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1 A DESOBEDIÊNCIA CIVIL: ESPÉCIE DE UM GÊNERO? A CONTRUÇÃO CONCEITUAL DA DESOBEDIENCIA CIVIL Vê-se, consultando as doutrinas acima e muitas outras, que o conceito de desobediência civil não é unánime. Em verdade, o conceito de desobediência civil paira em divergências conceituais e é por vezes ligado ao direito de resistência. Muitos autores entendem que a desobediêncial civil é uma espécie do gênero direito de resistência (Maria Garcia1, Norberto Bobbio2, Joana de Menezes Araújo da Cruz3, Nelson Nery Costa4, Belizário Meira Neto5,Isaac Rodrigues Cunha6, Doglas Cesar Lucas7, Márcio Túlio Viana8,Helio Antonio Ardenghi9, Ronald Fontenele Rocha10, etc) e quem segue tal linha de raciocínio tende a dividir o direito de resistência em várias espécies, as mais comuns sendo desobediência civil, objeção de consciência e a revolução. Para esses autores, a desobediência civil seria um direito de resistência com certas características especiais. Também não há unanimidade nas espécies de resistência, cada autor exporá sua visão, como visto em Paupério acima e como se vê também em Kimberley Brownlee, para 1GARCIA, Maria. Desobediência Civil. Direito Fundamental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994, p. 257. 2 BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política; trad. Carmen C. Varriale; Gaetano Lo Mônaco; João Ferreira;Luís Guerreiro Pinto Cacais e Renzo Dini; coord. trad. João Ferreira; rev. geral João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. - Brasília : Editora Universidade de Brasília (UNB), 11a ed., Vol. 1, 1998, p.336-338. 3 CRUZ, Joana de Menezes Araújo de. Desobediência Civil nos interstícios do Estado de Direito 1ª ed. Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2017, p.62. 4 COSTA, Nelson Nery Teoria e Realidade da Desobediência Civil 2ª Edição (Revista e Ampliada) Editora Forense, Rio de Janeiro, 2000, p.48. 5 NETO, Belizário Meira Direito de Resistência e o Direito de Acesso à Terra Editora Impetus, Rio de Janeiro, 2003, p.30. 6 CUNHA, Isaac Rodrigues Resistência Fiscal e Desobediência Tributária: Por um Direito de não pagar tributo injusto Monografia apresentada ao Curso de Graduação de Direito da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2014, p.78. 7 LUCAS, Doglas Cesar Direito de Resistência e Desobediência Civil História e Justificativas Revista Direito Em Debate v.8 nº13, 2013, p.23-53. Disponível em: < https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/view/807> Acessado em: 01/06/2020. 8 VIANA, Márcio Túlio Direito de Resistência: Possibilidades de autodefesa do empregado em face do empregador Editora LTr., São Paulo, 1996, p. 54. 9 ARDENGHI, Helio Antonio Desobediência Civil: Um Estudo da Resistência como Ato ao Direito de Cidadania Dissertação apresentada ao curso de pós-grauação de Direito da Universidade Federal de Santa catarina, Florianópolis, 2001, p. 61. 10 ROCHA, Ronald Fontenele Direito Democrático de Resistência, Editora Fórum, Belo Honrizonte, 2010, p. 76. https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/view/807 2 quem existe, além da desobediência civil, “Legal Protest”, “Rule Departures”, “Conscientious Objection”, “Radical Protest” e “Revolutionary Action”.11 Somente para dar outro exemplo, Buzanello dirá que existem cinco espécies, sendo elas uma classificações não exaustiva. Dirá o autor que: Essa construção classificatória se inicia com a espécie de resistência de menor intensidade, informando sua respectiva particularidade, isto é: 1) objeção de consciência; 2) greve política; 3) desobediência civil; 4) direito à revolução; 5) princípio da autodeterminação dos povos. Essa classificação não é exaustiva, pois muitas vezes os elementos de análise habitam uma área de difícil identificação entre gênero e espécie.12 Também tecerá afirmações sobre a desobediência Civil não apenas como sendo espécie do direito de resistência, mas também como sendo ato que nega apenas uma parte da ordem jurídica vigente e que se estabelece como sendo um meio de pressão indireto da população quando os canais usuais de resolução das demandas da sociedade já não surtem mais efeito. Dirá o autor que: A desobediência civil, enquanto uma espécie do direito de resistência, produz um silogismo hipotético baseado nas premissas "toda desobediência civil é resistência", mas "nem toda resistência é desobediência civil". A desobediência civil faz a negação de uma parte da ordem jurídica, ao pedir a reforma ou a revogação de um ato oficial mediante ações de mobilização pública dos grupos de pressão junto aos órgãos de decisão do Estado. A desobediência civil deve ser entendida como um mecanismo indireto de participação da sociedade, já que não conta com suficientes canais participativos junto às esferas do Estado, que precisaria deles para poder presentear- se como ente político legítimo. Ou, de outra forma, o fenômeno da desobediência civil aparece quando os canais normais para mudanças do ato impugnado já não funcionam ou as queixas não serão ouvidas, ou nem terão qualquer efeito.13 Também há aqueles autores que entendem que a desobediência civil seria um gênero diferente do direito de resistência, expondo tal diferença nos escritos os quais esta 11 BROWNLEE, Kimberley, "Civil Disobedience", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2017 Edition), Edward N. Zalta (ed.), < https://plato.stanford.edu/archives/fall2017/entries/civil-disobedience/ > Acessado em: 16/11/2020. p. 11-17 12 BUZANELLO, José Carlos. Direio de Resistência, Seqüencia: Estudos Jurídicos e Políticos – Revista do curso de pós- graduação em direito da UFSC, V. 22, n. 42 (2001), pags. 9-28, Florianópolis, p.17. Disponível em: < https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15391 > Acessado em: 16/11/2020. 13 BUZANELLO, José Carlos. Direito de Resistência Constitucional, Editora América Jurídica, Rio de Janeiro, 2002, p. 147. https://plato.stanford.edu/archives/fall2017/entries/civil-disobedience/ https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15391 3 pesquisa teve acesso ( Maria de Assunção Andrade Esteves14, Roberto Gargarella15, José Gomes Canotilho16, Maria Fernanda Salcedo Repolês17, etc.). Foi encontrado na pesquisa autores que usam esses conceitos também como completos sinônimos (Marina Basso Lacerda18,etc). Esses autores não fazem ginástica com o conceito de direito de resistência: agrupam direito de resistência e desobediência civil em quadrantes distintos por considera-los por demais distintos, sendo que a resistência atentaria contra o governo e suas instituições como um todo e admitiria violência (não sendo, portanto, civil) e a desobediência se assentaria em bases constitucionais e não colocaria em xeque o sistema como um todo, apenas parte dele.19 Além da discussão acima, bastará olhar para as doutrinas dos autores mencionados, para vislumbrar a falta de unanimidade na formulação de um conceito de desobediência civil. Vislumbrou-se na pesquisa, contudo, que os autores atribuem certas características à Desobediência Civil, ou seja, apresentam certos aspectos que seriam indispensáveis para que um ato pudesse ser classificado como Desobediência Civil. Tais características (presentes na concepção heterodoxa de desobediência civil)20 não são unânimes, porém, é imperativo estudá- las. DESOBEDIÊNCIA CIVIL E SUAS CARACTERÍSTICAS “ESPECÍFICAS”. ATO COLETIVO Os defensores da Desobediência Civil como ato individual, ou seja, praticada por apenas um indivíduo, centram sua motivação na consciência individual da pessoa que a 14GUARESCHI, Carla Varea O papel da desobediencia civil na construção democrática do direito.O Exemplo do Movimento Ocupe Estelita. Ocupar e Resistir! Dissertação de Mestrado apresentada ao Gabinete de Estudos Pós- Graduados da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2017, p. 14-16. 15 GARGARELLA, Roberto. El derecho a la protesta: El primer derecho. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2007, p. 209- 212). 16 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 328 e 512. 17 GUARESCHI, Carla Varea. Op. Cit., p. 14-16. 18 LACERDA, Marina Basso O direito de resistência e a resistência do Direito: problematizando conflitos entre as ocupações de terra e os espaços jurídicos no Brasil contemporâneo. Monografia apresentada como requisito parcial para conclusão do curso de Direito, pelo Setor de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007, p.14. 19 PINTO, Indiara Liz Fazolo. A Desobediência Civil No Estado Democrático De Direito, Universidade Federal Do Paraná Programa De Pós-Graduação Em Direito Curso De Mestrado, Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2014, p.16. 20 UGARTEMENDIA, Juan Ignácio Ecaizabarrena. Algunas Consideraciones sobre la “protección jurídica’ de la desobediencia civil. Barcelona: Institut Ciències Polítiques i Socials, Universidad del País Vasco, Working Paper n.151, 1998. Disponível em: < https://www.icps.cat/cerca > Acessado em: 16/11/2020 , p.3. https://www.icps.cat/cerca 4 pratica.21 Pode-se ver, como expoente clássico desta desobediência individual, Henry Thoreau e a sua ação de boicote aos impostos dos quais não concordava. Nelson nery também expõe em sua obra que autores como Bertrand Russel, Erich Fromm e Peter Singer, também centram o fenômeno da desobediência na questão da consciência individual.22 Norberto Bobbio aparece na pesquisa realizada por este trabalho como forte integrante da vertente que defende a desobediência civil como ato que envolveria uma coletividade, uma dinâmica de grupo para se configurar como tal. Dirá que, para distinguir a desobediência civil de outras condutas desse cunho, as duas maiores características que a diferencariam seriam ser uma ação em grupo e sem violência, pacífica.23 Igualmente aparecendo na pesquisa como defensora da desobediência civil como ato coletivo, fazendo uma contraposição a Henry Thoreau, está Hanna Arendt. Hannah Arendt não concorca com Thoreau e seu individualismo, pois este seria permeado por subjetividades e a ação política se preocuparia com interesse público e não somente com o “Eu” individual.24 Portanto, como já exposto acima, a desobediencia civil para a autora seria um ato coletivo, não violento, que vai na contramão da vontade da maioria, sendo um instrumento utilizado pela minoria, munida da opinião comum dos seus integrantes que se convenceram que os canais normais de mudança não surtirão efeitos ou que o governo está empreendendo atos de constitucionalidade duvidosa. Hannah Arendt dirá em sua obra Crises da República que: A consciência é apolítica. Não está primordialmente interessada no mundo onde o erro é cometido ou nas consequências que este terá no curso futuro do mundo.(...) As 21 COSTA, Nelson Nery Teoria e Realidade da Desobediência Civil 2ª Edição (Revista e Ampliada) Editora Forense, Rio de Janeiro, 2000, p.51. 22 COSTA, Nelson Nery. Teoria e Realidade da Desobediência Civil. 2ª Edição (Revista e Ampliada) Editora Forense, Rio de Janeiro, 2000,p.51. 23 BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política; trad. Carmen C. Varriale; Gaetano Lo Mônaco; João Ferreira;Luís Guerreiro Pinto Cacais e Renzo Dini; coord. trad. João Ferreira; rev. geral João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. - Brasília : Editora Universidade de Brasília (UNB), 11a ed., Vol. 1, 1998, p.337. 24 BONINI, Marcelo Casteli A Desobediência Civil como condição histórica de exercício e produção de sujeitos político-culturais, Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Ciência Jurídica do Centro de Ciências Sociais Aplicadas do Campus de Jacarezinho da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), Jacarezinho, 2010, p. 39. 5 deliberações de consciência não são somente apolíticas, são sempre expressas de maneira puramente subjetiva.25 Também dirá que: minorias organizadas delimitadas mais pela opinião comum do que por interesses comuns, e pela decisão de tomar posição contra a política do governo mesmo tendo razões para supor que ela é apoiada pela maioria; sua ação combinada brota de um compromisso mútuo e é este compromisso que empresta crédito e convicções à sua opinião, não importando como a tenham originalmente atingido. Argumentos levantados em prol da consciência individual ou de atos individuais, ou seja, os imperativos morais e os apelos “à mais alta lei”, seja ela secular ou transcendente, são inadequados quando aplicados à desobediência civil26 Gandhi e Luther King também tem a concepção da desobediência civil como ato coletivo, como se pode ver acima. Todas as ações práticas dessas figuras históricas se basearam na mobilização de varios contingentes de pessoas em prol de realizar uma ação de desobediência aos mandamentos governamentais. Igualmente, Michael Walzer27 considera a Desobediência Civil um ato coletivo. Ronald Dworkin dirá que a desobediência civil possibilita uma discussão fora dos limites institucionais. Trata-se de uma alternativa para discussão das necessidades públicas, é o coletivo em busca de objetivos comuns. A desobediência civil incita o debate, publiciza a discussão e possibilita que o coletivo seja contrário as leis injustas.28 Contudo, Dworkin estabelecerá uma argumentação sui generis e dividirá os ato de desobediência civil em uma triplice tipologia, da qual está presente a chamada “desobediência civil baseada na integridade.” Nela, a consciência do indivíduo totalmente desaprova o que a lei estabelece, negando-a totalmente e a desobedecendo. Ocorreria em uma situação de urgencia e não exigiria o esgotamento de todas as instâncias dos metodos de resolução de conflitos institucionalizados para se perpetuar. Essa é a lição trazida por Renato Menêzes Assis sobre a obra de Dworkin: 25 ARENDT, Hannah. Crises da república. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 58/59. 26 ARENDT, Hannah. Crises da república. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 55/56. 27 CUNHA, Ana Graciela Videla da. Desobediência Civil? Um estudo sobre a ocupação na reitoria da UFSM em 2011, Dissertação apresentada no Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria (RS), 2017, p.31-32. 28 LUCAS, Doglas Cesar; A Desobediência Civil na Teoria Jurídica de Ronald Dworkin, Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, v. 16, n. 16, julho/dezembro de 2014, Curitiba, 2014, passim. Disponível em: < https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/591 > Acessado em: 21/11/2020. https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/591 6 Assim, quando alguém desobedece a uma norma por achar que esta exige um comportamento imoral, que ofende sua integridade pessoal, sua própria consciência, Dworkin chama esse tipo de desobediência, baseada nessas circunstâncias de desobediência civil “baseada na integridade” [...] Esse tipo de desobediência civil, quando a lei exige que as pessoas façam o que sua consciência absolutamente proíbe, ocorre normalmente em uma questão de urgência, portanto, não se pode exigir que o cidadão que age desta maneira deva ter esgotado o processo político normal com o intuito de reverter à decisão política a que ele se opõe.29 Nesse sentido, em seu livro “Umaquestão de princípio” dá o exemplo de alguém que, contrariando a legislação, ajuda um escravo fugitivo e chama este ato de desobediência civil baseada na integridade.30 Logo, é possível afirmar que tal questão numérica é relativizada por Ronald Dworkin. Também dirá Julio Tomé, expondo a doutrina de Jonh Rawls sobre a Desobediência Civil que, como também afirma a autora Hannah Arendt, ela seria “uma violação aberta da lei, sobre a qual, em prol de um grupo, desafia-se as leis e as autoridades estabelecidas, por meio de minorias organizadas, que de alguma maneira importam quantitativa e qualitativamente, na questão da opinião”.31 Nelson Nery também estabelece que a Desobediência Civil é normalmente um ato de mais de um indivíduo, mas admite que seja individual em certas circunstâncias, como na objeção de consciência e diz que na ação prática tal distinção teorica entre essas figuras não se apresenta às vezes com tanta clareza.32 Nery se apoiará nas doutrinas de Hugo Adam Bedau e Passerin d´ Entrêves para argumentar que deve se tomar o paradigma de Thoreau do não pagamento dos impostos como um caso de Desobediência Civil.33 Pode-se concluir que não há unanimidade na doutrina, porém, a pesquisa mostrou haver posição majoritária de que o ato de desobediência Civil seria um ato coletivo, tanto no sentido do número de participantes, como no sentido dos motivos que os movem ao ato em 29 ASSIS, Renato Menêzes de. O Fundamento da Desobediência Civil em Ronald Dworkin, 2012, p.37. Trabalho de conclusão de curso- UNICEUB – Centro Universitário de Brasília, Brasília, 2012. 30 DWORKIN, Ronald , Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martin Fontes, 2001, p.157. 31 TOMÉ, Julio Rawls e a Desobediência Civil Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGFIL/UFSC), Florianópolis, 2018, p.103. 32 COSTA, Nelson Nery Teoria e Realidade da Desobediência Civil 2ª Edição (Revista e Ampliada) Editora Forense, Rio de Janeiro, 2000, p.52. 33 Ibdem, p.52. 7 comum, inclusive necessitando de prévia e, às vezes, exaustiva preparação para a atividade, como no caso das ações executadas por Gandhi e Luther King.34 2.2.2 ATOS VOLUNTÁRIOS E CONSCIENTES Ainda falando dos indivíduos que praticam a resistência, apareceu na pesquisa a necessidade dos atos de desobediência civil serem voluntários e conscientes. Voluntários porque o elemento volitivo do indivíduo é levado em consideração, ou seja, violou-se a lei intencionalmente e por escolha (podendo não ter violado), não sofreu coação para viola-lá e está se submetendo a possibilidade de sofrer as sanções pelos seus atos. Conscientes porque para o ato há uma justificação e tal justificação é uma incompatibildade entre a lei e o sentimento de justiça dos indivíduos, fazendo com que o autor da desobediência estabeleça que sua ação foi inteiramente justa e legitima. (como visto na introdução, há variadas justificativas para o ato, mas para o ato ser consciente exige-se uma justificativa, pondendo ser ela de cunho ético, político, religioso, etc.) Assim exporá Renato Assis, se apoiando em Malem Seña.35 2.2.3 ATO ILEGAL (EMBATE ENTRE A ILEGALIDADE LEGITIMADA E A PRETENSÃO DE JUSTIFICAÇÃO JURÍDICA DA DESOBEDIÊNCIA CIVIL) Nesta parte do estudo das características da Desobediência Civil cumpre mencionar, desde logo, que a maioria dos autores pesquisados entende que o ato desobediente é um ato ilegal. Henry Thoreau, Luther King e Gandhi envolveram a Desobediência Civil com essa característica de ilegalidade. Thoreau não pagou impostos e foi preso, protagonizando uma conduta ilegal e escrevendo em seu livro “Desobediência Civil” que se a injustiça “for de 34 Ibdem, p.42 e 44. 35 ASSIS, Renato Menêzes de. O Fundamento da Desobediência Civil em Ronald Dworkin, 2012, p.25. Trabalho de conclusão de curso- UNICEUB – Centro Universitário de Brasília, Brasília, 2012. 8 natureza tal que exija que nos tornemos agentes de injustiça para com os outros, então proponho que violemos a lei”.36 Luther King, como visto acima na exposição do autor, também protagonizava atos ilegais para com seu governo e explicitava que aquele que desobedeceria uma lei injusta estaria demonstrando o mais elevado respeito pela lei.37 Igualmente Gandhi fez várias ações ilegais contra a inglaterra e a favor da independência da Índia, encampando inúmeras lutas. Cita-se, como exemplo, na África do Sul seu movimento de maior repercussão foi contra a Lei de Registro dos Asiáticos que obrigou todos os indianos a serem registrados e terem suas impressões digitais arquivada. Neste movimento após decidirem em conjunto pela aplicação da Satyagraha (resistência pacífica) em que indianos se oporam a medida e jogaram seus certificados em um caldeirão, em 1908. 38 Além dos três autores acima, podemos apontar como apontadores da desobediência civil como ilegal, ou seja, que contraria normas positivadas no ordenamento, Hannah Arendt, Norberto Bobbio, Jonh Rawls, Habermas e Nelson Nery Costa. Para Doglas Cezar Lucas e André Leonardo Copetti a principal qualidade da desobediência civil seria ser uma ilegalidade legitimada e dizem que esse também é o caso de Jonh Rawls, Norberto Bobbio e Hannah Arendt.39 Para Hannah Arendt a Desobediência Civil seria uma ação extra legal40. Entretanto, esta ação não visaria romper com a legalidade, visando, na verdadade, a manutenção da ordem. Dirá Seixas que: 36 THOREAU, Henry David A Desobediência Civil, Tradução de José Geraldo Couto, 3ª reimpressão, Penguin Classics Companhia das Letras, São Paulo, 2012,p.18. 37 KING, Martin Luther. Letter From Birminghan City Jail. In: BEDAU, Hugo Adam Civil Disobedience in Focus London ; New York : Routledge, 2002, p.74. 38 OLIVEIRA, Bruno Pittella Direito de Resistência, Desobediência Civil e a Construção da Democracia no Brasil Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro, 2013,p.72-73 39 SANTOS, A. L. C., & LUCAS, D. C. (2015). Desobediência civil e controle social da democracia. Revista Brasileira De Estudos Políticos, v. 110 (2015), Belo Honrizonte (MG), 179-216, p. 193. Disponível em: < https://pos.direito.ufmg.br/rbep/index.php/rbep/article/view/P.0034-7191.2015v110p179> Acessado em: 16/11/2020. 40 SEIXAS, R. L. da R. (2019). Desobediência Civil e Cidadania Participativa em Hannah Arendt. Aufklärung: Revista De Filosofia, 6(1), Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa, Paraíba, p.67. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/arf/article/view/42937. Acessado em 02/05/2020. https://pos.direito.ufmg.br/rbep/index.php/rbep/article/view/P.0034-7191.2015v110p179 https://periodicos.ufpb.br/index.php/arf/article/view/42937 9 Nesse sentido, a desobediência, identifica-se enquanto uma ação necessariamente extralegal, porém que não objetiva romper com a legalidade. Ao contrário, por meio da não obediência da ordem, o dissenso civil visa exatamente a ordem e apresenta como seu objetivo direto, uma mudança necessária e desejável, ou a manutenção de direitos garantidos, mas que se encontram sob a ameaça de serem violados.41 Para Norberto Bobbio “A Desobediência civil, enquanto é uma das várias formas que pode assumir a resistência à lei, é também e sempre caracterizada por um comportamento que põe intencionalmente em ação uma conduta contrária a uma ou mais leis.”42 Rawls define a desobediência civil como: “um ato público, não violento, consciente e não obstante um ato político, contrário à lei, geralmente praticado com o objetivo de provocar uma mudançana lei e nas políticas do governo [...]”43 Habermas em suas obras também estabelecerá argumentação de porque seria contra uma legalização da Desobediência Civil, estabelecendo em seu texto “Desobediência Civil: Pedra de Toque do Estado Democratico de Direito” que ela deveria se mover na divisoria da legitimidade e da validade e o Estado que punisse a Desobediência Civil como um crime comum incorreria em um legalismo autoritário.44 Habermas, além do dito acima, tecerá outros argumentos contrários a legalização no sentido de que converteria-se em um comportamento normalizado, que desapareceria todo o risco pessoal do ato e faria com que fossem consideradas problemáticas as fundamentações morais de quem quebrasse a norma. Incusive seu peso como ato de protesto ficaria avariado.45 A Desobediência Civil deveria atuaria na divisória entre a Legalidade e a Legitimidade. Dirá Maikon Chaider que “A desobediência civil deve permanecer à margem das leis para não reduzirmos a legitimidade da ordem jurídica à facticidade legal”.46 41 Ibdem, p. 67. 42 BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política; trad. Carmen C. Varriale; Gaetano Lo Mônaco; João Ferreira;Luís Guerreiro Pinto Cacais e Renzo Dini; coord. trad. João Ferreira; rev. geral João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. - Brasília : Editora Universidade de Brasília (UNB), 11a ed., Vol. 1, 1998, p.337. 43 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisseta e Linita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997, §55, p.404 Apud. TOMÉ, Julio Rawls e a Desobediência Civil Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGFIL/UFSC), Florianópolis, 2018, p.103. 44 HABERMAS, Jürgen. “La desobediencia civil. Piedra de toque del Estado democratico de Derecho”, in Ensayos políticos, Ediciones península, Traduccion de Ramon Garcia Cotarelo, Barcelona, 2002, p.70. 45 Ibdem, p.63. 46 SCALDAFERRO, Maikon Chaider Silva A juridificação como patologia social: reexaminando um diagnóstico habermasiano IN: WERLE, Denílson Luís, PIROLI, Diana, DE BORBA, Eduardo, SELL, Jorge Armindo, ALI, Nunzio, XAVIER, Raquel Cipriani (Orgs.) Justiça, Teoria Crítica e Democracia Volume II, NEFIPO (Núcleo de Ética e Filosofia Política), Florianópolis, 2018, p.23. Disponível em: < http://www.nefipo.ufsc.br/> Acessado em: 03/08/2020. http://www.nefipo.ufsc.br/ 10 Nelson Nery Costa também considera a Desobediência Civil um ato necessariamente ilegal. 47 Não obstante tais posições, há autores que colocam que seria possível uma justificação jurídica para a desobediência civil. Arthur Machado Paupério reserva capítulo de sua obra “Teoria Democrática da Resistência” para tratar da questão de que o exercício da resistência poderia ser enquadro como um caso de legítima defesa coletiva. Dirá que no caso da tirania ser avasaladora, a resistência equipara-se à legitima defesa. Ressalta que alguns juristas também ligam o direito de resistência à legítima defesa individual48 Também encontramos a proposta de Ronald Dworkin, para quem a Desobediência Civil seria uma espécie de controle de constitucionalidade das leis49, ou seja, faria parte dos mecanismos que o Estado tem para auferir se uma lei é compatível ou não com a constituição, baseado na idéia do autor que o cidadão teria a liberdade de interpretar uma lei duvidosa.50 Na base desse pensamento dirá o autor em sua obra “Uma questão de princípio” que “embora os tribunais possam ter a última palavra, em qualquer caso específico, sobre o que é o direito, a última palavra não é, por essa razão apenas, a palavra certa”.51 Dirá o autor, também, em “Levando os direitos a sério”, que “a lealdade do cidadão é para com a lei e não para com um ponto de vista particular que alguém tenha sobre a natureza do direito”.52 Para além disso, pode-se inferir da teoria do autor que “o direito pode “abrigar”, dentro de certos limites, a desobediência civil. Nessa perspectiva, a desobediência não consistiria num ato ilegal ou ilícito.”53 Dirá Dworkin, criticando o positivismo, que “não 47 COSTA, Nelson Nery Teoria e Realidade da Desobediência Civil 2ª Edição (Revista e Ampliada) Editora Forense, Rio de Janeiro, 2000, p.60. 48 PAUPÉRIO, Arthur machado Teoria Democratica da Resistência. 3ª edição revista, Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 1997,p. 7-8. 49 LUCAS, D. C. (2013). Direito De Resistência E Desobediência Civil: História E Justificativas. Revista Direito Em Debate, V. 8 N. 13(1999), Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI,P. 43. Disponível em: < https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/view/807> Acessado em: 16/11/2020. 50 DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério Tradução de Nelson Boéira. 2ª ed. São Paulo: Martins Flores, 2002, p. 322-323. 51 DWORKIN, Ronald, Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martin Fontes, 2001, p.171. 52 DWORKIN, Ronald, Op. Cit., p. 328. 53 LUCAS, D. C.; SANTOS, A. L. C.; DE OLIVEIRA, C. D., O papel da desobediência civil em tempos de desconfianças democráticas. O direito entre legalidade e legitimidade REVISTA DIREITOS SOCIAIS E https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/view/807 11 devemos dizer que se alguém violou a lei, por qualquer razão que seja e por mais honrosos que sejam seus motivos, sempre deve ser punido porque a lei é a lei”.54 Doglas Cesar Lucas explica didaticamente que é essa possibilidade, presente na visão de Dworkin, do cidadão perpetuar sua própria interpretação da constituição da nação (não tendo esse monopólio somente o poder judiciário) que faz com que a desobediência civil possa ser vista como um mecanismo de controle de constitucionalidade das leis. A constituição teria uma feição aberta reconhecendo a construção e significados por meio da participação da sociedade. Doglas se apoia nos escritos de Estévez Araujo sobre Ronald Dworkin: se vislumbra a desobediência civil como controle de constitucionalidade das leis, pois a sociedade, como um todo, possui o direito de promover a sua interpretação da Constituição, não sendo esta tarefa exclusividade do judiciário. A construção dos significados, a própria vida da Constituição se dá de maneira totalmente aberta, reconhecendo na participação democrática e na opinião pública critérios relevantes de interpretação e de compreensão em torno dos direitos, valores e princípios presentes no texto constitucional. Assim vista, a Constituição aparece como um processo, como “una apertura de la defesa de la constituición a la opinión pública”. De modo que se concede ao cidadão a faculdade de, levando em conta a sua construção de critérios, duvidar da constitucionalidade de uma lei, participando da defesa da constituição. “A desobediencia civil como test de constitucionalidad es una protest contra la ponderación llevada a cabo por el legislador”. É justamente diante da insuficiência dos mecanismos institucionais de defesa da constituição que aparece a desobediência civil como proposta de reforçar o debate público em torno da interpretação constitucional e da garantia dos direitos fundamentais. Ademais, a desobediência civil, utilizada para denunciar um ceticismo a respeito da constitucionalidade, interviria de forma ativa na formação e construção dos temas que são objetos da discussão perante a opinião pública, um meio legítimo de incidência junto a ela. Enfim, sustenta a possibilidade de desobediência diante da lei inconstitucional como um mecanismo de teste, de incentivar o controle e defesa da constituição55 Não discrepando das afirmações acima, dirá Mateus Davi, se apoiando nos escritos de JoséCarlos da Silva Garcia, que para Ronald Dworkin a desobediência Civil seria vista como “um teste de constitucionalidade das normas legais que são objeto de questionamento.”56 POLÍTICAS PÚBLICAS (UNIFAFIBE), Vol.6, N.1,2018 São Paulo p.77 Disponível em: http://www.unifafibe.com.br/revista/index.php/direitos-sociais-politicas-pub/article/view/419. Acessado em 22/04/2020. 54 DWORKIN, Ronald, Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martin Fontes, 2001, p.168. 55 LUCAS, D. C. (2013). Direito De Resistência E Desobediência Civil: História E Justificativas. Revista Direito Em Debate, V. 8 N. 13(1999), Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI,P. 43. Disponível em: < https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/view/807> Acessado em: 16/11/2020. 56CRUZ, Mateus Davi Gonçalves Fróes da. Desobediência Civil: um elemento democrático, Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Área de concentração: Direito Público. Rio de Janeiro, 2017, p.30 http://www.unifafibe.com.br/revista/index.php/direitos-sociais-politicas-pub/article/view/419 https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/view/807 12 A pesquisa mostrou que há autores para os quais os atos de Desobediência Civil estariam justificados juridicamente pelo fato de sua “identificação com o exercício de um direito fundamental.”57 Entre eles, cita-se Dreiner: “Outra possibilidade assumida pela desobediência civil no âmbito Constitucional, refere-se a sua identificação com o exercício de um direito fundamental. É sob este viés que Dreier expõem suas idéias.”58 Igualmente, dirá Mateus Davi que o instituto da Desobediência Civil é defendido por Dreier “como um exercício dos direitos fundamentais. A desobediência surge como uma autotutela dos direitos fundamentais que se tenham como abusivamente reprimidos.”59 Por fim, Canotilho também menciona o autor e sintetiza o pensamento dele: Sob o ponto de vista jurídico — constitucional, a desobediência civil poder-se- ia caracterizar como o direito de qualquer cidadão, individual ou coletivamente, de forma pública e não violenta, com fundamento em imperativos éticos-políticos poder realizar os pressupostos de uma norma de proibição, com a finalidade de protestar, de forma adequada e proporcional, contra uma grave injustiça (Dreiner).60 Doglas Cesar Lucas fará a observação que os argumentos desta passagem “não fundamentam a desobediência civil no ordenamento jurídico, mas sim em elementos éticos e políticos que facultariam a produção de uma norma de proibição que gozaria, aí sim, Status de um direito amparado constitucionalmente.”61 Seguindo-se a essas argumentações, encontra-se também na bibliografia consultada, a visão de que se poderia defender, em termos jurídicos, a Desobediência Civil com o auxílio do instituto do estado de necessidade. Mateus Davi dirá que essa é a posição defendida por José Carlos Garcia: O estado de necessidade é uma causa legal de exclusão da ilicitude, não havendo crime quando o agente pratica o fato neste estado, respondendo pelo excesso doloso ou culposo. Os atos de desobediência civil não seriam, portanto, ilegais, pois o sistema jurídico contém disposições que considerariam um fato típico (conduta vedada por disposição legal), sob certas condições específicas e concretas, lícito, ou, pelo menos, 57 LUCAS, D. C. (2013). Direito De Resistência E Desobediência Civil: História E Justificativas. Revista Direito Em Debate, V. 8 N. 13(1999), Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI,P. 44. Disponível em: < https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/view/807> Acessado em: 16/11/2020 58 Ibdem, p.44. 59 CRUZ, Mateus Davi Gonçalves Fróes da. Op. Cit., p.31. 60 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 328. 61 LUCAS, D. C. (2013). Op. Cit., p.44. https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/view/807 13 isento de pena. (...) Esta justificação jurídica da desobediência civil é abordada por José Carlos Garcia (De sem rosto...).62 Por derradeiro, cumpre também deixar registrado a visão de Juan Ignacio sobre o problema de justificação jurídica da desobediência civil que, para o autor, pode se operar de duas maneiras: Uma delas é recorrendo ao que o autor chama de “norma de validez” e a outra é recorrer a eficácia protetora das normas de direito fundamental, envolvendo, portanto, a teoria dos direitos fundamentais e a sua eficácia e limites.63 2.2.4 ATOS PÚBLICOS E ABERTOS A desobediência Civil seria caracterizada por ser um ato público e aberto. Pode-se dizer também, não escondido, sem clandestinidade. Dirá Joana de Menezes Cruz que a legitimidade deste ato “costuma estar relacionada ao fato de ser praticada à luz do dia. Além de falar ao público, visando alcançar o apoio da comunidade em geral, precisa acontecer em público para ser considerada justificada”.64 Dirá Nelson Nery, nesta mesma toada que a desobediência civil “é um ato público e aberto. Não somente clama pelos princípios públicos, como se expressa publicamente em ação, não sendo de forma alguma conspirativo. Esta posição encontra-se defendida pela maioria dos autores que estudou o tema”.65 Assim foi com os classicos desobedientes: Henry David Thoreau, um abolicionista, percebeu que a ampliação territorial imperialista dos Estados Unidos sobre o México aumentaria a cultura escravocrata66, e contrário a esta guerra se propôs a fazer algo por meio do não pagamento de impostos ao estado de Massachusetts, que o usavam para financiar o 62 CRUZ, Mateus Davi Gonçalves Fróes da. Desobediência Civil: um elemento democrático, Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Área de concentração: Direito Público. Rio de Janeiro, 2017, p.28-29. 63 UGARTEMENDIA, Juan Ignácio Ecaizabarrena. Algunas Consideraciones sobre la “protección jurídica’ de la desobediencia civil. Barcelona: Institut Ciències Polítiques i Socials, Universidad del País Vasco, Working Paper n.151, 1998. Disponível em: < https://www.icps.cat/cerca > Acessado em: 16/11/2020. p.8-17. 64 CRUZ, Joana de Menezes Araújo da. Desobediência Civil nos Interstícios do Estado de Direito, Editora Lumen Juris, 1ª ed., Rio de Janeiro, 2017, p.122. 65 COSTA, Nelson Nery Teoria e Realidade da Desobediência Civil 2ª Edição (Revista e Ampliada) Editora Forense, Rio de Janeiro, 2000, p.52. 66 OLIVEIRA, Bruno Pittella Direito de Resistência, Desobediência Civil e a Construção da Democracia no Brasil Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro, 2013, p.57-58. https://www.icps.cat/cerca 14 exército. Por conta disso, foi preso, sendo a experíencia relatada em sua obra “A Desobediencia Civil”.67 Vale a pena citar Nelson Nery sobre o tema: O “indivíduo” isolado também podia praticar a desobediência. O próprio autor envolveu-se em um episódio, que relatou depois na “Desobediência Civil”. Ele, numa tarde de Julho de 1846, foi até a cidade apanhar um sapato. O policial de Concord o abordou, acusando-o de não pagar o imposto eleitoral desde 1840. Thoreau respondeu que não pagara por nunca ter votado e por considerar, o imposto uma forma política de cooperação com a guerra mexicana (começada naquele ano) e com a manutenção da escravidão. Foi preso.68 Somente para dar mais força ao argumento,Thoreau trata de como era sua relação com os cobradores de impostos (inclusive, seu vizinho era um) e como, certa vez, se recusou a pagar certa quantia para o sustento de um sacerdote, ocasião na qual foi-lhe dito para pagar ou seria trancafiado na cadeia.69 Gandhi encampou inúmeras lutas. Na África do Sul seu movimento de maior repercussão foi contra a Lei de Registro dos Asiáticos que obrigou todos os indianos a serem registrados e terem suas impressões digitais arquivada. Neste movimento após decidirem em conjunto pela aplicação da Satyagraha (resistência pacífica) em que indianos se oporam a medida e jogaram seus certificados em um caldeirão, em 1908.70 Martin Luther King não fica para trás. Uma de suas importantes participações com apoiador da luta anti-segregacionista envolveu o caso emblematico de Rosa Louise Mccauley, mais conhecida como Rosa Parks, e o boicoite ao sistema de transporte público de Montgomery.71 Os protestos foram desencadeados quando Rosa, mulher negra, não cedou seu lugar no ônibus para um homem branco, como era constume na época e contou com a mobilização do Conselho político Feminino72, bem como de outras várias lideranças negras73 e 67 THOREAU, Henry David A Desobediência Civil, Tradução de José Geraldo Couto, 3ª reimpressão, Penguin Classics Companhia das Letras, São Paulo, 2012, p.25-26. 68 COSTA, Nelson Nery Teoria e realidade da desobediência civil, 2ª edição (revista e ampliada), Rio de Janeiro, Editora Forense, 2000, p.36/37. 69 THOREAU, Henry David. Op. Cit.,p.19-24. 70 OLIVEIRA, Bruno Pittella. Op. Cit.,p.72-73. 71 FERREIRA, Ricardo Alexino. Rosa parks declarou luta pelos direitos civis dos negros nos EUA. Jornal da USP, São Paulo, 08/05/2018. Disponível em: < https://jornal.usp.br/atualidades/rosa-parks-deflagrou-luta-pelos- direitos-civis-dos-negros-nos-eua/>. Acesso em: 06 de Dezembro de 2020. 72 KLEFF, Michael. 1955: Rosa Parks se recusa a ceder lugar a um homem branco nos EUA. Deutsche Welle (DW), 01/12/2019. Disponível em: < https://www.dw.com/pt-br/1955-rosa-parks-se-recusa-a-ceder-lugar-a-um- branco-nos-eua/a-340929>. Acessado em: 06 de Dezembro de 2020. 73 FERREIRA, Ricardo Alexino. Op. Cit. https://jornal.usp.br/atualidades/rosa-parks-deflagrou-luta-pelos-direitos-civis-dos-negros-nos-eua/ https://jornal.usp.br/atualidades/rosa-parks-deflagrou-luta-pelos-direitos-civis-dos-negros-nos-eua/ https://www.dw.com/pt-br/1955-rosa-parks-se-recusa-a-ceder-lugar-a-um-branco-nos-eua/a-340929 https://www.dw.com/pt-br/1955-rosa-parks-se-recusa-a-ceder-lugar-a-um-branco-nos-eua/a-340929 15 durou pouco mais de um ano trazendo graves prejuízos para a empresa de ônibus e chamou a atenção de todo o país.74 Segundo o professor Ricardo Alexino, professor da Escola de Comunicação e artes da USP, a atitude de Rosa Parks possibilitou maior organização dos movimentos sociais de combate ao segregacionismo e pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos e o despontamento de lideranças, como Martin Luther King.75 Martin Luther King apoiou integralmente, portanto, o protesto silencioso de Rosa Parks contra as leis segragacionistas de seu Estado. As grandes características da desobediência civil seriam, para Martin Luther King: Uma ação de massas, não violenta e aberta, chamando a atenção da população passiva. Das táticas utilizadas vale citar os boicotes, os sit-in e a marcha, todas levadas a cabo sem a utilização de violência. Entende Luther King que se os desobedientes forem para a prisão, o significado daquele ato ficaria cristalino.76 Todos os atos acima não foram clandestinos e foram atos que poderiam ser considerados públicos (principalmente o não pagamento de impostos) e os três nomes acima foram presos por eles e não tentaram escapar às punições, aceitaram-nas pelos seus atos contrarios a lei. Além dos três classicos, os demais autores estudados acima também atribuem à Desobediência Civil tal característica. Ronald Dworkin, porém, desenvolve argumentação sui generis, dividindo-a em 3 (três formas) e dirá que poderia atender muito mais aos interesses do desobediência e de sua estratégia se sua desobediência fosse velada, dissimulada e nunca descoberta, no caso de uma desobediência civil baseda na integridade (p.ex. a recusa na ajuda de caçadores de escravos ou a recusa a lutar numa guerra injusta)77. Ao passo que em um desobediência civil baseada na justiça ou na política, poderia fazer sentido a estratégia de sua exposição e, consequente, punição. Logo, para Dworkin a máxima “Descumpri a lei, agora prendam-se” deveria ser ponderada caso a caso e poderia haver casos de uma desobediência civil velada que não deixaria 74 OLIVEIRA, Bruno Pittella, Op. Cit.,p.77. 75 FERREIRA, Ricardo Alexino. Op. Cit. 76COSTA, Nelson Nery Teoria e realidade da desobediência civil, 2ª edição (revista e ampliada), Rio de Janeiro, Editora Forense, 2000, p.44. 77 DWORKIN, Ronald , Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martin Fontes, 2001, p.157. 16 de ser desobediência civil. Dworkin, em sua obra, atribui peso as estratégias que serão utilizadas pelos desobedientes. 78 Vale citar, por derradeiro, Jonh Rawls, que elaborará nesse aspecto e dirá que um ato de desobediência civil seria um ato público por dois aspectos: i) Porque se dirige a princípios públicos; ii) Porque é feito em âmbito público, aberto, de modo algum em segredo. Também por esse motivo, ela seria um ato que não se utilizaria de violência para alcançar seus objetivos.79 Os atos públicos seriam uma forma de sensibilizar a opinião pública para apoiar o protesto, ou seja, conseguir publicidade favorável. A desobediência civil, portanto, apelaria para os demais indivíduos da sociedade e forçaria um debate no seio daquela comunidade de que se aquela lei injusta com a qual se guerreia de fato viola princípios éticos ou a idéia de justiça que rege aquela sociedade específica, mobilizando, assim, a opinião pública para debates sobre temas morais, políticos e sociais controvertidos. Não coage os indivíduos, incita a discussão. Provoca um momento de tensão, na qual a sociedade toma conhecimento de questões controvertidas que, não raro, os meios de comunicação minimizam a importância.80 Dirá Norberto Bobbio também que: Exatamente pelo seu caráter demonstrativo e por seu fim inovador, o ato de Desobediência civil tende a ganhar o máximo de publicidade. Este caráter publicitário serve para distingui-la nitidamente da desobediência comum: enquanto o desobediente civil se expõe ao público e só expondo-se ao público pode esperar alcançar seus objetivos, o transgressor comum deve realizar sua ação no máximo segredo, se desejar alcançar suas metas.81 Também para Maria Garcia, neste mesmo sentido, também estabelece que a desobediência civil seria um ato que visa a mudança da norma por meio da publicidade. Portanto, a desobediência civil para a autora, se apoiando em Celso Lafer, seria “ação que 78 Ibdem, p.162-163. 79 TOMÉ, Julio Rawls e a Desobediência Civil Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGFIL/UFSC), Florianópolis, 2018, p.104. 80 COSTA, Nelson Nery Teoria e realidade da desobediência civil, 2ª edição (revista e ampliada), Rio de Janeiro, Editora Forense, 2000, p.60/61. 81 BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política; trad. Carmen C. Varriale; Gaetano Lo Mônaco; João Ferreira;Luís Guerreiro Pinto Cacais e Renzo Dini; coord. trad. João Ferreira; rev. geral João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. - Brasília : Editora Universidade de Brasília (UNB), 11a ed., Vol. 1, 1998, p.335. 17 objetiva a inovaçãoe a mudança da norma por meio da publicidade do ato de transgressão, visando demonstrar a injustiça da lei”.82 2.2.5 ATO POLÍTICO Pode-se dizer que a característica de classificar um ato como ato político esta no possibilidade de fazer uma espécie de subsunção entre o conceito do que seria “político” como um ato externo da realidade. Haveriam diversas definições de política segundo Norberto Bobbio, abarcando reflexões de desde a antiguidade até reflexões modernas com notável mudança de sentido entre elas.83 Haveriam definições de política que a conceituariam com relação a seus fins, seriam, por isso, definições teleológicas do fenômeno.84 Ademais, Bobbio também diz que existiria a visão que reduziria o fenômeno político à atividade direta ou indiretamente relacionada com a organização do poder coativo.85 Haveria quem identificasse a política como uma relação amigo-inimigo, cujo campo seria o antagonismo (Carl Schmitt)86 e haveriam definições de política, como de Hannah Arendt, que colocariam a ênfase na liberdade dos indivíduos e no seu agir em conjunto, rechaçando concepções teleológicas e, por isso, dizendo que a política seria um fim em si mesmo. Para a autora, a política não é domínio, “não se baseia na distinção entre governantes e governados e nem é mera violência“.87 Para a autora “o conteúdo da política é, 82 GARCIA, Maria. Desobediência Civil Direito Fundamental, 2ª Edição revista, atualizada e ampliada, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2004, p. 274. 83 BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política; trad. Carmen C. Varriale; Gaetano Lo Mônaco; João Ferreira;Luís Guerreiro Pinto Cacais e Renzo Dini; coord. trad. João Ferreira; rev. geral João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. - Brasília : Editora Universidade de Brasília (UNB), 11a ed., Vol. 1, 1998, p. 954. 84 Ibdem, p.958. 85 Ibdem, p.960. 86 Ibdem, p.959. 87 TORRES, Ana Paula Repolês. O sentido da política em Hannah Arendt. Trans/Form/Ação, Marília , v. 30, n. 2, p. 235-246, 2007 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010131732007000200015&lng=en&nrm=iso> Acessado em: 17/11/2020. P.236. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010131732007000200015&lng=en&nrm=iso 18 pois, a disputa acerca das medidas necessárias para preservar o corpo político e a livre deliberação”.88 Doglas Cesar Lucas dirá que Hannah Arendt reconhece “a desobediência civil como reafirmação da obrigação político-jurídica capaz de regenerar a faculdade de agir, de participar do processo de tomada de decisões políticas e, dessa maneira, impedir a degeneração da lei e a corrosão do poder político.”89 Notadamente, Jonh Rawls, escrevendo sobre desobediência civil, também terá sua concepção do que seria política, elaborando que ela seria um ato político por duas razões: i) Porque é um ato direcionado a maioria daquele sistema político; ii) Porque se espelha em princípios políticos que regem a sociedade: Os princípios de justiça.90 Sobre isso, também tem-se a lição de Joana de Menezes Araújo da Cruz, sintetizada: "Segundo Jonh Rawls, a desobediência civil é um ato político. Rawls a conceitua dessa forma por duas razões: Por ser um ato dirigido à maioria política momentaneamente no poder e por ser orientada pelos princípios de justiça eleitos na posição original."91 Dirá Doglas Cezar Lucas, igualmente, que a desobediência civil seria caracterizada como um ato político e se apoiaria nas visões de Arendt e Rawls.92 Pois bem, feita essa rápida digressão sobre o se chamaria de “político”, é certo que “as questões diretrizes variam, e tanto a localização da política (notadamente sua relação com o econômico e o social) quanto suas implicações (a liberdade, a emancipação, o poder?) são 88 CARVALHO, J. B. C. L. de. A Desobediência Civil no pensamento político de Hannah Arendt: Um direito fundamental Espaço Jurídico Journal of Law [EJJL],v. 13, n. 1, p. 55-66, jan./jun. 2012, Joaçaba (SC), p.59. Disponível em: https://portalperiodicos.unoesc.edu.br/espacojuridico/article/view/1420. Acessado em 02/05/2020. 89 LUCAS, D. C. (2013). Direito De Resistência E Desobediência Civil: História E Justificativas. Revista Direito Em Debate, V. 8 N. 13(1999), Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI,P. 42. Disponível em: < https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/view/807> Acessado em: 16/11/2020. 90 TOMÉ, Julio Rawls e a Desobediência Civil, Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGFIL/UFSC), Florianópolis, 2018, p.103. 91 CRUZ, Joana de Menezes Araújo da. Desobediência Civil nos Interstícios do Estado de Direito, Editora Lumen Juris, 1ª ed., Rio de Janeiro, 2017, p.121. 92 SANTOS, A. L. C., & LUCAS, D. C. (2015). Desobediência civil e controle social da democracia. Revista Brasileira De Estudos Políticos, v. 110 (2015), Belo Honrizonte (MG), 179-216, p. 191. Disponível em: < https://pos.direito.ufmg.br/rbep/index.php/rbep/article/view/P.0034-7191.2015v110p179> Acessado em: 16/11/2020. https://portalperiodicos.unoesc.edu.br/espacojuridico/article/view/1420 https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/view/807 https://pos.direito.ufmg.br/rbep/index.php/rbep/article/view/P.0034-7191.2015v110p179 19 interpretadas diferentemente de um autor para outro”.93 Não obstante tal aspecto, viu-se na pesquisa que atribuir à desobediência civil a alcunha de “ato político” foi posição majoritária. 2.2.6 ÚLTIMO RECURSO Ser um meio extraordinário de tentativa de resolução de conflitos e, portanto, somente utilizável quando os mecanismos institucionalizados de resoluçao de controvérsias não derem certo, é uma das características que comporiam, segundo parte da doutrina, um ato de Desobediência Civil. Sobre tal característica nos autores clássicos, vemos tal embate claramente entre Henry David Thoreau e Martin Luther King. Talvez tais autores pensassem igual Igor Mendes, quando este diz que “Aguentar as consequências é sempre um problema de convicção”.94 Na bibliografia consultada sobre Gandhi, não foi possível encontrar algum trecho que fosse prova cabal de seu posicionamento a respeito dessa caracterísitca, mas é certo que ao longo de sua vida e de sua história de luta houve casos em que se voltou diretamente para a autoridade britânica para tentar botar um fim na discriminação seja pela elaboração de petições, cartas ou ameaça de protestos se suas reinvidicações não fossem atendidas.95 Inclusive em Maio de 1942 “solicita ao governo britânico que deixe a Índia; é preso em Agosto”. 96 Thoreau tem seu pensamento calcado em uma visão anti-estadista e voltando para uma justificação do ato desobediente com base na consciência dos homens. Quando se questiona sobre se deve-se desobedecer leis injustas responde que deve-se violar a lei sempre que ela obrigue o indivíduo a ser, ele mesmo, o agente da injustiça.97 Adiante, dirá que os mecanismos que o Estado propicia para remediar o mal demorariam muito tempo e a vida de um homem pode acabar antes que eles deêm frutos, além 93 COLLIOT-THELENE, Catherine. O conceito de política posto à prova pela mundialização. Rev. Sociol. Polit., Curitiba, n. 12, p. 7-20, Jun. 1999. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44781999000100001&lng=en&nrm=iso > Acessado em: 17/11/2020. P.7. 94 MENDES, Igor. Esta Indescritível Liberdade, Texto em transe- Faria e Silva Edições, São Paulo, 2020, p.13. 95 GANDHI, Mahatma Todos Somos Irmãos: Reflexões Autobiográficas, Traduçãode Bruno Alexander, 1ª Edição, Editora L&PM, Porto Alegre (RS), 2020, p.291-299. 96 Ibdem, p.291-299. 97 THOREAU, Henry David A Desobediência Civil, Tradução de José Geraldo Couto, 3ª reimpressão, Penguin Classics Companhia das Letras, São Paulo, 2012, p.18. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44781999000100001&lng=en&nrm=iso 20 de estabelecer que não seria sua tarefa reivindicar coisa alguma ao legislativo ou ao poder executivo do governador, perpetuando uma visão de que não se deveria esperar dos mecanismo instituídos uma solução de conflitos satisfatória.98 Por outro lado, a vertente classica de Luther King, que, segundo Nelson Nery,”tornou-se responsável pela apresentação das modernas características da resistência civil, ao defini-la como uma ação coletiva, depois de esgotados todos os canais de reinvidicação”99 propugna que a ação direta deveria vir a tona unicamente depois de fases de negociação, se perpetuando, portanto, como um último recurso para se protestar. Dirá em “Letter from Birmingham city jail” que os requisitos para a deflagração da desobediência deveriam ser a coleta de informações para averiguar se a injustiça ainda estaria pendente, a tentativa de negociação, o preparo dos envolvidos na desobediência e, por último, a “ação direta”. 100 Portanto, deveria ser o último recurso para os desobedientes e exigiria uma grande preparação antes de ser posta em prática.101 Doglas Cesar Lucas dirá que a desobediência civil teria por característica ser um veículo extraordinário de resolução de conflitos, depois de esgotados todos os meios institucionais de resolução de conflitos. Portanto, “Seu uso deve limitar-se a casos extremos, como um recurso último. Necessário se faz, antes de tudo, esgotar os meios institucionais de solução dos conflitos.”102 Esse ato, que visaria a “reformulação do mundo normativo e das condutas governamentais, se constitui um processo a favor de melhorias das instituições democráticas, o que lhe impõem reconhecê-las”.103 Dirá Renato Menêzes de Assis, semelhante a Doglas, que a desobediência civil seria o último recurso a ser útilizado quando os meios de solução propostos pelo governo já não dão conta de resolver os anseios da população. Exigiria “um respeito com a ordem constitucional democrática, deste modo, ela deve se apresentar apenas quando esgotados todos os meios 98 Ibdem, p.18. 99 COSTA, Nelson Nery Teoria e realidade da desobediência civil, 2ª edição (revista e ampliada), Rio de Janeiro, Editora Forense, 2000, p.48. 100 KING, Martin Luther. Letter From Birminghan City Jail. In: BEDAU, Hugo Adam Civil Disobedience in Focus London ; New York : Routledge, 2002, p.69. 101 COSTA, Nelson Nery. Op. Cit., p.44. 102 LUCAS, D. C. (2013). Direito De Resistência E Desobediência Civil: História E Justificativas. Revista Direito Em Debate, V. 8 N. 13(1999), Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI,P. 40. Disponível em: < https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/view/807> Acessado em: 16/11/2020. 103 Ibdem, p.40. https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/view/807 21 previstos pelo próprio sistema de solução dos conflitos existentes”.104 Para escrever se apoia nas doutrinas de Fernando Armando Ribeiro e Jorge Franscisco Malen Seña.105 Joana de Menezes Araújo da Cruz, não discrepando dos pontos expostos acima, também apresenta como característica da desobediência civil como um ação que poderia acontecer unicamente após lançar mão de todos os meios ordinários de resolução de controvérsias que o ordenamento jurídico oferece. Para escrever sobre o assunto, se apoia na doutrina de Jonh Rawls, Elliot M. Zashin e, notadamente, Carlos Santiago Nino.106 Por derradeiro, Nelson Nery também atribui às características da desobediência civil a propositura desse ato como último recurso para induzir a mudança estatal e cita outro autor, M.M. Goldsmith.107 Notadamente dos autores acima estudados, Habermas, em seu livro “O direito e a força” elenca os requisitos para a desobediência civil e, entre eles, está que o desobediênte “deve esgotar as possibilidades de ação legal ou de revisão institucional da posição da maioria”.108 Jonh Rawls também defende tal ponto de vista, porém, estabelecerá uma fexibilização desta exigência, ou seja, dirá que poderá haver casos de radical violação à direitos, fato que autorizaria a dispensa de tentar a resolução de conflitos pelas vias institucionais previamente estabelecidas na constituição.109 Ronald Dworkin apresenta, como já dito, uma classificação triplice e nela está presente a “desobediência civil baseada na integridade”. A consciência do indivíduo totalmente desaprova o que a lei estabelece, negando-a totalmente e a desobedecendo. Ocorreria em uma 104 ASSIS, Renato Menêzes de. O Fundamento da Desobediência Civil em Ronald Dworkin, 2012, p.32. Trabalho de conclusão de curso- UNICEUB – Centro Universitário de Brasília, Brasília, 2012. 105 ASSIS, Renato Menêzes de. O Fundamento da Desobediência Civil em Ronald Dworkin, 2012, p.32-33. Trabalho de conclusão de curso- UNICEUB – Centro Universitário de Brasília, Brasília, 2012. 106 CRUZ, Joana de Menezes Araújo da. Desobediência Civil nos Interstícios do Estado de Direito, Editora Lumen Juris, 1ª ed., Rio de Janeiro, 2017, p.126. 107 COSTA, Nelson Nery Teoria e realidade da desobediência civil, 2ª edição (revista e ampliada), Rio de Janeiro, Editora Forense, 2000, p.54. 108 ALVES, Sílvia. Desobediência Civil E Democracia Civil Disobedience And Democracy Revista Duc In Altum Cadernos de Direito, Faculdade Damas,Recife, vol. 7, nº11, jan.-abr. 2015, p.72-73. Disponível em: < https://faculdadedamas.edu.br/revistafd/index.php/cihjur/index > Acessado em 16/11/2020. 109 Ibdem, p.67-68. https://faculdadedamas.edu.br/revistafd/index.php/cihjur/index 22 situação de urgencia e não exigiria o esgotamento de todas as instâncias dos metodos de resolução de conflitos institucionalizados para se perpetuar. Essa é a lição trazida por Renato Menêzes Assis sobre a obra de Dworkin.110 2.2.7 SUJEIÇÃO ÀS SANÇÕES Para depois de perpetrado o ato desobediente, tal característica dita que os participantes deveriam se sujeitar as penas que a lei impõem a eles e aceitar a pubição pelos atos praticados. Consultando os clássicos, parece que este fato é unânime. Em Thoreau e Martin Luther King isso é visto de forma bastante explícita. Gandhi em sua autobiografia também disserta sobre essa questão das sanções e a prisão dos desobedientes. Henry Thoreau dirá em sua obra Desobediência Civil que o lugar dos homens justos seria na prisão.111 Portanto, “todos os desobedientes deveriam estar preparados para a mesma sina, lancinante, porém, virtuosa, honrosa e livre.”112 O autor, inclusive, viveu pelas suas palavras e, de fato, foi preso por que passou seis anos sonegando imposto .113 Igualmente nesse sentido, Martin Luther King, como visto, concordava integralmente neste aspecto de sujeição às sanções impostas pela autoridade pública.114 115 116 Gandhi, em texto de sua autobiografia, expõe que o desobediente ao quebrar as leis imorais do Estado chama para si a prisão e outros tipos de coação. Diz que o desobediente faz isso quando e porque ele percebe que sua liberdade individual se tornou um fardo. Ele internaliza que o Estado só permite a fruição dessa liberdade pessoal quando ele segue a risca suas regras. Portanto, a aderência às regras do Estado seria condição para o exercício da 110 ASSIS, Renato Menêzes de. O Fundamento da Desobediência Civil em Ronald Dworkin, 2012, p.32. Trabalho de conclusão de curso-UNICEUB – Centro Universitário de Brasília, Brasília, 2012. 110 Ibdem, p.37. 111 THOREAU, Henry David A Desobediência Civil, Tradução de José Geraldo Couto, 3ª reimpressão, Penguin Classics Companhia das Letras, São Paulo, 2012, p.20. 112 OLIVEIRA, Bruno Pittella Direito de Resistência, Desobediência Civil e a Construção da Democracia no Brasil Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro, 2013, p.62. 113 THOREAU, Henry David, Op. Cit., p.24. 114 COSTA, Nelson Nery Teoria e Realidade da Desobediência Civil, 2ª Edição (Revista e ampliada), Editora Forense, Rio de Janeiro, 2000, p. 44. 115 Ibdem, p. 45. 116 KING, Martin Luther. Letter From Birminghan City Jail. In: BEDAU, Hugo Adam Civil Disobedience in Focus London ; New York : Routledge, 2002, p.74. 23 liberdade pessoal.117 A aderência à regras injustas seria uma troca imoral pela liberdade pessoal. Dirá Gandhi em matéria o “Young India” de 1921 que: Um cidadão que assim percebe a natureza perversa de um Estado não está satisfeito em viver em seu sofrimento e, portanto, parece aos outros que não compartilham de sua crença ser um incômodo para a sociedade, enquanto tenta compelir o Estado, sem cometer uma violação moral, a prendê-lo. Dito isso, a resistência civil é a expressão mais poderosa da angústia de uma alma e um protesto eloquente contra a perpetuação de um Estado perverso. (...) Assim, 3 mil indianos na África do Sul, após a devida notificação ao governo do Transvaal, cruzaram a fronteira do Transvaal em 1914, desafiando a Lei de Imigração do Transvaal, e obrigaram o governo a prendê-los. Quando o governo não conseguiu incitá-los à violência ou coagi-los à submissão, rendeu-se às suas exigências.118 E mais a frente, em 1946, no volume sexto da obra “Mahatma, Life of Mohandas Karamchand Gandhi, de D. G. Tendulkar. Publicado por Vithalbhai K. Jhaveri & D. G. Tendulkar, Bombaim”: No momento em que me tornei um satyagrahi, deixei de ser um sujeito, mas nunca deixei de ser um cidadão. Um cidadão obedece às leis voluntariamente, nunca por coerção ou medo da punição prevista para sua violação. Ele as quebra quando considera necessário e acolhe a punição. Isso tira a força delas e da desgraça que elas vêm provocar.119 A questão parece sedimentada se analisarmos os autores classicos, portanto. Nesse sentido, sintese dos autores classicos neste aspecto é trazida por Joana de Menezes Araújo, na seguinte ordem: Luther King, Gandhi e Thoreau. Dirá a autora: “Nunca advoguei pelo desrespeito às leis. Isto levaria à anarquia. Quem se dispõe a violar uma lei, deve fazê-lo abertamente, apaixonadamente e com predisposição para aceitar a respectiva punição. Quem descumpre a lei por considerá-la injusta e se dispõe a ser preso a fim de despertar a consciência da comunidade para a injustiça da lei desrespeitada, está na verdade expressando o mais alto respeito para com as leis” (...) Neste mesmo sentido, Gandhi dizia estar disposto a ir alegremente para a prisão por ter violado as normas de sua comunidade. (...) “Diante de um governo que prende qualquer homem injustamente, o único lugar digno para um homem justo é a prisão inevitavelmente”(...) 120 117 GANDHI, Mahatma Todos Somos Irmãos: Reflexões Autobiográficas, Tradução de Bruno Alexander, 1ª Edição, Editora L&PM, Porto Alegre (RS), 2020,p238. 118 Ibdem, p.238. 119 Ibdem, p234. 120 CRUZ, Joana de Menezes Araújo da. Desobediência Civil nos Interstícios do Estado de Direito, Editora Lumen Juris, 1ª ed., Rio de Janeiro, 2017, p.126. 24 Entretanto, alguns autores mais recentes acreditam que poderia se relativizar tal aspectos, oferecendo uma punição mais branda ou privilegiada. Defendem tal visão Dworkin, Rawls, Habermas e em parte por Bobbio. Consultando os textos de Sílvia Alves, professora da Universidade de Lisboa, a Desobediência Civil para Bobbio seria uma ação omissiva, coletiva, pública e pacífica, às vezes não parcial e às vezes não passiva. Dirá a autora que, para Bobbio “A desobediência civil é omissiva, coletiva, pública, pacífica, não necessariamente parcial (como ocorreu com Gandhi) e não necessa-riamente passiva (as cam-panhas contra a discriminação tendem a não reconhecer ao Estado o direito de punir)”.121 Sílvia parece fazer jus mais a literalidade do texto quando estabelece que a Desobediência Civil para Bobbio não necessariamente seria sempre passiva. Nesse sentido há trecho específico em “o terceiro ausente.122 Dirá Bobbio que “passiva” seria: (...) aquela que se dirige as partes perceptivas da lei e não a parte punitiva, em outras palavras, aquela que se cumpre com a precisa vontade de aceitar a pena que a ela se seguirá, e, como tal, enquanto não reconhece ao Estado o direito de impor obrigações contra a consciência, a ele reconhece o direito de punir qualquer violação das próprias leis.123 Portanto, estabelecerá Bobbio que tais atos de desobediência não necessariamente tendem a reconhecer ao Estado o direito de sancionar aquele que infringe a norma. Rawls estabelece que o agente da desobediência deveria se sujeitar as sanções impostas pelo sistema, afinal, Rawls não preconizava a mudança radical de sistema de governo com a desobediência civil. As sanções e outras leis vigentes que não estavam sendo questionadas pelo ato de desobediência seriam total e completamente válidas. Rawls escreve que, apesar disso, por todo o caráter do ato as sanções deveriam ser diminuídas ou até mesmo suspensas.124 121ALVES, Sílvia. Desobediência Civil E Democracia Civil Disobedience And Democracy Revista Duc In Altum Cadernos de Direito, Faculdade Damas,Recife, vol. 7, nº11, jan.-abr. 2015, p.56. Disponível em: < https://faculdadedamas.edu.br/revistafd/index.php/cihjur/index > Acessado em 16/11/2020. 122 BOBBIO, Norberto, O Terceiro Ausente: Ensaios e discursos sobre a paz e a guerra, organização: Pietro Polito, Préfácio a edição brasileira: Celso Lafer, Revisão técnica do texto de Bobbio: Frederico Diehl e Valdemar Bragheto Junqueira, Tradução: Daniela Versiani, editora Manole, Barueri, São Paulo, 2009, p.104. 123 Ibdem, p. 104. 124 TOMÉ, Julio Rawls e a Desobediência Civil Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGFIL/UFSC), Florianópolis, 2018, p.98.p.104. https://faculdadedamas.edu.br/revistafd/index.php/cihjur/index 25 Nesta linha também o segue Habermas. Os desobedientes devem se sujeitar ao castigo que a norma oferece pela transgressão da lei. Ela seria considerada uma prática ilegal que, entretanto, similarmente à Rawls em seus escritos, deve sofrer uma sanção diferenciada em virtude do cárater ético da ação desobediente. O autor, inclusive, dirá que quem pune o desobediente civil como um criminoso qualquer estaria perpetuando um “legalismo autoritário”.125 Ronald Dworkin entende que o desobediente civil não deveria ser visto de forma igual à um criminoso comum ( indo de encontro,assim, com as posições de Arendt, Rawls e Bobbio.126 Defende uma punição privilegiada aos desobedientes justamente por suas ações serem dotadas de um senso forte de justiça e a favor da coletividade e não do benefício próprio.127 Para além disso, pode-se inferir da teoria do autor que “o direito pode “abrigar”, dentro de certos limites, a desobediência civil. Nessa perspectiva, a desobediência não consistiria num ato ilegal ou ilícito.”128 Dirá Dworkin, criticando o positivismo, que “não devemos dizer que se alguém violou a lei, por qualquer razão que seja e por mais honrosos que sejam seus motivos, sempre deve ser punido porque a lei é a lei”.129 Hannah Arendt, quanto as punições aos desobedientes,irá além dos autores acima.Eles se contentaram em explicitar que os desobedientes deveriam receber atitudes mais tolerantes por parte do poder público, porém a autora vai além. Ao invés de uma mera tolerância, deveria-se criar um nicho constitucional para a desobediência civil (como dito acima) e, além disso, aos desobedientes deveria ser dado o direito de auxiliar e influenciar o próprio Congresso nacional do país.130 Portanto, não bastava a “frágil garantia de não serem 125 HABERMAS, Jürgen. “La desobediencia civil. Piedra de toque del Estado democratico de Derecho”, in Ensayos políticos, Ediciones península, Traduccion de Ramon Garcia Cotarelo, Barcelona, 2002, p.70. 126 SANTOS, A. L. C., & LUCAS, D. C. (2015). Desobediência civil e controle social da democracia. Revista Brasileira De Estudos Políticos, v. 110 (2015), Belo Honrizonte (MG), 179-216, p. 194. Disponível em: < https://pos.direito.ufmg.br/rbep/index.php/rbep/article/view/P.0034-7191.2015v110p179> Acessado em: 16/11/2020. 127 LUCAS, Doglas Cesar; SANTOS André Leonardo Copetti; DE OLIVEIRA, Carla Dóro, O papel da desobediência civil em tempos de desconfianças democráticas. O direito entre legalidade e legitimidade REVISTA DIREITOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS (UNIFAFIBE), vol.6, N.1,2018 São Paulo p.75-76. Disponível em: < http://www.unifafibe.com.br/revista/index.php/direitos-sociais-politicas-pub/article/view/419.> Acessado dia 22/04/2020. 128 Ibdem, p.77. 129 DWORKIN, Ronald Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martin Fontes, 2001, p.168. 130 SILVA, Felipe Gonçalves Desobediência Civil e o aprofundamento da democracia Pensando – Revista de Filosofia Vol. 9, Nº 18, 2018, P.205-206. Universidade Federal do Piauí (UFP) Departamento de Filosofia, https://pos.direito.ufmg.br/rbep/index.php/rbep/article/view/P.0034-7191.2015v110p179 http://www.unifafibe.com.br/revista/index.php/direitos-sociais-politicas-pub/article/view/419 26 tratados como criminosos comuns, encontraríamos em Arendt a defesa de que a esses mesmos cidadãos seja dado acesso aos processos políticos institucionalizados.”131 2.2.8 NÃO VIOLÊNCIA Quanto a esta característica, pode-se notar que a visão dos clássicos é de não unânimidade em relação a ela. Henry Thoreau defendia fervorosamente a via pacifica para solução dos conflitos, mas era um realista e reconhecia que apenas a via pacifica em alguns casos, não possuiria sempre reais chances de êxito e reconhecia suas fragilidades.132 Gandhi estabeleceu um marco na prática da desobediência, notadamente a desobediência não violenta, que sempre será seu legado.133 Gandhi é exposto como um pacifista (praticante da Ahimsa) e pregava a resistência não-violenta, e a Satyagraha, foi sua estratégia mais famosa, que consistia na resistência pacífica, praticada por meio de protestos não violentos com o objetivo de reivindicar direitos civis e políticos.134 Aprofundando-se um pouco mais nessa discussão, é importante notar que, Segundo Joana de Menezes Araújo, apoiando-se nas ideias de Vinit Haksar, Gandhi teria uma visão de que não se poderia caracterizar um ato como violento se não estivesse presente uma situação de infração do dever.135 Gandhi teria exemplificado tal posicionamento ao tratar da greve dos transportadores de leite, cuja paralisação aos olhos de gandhi foi legítima, ainda que tenha causado a morte de vários bebês da comunidade.136 Explica que“apesar de colocarem a vida de pessoas em risco, em nenhum momento tinham assumido o dever específico de alimentar as Programa de pós graduação em filosofia. Disponível em: <https://revistas.ufpi.br/index.php/pensando/issue/view/Vol.%209%2C%20n.18%2C%202018/showToc>. Acessado em 02/05/2020. 131 SILVA, Felipe Gonçalves Desobediência Civil e o aprofundamento da democracia Pensando – Revista de Filosofia Vol. 9, Nº 18, 2018, P.205-206. Universidade Federal do Piauí (UFP) Departamento de Filosofia, Programa de pós graduação em filosofia. Disponível em: <https://revistas.ufpi.br/index.php/pensando/issue/view/Vol.%209%2C%20n.18%2C%202018/showToc>. Acessado em 02/05/2020, p.206. 132 COSTA, Nelson Nery Teoria e Realidade da Desobediência Civil, 2ª Edição (Revista e ampliada), Editora Forense, Rio de Janeiro, 2000, p. 37. 133 OLIVEIRA, Bruno Pittella Direito de Resistência, Desobediência Civil e a Construção da Democracia no Brasil Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro, 2013, p.75. 134 Ibdem,p.71-72. 135 CRUZ, Joana de Menezes Araújo da. Desobediência Civil nos Interstícios do Estado de Direito, Editora Lumen Juris, 1ª ed., Rio de Janeiro, 2017, p.120. 136 Ibdem, p.120. https://revistas.ufpi.br/index.php/pensando/issue/view/Vol.%209%2C%20n.18%2C%202018/showToc https://revistas.ufpi.br/index.php/pensando/issue/view/Vol.%209%2C%20n.18%2C%202018/showToc 27 crianças daquela região”.137Arremata a autora que visão semelhante é encontrada em Santiago Nino, qando este análisa o “significado moral das omissões.”138 Uma das críticas que se aponta a política de não-violência de Gandhi é que este condena violência física direta, mas teria negligenciado o fato de mesmo uma omissão poder causar violência contra os indivíduos.139 Para Martin Luther King as grandes características da desobediência civil seriam: Uma ação de massas, não violenta e aberta, chamando a atenção da população passiva. Das táticas utilizadas vale citar os boicotes, os sit-in e a marcha, todas levadas a cabo sem a utilização de violência. Entende Luther King que se os desobedientes forem para a prisão, o significado daquele ato ficaria cristalino140. Luther King afirmava em sua obra “Why we can´t wait” que a desobediência pacífica seria uma forma poderosa e justa sendo a uma arma que corta sem machucar e enobrece aquele que a usa.141 O autor entendia que a inexistência de violência nos atos desobedientes colocava o governo em xeque, pois, se proibisse manifestações pacificas, seria injusto, mas, se deixasse que ocorressem ficaria público a insatisfação do povo contra o governo. Ela colocaria em contradição o Estado.142 Martin Luther King não admitia que suas ações fossem clandestinas e ressaltava que a violência não poderia ir contra pessoas, apenas contra coisas (estabelece isso no final da década de sessenta).143 Nelson Nery, dissertando sobre a doutrina de Luther King expõe que tais táticas visavam mostrar que as reinvidicações da população negra eram justas e, pela ação não-violenta, tinha como um dos seus objetivos consolidar uma publicidade a seu favor.144 Nelson Nery sintetiza a questão dos classicos desobedientes dizendo que: 137 CRUZ, Joana de Menezes Araújo da. Desobediência Civil nos Interstícios do Estado de Direito, Editora Lumen Juris, 1ª ed., Rio de Janeiro, 2017, p.120. 138 Ibdem, p.120. 139 BEDAU, Hugo Adam Civil Disobedience in Focus London ; New York : Routledge, 2002, p.154. 140 COSTA, Nelson Nery Teoria e Realidade da Desobediência Civil, 2ª Edição (Revista e ampliada), Editora Forense, Rio de Janeiro, 2000, p. 44. 141 KING, Martin Luther, Why we Can´t Wait, New York, The American Library, 1966, p.26. 142 COSTA, Nelson Nery, Op. Cit,, p. 45. 143 Ibdem, p.48. 144 Ibdem, p. 46. 28 As teorias clássicas da desobediência civil não são unánimes. Thoreau defende uma revolução pacífica, mas posteriormente admitiu o emprego da força pelos resistentes. Gandhi propõe apenas a via não violenta. Luther King pregava o protesto não violento, mas reconhece a necessidade de uma força que interrompesse o funcionamento da sociedade em alguns pontos chave. 145 O Pensamento de não violência será seguido
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