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2018 MulticulturalisMo Profª. Luciane da Luz Prof. Márcio José Cubiak Copyright © UNIASSELVI 2018 Elaboração: Profª. Luciane da Luz Prof. Márcio José Cubiak Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: L979m Luz, Luciane da Multiculturalismo. / Luciane da Luz; Márcio José Cubiak. – Indaial: UNIASSELVI, 2018. 230 p.; il. ISBN 978-85-515-0220-4 1. Multiculturalismo. – Brasil. I. Cubiak, Márcio José. II. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. CDD 370.117 III apresentação Caro acadêmico! Este é seu Livro de Estudos de Multiculturalismo. Trata-se de um tema bastante presente e relevante para nosso mundo atual. Trataremos aqui de discutir o retorno da etnia ao cenário político e acadêmico com força total. Esse ressurgimento de tipos étnicos de engajamento individual e coletivo está ligado às dinâmicas das sociedades contemporâneas, “pós- tradicionais” como classificou o sociólogo inglês Anthony Giddens (1991). Você já deve ter percebido nos noticiários nacionais e internacionais esses movimentos. Por exemplo, por detrás dos deslocamentos forçados em massa de populações sírias, palestinas ou iraquianas, existem dezenas de etnias que compõem esses países. Tais formas de pertencimento acabam sendo invisibilizados pela categoria de refugiado. Mas, trata-se de um equívoco, um senso comum. E é aí que entra a importância da etnia, pois, como veremos, um grupo étnico preocupa-se em definir as suas identidades em termos de fronteiras em relação aos outros grupos, resultando em interações que podem levar a conflitos, segregações, extermínios e outras formas de violência física e simbólica. Para entender as questões ligadas ao pertencimento étnico, devemos refletir sobre a noção de identidade. Temos, ainda, que contextualizar o desenvolvimento da subjetividade e da identidade ao longo dos tempos antigos, modernos e atuais. Fundamental, também, entender nosso período como aquele em que a categoria cultura tornou-se central nas lógicas sociais e políticas do Ocidente. Neste cenário, a globalização assume papel relevante. Na Unidade 1, trataremos de caracterizar o desenvolvimento histórico da noção de identidade. Para isso, faremos uma viagem ao passado para entender as mudanças ocorridas. Como veremos, a mudança indica que passamos de uma ideia de identidade fixa para uma noção fluida e flexível. Daí essencial discutir as categorias de identidade, modernidade, pós- modernidade, cultura e reconhecimento. Na Unidade 2, adentraremos nos estudos sobre etnia propriamente ditos, a partir das chamadas Teorias Sociais sobre as relações étnico-raciais que poderão nos servir para mostrar como os problemas que ocorrem em nossas sociedades são decorrentes destas relações. Assim, o conceito de etnia aparece como uma nova categoria social importante para a análise do século XX, tanto quanto foi a categoria de classe social para o século XIX. Isso porque através deles podemos pensar o papel da diferença na produção de hierarquias e relações sociais, organizando o mundo cultural de seus integrantes, definindo os “de dentro” e os “de fora”. IV Na Unidade 3, vamos focar a cultura, a identidade e as diferenças étnicas e raciais presentes em nosso país. Não é novidade que nosso país é injusto e socialmente desigual. Porém, podemos perceber que o abismo é maior para alguns, enquanto outros se beneficiam ou monopolizam as oportunidades tendo como balizador aspectos sociais como cor, da “raça”, etnia e gênero. Bons estudos! Os autores. UNI Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! V VI VII suMário UNIDADE 1 - PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES ........................................................... 1 TÓPICO 1 – A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO ...... 3 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 3 2 O QUE É O ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO? ........................................................................... 4 3 OS GREGOS E UM OLHAR SOBRE A IDENTIDADE ÉTNICA ............................................... 7 4 RELAÇÕES ENTRE IMPÉRIO ROMANO, IDADE MÉDIA E EUROPA: A IDENTIDADE NACIONAL ........................................................................................ 11 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 22 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 23 TÓPICO 2 – IDENTIDADE E MODERNIDADE .............................................................................. 25 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 25 2 O SUJEITO MODERNO: O SUJEITO RACIONAL ...................................................................... 26 2.1 RENÉ DESCARTES (1596-1650) E IMMANUEL KANT (1724-1804) ....................................... 27 2.2 FRIEDRICH NIETZSCHE E A CRÍTICA AO SUJEITO MODERNO ....................................... 30 3 O SUJEITO É SOCIAL: O SUJEITO SOCIOLÓGICO .................................................................. 32 4 A MODERNIDADE .............................................................................................................................. 34 4.1 VISÕES CONTEMPORÂNEAS SOBRE A MODERNIDADE NAS CIÊNCIAS SOCIAIS .... 38 4.1.1 Anthony Giddens.................................................................................................................... 38 4.1.2 Alain Touraine ......................................................................................................................... 40 4.1.3 Boaventura de Sousa Santos ................................................................................................. 41 4.1.4 Jürgen Habermas .................................................................................................................... 43 LEITURA COMPLEMENTAR ...............................................................................................................45 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 47 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 48 TÓPICO 3 – IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE....................................................... 49 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 49 2 A PRODUÇÃO SOCIAL DAS IDENTIDADES E DAS DIFERENÇAS NA PÓS-MODERNIDADE................................................................................................................. 50 2.1 O QUE É A PÓS-MODERNIDADE? ............................................................................................. 55 2.1.1 A identidade na alta modernidade de Anthony Giddens ................................................ 57 2.1.2 A identidade na modernidade líquida de Zygmunt Bauman ......................................... 59 3 CRISES DE IDENTIDADES, CRISES DE PARADIGMAS ......................................................... 62 3.1 A GLOBALIZAÇÃO E A IDENTIDADE GLOBAL .................................................................... 63 3.2 IDENTIDADES E RECONHECIMENTO ..................................................................................... 69 3.3 A CENTRALIDADE DA CULTURA ............................................................................................ 73 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 77 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 81 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 82 UNIDADE 2 - TEORIAS DA ETNICIDADE, RELAÇÕES DE GÊNERO E O DEBATE MULTICULTURAL......................................................................................................... 83 VIII TÓPICO 1 – CONTEXTO HISTÓRICO DO CONCEITO DE ETNICIDADE E SUA RELAÇÃO COM AS CIÊNCIAS SOCIAIS ............................................................................................................. 85 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 85 2 DISCUTINDO A HISTORICIDADE DO TERMO ETNIA E SUA RELAÇÃO COM AS CIÊNCIAS SOCIAIS ........................................................................................ 87 2.1 CONCEITUANDO ETNIA E ETNICIDADE ............................................................................. 94 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 97 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 100 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 101 TÓPICO 2 – RAÇA, NAÇÃO, ETNIA, IDENTIDADE ÉTNICA, GRUPOS ÉTNICOS E SUAS FRONTEIRAS ........................................................................................................ 103 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 103 2 A IMPORTÂNCIA DO CONCEITO DE RAÇA PARA A CONSTRUÇÃO DA DESIGUALDADE ........................................................................................................................ 103 3 ETNIA, RAÇA E NAÇÃO: APROXIMAÇÕES E DIFERENCIAÇÕES NECESSÁRIAS .......... 108 4 IDENTIDADE ÉTNICA, ETNICIDADE, GRUPOS ÉTNICOS E SUAS FRONTEIRAS ..... 109 5 A CRÍTICA AO PENSAMENTO DE FREDRICK BARTH E A AMPLIAÇÃO DO CONCEITO DE ETNICIDADE .................................................................................................. 116 6 ETNICIDADE E MODERNIDADE................................................................................................... 120 7 DIÁSPORAS E DESLOCAMENTOS ............................................................................................... 121 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 124 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 125 TÓPICO 3 – GÊNERO E MULTICULTURALISMO - CONCEITOS IMPORTANTES PARA O COMBATE ÀS DESIGUALDES SOCIAIS ONTEM E HOJE ......................................... 127 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 127 2 DO MOVIMENTO FEMINISTA AOS ESTUDOS DE GÊNERO ............................................... 127 3 MULTICULTURALISMO ........................................................................................................................ 132 3.1 MULTICULTURALISMO E SEU CONTEXTO HISTÓRICO .................................................... 132 3.2 MULTICULTURALISMO NOS EUA ............................................................................................ 135 3.2.1 A Lei dos Direitos Civis e as primeiras políticas de ações afirmativas ........................... 139 3.3 CONCEITUANDO POLÍTICAS PÚBLICAS E DE AÇÃO AFIRMATIVA .............................. 145 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 147 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 148 UNIDADE 3 - MULTICULTURALISMO, GÊNERO, RAÇA E ETNIA NO BRASIL ................. 149 TÓPICO 1 – AS POLÍTICAS MULTICULTURAIS NA AMÉRICA LATINA E NO BRASIL ... 151 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 151 2 A FRAGILIDADE DAS POLÍTICAS MULTICULTURAIS NA AMÉRICA LATINA ............ 151 3 POLÍTICAS MULTICULTURAIS NA COLÔMBIA ...................................................................... 152 4 POLÍTICAS MULTICULTURAIS NO PERU .................................................................................. 154 5 POLÍTICAS MULTICULTURAIS NA VENEZUELA .................................................................... 156 6 POLÍTICAS MULTICULTURAIS NO MÉXICO ............................................................................ 156 7 O SURGIMENTO DAS POLÍTICAS MULTICULTURAIS NO BRASIL .................................. 157 7.1 O SISTEMA DE COTAS .................................................................................................................. 160 7.2 ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL ...................................................................................... 162 7.3 COMUNIDADES QUILOMBOLAS E TRADICIONAIS: UM CAMINHO PARA O RESPEITO À DIVERSIDADE ÉTNICA-CULTURAL ................................................. 163 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 165 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 166 IX TÓPICO 2 – DESIGUALDADES E VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO BRASIL ............................. 167 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 167 2 DENUNCIANDO AS DIFERENÇAS SOCIALMENTE CONSTRUÍDAS ENTREOS GÊNEROS ......................................................................................................................... 168 2.1 RELAÇÕES ENTRE GÊNERO NA SOCIEDADE BRASILEIRA ATUAL ............................... 170 2.1.1 A violência de gênero ............................................................................................................. 172 2.1.2 Desigualdades de gênero no mundo do trabalho .............................................................. 175 2.1.3 A falta de representação das mulheres na política brasileira ........................................... 178 2.1.4 Assédio moral e sexual e Violência de Gênero ................................................................... 181 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 187 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 188 TÓPICO 3 – AS DESIGUALDADES BRASILEIRAS EM TORNO DA RAÇA ........................... 189 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 189 2 A PERTINÊNCIA POLÍTICA E TEÓRICA DA CATEGORIA “RAÇA” NA ATUALIDADE 191 2.1 RACISMO CIENTÍFICO: UM EXEMPLO BRASILEIRO EM NINA RODRIGUES (1862-1906) ................................................................................................................ 193 2.2 GILBERTO FREYRE (1900-1987), A MISCIGENAÇÃO E A DEMOCRACIA RACIAL ........ 197 2.3 CRÍTICAS À IDEIA DE “DEMOCRACIA RACIAL” E OS ESTUDOS RACIAIS BRASILEIROS ................................................................................................................................... 201 3 RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NA SOCIEDADE BRASILEIRA ATUAL .............................. 203 3.1 RAÇA E POBREZA ......................................................................................................................... 204 3.2 A VIOLÊNCIA .................................................................................................................................. 205 3.3 MOVIMENTO NEGRO E RAÇA .................................................................................................. 208 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 209 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 214 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 215 REFERÊNCIAS ......................................................................................................................................... 216 X 1 UNIDADE 1 PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS Esta unidade tem por objetivos: • destacar o conceito de identidade, problematizando sua história e desen- volvimento; • discutir o conceito de identidade no mundo atual, suas tensões e fronteiras simbólicas; • apontar a centralidade da cultura, da Teoria do Reconhecimento e das di- nâmicas de globalização para a produção social das identidades. Esta unidade está dividida em três tópicos. Você encontrará atividades que visam a compreensão dos conteúdos apresentados no final de cada tópico. TÓPICO 1 – A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO TÓPICO 2 – IDENTIDADE E MODERNIDADE TÓPICO 3 – IDENTIDADES NA CONTEMPORANEIDADE 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO 1 INTRODUÇÃO Aquilo que o sujeito é acompanha os acontecimentos e contextos socialmente objetivados na forma de relações sociais e de fronteiras que se deslocam constantemente. E muitas das atuais questões polêmicas ligadas às mudanças nos padrões identitários – aos níveis individuais e coletivos – estão ancoradas em afirmações nebulosas localizadas nesses passados. A identidade não é um problema somente dos modernos. Ela se apresenta como uma importante referência para indivíduos e sociedades em todos os tempos. Fronteiras são demarcações históricas que existem desde muito tempo. Porém, há uma mudança qualitativa quanto ao que se define por identidade em nossa época, que se tornou um conceito mais polissêmico e crítico. Neste tópico, vamos fazer uma jornada pela história. As relações entre diferentes culturas em períodos da antiguidade até os dias de hoje e de que maneira esses encontros promoveram identidades e diferenças. Com isso, esperamos abrir caminhos para o aprofundamento de seus conhecimentos sobre a historicidade dos conceitos. Como veremos a seguir, mesmo no passado as fronteiras não eram percebidas apenas como geográficas. Para realizar tal caracterização, discutimos a essencialização das identidades antigas, que fundamentam muitos dos atuais discursos étnicos e nacionalistas. Exemplificamos essa noção identitária com a análise da civilização greco-romana e seu “legado” para a Idade Média. Em seguida, o tópico aborda essa herança antiga sobre o essencialismo identitário e a maneira como este se desdobrou na Idade Média, especialmente com a conformação dos Estados nacionais, que não deixou de ser uma imposição identitária que pretendia integrar todo o conjunto de populações num dado território. Para isso, sugerimos uma desconstrução da nossa imagem tradicional da Idade Média como um período de servos e reis, cavaleiros, castelos, feudalismo, doenças etc. Esses fenômenos são materializações de intensos processos humanos de construção de unidade e de fronteiras. Vamos lá? UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES 4 2 O QUE É O ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO? A identidade é um tema bastante complexo em nossos dias. Mas nem sempre foi assim. As visões sobre a identidade acompanham os indivíduos e sua história em cada época. Ter uma identidade, mesmo que não nesse termo – que é um conceito recente – representava no passado “aquilo que você é”, isto é, a sua essência. Tal ideia tem gerado hoje críticas e novos modelos teóricos propostos para entender como funcionam as identidades contemporâneas, articulando identidade e diferença. Porém, como dissemos, nem sempre foi assim. Os povos antigos e da Idade Média tinham outra concepção identitária, autossuficiente, fechada em si mesma. Os outros povos não tinham uma identidade específica. Eram os diferentes: selvagens e bárbaros cujas palavras são invenção do passado. Na filosofia grega, a discussão sobre a essência ou não essência foi inaugurada por Heráclito e Parmênides, continuada por Platão, Aristóteles e seus discípulos. Segundo a visão essencialista, existe uma unidade ontológica, isto é, uma essência, uma alma única, fixa e que unifica o ser, apesar de não serem acessíveis à nossa experiência cotidiana, conforme afirmava Platão. Essas essências existem em si mesmas. Quando pensamos num sapato, por exemplo, não enxergamos a ideia de sapato. Mas, quando vemos um sapato na nossa frente, estamos experimentando um conceito materializado de sapato, mas não sua essência. A essência do sapato é imutável, existindo não nas nossas mentes, mas como modelos atemporais presentes no mundo inteligível. Para acessar tais ideias, somente através da Razão. Enquanto Ser, somos a materialidade, um traço apenas da essência do “Ser”, este eterno, imutável, perene. Vejamos a reflexão realizada por Claude Dubar: Etimologicamente, a identidade (do latim idem: o mesmo) é aquilo que permanece o mesmo ao longo do tempo. É o que Platão, a partir de Parmênides, chamava a essência do que existe (os seres, étants), aquilo que não se relaciona comsua aparência - o que se percebe pelos sentidos -, mas sua realidade “essencial” que é invisível e imutável. A essência, segundo Platão, não se conhece pelos sentidos, mas pelo espírito (o noos) que «vê» as Ideias e as reconhece (teoria da “reminiscência”). Podemos lembrar o mito da caverna: os humanos vivem em meio às sombras, às aparências, às miragens: se quiserem ver (em grego theorein), daí para conhecer o Real, eles devem sair da caverna, subir até o alto da montanha e contemplar o céu das ideias (DUBAR, 2010, p. 336). Neste sentido, a filosofia socrático-platônica inaugurou um dualismo metafísico entre o corpo e a alma. Ele, neste sentido, formula uma metafísica em torno do Ser. Na sua argumentação, o corpo ligava-se aos sentimentos, àquilo que pode afastar o ser de uma existência ideal. Tal existência só poderia ser fundamentada na alma, que é a própria Razão. Como veremos, tal tradição filosófica foi incorporada à tradição cristã desde os primeiros anos da nova religião monoteísta. TÓPICO 1 | A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO 5 FIGURA 1 – IDENTIDADE: SOMOS O QUE APARENTAMOS? FONTE: Disponível em: <http://4.bp.blogspot.com/-uqLbwHO4-n4/TjRSfJlO-NI/ AAAAAAAAAFs/0sZ4LILb0dM/s1600/carteirra_identidade.jpg>. Acesso em: 13 jun. 2017. Para as identidades clássicas (aqui em oposição às contemporâneas), não era tão claro para nós que a construção social da diferença envolve a conformação de oposições binárias: podem indicar exemplos de binarismos em situações como homem-mulher, masculino-feminino, escuridão-luz, quente-frio, bem-mal, cru-cozido, ou civilizado- bárbaro, superior-inferior, nós-eles, negro-branco etc. (WOODWARD, 2015). O que é esse binarismo? Trata-se de um modo de classificação simbólico do mundo e da experiência individual e social a partir de dois polos opostos e desconectados entre si. Assim, no binarismo de gênero, por exemplo, ser homem e ser mulher são situações que nada têm a ver entre si. Estrutura, assim, uma divisão, bem como hierarquias e papéis distintos. Se o doce não é o salgado, então, o doce existe por si próprio. Mas a própria definição e ideia de doce só pode ser construída em torno de outros conceitos, como amargo, salgado etc. Por mais que os discursos identitários essencialistas invisibilizem este fato, está claro para todos. Para povos antigos e mesmo contemporâneos, estabelece-se uma visão de senso comum em cada um desses elementos que em oposição são independentes. A diferença era concebida como uma entidade independente, existindo independente de outras identidades (WOODWARD, 2015). Neste sentido, o essencialismo identitário representaria uma ideia de que a identidade de uma pessoa indicaria “aquilo que se é”, dando pouca ou nenhuma ênfase ao fato de que “é na relação com o outro que me identifico como o não outro” (OLIVEIRA, 2006, p. 24). E é exatamente essa condição relacional que o essencialismo nega ou invisibiliza. Para compreender a dimensão de si mesmo é preciso ter um outro parâmetro, um outro ser humano. Então, o que podemos entender por essencialismo? Essencialismo refere-se à necessidade de estabilizar determinados grupos sociais enquanto sujeitos políticos. Ou seja, o processo de essencialização procura garantir a legitimidade da representação UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES 6 política de determinado grupo estabelecendo uma fronteira nítida que torne possível distinguir seus membros na sociedade como um todo. Esse processo engendra um grave problema: leva ao ‘congelamento’ e à descontextualização de identidades e diferenças como se fossem entidades fixas, visto que impõe a partir da esfera política uma visão única do que as distingue. O essencialismo dá margem, portanto, ao surgimento de aspirações de cunho totalitário para fins de estabilização política, pois tende a eliminar a partir da própria esfera pública qualquer outra interpretação possível do que caracteriza a diferença ou a identidade em questão (TOSOLD, 2010, p. 169). Como você pode perceber, na lógica das identidades essenciais existiria um núcleo que seja “comum” e “fixo”. Este centro orientaria o indivíduo para e na vida social. E um dos fenômenos sociais corriqueiros em torno da identidade é que se tende a perceber estas identidades como “naturais”. É como se sempre existissem. E quando essa situação se torna um problema? A partir da ampliação das relações de interdependência social entre as diversas partes do mundo, o controle identitário baseado em lealdades tradicionais como raça, nação, gênero torna-se mais frágil. Na velocidade das interações atuais, esse abalo pode desconcertar os sujeitos. Muitos optam por radicalizar seu discurso em torno de fundamentalistas religiosos, nacionais, étnicos, capitalistas etc. Numa visão radical do essencialismo identitário, essas identidades “não contemporâneas com o seu tempo” fariam “mal aos corpos dos que as carregam” (BURITY, 1997, p. 145). Apesar disso, como aponta Stuart Hall (2006), essas versões serviram para equilibrar e estabilizar o mundo social, apontando “quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social” (p. 7). Conforme o autor: [...] A lógica do discurso identitário assume um sujeito estável, isto é, temos assumido que há algo que nós podemos chamar de nossa identidade, o que, em um mundo que muda rapidamente, tem a grande vantagem de permanecer imóvel. Identidades são uma forma de garantia de que o mundo não está se desmoronando tão rapidamente quanto algumas vezes parece. É um tipo de ponto fixo do pensamento e do ser, uma base de ação, um ponto parado no mundo em transformação. Este é o tipo de garantia última que a identidade parece nos prover (HALL, 2016, p. 317). Assim, ao contrário do que afirmam as identidades tradicionais, clássicas, a identidade não é algo que se tem, mas é o efeito precipitado (logo, instável) de atos de identificação social. Quer dizer, os processos de construção identitária são marcados pela ambiguidade fundamental dos próprios fenômenos identitários. Todas as identidades seriam contingentes às condições históricas, sociais, culturais, políticas (BURITY, 1997, p. 139-140). Neste sentido, essa visão essencialista estimula nos seus adeptos a ilusão de um conjunto de características autênticas e que são partilhadas e experimentadas por um grupo inteiro. É com este caráter que falamos, por exemplo, em identidade brasileira. Quando nos referimos a essa identidade, todas as diferenças internas do país são anuladas em torno de uma unidade. E nós sabemos que cada região brasileira possui características sociais e culturais muito distintas, que tornam complexo pensar uma unidade! TÓPICO 1 | A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO 7 Como localizar na história o aparecimento de identidades essencialistas, como a identidade étnica ou nacional? Essa discussão sobre essencialismo na identidade está muito abstrata para você? Vamos exemplificar com o caso dos gregos antigos e da identidade na Idade Média. Estes períodos são a base de duas importantes identidades essencialistas: a étnica e a nacional. 3 OS GREGOS E UM OLHAR SOBRE A IDENTIDADE ÉTNICA Como vimos, é óbvia a associação entre identidade e essência-unidade no pensamento grego. Vamos agora adentrar na história desse povo. Esse exercício, uma pessoa de hoje pensar sobre gregos que viveram há 2.400 anos, é complicado. Corre-se o risco de muitas simplificações. Precisamos suspender algumas noções básicas de viver em sociedade nos dias de hoje. Ou ser um estudioso familiarizado com o pensamento mítico, filosófico dos gregos e sua vinculação a um sentido da vida comunitária nas cidades-estados, da estreita relação entre vida pública, palavra falada e espaço público. Uma brevíssima história da Grécia antiga A Gréciaantiga nunca chegou a formar um Estado unificado. Costuma- se dividir a História grega antiga segundo alguns períodos: Pré-homérico (século XX-XII a.C.); Homérico (séculos XII-VIII a.C.); Arcaico (séculos VIII- VI a.C.); Período Clássico (V-IV a.C.). O primeiro conjunto de populações indicadas como gregos antigos ocupou a região da Península Balcânica por volta de 4000 a.C. Essas populações pioneiras eram originárias do Oriente Próximo. Como o terreno era acidentado, pouco fértil e com verões e invernos rigorosos, esses grupos deslocavam-se constantemente pelo território, ocupando ilhas e regiões da Ásia, como Jónia (Turquia), e da Europa. FIGURA 2 – MAPA DO IMPÉRIO DE ALEXANDRE, O GRANDE FONTE: Disponível em: <http://2.bp.blogspot.com/-ddiWsqMFVPQ/VQDMeqa9GzI/ AAAAAAAADYY/RIkQqqFIzpE/s1600/o%2Bimp%C3%A9rio%2Bde%2Balexandre%2Bo%2 Bgrande.JPG>. Acesso em: 13 jun. 2017. UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES 8 De maneira geral, o período clássico é, também, a “clássica” versão que conhecemos, em torno da Polis, do pensamento filosófico, da isonomia, da democracia ateniense (dependente da escravidão), cujo ápice deu-se no século IV a.C. No século V a.C. ocorreram as Guerras Médicas, quando os gregos se uniram para conter as tropas persas que procuravam ocupar os territórios helênicos. Com o declínio das cidades-estados gregas, surge Alexandre, o Grande, da Macedônia, que ficou famoso por suas vastas conquistas territoriais, espalhando alguns traços da unidade grega para estas regiões, fundando cidades etc. Alexandre foi proclamado Rei da Macedônia e seus domínios em 336 a.C. FONTE: Funari (2002) e Le Roux (2010) Então, como pensar a experiência histórica dos gregos antigos em termos de identidade? Sugerimos observar em termos de grupo étnico. Havia condições de uma identificação em termos de ancestralidade, de religião, de estrutura mítica, de costumes, de língua, conforme sugere o historiador Ciro Flamarion Cardoso (2002). E quais foram essas identificações comuns? Para Claude Mossé (2004, p. 7), a civilização grega é, “antes de mais nada, civilização da pólis, civilização política”. E conforme Jean-Pierre Vernant (2002), a pólis estimulou o desenvolvimento de novas mentalidades, especialmente entre os atenienses e suas colônias. Esta resultou em transformações materiais que foram incorporadas à vida: a predominância da palavra no debate público, a publicidade das suas manifestações políticas e culturais e uma ideia de interesse comum entre os seus habitantes. Segundo Leister (2006), os gregos destacam-se pela laicização da concepção do mundo operada na pólis. O universo dos deuses vai cedendo lugar às ações humanas e o destino dos homens não mais é definido pelos deuses, mas sim pela lei. Os gregos desse período tornam os mitos em explicações sociais e filosóficas, não relacionadas aos deuses e aos destinos das pessoas. Neste contexto, o privilégio da cidadania era obtido por nascimento, e o grego obtinha a cidadania da pólis a que pertenciam os seus pais: para “a identidade helênica”, a cidade-estado grega era a única possibilidade de civilização: “fora dela, só a barbárie” (LEISTER, 2006, p. 18). O alemão Werner Jaeger (1986), em sua obra clássica “Paideia: a formação do homem grego”, afirma que os gregos foram originais no sentido de localizar o problema do homem mítico, que seria fundamental na epopeia, na tragédia, na poesia, para depois se ligar a uma preocupação filosófica, desdobrando-se numa concepção inédita de homem. Este possui uma essência em meio ao mundo e suas leis gerais. Tal essência não deve ser confundida com individualidade. É, antes, como dono de uma Razão. TÓPICO 1 | A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO 9 O que ele quer dizer com “Paideia”? Ele implica a ideia de uma formação moral, religiosa, cívica comum reproduzida através da educação grega. E isso quer dizer o estudo e o conhecimento em termos da poesia, filosofia, retórica, matemática, música, astronomia, idioma, elementos essenciais da “alma” do cidadão grego do período a partir do século V a.C. Este conjunto era ensinado através das Academias ou por professores particulares, por filósofos nas ruas, pelas peças teatrais. Era uma moral do dia a dia, a fim de orientar o cidadão ao bem comum e aos valores gregos. Para Jaeger, havia uma unidade e um núcleo comum de ideias entre os gregos (JAEGER, 1986). Temos, então, uma civilização excepcional para aquela época. Tal conjunto de valores era compartilhado entre os cidadãos das poleis. Escravos e estrangeiros não eram obrigados ou educados em termos gregos, com exceções. Tal educação de valores tinha início na infância, tanto para homens quanto para mulheres, apesar das distinções nas formas de ensinar e no objetivo destes conhecimentos. Vale dizer que a sociedade grega era uma sociedade de cidadãos, mas a plenitude cidadã era reservada somente aos homens. FIGURA 3 – A IMPORTÂNCIA DA PÓLIS FONTE: Disponível em: <http://www.historiadigital.org/artigos/socrates-na-construcao-da- democracia-grega/>. Acesso em: 13 jun. 2017. Então, pensar os gregos antigos implica pensar em isolamento social? Eram, então, os gregos antigos uma sociedade fechada em si mesma em relação ao mundo? Nada mais longe da verdade. Os povos gregos (também chamados de helênicos) mantiveram relações com o Egito, a Síria, o Irã, regiões da Turquia, UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES 10 antes mesmo dos períodos Arcaico e Clássico. Havia interação e laços comerciais e culturais entre os povos do Mar Mediterrâneo. Havia, sim, um sentimento de “ser grego” compartilhado nos modos de vida e nas instituições sociais. A construção das identidades gregas na Antiguidade não foi um fenômeno estático. A percepção dos gregos sobre os outros povos foi se alterando. Seja pela sua ideia de Paideia comum, pela língua ou pelas guerras com povos invasores. Para o historiador François Hartog (2004), as Guerras Médicas foram centrais na formação do bárbaro (bárbaroi) em oposição ao grego (héllenes). A partir deste momento, a diferença entre gregos e não gregos torna-se política. O bárbaro é aquele que não compartilha uma pólis ou laços comuns em torno da educação, da língua e de costumes comuns. Antes dessas guerras contra persas, havia, entre os séculos VII e VI a.C., uma fascinação pelos povos como egípcios e localizados no Oriente Próximo (HALL, 2001). A identidade helênica vinha sendo construída de “forma agregativa por meio da percepção de similaridades com grupos de pares” (HALL, 2001, p. 218-219). Ao longo deste período, os bárbaros eram aqueles que não falavam grego. Que eram incompreensíveis, portanto. Mas a partir do século VI a.C. houve mudanças cruciais para a cristalização da identidade grega. Estes bárbaros, selvagens, “outros”, representavam demarcações simbólicas negativas para a definição da identidade grega. Aos poucos foi se constituindo uma identidade centrada no discurso da defesa da autonomia, da liberdade e da lei como valores gregos. Este é o período de consolidação de oposições a grupos externos de bárbaros, especialmente em função das Guerras Médicas contra os persas. Nesse jogo de alteridades, “os gregos e atenienses se tornaram plenamente gregos, enquanto os bárbaros permaneceram bárbaros” (HARTOG, 2004, p. 95). E num período de decadência das cidades-estados gregas, especialmente de Atenas, surgiu um invasor ao norte de suas terras: a Macedônia, a partir do século IV a.C. Depois das conquistas territoriais de Felipe II e de seu filho e sucessor, Alexandre, O Grande, conformaram condições para a formação de um novo cenário político, econômico e cultural, dominando aquilo que era a Grécia antiga. De sua expansão, estabelece-se outro momento para a identidade grega. Durante o período do Império Helenístico, estiveramsob domínios gregos e macedônicos parte do norte da África e das extensões da Ásia. Em cada terra conquistada eram criadas colônias gregas, cujo modelo de educação era aquilo que dava sentido a uma experiência de ser grego. Mesmo que este “grego” more numa região distante da Ásia. Assim, como pensar a experiência grega em termos de identidade étnica? O grande autor clássico dos estudos sobre etnia é Frederik Barth (1998), em sua obra “Grupos étnicos e suas fronteiras: a organização da cultura das diferenças culturais”. A partir de sua reflexão, pode-se apontar um grupo étnico como um modelo de organização social e de fixar uma identidade relacional em termos de diferença. A continuidade de um grupo étnico não está ligada à manutenção de TÓPICO 1 | A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO 11 uma cultura, tradição antiga. Os traços culturais podem mudar. Depende, sim, da delimitação de limites entre os grupos e de reforçar laços de solidariedade. “A etnicidade é um conceito de organização social que nos permite descrever as fronteiras e as relações dos grupos sociais em termos de contrastes altamente seletivos, que são utilizados de forma emblemática para organizar as identidades e as interações” (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998, p. 183). É nessa relação que se formam os sentidos do “nós” e os “outros”, os de “dentro” e de “fora”. É um jogo contraditório, de confronto, diferenciação e contraste. Mas, também, um jogo de dominação e subordinação. A etnicidade depende de relações e de contrastes para delimitar fronteiras. Dependendo de contextos e relações de força, ele se mostra nas relações sociais. O foco então se torna a fronteira étnica e as maneiras de pertencer ou excluir, porque a identidade étnica implica uma série de restrições e prescrições que governam as situações de contato. Na visão de Barth (1998), cada indivíduo participa, consciente ou não, na construção da etnicidade do seu grupo. Na medida em que os agentes se valem da identidade étnica para classificar a si próprios e os outros para propósitos de interação, eles formam grupos étnicos em seu sentido de organização. É na medida em que os indivíduos usam essas categorias para organizarem-se a si e aos outros que eles constituem grupos étnicos. Nesse contexto, a cultura não desaparece da análise, mas ela só tem importância na medida em que os atores lhe atribuem importância, não valendo, portanto, enquanto dados objetivos na definição do fenômeno (ARRUTI, s.d., p. 205). Neste sentido, numa tentativa de sintetizar e fechar esta discussão, John Hall (2001, p. 216) diz que um grupo étnico se define “não pela soma de diferenças objetivamente observáveis”, mas por apenas “aquelas diferenças que os membros do grupo, eles próprios, percebem como diferenças significantes”. Do ponto de vista da experiência grega, então, temos as poleis, as guerras e a noção de Paideia e não versões biológicas de identidade. Tratou-se de uma experiência de vida social e comunitária. 4 RELAÇÕES ENTRE IMPÉRIO ROMANO, IDADE MÉDIA E EUROPA: A IDENTIDADE NACIONAL Como aponta Pedro Paulo Funari (2000, p. 77), Roma designa “uma cidade antiga e todo um império”, um imenso conglomerado de terras que, no seu auge, se estendia da Grã-Bretanha ao rio Eufrates, do Mar do Norte ao Egito. Sobre qual Roma tratamos? Pela complexidade de sua história, aqui analisamos as identidades no tempo do Império Romano. UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES 12 Os romanos consolidaram na antiguidade um grande e vasto império ao longo de sua existência, subordinando aos seus domínios diversos povos, entre eles, os próprios gregos. E a extensão das terras romanas na Antiguidade incluía uma variedade de línguas, religiões e tradições distintas. O processo lento e complexo da produção do social da identidade romana teve seu ápice na expansão imperial e no culto à figura do imperador romano. Conforme o romano Cícero, em “Da República”, a glória de Roma relaciona-se à observância dos costumes ancestrais, de modelos de arte, arquitetura, religião e leis. Como ponto de partida, a construção de “uma identidade romana” ao modo que os gregos estabeleceram como padrão não foi uma preocupação do império. O historiador Norberto Guarinello (2010) diz que o Império Romano não foi o resultado de embates identitários. Nem que sua história se explica pelo conflito ou acomodação de identidades. Brevíssima história de Roma antiga A história da Roma antiga, que inclui partes da África, Europa e Ásia, liga-se à fundação da pequena Roma, surgida no século VIII a.C. Todos lembramos da lenda de Rômulo e Remo, irmãos que num primeiro momento foram criados por uma loba até serem encontrados. Segundo esta lenda, citada por Tito Lívio, Eneias, príncipe derrotado na Guerra de Troia, estabeleceu-se na região do Lácio, onde casou-se com uma herdeira latina, Reia Sílvia. Rômulo e Remo eram seus filhos numa relação com o deus Marte e por isso foram atirados no rio Tibre. Foram encontrados e amamentados por uma loba e, depois, criados por camponeses. E, quando adultos, os dois irmãos voltaram a Alba Longa, depuseram Amúlio e em seguida fundaram Roma, em 753 a.C. Conforme Paulo Funari (2000, p. 77), “Roma designa uma cidade antiga e todo um império, um imenso conglomerado de terras que, no seu auge, se estendia da Grã-Bretanha ao rio Eufrates, do Mar do Norte ao Egito”. Roma e suas extensões conheceram três formas de organização política, que influenciaram a própria estrutura social e a vida cotidiana das pessoas. Costuma-se dividir sua história em: Monarquia (753 a.C. - 509 a.C.), República (509 a.C. - 27 a.C.) e Império. O Império Romano nasceu oficialmente em 27 a.C. e terminou – dependendo do ponto de vista – com a conquista de Roma pelos godos, chefiados por Alarico, em 410 d.C., ou em 476 d.C., data da queda do último imperador do Ocidente, em consequência dos repetidos assaltos dos povos germânicos (LE ROUX, 2010). TÓPICO 1 | A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO 13 FIGURA 4 – MÁXIMA EXTENSÃO DO IMPÉRIO ROMANO – III a.C. FONTE: Disponível em <https://s-media-cache-ak0.pinimg.com/originals/e3/9d/fd/ e39dfd2db2ce90db3aa264144158c10c.jpg>. Acesso em: 13 jun. 2017. FONTE: Funari (2002) e Le Roux (2010) Havia um sistema de valores compartilhados, que favoreceu a integração imperial? Na leitura de Patrick Le Roux (2010), os territórios dominados pelo império experimentaram formas de administração hierárquica estruturada em torno de funcionários e de leis da autoridade central. Elas visavam “controlar, verificar, equilibrar e repartir” as atividades locais. Além disso, existe uma visão clássica em torno de uma comunidade cultural mediterrânea cuja potência criativa era a civilização romana. Isso levaria a destacar um processo de assimilação da cultura romana pelos povos bárbaros dominados, chamada de “romanização”, como apresentada. Esse termo está ligado a noções de desenvolvimento, aculturação e à forma como os nativos adotaram e assimilaram a cultura “romana”. A romanização tradicionalmente observada pela História defende a ideia de difusão da cultura romana para regiões menos urbanas, mais “bárbaras”. Tratava-se, em muitos casos, de uma “missão civilizatória romana”. Essa crítica entende que: A integração propiciada pelo Império não representou, assim, um consenso, nem a paz geral que muitas vezes se propugna, mas um sistema de exploração contra o qual as alternativas eram escassas, dada a imensa dispersão geográfica e cultural dos insatisfeitos, dada a falta de alternativas viáveis ao Império (GUARINELLO, 2010, p. 127). UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES 14 Agora, havia uma delimitação cultural que reforçou a elitização da ordem romana por meio de duas fronteiras: a cultura e língua gregae a língua latina. Não havia, necessariamente, a imposição dos modos de vida dos romanos ou gregos em suas colônias. Estas eram restritas aos ‘nativos’ gregos e romanos que viviam nessas terras coloniais. FIGURA 5 – CASAL ROMANO FONTE: Disponível em: <http://www.institutoandreluiz.org/1_casal_romano.JPG>. Acesso em: 13 jun. 2017. A identidade romana, assim, ligava-se muito à própria história de Roma e sua elite militar e política. Pode-se dizer que entre estes indivíduos e famílias nobres havia uma ligação identitária mais consistente. Norberto Guarinello (2010) defende que a identidade romana não era uma imposição, mas sim, uma característica geral de comportamentos que deveriam ser compartilhados entre os súditos. Enquanto se é grego por ascendência e descendência, no caso romano, é possível se tornar um, através da Lei e do Direito. Tecendo comparação entre identidade grega e romana, a cidadania helênica era bastante restrita aos habitantes de fora, nos “confins do mundo”, ao passo que a romana era muito mais ampla e flexível do que a ateniense. Havia possibilidades de ascensão social diferentes entre gregos e romanos. Ser romano era preocupação para aqueles que tinham possibilidades de pertencer à elite romana. Isso não quer dizer que os romanos relativizavam as culturas de seus povos dominados ou não se sentiam superiores. Pelo contrário, queremos dizer apenas que a identidade romana era um assunto restrito à elite econômica, política, militar e “sagrada”, ou alguns poucos segmentos mais ricos da sociedade romana. TÓPICO 1 | A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO 15 E o que temos de relação entre a identidade nacional e a história do Império Romano? É a partir da Idade Média e com a reconfiguração do Império Romano após a tradicional “Queda de Roma” para os bárbaros que esta identidade restrita e fundamentada em memória e direito vai dar contornos à identidade nacional. Ela fundamenta-se no pertencimento a um território imperial, a uma língua (latim), ao conjunto de leis e direitos herdados do Império Romano. Segundo a tradição historiográfica, a Idade Média tem início com a queda do Império Romano tomado pelos “bárbaros”. O que foram essas invasões bárbaras? Uma guerra do tipo Game of Thrones pelo poder real? Um processo complexo de fatores interligados? Vamos investigar esta última alternativa. Devido a complicadores políticos, demográficos, sociais e militares, o poder imperial ligado a Roma foi, em 395 d.C., dividido em duas partes: o Império Romano do Ocidente e o Império Romano do Oriente, cuja capital era Bizâncio, atual Constantinopla (Turquia). Os estudos, pesquisas e discursos que apontam os bárbaros deram ênfase aos aspectos externos, negligenciando os aspectos e a desorganização interna. Essa desestruturação do poder imperial é lida a partir da ideia do “Declínio do Império Romano” (BARROS, 2009). UNI O que foi viver na Idade Média? As pessoas que viveram essa época possuíam um imaginário social bastante fértil numa relação muito próxima de situações do universo sagrado e profano. Além disso, as populações medievais não registravam o tempo como nós fazemos hoje. Este tinha um sentido biológico e cíclico para a vida. É por isso que as celebrações religiosas ou não – como a celebração do ano-novo – ressaltavam um ciclo eterno e a repetição de eventos. Resultado de um processo social de caracterização, a Idade Média foi interpretada na Idade Moderna como atraso, crises e trevas. A visão negativa sobre a Idade Média teve início a partir do século XV, no período do Renascimento. Para muitos, a Idade Média foi época sombria, “um tempo oco, caracterizado pela ausência da razão e ausência do gosto” (LE GOFF, 2005, p. 59). Porém, as grandes mudanças nas mentalidades tiveram início na Idade Média. O próprio Renascimento não foi um acontecimento, mas um longo processo iniciado no século XII. De uma maneira geral, apontamos a memória do Império Romano, o cristianismo e a conversão dos povos bárbaros e combate aos infiéis, e esse imaginário social repleto de relações entre o sagrado e o profano alimentado por uma metafísica cristã como o “ponto de partida”. Aos poucos, tais tradições são ressignificadas em torno da ideia de Ocidente e de Europa. Houve uma ruptura profunda entre a Antiguidade e a Idade Média naqueles anos? Não como aprendemos na escola, onde Roma foi tomada por bárbaros e surgiu uma nova era. O que ocorre no período de transição da Antiguidade para a Idade Média é uma renovação, o surgimento de uma nova cultura a partir da fusão de valores clássicos com valores cristãos. UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES 16 E quem eram esses bárbaros invasores? Pode-se indicar os godos (visigodos e ostrogodos), vândalos, os francos, os suevos, os burgúndios, os anglos, os saxões, os alamanos, dentre outros. Dentre revoltas, golpes políticos, conflitos políticos, o poder de Roma diminuiu. FIGURA 6 – BÁRBAROS “INVASORES” FONTE: Disponível em: <https://idademedia.wordpress.com/2012/03/12/povos-barbaros- um-dos-componentes-que-a-igreja-civilizou-na-idade-media/>. Acesso em: 13 jun. 2017. As fronteiras não se expandem mais. Pelo contrário, fragmentam-se, por um momento. Depois, reunificam-se em movimentos diversos desses chamados povos bárbaros. Em especial, os francos, que desde o século V foram expandindo seus domínios. Com conversão de Clóvis ao cristianismo, poder político e poder religioso passam a confundir-se. [...] o golpe de mestre de Clóvis foi o de se converter, com seu povo, não ao arianismo, como os demais reis bárbaros, mas ao catolicismo. Com isto pôde jogar a cartada religiosa e beneficiar-se do apoio, senão do papado ainda fraco, ao menos do poder da hierarquia católica e do não menos poderoso monasticismo (LE GOFF, 2005, p. 32). Nestes primeiros séculos de Idade Média, o Império Romano foi reinventado, especialmente com a coroação de Carlos Magno no século VIII. Segundo Hobsbawm e Ranger (1998), a importância desse imperador para a ideia de uma identidade europeia é central. Não só por restaurar e manipular a memória e instituições do Império Romano, mas, principalmente, pela sua imagem de “defensor” da identidade europeia-cristã contra os “infiéis” do Islã. Foi com Carlos Magno, coroado imperador do Império Carolíngio na noite de Natal de 800 d.C., que se começou o rechaço aos seguidores do Islã que ocupavam e expandiam sua fé para a Europa. Durante o reinado de Carlos Magno, a expansão territorial e a cristianização dos povos compunham dois grandes objetivos seus. TÓPICO 1 | A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO 17 DICAS Sugestões de filmes sobre a Idade Média: “O Incrível Exército de Brancaleone”, direção de Mario Monicelli (1965). O filme acompanha a história do cavaleiro Brancaleone, que lidera um pequeno grupo de pobres em busca da “Terra Santa”. O filme é uma comédia que retrata a Baixa Idade Média e seus temas, como as cruzadas e a peste negra. “Cruzada”, com direção de Ridley Scott (2005). O filme acompanha um jovem ferreiro francês que se desloca para a Terra Santa e experimenta o conflito entre cristãos e muçulmanos em torno da conquista de Jerusalém, que termina com a retomada da cidade pelos seguidores do Islã. Por que nos interessa ligar o aparecimento da identidade nacional ao Império Romano e à Idade Média? De acordo com José Glaydson Silva: Justificador dos impérios modernos, o Império Romano ajuda a construir os pertencimentos, as identidades, as nacionalidades, em universo de empréstimos simbólicos, sentidos, construídos em interpretações falseadas, em muitas tentativas das nações europeias de estabelecer passados apropriados (SILVA, 2005, p. 43). É com o declínio dos impérios que se abrigavam na memória da grandeza romana que foram surgindo pequenosreinos, que logo mais se tornaram Estados. Das instituições feudais surgem identificações baseadas numa definição de território. O que é a identidade nacional? Para Anthony Smith (1997), a identidade nacional é a manifestação da consciência de pertencimento a uma comunidade política que estrutura a vida nacional e individual através de instituições que medeiam os direitos e deveres de seus membros. Essa consciência seria uma forma de memória elementar para crescimento de uma identidade. E espaço geográfico também no sentido de territorialização. A identidade nacional demanda uma base territorial em que os seus membros possam identificar-se, relacionar-se, isto é, pertencer. Dela foram derivadas noções de cidadania, nação e pátria. Segundo Smith (1997), possuir uma identidade e uma memória nacional é resultado de um processo que se opera em múltiplos espaços, do Estado ao universo familiar, sendo reafirmados, aprendidos e reproduzidos em eventos, rituais, instituições presentes no cotidiano dessas comunidades. Neste conjunto de relações sociais de linguagem e de poder, os membros da comunidade são estimulados à autoidentificação – pacífica ou não – voltada a delimitar a diferença e a fronteira do grupo. Para Stuart Hall (2006), as identidades nacionais são compostas por símbolos e representações, indicando modos de construir sentidos que influenciam e organizam tanto as nossas ações quanto a concepção que nós temos de nós. Elas UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES 18 contribuíram para forjar sistemas nacionais e universais de serviços e políticas, conformando uma “cultura homogênea”, mas permeada pela ambivalência. [...] a noção de cultura nacional não é algo com um impulso moderno, ao contrário, amparado ambiguamente entre o passado, o presente e o futuro, retornando, sempre que for necessário, a passados inventados. Não importa quão diferentes sejam seus integrantes, uma cultura nacional sempre buscará unificá-los, integrá-los numa identidade cultural. Porém, esse movimento tem como efeito anulação e subordinação da diferença cultural interna? (HALL, 2006, p. 59). E como articular as identidades nacionais e suas memórias, símbolos, bandeiras, hinos, heróis a esse momento medieval? São bastante diversificados os enfoques e entradas possíveis no tema. Aqui se discutem duas categorias que podem contribuir na busca de uma reflexão possível. A primeira de Eric Hobsbawm e sua noção de “invenção das tradições”. A outra é de Benedict Anderson e seu conceito de “comunidade política imaginada”. O conceito de “tradição inventada” é utilizado num sentido amplo, incluindo “tradições” realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais difícil de localizar num período limitado e determinado de tempo. Essa tradição inventada tem como “combustível” de seu movimento um conjunto de práticas reguladas por regras escritas ou não de natureza ritual ou simbólica. O objetivo desse conjunto de sentidos é inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. São tradições que buscam apresentar continuidade artificial em relação ao passado através da repetição (HOBSBAWM; RANGER, 1998). [...] por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza natural ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado (HOBSBAWM; RANGER, 1997, p. 9). Elas são, em essência, conservadoras, contrárias a inovações. Por isso Hobsbawm e Ranger distinguem-nas dos costumes e convenções que, por sua vez, estão ligados a tradições. O passado está sempre presente na forma de símbolos, linguagens, rituais, entre outros. Consideramos que a invenção de tradições é essencialmente um processo de formalização e ritualização, caracterizado por referir-se ao passado, mesmo que apenas pela imposição da repetição (p. 14). [...] toda tradição inventada, na medida do possível, utiliza a história como legitimadora das ações e como cimento da coesão grupal (HOBSBAWM; RANGER, 1997, p. 21). O que queremos apontar com esta reflexão? De acordo com Hobsbawm e Ranger, toda tradição surgiu em algum lugar do passado, sendo possível de ser alterada em algum futuro. TÓPICO 1 | A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO 19 As nações são entidades historicamente novas fingindo terem existido durante muito tempo. É inevitável que a versão nacionalista de sua História consista de anacronismo, omissão, descontextualização e, em casos extremos, mentiras. Em um grau menor, isso é verdade para todas as formas de História de identidade, antigas ou recentes (HOBSBAWM; RANGER, 1998, p. 285). Se a Idade Média é um desses passados, hoje imagens dela são manipuladas discursiva e politicamente. Das dinâmicas do mundo medieval foram “inventadas” e “imaginadas” as bases de uma identidade essencialista muito relevante nos dias atuais, apesar de sua crise. A identidade nacional difundiu-se junto com os domínios e colonialismo europeu. Nós brasileiros estamos marcados por uma identidade nacional que se diz fixa, cuja origem está na ocupação portuguesa em 1500. A identidade nacional reivindica uma unidade de língua e cultura. Essas características demandam, para sua realização, um esforço coletivo de imaginação razoavelmente coordenada e reproduzida em torno de um território e seus membros. Benedict Anderson (1989) propôs a definição de nação como uma comunidade política imaginada como implicitamente limitada e soberana. É imaginada porque nem todos os membros desse grupo podem se conhecer e reconhecer, apesar de que estejam mentalmente configurados. É limitada porque implica limites e fronteiras. É soberana porque fundamentada no direito iluminista. E é imaginada porque sempre definida em termos de comunidade. “O que proponho é que o nacionalismo deve ser compreendido pondo-o lado a lado, não com ideologias políticas abraçadas conscientemente, mas com os sistemas culturais amplos que o precederam, a partir dos quais – bem como contra os quais – passaram a existir” (ANDERSON, 1989, p. 20). Neste sentido, a própria noção de Ocidente e de Europa é problemática. Segundo Peter Johann Mainka (2011, p. 60), é difícil delimitar as fronteiras europeias. Isto porque existem situações que tornam complexa essa definição. Ela surge, porém, definindo-se em relação a um outro, os povos “bárbaros” da Ásia. Podemos indicar a Europa como um continente cujas fronteiras são móveis, deslocadas em inúmeros momentos. Já no passado, a palavra “Europa” tinha um significado ambíguo. Ora era percebido como os povos da Grécia antiga, ora era vista como uma referência num sentido moderno. Assim, segundo Mainka, essa demarcação é “imprecisa” (2011, p. 58). Inclusive continua até os dias de hoje, confundida com a União Europeia. Para Hobsbawm e Ranger, a história europeia é uma “história curiosa”, definida mais pelas “situações políticas do que pelas diferenças culturais, onde a história pode ser lida como um processo”, uma construção intelectual (1998, p. 233-234). A explicação sobre o que é a Europa teria bases políticas. Até mesmo fronteiras convencionais dos livros didáticos – como os Montes Urais – resultam de decisões políticas e demarcações intelectuais. Segundo o autor, a definição conceitual e geográfica da Europa é mutável e flexível, assim como os contornos de sua identidade, ora grega, ora romana, ora europeia. Assim, ele utiliza a metáfora do “Clube Europa”, onde o acessoé controlado. UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES 20 Sob esse ponto de vista, categorias como asiático, leste, Oriente falam mais sobre a Europa do que os povos que supostamente classificam e enquadram (HOBSBAWM; RANGER, 1998). Na leitura de Hobsbawm e Ranger, o autor aponta para obras antigas e modernas escritas por viajantes e conquistadores visando descrever os outros povos em termos de categorias europeias, num “denominador comum” ao intelecto europeu. Estas estariam em oposição à identidade europeia. Em geral, esse antagonismo estava dirigido para o Oriente e o Islã. Vejamos o que escreve Edward Said no seu livro “Orientalismo”. Novamente, entramos no terreno das construções sociais, científicas e intelectuais hegemonicamente europeias que “inventam” o Oriente. O esforço dos envolvidos nessas construções era o de “traduzir” para as mentes e costumes europeus aquilo que foi inventado, configurado e reproduzido como sendo o Oriente. Neste sentido, pouco se trata de questões geográficas, mas, antes de idealização, tornando o Oriente uma criação do Ocidente. Tal concepção de Oriente – que Said encontra em obras da literatura, trabalhos científicos, relatos de viajantes e aventureiros – estimula uma visão exótica, misteriosa, erótica e perigosa do Oriente. Mas, para o autor, ao debruçar-se sobre tal construção social amparada pela linguagem, é possível encontrar mais sobre a identidade Ocidental do que a Oriental (SAID, 2007). Toda a complexidade das centenas de sociedades distintas entre si se torna um “Outro” exótico inventado, um estereótipo que estava relacionado aos interesses do colonizador europeu (SAID, 2007). Sobre essa invenção de povos não europeus: As invenções da tradição mais abrangentes da África colonial ocorreram quando os europeus acreditaram estar respeitando tradições africanas antiquíssimas. O chamado direito consuetudinário, direitos territoriais consuetudinários, estrutura política consuetudinária, e daí por diante, havia sido, na verdade, inteiramente inventado pela codificação colonial (RANGER, 1984, p. 257). Sobre esse jogo de oposições relacionais com a Ásia, Boaventura de Sousa Santos (2006) diz que o outro lado do Orientalismo foi a ideia da superioridade intrínseca do Ocidente. Assim, a história da Idade Média é, em geral, a história dos povos europeus (ou de alguns deles) sob o seu ponto de vista. Porém, como dissemos, a implicação dessa hegemonia europeia no mundo tornou nós, brasileiros, produtos diretos desse momento. E quando falamos em identidade europeia, em Europa, precisamos tomar algumas precauções intelectuais. O Ocidente, que ganha imaginação na Idade Média, materializa-se durante a Idade Moderna em instituições como o Estado unitário, a visão de cultura/ civilização filosófica, científica e cristã e no fenômeno do capitalismo. Segundo o sociólogo português Boaventura de Souza Santos, os desdobramentos de Idade Média e Moderna tornaram a Europa o centro do mundo. Porém, até o século XV, TÓPICO 1 | A IDENTIDADE PARA OS ANTIGOS: ESSENCIALISMO IDENTITÁRIO 21 a Europa é a periferia de um sistema-mundo cujo centro está localizado na Ásia Central e na Índia. Só a partir de meados do milênio, com as navegações ibéricas, é que esse sistema-mundo é substituído por outro, capitalista e planetário, cujo centro é a Europa (2016). A marca desse domínio pode ser percebida na imposição de modelos de ação e interpretação do ser em sociedade. Numa crítica bastante retumbante: Colonialismo, evangelização, neocolonialismo, imperialismo, desenvolvimento, globalização, ajuda externa, direitos humanos, assistência humanitária são exemplos de algumas das diretivas das soluções eurocêntricas para os problemas do mundo. Imersa neste pensamento que arroga superioridade e cria fechamento (SANTOS, 2016, p. 27). Esses desdobramentos, eventos e revoluções materiais, científicas e simbólicas em torno da sociedade e do sujeito serão objeto de discussão do próximo tópico. 22 Neste tópico, você aprendeu que: • Aquilo que o sujeito é acompanha os acontecimentos e contextos socialmente objetivados na forma de relações sociais e de fronteiras que se deslocam constantemente. Os discursos que inauguram aquilo que se define hoje como identidades fundamentais para a história dos povos ocidentais podem ser localizados nas visões greco-romanas de pertencimento e reconhecimento de uma unidade comum de características essenciais e que são compartilhadas pelos membros do grupo. • Que a base dessa visão identitária fundamenta-se numa filosofia e num trabalho social de produção de sentidos com bases metafísicas. Nela, a identidade é uma essência, uma unidade, aquilo que um povo é. • Como somos resultados de processos europeus de ocupação e dominação dos quatro cantos do planeta, nossa base filosófica, mental, cultural, científica, religiosa etc. tem como origem discursos e práticas identitárias localizadas na Europa antiga e medieval. • A história medieval pode ser observada como o momento da “invenção de tradições”, de mitos fundadores da identidade europeia, fundamentando o surgimento de comunidades imaginadas na forma de nações. Que, portanto, aquilo que seria essencialmente europeu é, na realidade, um esforço grande de sistematização, de manipulação, de reinterpretação de identidades antigas. Na passagem da Idade Média para a Moderna esses sentidos são ressignificados através da imagem de uma Europa cristã, racional, secularizada e científica. • Um grupo étnico, segundo Fredrik Barth (1998), é um modelo de organização identitária responsável por estruturar os sentidos do “nós” e os “outros”, os de “dentro” e de “fora”. É permeado pelo contraditório, de confronto, diferenciação e contraste. Pela dominação e subordinação. A etnicidade depende de relações e de contrastes para delimitar limites e fronteiras. Para Barth, a continuidade de um grupo étnico não está ligada à manutenção de uma cultura, tradição antiga. Os traços culturais podem mudar. Depende, sim, do estabelecimento de limites entre os grupos e de reforçar laços de solidariedade. • Para Anthony Smith (1997), a identidade nacional é a manifestação da consciência de pertencimento a uma comunidade política que estrutura a vida nacional e individual através de instituições que medeiam os direitos e deveres de seus membros. A identidade nacional reivindica uma unidade de língua e cultura. Segundo Stuart Hall (2006), elas contribuíram para forjar sistemas nacionais e universais de serviços e políticas, conformando uma “cultura homogênea”, mas permeada pela ambivalência. Vale dizer que a identidade nacional se difundiu junto com os domínios e colonialismo europeu. RESUMO DO TÓPICO 1 23 1 Sintetize e diferencie as formas identitárias conformadas pelos gregos e romanos antigos, conforme discutido neste tópico. 2 Diferencie grupo étnico e identidade nacional. 3 Quais são os desafios e problemas relacionados às identidades essencialistas? Como enxergar a identidade brasileira de um ponto de vista de uma identidade essencial? 4 O que significa o conceito de “invenção das tradições”? AUTOATIVIDADE 24 25 TÓPICO 2 IDENTIDADE E MODERNIDADE UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO No Tópico 1, procuramos observar o debate sobre o essencialismo identitário. Localizamos sua origem em povos da história antiga, especialmente, gregos e romanos. Foram importantes na medida em que serviram de base e de legitimação para versões sobre a identidade tanto na Idade Média quanto nos séculos seguintes. Neste Tópico 2, investigamos os discursos e teorias sobre a identidade resultantes da Idade Moderna e do fenômeno da Modernidade. É quando o essencialismo começa a ser abalado ou tornado mais complexo. Para tanto, começamos com a noção de sujeito moderno, implicadonas discussões filosóficas de René Descartes, Immanuel Kant e Friedrich Nietzsche. São filósofos fundamentais para entender a passagem de um olhar metafísico sobre o Ser para um outro olhar, epistemológico. Tratou-se de um distanciamento ou novo olhar sobre a filosofia grega antiga ou da escolástica medieval. FIGURA 7 – INTELECTUAIS E A ILUSTRAÇÃO FONTE: Disponível em: <http://2.bp.blogspot.com/_qL9x59CgJrw/SeOv8Tq3CgI/ AAAAAAAAAAU/mkzpcLd7Trw/S1600-R/La+lecture+des+philosophes.jpg>. Acesso em: 13 jun. 2017. UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES 26 Depois, como resultado desse deslocamento do sujeito, discutimos a construção do indivíduo a partir da sociedade, com os trabalhos da Escola de Chicago e do Interacionismo Simbólico. Por fim, apresentamos as características específicas da Modernidade segundo autores clássicos e contemporâneos, observando os impactos desse fenômeno na produção social das identidades. Fazemos essa passagem pela modernidade a partir das Ciências Sociais. 2 O SUJEITO MODERNO: O SUJEITO RACIONAL Boaventura de Sousa Santos (2006) escreveu que o primeiro nome dado ao fenômeno da identidade foi o de subjetividade na passagem da Idade Média para a Moderna. O que é Subjetividade e qual sua relação com a noção de sujeito? É uma noção antiga ou relativamente moderna? Responder a tais questões demanda esforço de síntese. Vale dizer que as noções e categorias teóricas levam a marca de seus campos e territórios científicos. Daí que a noção de subjetividade e de sujeito possui variações para a Sociologia, para a Antropologia, para a Psicologia etc. São, todavia, noções muito importantes nas Ciências Humanas. Segundo o Dicionário de Filosofia de Nicolla Abbagnano (2007, p. 922), subjetividade refere-se ao “caráter de todos os fenômenos psíquicos, enquanto fenômenos de consciência (v.), que o sujeito relaciona consigo mesmo e chama de ‘meu’”. Além disso, indica o caráter do que “é subjetivo no sentido de ser aparente, ilusório ou falível”. Da mesma forma, Abbagnano (2007, p. 929) explica que o termo sujeito teve dois significados fundamentais, sendo que atualmente apenas o segundo sentido abaixo é utilizado: 1° Aquilo de que se fala ou a que se atribuem qualidades ou determinações ou a que são inerentes qualidades ou determinações; 2° o eu, o espírito ou a consciência, como princípio determinante do mundo do conhecimento ou da ação, ou ao menos como capacidade de iniciativa em tal mundo. Segundo Japiassú e Marcondes (2001), o período medieval foi marcado pelas sucessivas tentativas de conciliação entre razão e fé, entre a filosofia e os dogmas da religião revelada, passando a filosofia a ser considerada serva da teologia, na medida em que fornecia as bases racionais e argumentativas para a construção de um sistema teológico, sem, contudo, poder questionar a própria fé. A Idade Moderna, por sua vez, radicaliza as mentalidades, promovendo uma reconfiguração e produção de novas interpretações e análises filosóficas sobre o Ser que se transformou no sujeito. Movimentos como o Renascimento e a Ilustração, eventos ocorridos entre aquilo que se diz o fim da Idade Média para o início da Moderna, trouxeram novos desafios intelectuais, artísticos e filosóficos nessa parte do mundo chamada Europa. As populações desse continente, primeiramente, TÓPICO 2 | IDENTIDADE E MODERNIDADE 27 promoveram, assistiram e reproduziram novas formas de experimentar a ciência, a arte, a política e a vida pessoal e singular. Podemos citar como eventos fundamentais a Reforma Protestante, ocorrida em 1517 e que resultou numa cisão no interior da Igreja Católica; a invenção e difusão da escrita com a prensa de Johannes Gutemberg e outras inovações técnicas; a centralização dos Estados nacionais; uma revolução científica e filosófica, que aqui nos interessa pela sua relação com a subjetividade–identidade; e o desenvolvimento do capitalismo como modo de produção dominante. O período que vai dos séculos XIV-XVIII foi repleto de grandes transformações no quadro dos povos europeus – e, por tabela, as suas regiões de domínio colonial e econômico. Do ponto de vista filosófico, promoveu-se uma série de transformações. Para ilustrá-las, seguimos caracterizando o pensamento de René Descartes, Immanuel Kant e Friedrich Nietzsche. São nomes clássicos para entender a mudança do Ser para o Sujeito. 2.1 RENÉ DESCARTES (1596-1650) E IMMANUEL KANT (1724-1804) Claro que os filósofos que contribuíram para essa transformação epistemológica são vários. Hegel, por exemplo. Descartes e Kant, por sua vez, são pontos de referência elementares. René Descartes nasceu em Haia e é apontado como “pai da filosofia moderna”, além de ter seu nome marcado, também, na Matemática e na Física. O filósofo escreveu obras influentes e referenciais, como: “O Mundo ou Tratado da Luz” (1633), “Discurso sobre o Método” (1637) ou “Meditações Metafísicas” (1641). De suas análises filosóficas desdobra-se a expressão “sujeito cartesiano”, um modelo de sujeito tipicamente moderno e influenciado pelo olhar científico. Em “Discurso sobre o Método”, Descartes apontou seu método filosófico e científico, rompendo com a filosofia aristotélica. Sua preocupação era apontar as bases do conhecimento verdadeiro. O filósofo deve rejeitar aquilo que é falso. É fundamental averiguar. Essa ideia manteve-se presente na Ciência através do método dedutivo e da corrente “Racionalista” ou na etapa da metodologia de pesquisa. Quer dizer, o filósofo inaugurou uma versão de ceticismo metodológico. UNIDADE 1 | PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES 28 O ato de colocar em dúvida algo que se nomeia conhecimento fundamentou sua noção de sujeito pensante. Este sujeito não é – em essência – o sujeito da filosofia grega ou medieval-cristã. É clássica sua expressão latina “Cogito, ergo sum” (Penso, logo existo). Este é o único conhecimento confiável. Aqui surge um sujeito conectado com as mudanças sociais desse período: singular, mas capaz da dúvida e da reflexão racional. Os sentidos, as experiências imediatas deviam ser colocadas sob suspeição. [...] não há, pois, dúvida alguma de que sou, se ele [o gênio maligno] me engana; e, por mais que me engane, não pode fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa. De sorte que, após ter pensado bastante nisto e de ter examinado todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito (DESCARTES, 1973, p. 92). Com Descartes, ocorre um primeiro e fundamental deslocamento à posição do sujeito moderno. O sujeito do cogito ou o sujeito cartesiano. Este ser não se ocupa mais da imortalidade de sua alma, mas de suas capacidades cognitivas e de percepção: o pensamento. O sujeito moderno está atado a um universo científico de verdades baseadas em modelos físicos ou matemáticos. É um sujeito lógico. Essa polêmica foi continuada e criticada pelo filósofo prussiano Immanuel Kant, autor de obras clássicas como “Crítica da Razão Pura”, “Crítica da Razão Prática” e “Crítica do Julgamento”, essenciais para a compreensão de sua visão filosófica. Para Kant, existem limites para a razão. FIGURA 8 – RENÉ DESCARTES FONTE: Disponível em: <http://www.filosofia.com.br/figuras/biblioteca/ Descartes.jpg>. Acesso em: 13 jun. 2017. TÓPICO 2 | IDENTIDADE E MODERNIDADE 29 FIGURA 9 – IMMANUEL KANT FONTE: Disponível em: <http://citacoes.in/media/authors/immanuel-kant.jpg>. Acesso em: 13 jun. 2017. Kant (2001) é também conhecido por promover um deslocamento na filosofia: a sua “revolução copernicana”. Em sua obra “Crítica da Razão Pura”, o filósofo alemão desloca a questão primordial da filosofia-metafísica. A questão não é mais sobre o que é o SER e