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O etnocentrismo Apresentação Os seres humanos não vivem isolados, mas em constante contato e comunicação, seja por meio de casamentos, comércio ou guerras. Esse encontro com o outro nem sempre resulta de espanto positivo diante da diferença, porque em muitas situações essa acaba sendo mal suportada, gerando o que se denomina de etnocentrismo. Esse mal-estar emerge, porque pensa-se de acordo com os padrões que se aprendem na sociedade em que se vive. No sentido antropológico, isso significa que estar inserido em uma determinada cultura implicará um processo de aprendizado, por meio da socialização, dos costumes, dos valores, dos modos de agir e pensar próprios a essas culturas. Cada comunidade considera a sua forma de pensar o mundo e os valores como o centro de referência a partir desse aprendizado. Essa prerrogativa não diz respeito apenas ao cotidiano, mas também esteve presente no interior do pensamento científico e contribuiu para a justificação das relações de expansão colonial com os demais povos não europeus. Nesta Unidade de Aprendizagem, você vai aprender sobre o etnocentrismo, sua relação com o processo colonial realizado pela Europa e as discussões desenvolvidas a partir do encontro colonial, bem como o seu contraponto. Bons estudos. Ao final desta Unidade de Aprendizagem, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Descrever o etnocentrismo.• Relacionar o contexto colonialista europeu com o conceito de etnocentrismo. • Reconhecer os efeitos do modelo etnocentrista na modernização dos países emergentes e as suas contrapropostas antropológicas. • Infográfico A noção de raça foi importante, no século XIX, para explicar a diferença hierarquicamente e, assim, justificar políticas coloniais e formas de gestão das populações a partir do controle da reprodução. Essa noção constituiu-se no bojo de um debate científico e, por isso, revestiu-se de cientificidade, que lhe forneceu credibilidade e larga aplicação. A seguir, no Infográfico, você vai conhecer as abordagens que influenciaram o racialismo na Europa. Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar. https://statics-marketplace.plataforma.grupoa.education/sagah/bc1d16e7-d98f-495d-8ba5-14af9bfd0506/8046b729-b7e5-400c-84c8-635771e32df3.jpg Conteúdo do livro A antropologia estuda as mais variadas formas de etnocentrismo e tem proposto o relativismo como um contraponto a essa dimensão das relações humanas. Mas, para compreender o relativismo, antes é necessário entender o que significa etnocentrismo e os seus efeitos na relação com a diferença. Seja no cotidiano ou na prática profissional, os valores e os modos de pensar e agir aprendidos culturalmente perpassam as relações estabelecidas. No capítulo Etnocentrismo, da obra Antropologia social, você vai ver o conceito de etnocentrismo e o desdobramento dessa dimensão no desenvolvimento do pensamento ocidental sobre a diferença. Boa leitura. ANTROPOLOGIA SOCIAL Gabriela Felten da Maia O etnocentrismo Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Descrever o etnocentrismo. � Relacionar o contexto colonialista europeu ao conceito de etnocentrismo. � Reconhecer os efeitos do modelo etnocentrista na modernização dos países emergentes e suas contrapropostas antropológicas. Introdução O contato com a diversidade cultural e a reação a ela integram a história das relações entre diversas sociedades. Desse contato, surgiu o estranha- mento diante de diferentes costumes, valores e comportamentos quando comparados aos de outro grupo, portanto, provavelmente uma situação nova ou estranha causará algum choque em quem não participa dela, pois cada cultura possui noções próprias de comportamento, condutas e valores. Essa condição se chama etnocentrismo. Neste capítulo, você estudará o etnocentrismo, como esse conceito ajuda a compreender as práticas cotidianas de relação com a diferença, sua ligação com o contexto colonialista, seus efeitos na modernização dos países emergentes e suas contrapropostas antropológicas. Diferença e mal-entendido sociológico O etnocentrismo representa uma forma de sentir, pensar e perceber que adota um grupo, valores e modelos como o centro. Ele parte de uma relação entre eu-outro, em que se utiliza os referenciais culturais da própria sociedade para avaliar os modos de vida distintos de sua cultura. O cotidiano é permeado de situações em que há comportamentos que causam estranheza ou rechaço, como diferenças na experiência da sexualidade, de classe, geracionais, religiosas ou geográficas. A percepção sobre infância e família a partir de um modelo de família nuclear e da experiência de infância conforme o modelo médico-psicológico formou o olhar e as intervenções realizadas em diferentes políticas públicas na atenção às populações em situação de vulnerabilidade social. Assim, é comum que a noção de crianças e adolescentes nessa situação seja orientada pela dimensão da carência a partir da comparação com jovens que pertencem às outras camadas sociais. Do mesmo modo, a ideia de família desestruturada emerge em contextos de intervenção associados às condições de habitação, ao número de filhos, emprego irregular, entre outras questões sociais adotadas como critérios para avaliar o que é uma família “normal”. Em ambas as situações, os modos de vida são valorizados a partir dos padrões culturais compartilhados pelo grupo avaliador sobre o avaliado, desconsiderando os fenômenos históricos resultados de determinadas circuns- tâncias econômicas, políticas e sociais que constituem as condições concretas da vida das pessoas e as formas como elas organizam seu cotidiano. A intolerância às religiões de matriz afro-brasileiras é outro exemplo, nas quais a compreensão de mundo e suas simbologias são experimentadas de modo diferente das outras religiões, como a católica. As práticas religiosas, por exemplo, o sacrifício de animais, são alvo de controvérsias, consideradas absurdas, bárbaras e cercadas por temores. Contudo, elas compreendem uma outra cosmovisão sobre o ser humano, a natureza e os espíritos, devendo ser entendidas a partir da experiência daqueles que a praticam. Portanto, entende-se que o preconceito que tais religiões enfrentam está relacionado à sua matriz africana e vinculado a um grupo tradicionalmente estigmatizado, os negros. No encontro com a alteridade, a existência de uma valoração sobre os outros pode ser considerada como etnocêntrica quando há julgamento das práticas sociais como certas ou erradas, boas ou ruins, normais ou anormais. De acordo com Rocha (1988, p. 6–7): Como uma espécie de pano de fundo da questão etnocêntrica temos a expe- riência de um choque cultural. De um lado, conhecemos um grupo do “eu”, o “nosso” grupo, que come igual, veste igual, gosta de coisas parecidas, conhece problemas do mesmo tipo, acredita nos mesmos deuses, casa igual, mora no mesmo estilo, distribui o poder da mesma forma, empresta à vida significados em comum e procede, por muitas maneiras, semelhantemente. Aí, então, de repente, nos deparamos com um “outro”, o grupo do “diferente” que, às vezes, nem sequer faz coisas como as nossas ou quando as faz é de forma tal que não reconhecemos como possíveis. E, mais grave ainda, este “outro” também sobrevive à sua maneira, gosta dela, também está no mundo e, ainda que diferente, também existe. O etnocentrismo2 Segundo o autor, a dificuldade em pensar na diferença implica em um mal-entendido sociológico que se manifesta tanto no plano intelectual como no plano afetivo, porque se refere a uma dificuldade em se pensar a diferença e os sentimentos de estranheza, medo ou hostilidade. Ao receber a missão de ir pregar junto aos selvagens um pastor se pre- parou durante dias para vir ao Brasil e iniciar no Xingu seu trabalho de evangelização e catequese. Muito generoso, comprou para os selvagens contas, espelhos, pentes,etc.; modesto, comprou para si próprio apenas um moderníssimo relógio digital capaz de acender luzes, alarmes, fazer contas, marcar segundos, cronometrar e até dizer a hora sempre abso- lutamente certa, infalível. Ao chegar, venceu as burocracias inevitáveis e, após alguns meses, encontrava-se em meio às sociedades tribais do Xingu distribuindo seus presentes e sua doutrinação. Tempos depois, fez-se amigo de um índio muito jovem que o acompanhava a todos os lugares de sua pregação e mostrava-se admirado de muitas coisas, espe- cialmente, do barulhento, colorido e estranho objeto que o pastor trazia no pulso e consultava frequentemente. Um dia, por fim, vencido por insistentes pedidos, o pastor perdeu seu relógio dando-o, meio sem jeito e a contragosto, ao jovem índio. A surpresa maior estava, porém, por vir. Dias depois, o índio chamou-o apressadamente para mostrar-lhe, muito feliz, seu trabalho. Apontando seguidamente o galho superior de uma árvore altíssima nas cercanias da aldeia, o índio fez o pastor divisar, não sem dificuldade, um belo ornamento de penas e contas multicolores tendo no centro o relógio. O índio queria que o pastor compartilhasse a alegria da beleza transmitida por aquele novo e interessante objeto. Quase indistinguível em meio às penas e contas e, ainda por cima, pendurado a vários metros de altura, o relógio, agora mínimo e sem nenhuma função, contemplava o sorriso inevitavelmente amarelo no roso do pastor. Fora-se o relógio. Passados mais alguns meses o pastor também se foi de volta para casa. Sua tarefa seguinte era entregar aos superiores seus relatórios e, naquela manhã, dar uma última revisada na comunicação que iria fazer em seguida aos seus colegas em congresso sobre evangelização. Seu tema: “A catequese e os selvagens”. Levantou-se, deu uma olhada no relógio novo, quinze para as dez. Era hora de ir. Como que buscando uma inspiração de última hora examinou detalhadamente as paredes do seu escritório. Nelas, arcos, flechas, tacapes, bordunas, cocares, e até uma flauta formavam uma bela decoração. Rústica e sóbria ao mesmo tempo, trazia-lhe estranhas lembran- ças. Com o pé na porta ainda pensou e sorriu para si mesmo. Engraçado o que aquele índio foi fazer com o meu relógio (ROCHA, 1988, p. 9–11). 3O etnocentrismo As apreciações aos padrões culturais de outros grupos podem provocar o que Rocha (1988) nomeia de etnocentrismo cordial, quando não existem maiores consequências às relações entre esses grupos. Portanto, o estra- nhamento diante da diferença nem sempre será vivido como racismo, pois pode ser vivenciado como encantamento e curiosidade, mas também causa uma reação depreciativa que considera o comportamento do outro absurdo, imoral ou desviante. Apesar de o etnocentrismo ser uma reação que acomete a todos em dife- rentes épocas e lugares, ele pode produzir reações negativas, tanto configu- rando uma depreciação das práticas estranhas como uma negação do status de humano ao outro. Há exemplos na história das consequências deletérias dessa reação, como a perseguição aos judeus, na Segunda Guerra Mundial, pelos alemães, porque não correspondiam à visão que estes possuíam de pureza racial. Portanto, ele pode aproximar-se do preconceito quando, na convivência cotidiana e no contato com uma diversidade de outros com os quais se tem familiaridade, rotula e aplica os estereótipos que guiam a relação com a dife- rença. Em algumas situações, essa apreensão reveste-se de uma forma muito violenta e constitui o racismo, a intolerância, a xenofobia e os etnocídios, justificando a violência praticada contra os demais (THOMAZ, 1995). Etnocídio é a destruição sistemática de minorias étnicas a partir da eliminação ou proi- bição das manifestações culturais e sua assimilação à cultura nacional (THOMAZ, 1995). A história como Ocidente é marcada por esta experiência de apreensão e relação com o outro. Embora o etnocentrismo não seja propriedade exclusiva de uma sociedade, a reação diante da alteridade no contexto ocidental revestiu- -se de um caráter de superioridade cultural que possibilitou a colonização de outros povos. O etnocentrismo4 Nos links a seguir, veja a capa do livro “A massai branca: meu caso de amor com um guerreiro africano”, publicado no Brasil pela Geração Editorial em 2007, e assista ao trailer do filme de 2005 dirigido por Hermine Huntgeburth, baseado em fatos, que conta a história de uma suíça que viaja ao Quênia e se apaixona por um guerreiro massai. Essa produção explora a experiência de uma mulher branca europeia em outro contexto e o choque cultural. https://qrgo.page.link/5FBa1 https://qrgo.page.link/ZGudU Questão da alteridade e expansão colonial A emergência de refletir sobre a diferença é contemporânea às navegações e à descoberta do Novo Mundo; já a questão que surge no pensamento ocidental ao estar em contato com a alteridade se trata de saber se as pessoas encon- tradas pelos europeus pertenciam à humanidade. De acordo com Laplantine (2003), o critério utilizado para tal questionamento é religioso: os selvagens teriam alma? O pecado original remeteria a eles? Essas questões não foram solucionadas nesse período, mas elas começaram o esboço de duas correntes que culminariam na ideia do mau selvagem e o bom civilizado e do bom selvagem e o mau civilizado. Na primeira corrente, expulsa-se da cultura para a natureza (ou a animali- dade) os indivíduos que não são identificados como participantes da humani- dade à qual o grupo do eu pertence e se identifica. Para isso, no século XIV, segundo Laplantine (2003), os europeus usaram não apenas o critério religioso, como também a aparência física (nudez), o comportamento alimentar (come- rem carne crua) e a linguagem ininteligível. Assim, constitui-se o selvagem, marcado pela falta, pois não teria moral, religião, lei, Estado, escrita, razão, história e cultura. Nesse discurso sobre a alteridade, trata-se de um animal, apreendido como uma besta e o inverso do civilizado. 5O etnocentrismo Contrapondo-se à visão apresentada anteriormente, o bom selvagem seria aquele que vive em plenitude, no paraíso. Segundo Laplantine (2003), atribui- -se a ele à ingenuidade original do estado de natureza, porque não saberia o que é o mal, nem a cobiça, livre das características da civilização, marcadas como negativas. Havia uma decepção com os benefícios realizados pelo pro- gresso, tornando o modo de vida dos habitantes dos trópicos ou mares do sul como paraísos perdidos, que as sociedades europeias teriam substituído pela tecnologia. As representações produzidas pelo Ocidente em relação à alteridade e a si mesmo oscilou desde o século XV. A forma como a colonização moldou esse encontro exigiu que se pensasse na diferença e contribuiu para o sen- timento etnocêntrico ocidental, na medida em que essas imagens operaram como objetos que foram mobilizados para exploração econômica, militarismo político, conversão religiosa ou emoção estética. Portanto, “o outro não era considerado para si mesmo. Mas se olha para ela. Olha-se a si mesmo nele” (LAPLANTINE, 2003, p. 36). Se no século XVI a questão colocada remetia a pensar que tipo de pessoa seriam os outros, foi no século XVIII que emergiu a ideia de primitivo. Segundo Schwarcz (1993), a partir do naturalista francês Buffon, no século XVIII, uma ciência geral dos seres humanos começa a surgir por meio da tensão entre as duas imagens apresentadas anteriormente sobre o selvagem. Considerando que o ser humano não é composto de espécies diferentes, conforme Todorov (1993), a defesa da monogênese marcará a produção do naturalista. Como corolário de pensar a existência de apenas uma espécie de seres humanos, a diferença será dada entre humano e animais. Nessa perspectiva, há uma unidade do gênero humano, mas, a partir do senso de hierarquia e da diferença, ela começa a ser explicada por meio do grau de evolução, observando os critérios que unem a possibilidade de reco- nhecer as hierarquias.Assim, além da racionalidade, Buffon afirma que um dos traços que definem o elevado grau do ser humano será a sociabilidade, e qualquer grupo que não possua lei, autoridade, ordem e costumes seria bárbaro. Estabelece-se uma hierarquização que vai da selvageria à civiliza- ção, em que “no cume se encontram as nações da Europa setentrional, logo abaixo os outros europeus, depois vêm as populações da Ásia e da África, e, na parte mais baixa da escala, os selvagens americanos” (TODOROV, 1993, p. 115). Essas descrições focadas nas diferenças culturais também tinham uma concepção de raça que influenciou o racialismo do século XIX, havia a con- O etnocentrismo6 vicção da natureza quase animal dos grupos humanos considerados inferiores. Já a variedade na espécie humana era definida a partir de critérios como a cor de pele, o tamanho e a forma do corpo e os costumes, assim, a Europa tornou-se ponto de referência para comparar e estabelecer a separação entre os diferentes povos. O primitivo tornava-se o branco, e a mudança na cor da pele revelava uma degenerescência (SCHWARCZ, 1993; TODOROV, 1993). A introdução da noção de degeneração teve forte influência a partir do século XIX com a emergência da raça como uma noção para explicar as diferenças. Essa reorientação intelectual marcou uma questão que já estava em discussão: as origens da humanidade, um discurso racial que surgiu em contraponto ao debate sobre a cidadania e a igualdade, aos pressupostos das revoluções burguesas europeias e à visão unitária da humanidade. Duas vertentes procuraram abranger essa discussão sobre a origem da humanidade: as visões monogenista e a poligenista (SCHWARCZ, 1993). A visão monogenista congregou autores que compreendiam a humanidade como uma, originada de uma fonte comum, sendo a diferença apenas um produto da degeneração ou perfeição do Éden. Nesse caso, a humanidade se desenvolve em gradiente, do mais ao menos perfeito. Já a visão poligenista foi fortalecida pela interpretação biológica e crítica ao pensamento anterior, entendendo a origem como proveniente de vários centros que corresponde- riam, consequentemente, às diferenças raciais. Há uma compreensão de que diferentes raças humanas constituiriam espécies diversas (SCHWARCZ, 1993). A influência da publicação de Charles Darwin “A origem das espécies”, em 1859, foi um importante ponto de inflexão do debate anterior — as duas perspectivas assumiam o modelo evolucionista no conceito de raça, aproxi- mando questões culturais e políticas. Assim, a abordagem darwinista também possibilitou vínculos ao imperialismo europeu, em que a ideia de seleção natural foi utilizada como justificativa para a explicação do domínio ocidental aos outros povos. Portanto, o darwinismo influenciou diferentes campos de discussão, como o pensamento social e as teorias racialistas da época. A consequência desse saber sobre as raças foi a formação de um ideal político em que havia uma prática de intervenção sobre a reprodução humana para controle e seleção populacional, chamada eugenia (SCHWARCZ, 1993). Como você observou, a diferença tem sido uma questão discutida há vários séculos, mas, no século XIX, houve sua naturalização a partir das teorias das raças. Nesse contexto de debate, a conformação das nações e a ideia de igualdade e solidariedade eram negadas em razão da compreensão de que a diferença implicava uma divisão incomensurável entre as espécies. 7O etnocentrismo No século XVIII, Sarah Baartman, uma mulher sul-africana conhecida como “Vênus Hotentote”, foi levada para a Europa para ser exibida como atração exótica em razão da curiosidade sobre suas dimensões corporais. Após sua morte, foi dissecada e colocada em exibição em um museu e, 200 anos depois, seu corpo (esqueleto, genitais e cérebro) ainda estava em exibição no Museu do Homem, em Paris. Saiba mais sobre Sarah no link a seguir. https://qrgo.page.link/xW5Aq Colonialidade, modernidade e críticas a partir de perspectivas subalternas Segundo Mignolo (2005), há uma retórica que naturaliza a modernidade com um processo universal, global e ponto de chegada, que ocultaria a reprodução cons- tante da colonialidade. Os países do sul global, outrora colonizados, são julgados de acordo com os padrões dos países industrializados do norte, isso significa que a expansão colonial foi acompanhada por um modelo único de moderni- zação aplicada aos colonizados, considerados atrasados ou subdesenvolvidos. Assim, o colonialismo, segundo Quijano (2005), era a forma de dominação direta, política, social e cultural dos europeus sobre os conquistados de todos os continentes. Esse modo de dominação formal foi desfeito em muitos países, mas a estrutura colonial de poder produziu as discriminações sociais que, posterior- mente, foram codificadas como raciais, étnicas, antropológicas ou nacionais. Se você observar as principais linhas de exploração e da dominação social na escala global, a distribuição de recursos e trabalho entre a população, notará que essa estrutura de poder ainda opera por meio de outras relações sociais. A maioria dos explorados e discriminados pertence aos grupos sociais racializados ou às nações que foram colonizadas, assim, ainda que se tenha abolido o colonialismo político, a relação entre a cultura europeia e as outras continua sendo de dominação colonial (QUIJANO, 2005). De acordo com Quijano (2005), a consolidação da expansão colonial foi acompanhada pela constituição de um complexo cultural conhecido como racionalidade-modernidade, que se estabelecia como paradigma dominante de conhecimento e relação com o restante do mundo. Trata-se de uma matriz colonial de poder, conforme Mignolo (2005), que inclui a esfera econômica, mas não apenas, possibilitando a naturalização da cosmovisão ocidental. O etnocentrismo8 Essa cumplicidade entre modernidade-racionalidade, de acordo com Qui- jano (2005), torna-se excludente porque apaga as diferenças e a intersubjetivi- dade, bem como a totalidade social como sede de produção de conhecimento, omitindo a referência a qualquer outro sujeito que não seja do contexto europeu, os demais são os outros, objetos de conhecimento ou práticas de dominação. A partir dessas críticas, esses dois autores, juntamente aos outros grupos, propõem um debate que procura formas de enunciação que reflitam a classi- ficação étnica sob o qual os Estados-Nação se desenvolveram e os efeitos do processo colonial. Assim, contrapondo-se a uma ideia de subalterno passivo que não somente reage, sendo mobilizado apenas a partir de cima, como tam- bém atua e produz efeitos sociais, ainda que não sejam sempre reconhecíveis. Eles propõem a necessidade de releituras das narrativas nacionais e indicam a ausência de representação da ação e de narrativas subalternas. Já Spivak (2010) faz um chamado aos perigos da representação do sujeito denominado Terceiro Mundo pelos intelectuais do Primeiro Mundo, os quais marcaram a si como não representantes ausentes que deixam o oprimido falar, uma prática que mantém o essencialismo e o imperialismo, que resultam em uma violência epistêmica. Segundo Bahri (2013), as críticas do feminismo pós-colonial demonstram como a tokenização, indivíduos que se colocam no lugar de falar porque acreditam ser representantes de determinada categoria, também produz um essencialismo que é acompanhado da guetização e do silenciamento de outras pessoas. Portanto, Spivak (2010) reflete sobre a história de uma viúva para abordar a condição de subalternidade quando se articula a categoria gênero e a mar- ginalização das mulheres na produção colonial, marcadamente masculina. A autora problematiza a noção de sujeito homogêneo presente em algumas abordagens sobre a agência e a resistência do subalterno. Essa leitura das narrativas subalternas parece indicar que não haveria muitas possibilidades para a agência desses sujeitos, considerando o lugar da mulher subalterna no contexto colonial e pós-colonial colocadopela autora. Contudo, ao questionar se o subalterno pode falar, ela provoca a reflexão dos modos de enunciação sobre e do outro em um contexto de produção em que o subalterno não teria como se representar, procurando pensar nas possibilidades de ele subjetivar-se. O hibridismo identitário torna-se um recurso possível para se pensar e um essencialismo estratégico. As duas categorias se referem a uma questão: como não emudecer o subalterno nas representações produzidas nos trabalhos? Não falar por, nem em lugar de significa assumir o lugar de fala e a posição de sujeito a fim de trabalhar o hibridismo. Os debates epistemológicos colocados pelas vozes subalternizadas, que ocupam a posição de eu e outros, tensionam 9O etnocentrismo o local do autor, confrontando política e eticamente as relações com a dife- rença. Antes de tudo, essas relações são de desigualdade e se apresentam no modo como está estruturado o contexto político e institucional de produção do conhecimento (ABU-LUGHOD, 1991). No pós-guerra, Césaire (2006) e Fanon (1975), homens negros martini- quenhos, realizaram importantes críticas ao colonialismo e aos processos corporificados de produção da relação eu-outro, em que os negros como uma marca são produzidos pelo colonizador. Grandes influências para os debates pós-coloniais e os estudos subalternos, ao refletir sobre o colonialismo difu- samente nas relações subjetivas e no pensamento, demonstram que os saberes modernos são coloniais. Esses projetos empreenderam críticas à epistemologia ocidental a partir de outros lugares de enunciação ao mostrarem os efeitos de poder da relação colonial eu-outro, na medida em que esta é violenta por desumanizar o outro em sua materialização por meio de uma violência epis- têmica, como apresenta Spivak (2010). Em “Cultura e Imperialismo”, publicado pela Companhia das Letras em 1995, Edward Said examina de forma brilhante as influências política e cultural do Ocidente por meio de políticas imperiais ainda presentes. Na obra, ele aponta como os meios de comunicação podem ser armas de colonização e mostra as vozes insurgentes na literatura, vindas dos países colonizados. ABU-LUGHOD, L. Writing against culture. In: FOX, R. (ed.). Recapturing anthropology: working in the present. Santa Fe: School of American Research Press. p. 137–162. BAHRI, D. Feminismo e/no Pós-Colonialismo. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 21, n. 2, p. 659–688, 2013. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/ article/view/S0104-026X2013000200018. Acesso em: 12 set. 2019. CÉSAIRE, A. Discurso sobre el colonialismo. Madrid: Akal, 2006. 222 p. FANON, F. Do pretenso complexo de dependência do colonizado. In: FANON, F. (ed.). Pele negra, máscaras brancas. Porto: A. Ferreira; Paisagem, 1975. p. 97–120. O etnocentrismo10 LAPLANTINE, F. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2003. 205 p. MIGNOLO, W. D. La colonialidad a lo largo y a lo ancho: el hemisferio occidental en el horizonte colonial de la modernidad. In: LANDER, E. (comp.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales: perspectivas latinoamericanas. Buenos Ai- res: Clacso, 2005. p. 34–52. Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/sur- -sur/20100708034410/lander.pdf. Acesso em: 12 set. 2019. QUIJANO, A. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, E. (comp.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales: perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: Clacso, 2005. p. 122–151. Disponível em: http://biblio- teca.clacso.edu.ar/clacso/sur-sur/20100708034410/lander.pdf. Acesso em: 12 set. 2019. ROCHA, E. P. G. O que é etnocentrismo. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1988. 95 p. (Coleção Primeiros Passos, 124). SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil: 1870–1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 296 p. SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010. 133 p. THOMAZ, O. R. A antropologia e o mundo contemporâneo: cultura e diversidade. In: SILVA, A. L.; GRUPIONI, L. D. B. A temática indígena na escola: novos subsídios para pro- fessores de 1º e 2º graus. Brasília: MEC; UNESCO; São Paulo: Mari — Grupo de Educação Indígena/USP, 1995. p. 425–441. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pes- quisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=26725. Acesso em: 12 set. 2019. TODOROV, T. A raça e o racismo. In: TODOROV, T. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. p. 107–141. 11O etnocentrismo Dica do professor O pensamento ocidental sobre a diferença foi marcado pela busca por modelos explicativos. Entre os vários modelos que surgem entre os séculos XVIII e XIX, a antropologia também produziu um conhecimento sobre a diversidade. Essa perspectiva é conhecida como evolucionismo cultural. Nesta Dica do Professor, você vai conhecer a primeira escola de pensamento antropológico do evolucionismo cultural. Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar. https://fast.player.liquidplatform.com/pApiv2/embed/cee29914fad5b594d8f5918df1e801fd/6e3c68651e84576c9f42d595ff804e83 Exercícios 1) O encontro colonial com a alteridade produziu uma série de discussões que formaram um campo intelectual sobre a diferença e a sua relação com o Ocidente. O conhecimento ensejado por esse encontro formou, entre os séculos XV e XIX, a relação entre eu e outro. Considerando o debate nesse período, assinale a alternativa correta: A) O domínio e a exploração de sociedades não europeias ensejaram um conhecimento sobre a diferença como diversidade. B) A discussão sobre diferença perpassa o debate sobre a origem da humanidade, compreendendo que tanto o eu quanto o outro pertenciam aos humanos. C) O debate filosófico e científico sobre a alteridade destacava a diversidade nas formas de desenvolvimento político, cultural e social dos diferentes povos. D) Classificações de barbárie, selvageria e primitivo foram utilizadas em relação aos povos não europeus a partir do critério de ausência em relação ao mundo ocidental. E) A relação com a diferença no período de expansão colonial produziu diversas imagens que demonstravam preocupação em compreender as múltiplas formas de viver, pensar e agir. Ruth Benedict, em sua obra O crisâncemo e a espada, afirma que a cultura é uma lente através da qual se vê o mundo. Esse aspecto traz algumas consequências na relação com a diferença. A imagem a seguir expressa esse comportamento do encontro entre culturas diferentes. 2) Observe a imagem e assinale a alternativa que corresponde a esse comportamento: A) As lentes culturais possibilitam compreender as diferentes práticas sociais e culturais de cada grupo social. B) Há uma compreensão de que cada cultura tem uma lógica interna, expressa nas mais variadas formas de práticas culturais. C) Considerar os padrões culturais do seu próprio grupo social não promove a classificação das culturas de forma hierárquica. D) A diferença nos costumes de cada grupo social não constitui um critério para julgar as diferentes sociedades. E) Toma os referenciais culturais de sua própria sociedade para avaliar outros modos de vida. 3) A diferença tem sido discutida há vários séculos, desde as navegações e a "descoberta da América". Com isso, diferentes representações foram construídas para explicar o porquê das diferenças entre grupos e sociedades. Assinale a alternativa que corresponda a essas representações produzidas na Europa entre os séculos XV e XIX: A) As discussões que se esboçam no período das navegações discutiram a ideia das raças e das diferenças como sendo natural. B) Constitui-se uma discussão sobre a imagem do selvagem e do primitivo como aqueles que oscilam entre a falta ou por estar em grau menor de evolução. C) Na discussão sobre o bom selvagem há uma compreensão de que é o inverso do civilizado, próximo à natureza, à animalidadee marcado pela falta. D) Primitivo era aquele que vivia em plenitude, em uma espécie de paraíso perdido pelo Ocidente com o avanço tecnológico. E) A compreensão da unidade do gênero humano possibilitou a representação da diferença como diversidade e especificidade cultural. 4) A colonialidade é uma discussão proposta com o intuito de pensar os efeitos de poder da narrativa sobre a modernidade e a relação estabelecida entre povos e países com a expansão colonial. Tendo por base a formação da matriz colonial nas Américas, assinale a alternativa correta que indica as críticas empreendidas a partir desse debate sobre colonialidade: A) O modelo de modernização é somente econômico, envolvido apenas no desenvolvimento tecnológico dos países subdesenvolvidos. B) A matriz colonial teve efeitos apenas até o período da descolonização das Américas. C) A consolidação da expansão colonial foi acompanhada pela constituição de uma racionalidade que se estabeleceu como cosmovisão dominante. D) A racionalidade ocidental tem considerado outras cosmovisões para a produção do conhecimento. E) A valorização de conhecimentos diferentes ao modelo europeu acompanhou todo o processo de colonial. 5) As críticas realizadas por autores localizados na fratura colonial têm proposto outras formas de enunciação que reflitam as experiências étnicas, raciais, nacionais e generificadas do conhecimento. Com base nessa discussão, assinale a alternativa que apresenta algumas das críticas realizadas: A) A representação do outro pelos intelectuais ocidentais perpassa o reconhecimento da diferença colonial. B) Falar pelo outro pode manter o essencialismo e o imperialismo, que resultam em violência epistêmica. C) Um recurso possível é o diálogo entre sujeitos ocidental e subalterno. D) A produção do conhecimento é neutra e, portanto, não implica violência epistêmica. E) As críticas empreendidas pelos autores localizados na condição de subalternos não alteraram as condições de discussão epistemológica. Na prática Um dos desafios do trabalho com famílias em políticas públicas consiste na própria concepção de família com que se opera. Embora as políticas públicas, especialmente a de assistência social, tenham uma compreensão de família em seus documentos, os profissionais também colocam em prática a compreensão hegemonicamente compartilhada de família no processo interventivo. Na Prática, você vai conhecer um caso com base na discussão sobre concepções de família e práticas de intervenção. Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar. https://statics-marketplace.plataforma.grupoa.education/sagah/a2ca8ca7-7175-49dd-ac02-3f5608395601/e649bfa9-4072-4aa7-89c9-35e34876af95.jpg Saiba + Para ampliar o seu conhecimento a respeito desse assunto, veja abaixo as sugestões do professor: Uma interpelação feminista indígena à “virada ontológica”: “ontologia” é só outro nome para colonialismo Neste texto, a antropóloga Zoe Todd discute as consequências das relações coloniais na experiência de populações indígenas. Veja a seguir as considerações realizadas pela autora a respeito do efeito de poder, as relações coloniais ainda presentes e o lugar da produção do conhecimento nesse processo. Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar. Chimamanda Ngozi Adichie: o perigo de uma única história Assista à palestra da escritora Chimamanda Adichie para o TED sobre o perigo de uma única história. Há uma importante problematização sobre o processo colonial, o encontro com a alteridade e a formação das sensibilidades, arte e visão de mundo a partir dessa relação. Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar. Projetos de modernidade: autoritarismo, eugenia e racismo no Brasil do século XX Neste artigo são apresentados discussões sobre racismo, teorias racialistas e o projeto de modernização a partir da experiência brasileira. https://maquinacrisica.org/2015/12/22/uma-interpelacao-feminista-indigena-a-virada-ontologica-ontologia-e-so-outro-nome-para-colonialismo/ https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story?language=pt-br#t-131826 Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar. https://journals.openedition.org/revestudsoc/295
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