão as pessoas que pensam sobre a sua situação e como você pensa sobre a situação de outras pessoas. M C C /C M C . F o to c . 1 9 1 5 . Rudolf Cronau/ Arquivo da editora Veja na seção BIOGRAFIAS quem é Gilberto Freyre (1900-1987). Nascido e educado na Alemanha, Boas formou seu conceito de cultura a partir de concepções alemãs de Kultur, ou “espírito do povo”. Ele transporta essa ideia para a Antropologia, em uma crí- tica ao evolucionismo. Para Franz Boas, cultura era um todo inte- grado, e não apenas um conjunto desagregado de práticas, hábi- tos, técnicas, relações e pensamentos. Essa integração de múltiplos elementos, ordenadosa partir de um princípio compartilhado por todos os indivíduos de uma socie- dade específica, criava a cultura. Por ser única e exclusiva de cada sociedade, inviabilizava qualquer tentativa de comparação a partir de pressupostos arbitrários. Para Boas, qualquer comparação exi- giria tanto cuidado e tanta investigação histórica e antropológica que, na prática, seria inviável. Franz Boas inaugurou o que mais tarde ficaria conhecido como relativismo cultural: uma tomada de posição perante a diferença cultural, segundo a qual cada cultura deve ser avaliada apenas em seus próprios termos. 51 UNIDADE 1 | CAPÍTULO 2 Relativismo cultural, portanto, é uma forma de encarar a diversidade sem im- por valores e normas alheios. Podemos considerar o relativismo uma inversão do evolucionismo: se este escalona as di- ferenças a partir de valores específicos das sociedades ocidentais, o relativismo evita qualquer tipo de escala, analisando as diferenças segundo os termos da pró- pria sociedade da qual fazem parte. Tendência inversa ao relativismo cul- tural é o etnocentrismo, que estudamos no Capítulo 1: estamos sendo etnocêntri- cos quando julgamos outras culturas se- gundo nossos próprios parâmetros cul- turais. Por exemplo: considerar uma população indígena atrasada porque lhe faltam determinadas tecnologias é etno- centrismo. Se adotarmos outros crité- rios, esse “atraso” pode ser questionado. Levando em conta a capacidade de se manter estável ao longo do tempo (o que hoje chamamos de sustentabilida- de), as sociedades que nos pareciam pri- mitivas ganham um estatuto muito mais “civilizado”, já que o nosso modelo de vida, baseado no consumo intenso, não é sustentável a longo prazo. O etnocentrismo é o mecanismo principal das classificações evolucionis- tas, enquanto o relativismo cultural é o motor de um pensamento não precon- ceituoso e preocupado em romper com as classificações hierárquicas. O concei- to antropológico de cultura não pode existir sem o relativismo cultural e a críti- ca ao etnocentrismo. O relativismo foi uma revolução po- lítica no enfrentamento ao racismo e a outros tipos de preconceito, mas gerou um impasse político ao longo do século XX: se a premissa do relativismo é examinar qualquer cultura segundo seus pró- prios termos, é preciso aceitar tudo o que cada cultura produz. O problema des- sa premissa é que alguns costumes nos parecem inaceitáveis, como as mutila- ções genitais impostas às mulheres em alguns países islâmicos. Longos debates foram travados para superar esse impasse, levando a posicionamentos os mais diversos e até mesmo à recusa do relativismo. “Não há a menor prova científica de que “raça” determine mentalidade, mas há provas contundentes de que a mentalidade é influenciada pela cultura tradicional. [...] A existência de qualquer raça pura com dotes especiais é um mito, como é a crença de que existem raças cujos membros são todos fa- dados a alguma inferioridade eterna. BOAS, Franz. Race and Democratic Society. New York: Biblo and Tannen. 1928. p. 15, 20. Texto traduzido. ASSIM FALOU... BOAS Quadrinhos de 1977 do cartunista brasileiro Henfi l (1944-1988). H e n fi l/ A c e r v o I v a n C o n s ta n z a 52 PADRÕES, NORMAS E CULTURA Uma forma de tentar solucionar esse impasse é pensar em termos de poder dentro de cada cultura. Se determinado costume oprime parcelas de uma socieda- de (as mulheres islâmicas, por exemplo), e essas parcelas se sentem oprimidas, é justo criticar esse costume, mas nesse caso teríamos de fazê-lo segundo os pró- prios termos daquela cultura. Podemos criticar a mutilação genital porque as mu- lheres da sociedade em que essa prática existe a criticam. Se essas mulheres muti- ladas não se sentissem desrespeitadas em seus direitos individuais, teríamos o direito de criticar esse costume? A resposta não é simples, mas o relativismo cultu- ral não significa aceitar tudo o que qualquer cultura faz ou produz, e sim entender como e por que cada sociedade faz o que faz, quem é ou não favorecido por deter- minadas práticas e como diversos tipos de opressão podem surgir dessas práticas. Diferentes aspectos desse dilema se manifestam intensamente em sociedades pelo mundo inteiro. No Brasil, em junho de 2015, durante a parada LGBTI em São Paulo, como protesto contra a homofobia e a transfobia, uma transexual desfilou si- mulando uma crucificação. A repercussão na mídia foi avassaladora. Muitos enten- deram a mensagem como uma afronta ou aversão às religiões cristãs, como uma “cristofobia”. A manifestante afirmou em reportagens que queria apenas chamar atenção para a violência contra a população LGBTI e os níveis alarmantes de assas- sinatos motivados por discriminação sexual e de identidade de gênero. A repercus- são foi tamanha que um deputado chegou a propor na Câmara dos Deputados que a ofensa religiosa se torne um crime hediondo (Projeto de Lei n. 1 804/15). Em outro caso, ocorrido em outubro de 2012, uma revista esportiva estampou em sua capa uma fotomontagem do jogador de futebol Neymar em uma cruz, com a manchete: “Neymar crucificado”. A reportagem abordou as teorias acusatórias de que o jogador estaria simulando faltas para tentar induzir a arbitragem a erros. A capa também sofreu muitas críticas, embora pareça não ter desencadeado reações tão intensas quanto a performance da artista transexual. Veja as imagens abaixo: LGBTI: sigla utilizada para identificar todas as manifestações tidas como minorias de gênero. Em substituição ao que antes se conhecia como GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes), a sigla foi atualizada para dar conta de novos grupos e, atualmente, refere-se a Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Transexuais, Travestis e Intersexuais. crime hediondo: são os crimes definidos como de alta gravidade pelo Poder Legislativo. Hediondo é sinônimo de repugnante, horrendo ou sórdido, e os crimes assim considerados recebem o grau máximo de reprovação ética. LÉXICO Transexual em protesto contra a transfobia e a homofobia em São Paulo (SP), em junho de 2015. Fotomontagem com o jogador de futebol Neymar na capa de uma revista esportiva, em 2012. R e p ro d u ç ã o /E d . A b ri l A v e n e r P ra d o /F o lh a p re s s VOCÊ JÁ PENSOU NISTO? Você já tentou relativizar algum comportamento que considera estranho? A forma antropológica de entender comportamentos coletivos que nos pareçam “estranhos” é buscar um sentido para eles. Qual é o sentido do vestuário de um gru- po punk? Por que o preto é uma cor tão impor- tante para alguns grupos de jovens a ponto de eles só usarem roupas e acessórios dessa cor? Pense em qualquer comportamento coletivo dessa natureza e procure relativizá-lo, buscando compreender que sentido tem para o grupo que o pratica. 53 UNIDADE 1 | CAPÍTULO 2 Esses exemplos são importantes para pensarmos a problemática do relativis- mo: afinal, o que é considerado ofensa religiosa? Como uma lei contra ofensa reli- giosa encararia esses dois fatos? Quais os limites para a utilização de símbolos re- ligiosos para representar opressões ou situações sociais? A minha liberdade ao utilizar tais símbolos vale mais do que o significado que eles possuem para os reli- giosos? Por que o primeiro caso exposto parece incitar maior reação pública? Pro- vavelmente a resposta está relacionada à intolerância à transexualidade (transfo- bia), presente em diferentes setores da sociedade brasileira. Poderíamos avançar nessa questão e perguntar se as críticas às práticas religiosas afrodescendentes (muitas vezes veiculadas em programas televisivos e de rádio de outras religiões) também podem ser consideradas ofensas religiosas. O debate em torno dessas questões expõe problemas essencialmente antropológicos, evidenciando que a percepção da diferença (seja religiosa, seja de gêneroou outras) é um grave pro- blema no mundo contemporâneo. Mais uma vez, tudo depende do ponto de vista de quem pratica uma ação e de quem se sente incomodado ou ofendido por ela. Na luta contra o etnocentrismo e o racismo, o conceito de cultura é um instrumen- to fundamental, que ganhou importância desde que deixou de ser pensado como si- nônimo de “civilização” e passou a ter significado em conjunto com o relativismo cul- tural. Esse mesmo instrumento ganhou novas aplicações quando novos atores sociais entraram em cena exigindo o respeito às diferenças. Esses grupos, tal como a popu- lação LGBTI, ajudam a evidenciar a importância da diversidade cultural. Mas o conceito de cultura vai muito além de uma simples defesa do relativismo cultural. Veremos a seguir um pouco da história desse conceito na Antropologia. 3. PADRÕES CULTURAIS Desde o século XIX, estudiosos começaram a perceber que diferentes culturas produziam realidades diferentes, e essas realidades, por sua vez, davam origem a comportamentos e práticas regulares que se repetiam no tempo e no espaço. Esses comportamentos e práticas regulares foram denominados padrões culturais. A ideia de que existem padrões culturais foi decorrência direta dos estudos de Boas, nos quais o conceito de cultura ganhou sua conotação moderna como força unifi- cadora de um povo, que dá sentido e condensa tudo o que acontece. Desde o começo do século XX, principalmente com o trabalho de duas alunas de Franz Boas — Margaret Mead (1901-1978) e Ruth Benedict (1887-1947) —, o conceito de padrão cultural ganhou bastante destaque. Essas antropólogas ob- servaram que, além de expressar comportamentos regulares, os padrões cultu- rais produziam indivíduos com inclinações semelhantes. Para essas antropólogas norte-americanas, a relação entre as personalidades indi- viduais e os padrões culturais era muito significativa. Como se a cultura, de certa for- ma, moldasse as personalidades individuais em tipos-padrão. Isso significa dizer que certa cultura tenderia a produzir indivíduos mais violentos, enquanto outra tenderia a produzir sujeitos mais contemplativos. Assim, cada cultura modelaria uma personali- dade-padrão que, embora sujeita a variações, seria predominante sobre as demais. Ou seja, a força da cultura, ao integrar um conjun- to de pessoas produzindo padrões de comportamento, levaria à produção de um “modo de ser” característico de uma sociedade. Para Mead e Benedict, e também para Franz Boas e outros antropólogos norte-americanos, a cultura podia ser comparada a uma lente que filtra tudo o que vemos, percebemos e senti- mos. Não há como perceber o mundo a não ser através do filtro de alguma cultura. Um dos elementos centrais desse processo de “percepção do mundo” é a linguagem, um mecanismo de transmissão de valores, ideias e formas de refletir sobre a reali- dade. Para esses autores, não haveria possibilidade de perceber o mundo fora do mecanismo de transmissão cultural represen- tado pela linguagem. Veja na seção BIOGRAFIAS quem são Margaret Mead (1901-1978) e Ruth Benedict (1887-1947). Margaret Mead (à direita) durante etnografia na ilha Manus, na atual Papua-Nova Guiné. Foto de 1953. B e tt m a n n /C o r b is /L a ti n s to c k 54 PADRÕES, NORMAS E CULTURA De acordo com essas ideias, a vida de cada um seria uma acomodação aos pa- drões culturais transmitidos de geração em geração. A questão é entender o papel do costume na vida do indivíduo, o que, segundo Mead e Benedict, vale tanto para as culturas ditas “primitivas” quanto para as culturas ocidentais. Ao afirmar que também as culturas vistas como “avançadas” são regidas por padrões culturais, as duas antropólogas desafiaram o pensamento comum da época. O que era normal para a maior parte das pessoas, para essas autoras era fruto de costumes arbitrá- rios. O fato de que a mulher, nos Estados Unidos, era em geral direcionada aos cui- dados do lar, por exemplo, foi visto por elas como um costume cultural norte-ame- ricano de um determinado período histórico, e não como algo “natural”. “Minha missão era difícil. A América e o Japão estavam em guerra e a tendência em tal circunstância é condenar indiscriminadamente, sendo, portanto, ainda mais difícil descobrir como o inimigo encara a vida. […] Urgia saber como os japoneses se comportariam, e não como nos comportaríamos se esti- véssemos em seu lugar. Procuraria utilizar a conduta japonesa na guerra como uma base para com- preendê-los, e não como uma tendência. Teria de observar a maneira como conduziam a guerra e considerá-la, por ora, não como um problema militar, e sim como um problema cultural. BENEDICT, Ruth. O crisântemo e a espada. São Paulo: Perspectiva, 1997. p. 12-13. ASSIM FALOU... BENEDICT VOCÊ JÁ PENSOU NISTO? A ideia de padrões culturais pode estar mais próxima do que você imagina. Basta pensar em qualquer grupo social que imediatamente associamos a ele determinados padrões de comportamento. Se, por exemplo, você pen- sar em um grupo de skatistas de uma grande cidade brasileira, provavel- mente virá à sua mente alguma imagem sobre comportamento. Faça uma lista de comportamentos, ações, vestuário, modos de falar e outras caracte- rísticas de um grupo que você conheça de perto. Ruth Benedict pesquisou a cultura japonesa durante a Segunda Guerra Mundial, na qual Estados Unidos e Japão estavam em lados opostos. Esta foto de 1945 retrata pilotos kamikazes japoneses, que se dispunham a morrer em combate atirando seus aviões contra alvos inimigos. Antropólogos tentaram entender a disposição de sujeitos de uma mesma cultura a determinadas ações usando o conceito de padrão cultural. T im e & L if e P ic tu re s /G e tt y I m a g e s Esse movimento intelectual levou ao questionamento de noções que pareciam na- turais aos norte-americanos. É o que chamamos hoje de desnaturalização: aquilo que parece natural e “normal” é apenas uma entre milhares de formas possíveis. O fato de determinadas práticas prevalecerem não é de modo algum “natural” — nada mais é do que a força do costume. Essa ideia é muito importante para o pensamento antro- pológico, pois permitiu desnaturalizar muito do que parecia natural aos membros de 55 UNIDADE 1 | CAPÍTULO 2 Em foto de março de 1971, mulheres do movimento feminista protestam em Londres, Inglaterra, reivindicando creches nos locais de trabalho, acesso a todos os tipos de trabalho, salário igual para funções iguais, liberação gratuita de métodos contraceptivos e direito ao aborto. culturas ocidentais. Os antropólogos estão entre os grandes críticos da segregação racial (que parecia normal à elite norte-americana do começo do século XX), da opres- são da mulher, da discriminação aos imigrantes, da exploração de terras indígenas, etc. Ruth Benedict e Margaret Mead ti- veram grande influência no pensa- mento feminista, abrindo as portas para o questionamento daquilo que era visto como natural: o papel da mu- lher exclusivamente como mãe e espo- sa devotada aos afazeres domésticos. Para elas, o papel de mãe era conse- quência do costume, não da natureza humana. E, sendo fruto do costume, poderiam mudar, e a própria carreira acadêmica dessas antropólogas era um exemplo disso: mulheres que tra- balhavam e tinham destaque acadê- mico em uma sociedade muito restriti- va quanto aos papéis femininos. Veja na seção BIOGRAFIAS quem são Marvin Harris (1927-2001), Julian Steward (1902-1972), David Schneider (1918-1995) e Clifford Geertz (1926-2006). perspectiva marxista: como veremos mais adiante, no Capítulo 6, uma teoria de perspectiva marxista basicamente segue os preceitos teóricos de Karl Marx. O pensamento de Karl Marx alcançou grande influência na classe trabalhadora europeia a partir do final do século XIX, e daí em diante formaram-se diversas linhas e correntesdiferentes. Por ora, é suficiente entendermos que a linha evolutiva traçada por esses autores não estabelece superioridades culturais entre as sociedades, mas procura características evolutivas entre as formas pelas quais cada sociedade se organiza para produzir aquilo de que necessita para viver, ou seja, uma evolução dos sistemas econômicos. LÉXICO R o ll s P re s s /P o p p e rf o to /G e tt y I m a g e s 4. O CONCEITO DE CULTURA NO SÉCULO XX Ao longo do século XX, o conceito de cultura foi incorporado ao senso co- mum. Passou além dos discursos acadêmicos e ganhou espaço em discussões públicas, como as lutas por direitos. A ideia de cultura que prevalece hoje no sen- so comum deve muito ao pensamento de Boas: um conjunto estável de hábitos, práticas, costumes, tecnologias, etc. No campo teórico da Antropologia, entre- tanto, esse conceito passou por inúmeras revisões. Um antropólogo, quando fala em cultura, está falando de algo diferente daquilo que o senso comum imagina. Nas Ciências Sociais os conceitos parecem ganhar vida própria e são emprega- dos nas mais diversas situações, em perspectivas muito díspares. Muitas vezes, usando um mesmo termo, como “cultura”, por exemplo, um sociólogo e um cien- tista político podem estar se referindo a aspectos extremamente diferentes. O importante aqui é entender como a Antropologia prosseguiu na reflexão so- bre a cultura, a partir dos trabalhos de Boas e seus alunos. Essa continuação ocorreu basicamente nos Estados Unidos, tendo havido algumas reviravoltas e até mesmo críticas severas ao conceito. Logo após a geração dos primeiros alu- nos de Boas, no pós-Segunda Guerra Mundial, um movimento intelectual liderado por antropólogos como Marvin Harris (1927-2001) e Julian Steward (1902-1972) resgatou uma teoria da evolução que havia sido criticada por Boas. Essa teoria, entretanto, não seguia os termos dos evolucionistas do século XIX. A partir de uma perspectiva marxista, fundada na evolução dos sistemas econômicos (dos mais simples aos mais complexos), Harris e Steward repudiavam o conceito pro- posto por Boas, considerando que o foco exagerado nas especificidades de cada cultura impedia uma reflexão mais abrangente sobre a humanidade. Na década de 1960, uma nova geração de antropólogos trouxe outros significa- dos ao conceito de cultura. Destacam-se nesse momento os trabalhos dos norte- -americanos David Schneider (1918-1995), Clifford Geertz (1926-2006) e Marshall Sahlins (1930-), que criticaram o conceito de cultura como um todo integrado e está- tico. A crítica desses intelectuais se referia às grandes transformações ocorridas no mundo após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Em um contexto que incluía mu-