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Monografia Garantias processuais

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LILIAN FELIX BORGES
GARANTIAS PROCESSUAIS PENAIS E OS POVOS INDÍGENAS: ESTUDO DE CASO DA MORTE DOS GARIMPEIROS DA TERRA INDÍGENA ROOSEVELT
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
MONOGRAFIA
Cacoal – RO
2019
RESUMO
O trabalho em questão tem por objetivo abordar a efetividade na aplicação das garantias processuais penais aplicadas aos réus indígenas no processo judicial de número 790-04.2015.4.01.4103 em tramitação no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, subseção Judiciária Federal de Vilhena, bem como da aplicação dos princípios constitucionais de reconhecimento à diferença dos povos indígenas e aos seus modos de vida tradicionais. Para tanto, foi utilizado método de pesquisa hipotético com abordagem zetética e o método estrutural com abordagem dogmática com a utilização da técnica de pesquisa bibliográfica juntamente com a análise do caso em tela para a verificação da aplicação das garantias processuais aos réus indígenas. Após a análise, verificou-se a dificuldade do juízo federal rondoniense no reconhecimento da diferença a que os réus indígenas estão submetidos devido às particularidades culturais que possuem, com a prevalência do paradigma da integração pré-constituição no deslinde processual em considerar o grau de integração dos indígenas à luz do Estatuto do Índio para a recusa de confecção de laudo antropológico para aferição da culpabilidade dos indígenas, desconsiderando o texto constitucional de reconhecimento à diferença e modos de vida tradicionais dos povos indígenas. O Ministério Público Federal teve uma atuação decisiva no processo em tela para que as garantias processuais penais fossem aplicadas a contento, reforçando a necessidade de confecção de laudo antropológico para a efetividade do princípio do promotor natural, da presunção da inocência e do contraditório e da ampla defesa. Faz-se necessária a ampliação do arcabouço legislativo penal e processual penal, bem como de normativos internos, para que os órgãos judiciais e policiais tenham balizas suficientes para uma melhor atuação quando da presença de réus indígenas no processo judicial penal. 
Palavras-chave: Garantias processuais penais. Réus indígenas. Terra Indígena Roosevelt.
ABSTRACT
The purpose of this paper is to assess the effectiveness of the criminal procedural safeguards applied to indigenous defendants in the judicial process number 790-04.2015.4.01.4103 in the Federal Regional Court of the 1st Region, Federal Judicial Branch of Vilhena, as well as the application of constitutional principles of recognition to the difference of indigenous peoples and their traditional ways of life. In order to do so, a hypothetical research method with a zephetical approach was used, combined with the structural method with a dogmatic approach, combined with the bibliographic research and the particular case study to analyze the application of procedural guarantees to indigenous defendants. After the analysis, it was verified the difficulty of the federal court in the recognition of the difference that indigenous defendants are submitted due to the cultural particularities they possess, with the prevalence of the pre-constitution integration paradigm in the procedural demarcation in considering the degree of integration of the indigenous in light of the Native People Statute for refusing to produce an anthropological report to assess the guilt of indigenous people, disregarding the constitutional text of recognition of the difference and traditional ways of life of indigenous peoples. The Federal Public Prosecutor's Office had a decisive role in the process on the spot so that criminal procedural safeguards could be applied to content, reinforcing the need to prepare an anthropological report for the effectiveness of the natural promoter principle, the presumption of innocence and contradiction, and the broad defense. It is necessary to expand the criminal and procedural criminal law framework, as well as internal regulations, so that judicial and police organizations have sufficient normatives for a better performance when the presence of indigenous defendants in the criminal judicial process.
Keywords: Due process of law, Indigenous defendants, Roosevelt Native Land.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABA		Associação Brasileira de Antropologia
AGU		Advocacia Geral da União
CI		Comissão de Inquérito
CIMI 		Conselho Indigenista Missionário
CIR		Conselho Indígena de Roraima
COIAB	Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira
CP		Código Penal
FOIRN	Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro
FUNAI 	Fundação Nacional do Índio
GRIN		Guarda Rural Indígena 
HC		Habeas Corpus
IBAMA	Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
IBGE		Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IPL		Inquérito Policial Local
MPF		Ministério Público Federal
OAB		Ordem dos Advogados do Brasil
PF		Polícia Federal
PFE		Procuradoria Federal Especializada da Advocacia Geral da União junto à FUNAI
SBPC		Sociedade Brasileira de Progresso à Ciência
SPI		Serviço de Proteção aos Índios
SPILTN	Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais
STJ		Superior Tribunal de Justiça
STF		Supremo Tribunal Federal
TRF-1		Tribunal Regional Federal da 1ª região
UNI		União das Nações Indígenas
UNI-Acre	União das Nações Indígenas do Acre
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO	11
1 O INDÍGENA: UMA CONCEPÇÃO JUSNATURALISTA	13
1.1 A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA VISÃO OCIDENTAL DO INDÍGENA	13
1.1.1 Do “descobrimento” do Brasil - primeiros estereótipos dos povos indígenas	13
1.1.2 O bom selvagem: influências da teria filosófica de Rousseau na construção da política indigenista brasileira dos séculos XVII e XVIII	15
1.2 O INDÍGENA E A SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA – ASPECTOS ANTROPOLÓGICOS	16
1.2.1 Século 20: embate contra a lógica assimilacionista e o estabelecimento do paradigma da interação	18
2 O CONTEXTO INDÍGENA NO JUDICIÁRIO BRASILEIRO	27
2.1 O DIREITO PENAL E O INDÍGENA	28
2.2 ASPECTOS PROCESSUAIS PENAIS APLICÁVEIS AO INDÍGENA	33
2.3 TESES DEFENDIDAS NOS TRIBUNAIS	35
3 O MASSACRE DOS 29 GARIMPEIROS NA TERRA INDÍGENA ROOSEVELT: APLICAÇÃO DAS GARANTIAS PROCESSUAIS PENAIS NO PROCESSO EM CURSO	41
3.1 O POVO CINTA LARGA: BREVE HISTÓRICO	41
3.2 O MASSACRE DOS 29 GARIMPEIROS: O PROCESSO JUDICIAL	48
3.3 DAS GARANTIAS PROCESSUAIS PENAIS PRESENTES NO PROCESSO	51
CONSIDERAÇÕES FINAIS	58
REFERÊNCIAS	61
INTRODUÇÃO
O convívio dos povos indígenas com a sociedade nacional foi marcado, ao longo dos séculos, por diversos embates para a manutenção de sua existência e o reconhecimento de seus modos tradicionais de vida. Os povos indígenas, desde a invasão dos portugueses à terra que hoje é denominada Brasil, viram-se diversas vezes à beira da extinção, sendo submetidos à toda sorte de dominação, quer seja física, por conflitos físicos diretos e genocídios indígenas, quer seja psicológica, com proibições de manifestar sua cultura e tradições.
A Constituição Federal de 1988 trouxe em seu texto constitucional, após um trabalho árduo do movimento indígena para serem reconhecidos como tal, um capítulo destinado aos indígenas, em que aos povos indígenas é dado o reconhecimento de sua autonomia, bem como é garantido o respeito à suas crenças, organização social, costumes, línguas e tradições. 
A partir da promulgação do texto constitucional, os indígenas passam a ser reconhecidos tais como cidadãos brasileiros, rompendo assim séculos de tentativas por parte do Estado Nacional de integrá-los à nação brasileira através de um processo de aculturação, bem como a tutela orfanológica estatal promovida pelo órgão indigenista, a Fundação Nacional do Índio - FUNAI.
O capítulo constitucional sobre os indígenas também reconhece a capacidade processual dos indígenas, podendo estes figurarem tanto no polo passivo quanto no polo ativo da relação processual. Na seara penal tal relação processual encontram-se os indígenas configurando comoréus devido ao cometimento de ilícitos de variadas tipificações penais.
Perceber quais garantias processuais penais aplicáveis aos réus indígenas configura uma complexidade da qual nem todos os juízes estão habituados a enfrentar. No Estado de Rondônia, um dos processos penais que envolvem réus indígenas é o popularmente conhecido como Massacre dos 29 garimpeiros da Terra Indígena Roosevelt. Este processo, ainda em trâmite na Subseção da Vilhena do Tribunal Regional Federal da 1ª região, trouxe, e ainda traz, diversas complexidades quando da atuação dos autores do processo no tocante aos povos indígenas. 
Portanto, neste trabalho abordar-se-á o referido processo criminal através de um método de pesquisa hipotético dedutivo com abordagem zetética e um método estrutural com abordagem dogmática, para análise da aplicação das garantias processuais aos réus indígenas e se tais garantias estão sendo aplicadas, considerando as particularidades étnico-culturais dos povos indígenas conforme preconizado na Constituição Federal de 1988 (PRODANOV, FREITAS, 2013). Para tanto, verificar-se-á o aspecto normativo dos meios de proteção aos direitos dos povos indígenas, consoante o Estatuto do Índio, a Constituição Federal de 1988 e os Tratados Internacionais voltados à aplicação de garantias processuais aos réus indígenas, identificando a questão jurídica aplicável quando da presença de réus indígenas e as garantias processuais aplicáveis e, por fim, analisando as dificuldades enfrentadas pelo juízo na aplicação das garantias processuais e demais normas e tratados internacionais aplicadas aos réus indígenas.
1 O INDÍGENA: UMA CONCEPÇÃO JUSNATURALISTA
Pensar em povos indígenas e em como seus hábitos, tradições e modo de vida coadunam-se com o sistema jurídico do Estado Brasileiro é deveras uma tarefa complexa. Para tanto, faz-se necessário aprofundar medianamente na visão do indígena pela sociedade nacional e em como esta sociedade nacional lidou ao longo de sua história com os povos indígenas. Visualizar este amplo quadro histórico da formação do Estado Brasileiro e de seus tratos com os povos indígenas dá subsídios necessários para o entendimento do tratamento dispensado pelo Judiciário a estes povos.
Nos subcapítulos subsequentes, abordar-se-á a evolução histórica da visão ocidental dos povos indígenas e de sua concepção ao longo dos séculos e de como esta construção histórica acaba por moldar a visão da sociedade contemporânea em relação aos indígenas.
1.1 A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA VISÃO OCIDENTAL DO INDÍGENA 
1.1.1 Do “descobrimento” do Brasil - primeiros estereótipos dos povos indígenas
O imaginário europeu do século 15 em relação ao hoje continente americano refletia o temor do desconhecido, com lendas sobre monstros e ilhas paradisíacas. A Europa começava a se desvencilhar da Idade Média com a Reforma Protestante e com a expansão dos burgos e dos mercadores. Os europeus foram levados, notadamente os portugueses e espanhóis, a descobrirem novas rotas de comércio para se livrarem-se do domínio dos povos árabes quando da passagem pelo Estreito de Gibraltar.
Esta busca por novas rotas para a comercialização impulsionou os portugueses ao mar, dando origem ao período histórico conhecido como as Grandes Navegações. Neste entremeio, os portugueses chegam ao continente hoje conhecido como América e iniciam as primeiras tratativas com os povos habitantes do continente. Os primeiros relatos de Caminha dos contatos com os habitantes locais trazem a figura de um indígena pacífico, vivendo sem leis e com organização social rudimentar (SOUZA FILHO, 2012).
Os portugueses viram na terra recém-descoberta um meio de aumentar suas riquezas e nos povos locais, denominados de índios, em referência à Índia (LIMA, 2009), uma mão de obra barata para a realização da expansão do Império Português e de suas fronteiras agrícolas (SOUZA FILHO, 2012). Para tanto, na visão dos portugueses, era necessário transformar estes índios em trabalhadores leais à Coroa Portuguesa e, para este fim, deveriam sair de seu estado primitivo e natural.
A fim de realizar este intento de dominação dos povos habitantes do ora denominado Brasil, os portugueses, com uma estratégia diferenciada dos espanhóis, conhecidos por suas barbáries na conquista dos povos pré- colombianos, utilizaram-se da catequese para salvar as almas dos indígenas (LIMA, 2009; SOUZA FILHO, 2012; GAGLIARDI, 1989) e torná-los cristãos, vivendo suas vidas em devoção à Santa Sé e, portanto, atingindo a civilidade, haja vista que viviam de forma primitiva e em pecado. Trata-se, desta feita, do estágio embrionário do paradigma da integração, carregada de etnocentrismo, uma vez que os portugueses viam os povos indígenas tal qual inferiores e primitivos, devendo ser ensinados nos valores cristãos, para de fato se igualarem aos europeus, abandonando sua cultura e modo de vida, uma vez que a cultura europeia era considerada superior (LIMA, 2009). 
A catequese dos jesuítas, além de integrar os indígenas à sociedade portuguesa, tinha também por objetivo facilitar o aldeamento destes, fixando-os em locais e modificando sua cultura nômade para que desta feita facilitasse o intento real português em conquistar as terras ocupadas por estes povos e também de ter mão de obra indígena para as lavouras, tal qual verdadeiros trabalhadores rurais a serviço da Coroa Portuguesa (BARBOSA, 2001).
A legislação da época reforça o paradigma da integração por fornecer aos indígenas um tratamento mais favorável ao se submeter à catequese e guerra aos demais povos indígenas considerados bravios (BARBOSA, 2001; FEIJÓ, 2016; SOUZA FILHO, 2012). Para a Coroa Portuguesa, a resistência dos povos indígenas ao processo de integração era vista com maus olhos, e a legislação reflete este ideal de integração ao permitir a escravização de indígenas quando tomados em guerras justas, conforme o Regimento Imperial de 1548, repetido em 1570 (SOUZA FILHO, 2012).
Apesar da legislação portuguesa intentar a pacificação dos indígenas e sua consequente integração à sociedade portuguesa, Barbosa (2001) relata que os colonos portugueses viam nos indígenas escravizados uma forma barata de garantir mão de obra para suas fazendas e constantemente provocavam inimizades com os indígenas para poder aplicar o Regimento de 1548, capturando e escravizando indígenas. O tratamento dúbio ofertado aos indígenas pela legislação portuguesa do século 16, ora vendo-os como inimigos, ora vendo-os como selvagens a serem integrados pacificamente, desconsiderava por completo o indígena tal qual sujeito de direitos, submetendo estes povos a uma violência constante (BARBOSA, 2001).
1.1.2 O bom selvagem: influências da teria filosófica de Rousseau na construção da política indigenista brasileira dos séculos XVII e XVIII
Os povos indígenas do Brasil, antes da chegada dos portugueses, não possuíram uma história escrita, em que as histórias das gerações passadas faziam apenas parte da história oral de diversos povos. Com chegada dos portugueses, os povos indígenas foram dizimados tanto pela violência dos portugueses quanto por diversas doenças, levando a um declínio significativo de sua população e junto com este declínio, também sua história.
Tal como povos dominados, o retrato dos povos indígenas é traçado pelos seus dominadores. A teoria filosófica de Rosseau, segundo Feijó (2016), acaba por influenciar a visão que os europeus têm dos povos indígenas, criando, assim, um verdadeiro estereótipo do bom selvagem, de que os indígenas estariam em seu estado puro e natural, desconhecendo as mazelas do mundo civilizado (SOUZA FILHO, 2012).
Este estereótipo, apesar de parecer inofensivo, acaba por guiar, segundo Feijó (2016), toda uma política de Estado, inicialmente com os portugueses e, posteriormente, no Estado brasileiro, que vê o indígena como uma criança, incapaz de tomar decisões e desconhecedora dos riscos de tais ações tomadas, necessitando de um tutor que a ensine a viver em sociedade, a se desenvolver para se tornar um cidadão pleno.
Estalógica assimilacionista das sociedades indígenas, iniciada com o processo de colonização, acaba por gerar o genocídio de populações indígenas, tentativas de conversão à religião cristã e proibição do uso da língua nativa e o seguir das tradições e costumes (GAGLIARDI, 1989; MOURA; MACHADO, 2013). A propagação do etnocentrismo da cultura ocidental em face das culturas indígenas nativas presentes no Brasil fez com que a sociedade não indígena brasileira criasse e perpetuasse um estereótipo negativo dos indígenas, vendo-os como inferiores e selvagens, com um modo de vida primitivo sem o estabelecimento de regras de conduta, similar a animais (FEIJÓ, 2015).
O mesmo etnocentrismo fez nascer a figura do colonizador salvador, incumbido de resgatar os primitivos indígenas da sua condição de miserabilidade e falta de civilização à sociedade não indígena, esta por ser “melhor” e “mais avançada” para os indivíduos (SILVA, 2015). Souza Filho (2012) menciona que o indígena, apesar dos diversos dispositivos legais mencionando-o, não era percebido pela sociedade portuguesa tal qual sujeito de direitos, limitando-se apenas a garantir o direito dos cidadãos portugueses. Essa preocupação pode ser exemplificada pelo Alvará de 1775, ao proteger os cidadãos portugueses casados com indígenas, visando combater o preconceito sofrido por estes portugueses ao mesmo tempo tentando integrar os indígenas à sociedade portuguesa, haja vista que, pelo casamento, tal indígena seria visto como integrado.
A influência da teoria filosófica de Rousseau imprime à legislação colonialista portuguesa uma tentativa de reconhecimento do ser indígena, a exemplo do Alvará Régio de 1680, que traz o reconhecimento da autonomia dos povos indígenas e seus direitos territoriais na tentativa de combater a escravização indígena (BARBOSA, 2001). Infelizmente, na prática, este reconhecimento não se concretiza haja vista o cenário de dominação latifundiária exercida pelo regime das sesmarias e pela catequese dos jesuítas, fazendo com que o Alvará Régio de 1680 e demais disposições legais perdessem sua força normativa e perpetuassem a violência dos colonizadores sob os povos indígenas.
1.2 O INDÍGENA E A SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA – ASPECTOS ANTROPOLÓGICOS 
No século 19, a visão da sociedade não indígena em relação ao indígena era integracionista, à medida que via o indígena com o potencial de ingressar à sociedade e tornar-se cidadão (GAGLIARDI, 1989; SOUZA FILHO, 1994). Dos dispositivos jurídicos da época, raras são as menções aos indígenas como pessoa de direitos, mas sim em como a ocupação indígena no território poderia afetar a colonização, não se levando em consideração, para fins legais, seu modo de vida e tradições. O indígena era visto como órfão e, tal qual, deveria ser tutelado. Tal visão fica evidente na ausência da menção dos indígenas no Código Criminal da época, fato este que Souza Filho (1994, pg. 155) compreende como o nível extremo da marginalização ao mencionar:
É estranho, mas perfeitamente compreensível dentro do sistema: a lei penal -dedicada integralmente aos marginados sociais- não registra referência à mais marginal de todas as populações, os indígenas, porque ou estavam fora da sociedade, não lhes alcançando a ação penal o simples revide guerreiro, ou dentro da sociedade e não se diferenciavam dos pobres marginalizados. 
Barbosa (2001) verifica que, ao longo do Brasil Império, a tutela orfanológica assume o lugar da servidão dos indígenas enquanto mão de obra escrava. O indígena passa de escravo a órfão estatal, conforme fica explicito na Lei Imperial de 27 de outubro de 1831, que abolia a escravidão indígena, reconhecendo-os enquanto órfãos do Estado em que seriam aplicadas as cautelas protetoras proferidas pelos Juízes de Órfãos (BARBOSA, 2001).
Tal tutela instituída pelo Império nada mais diferia de sua política estabelecida na época colonial em transformar o indígena em trabalhador rural e fixá-lo em determinadas regiões, a fim de prosseguir com a política de conquista do território (BARBOSA, 2001; GAGLIARDI, 1989). A Constituição de 1824 faz-se omissa em relação aos povos indígenas e o descaso estatal fica patente, obrigando os governadores das províncias a legislarem por conta própria em regular a convivência destes povos com a sociedade não indígena, mantendo desta feita a política da era colonial (CUNHA, 2012). Tardiamente, em 1845, é publicado o Decreto nº 426 de 1845, conhecido como Regulamento das Catequeses, traz a concepção da transformação do indígena em trabalhador rural, conforme é possível notar no parágrafo 3º, artigo 1º do referido decreto, ipsis literis:
§ 3º Precaver que nas remoções não sejão violentados os Indios, que quizerem ficar nas mesmas terras, quando tenhão bem comportamento, e apresentem um modo de vida industrial, principalmente de agricultura. Neste último caso, e emquanto bem se comportarem, lhes será mantido, e ás suas viuvas, o usufructo do terreno, que estejão na posse de cultivar (BRASIL, 1845).
Cunha (2012) relata a influência que o cientificismo do século XIX teve em construir a humanidade do indígena, de que, segundo a teoria do evolucionismo unilinear, os povos indígenas estariam fadados à extinção por constituírem-se como uma forma primitiva de civilização ou por considerá-los os estágios iniciais da evolução social humana, certos de que o destino destes povos iria ao encontro do ideal da sociedade ocidental, considerada o ápice da evolução em termos sociais.
A imagem do indígena no século 19, segundo Cunha (2012) era construída na dualidade índio “bravio” e o índio “gentio”, a quem o primeiro dava-se a conotação de selvagem e primitivo, visto como inimigo do Estado e, portanto, fadado à destruição; e o segundo encarnava a imagem do bom selvagem idealizada pelos ideários românticos da época, personificado na imagem de Peri e Iracema, tal qual retratado pelo romancista José de Alencar. Ao índio pacífico e ao índio selvagem sua destinação aos olhos do Estado seguia apenas por um caminho: sua extinção, ou pela assimilação à cultura ocidental, ou pela destruição física pelas guerras “justas”.
Barbosa (2001) vê que, na época do Brasil Império, a política estatal consolida-se na tentativa de integrar o indígena à sociedade nacional em formação, política esta que teve continuidade mesmo após a extinção do Brasil Império e o surgimento do Brasil República.
1.2.1 Século XX: embate contra a lógica assimilacionista e o estabelecimento do paradigma da interação
Segundo Silva (2017), no século XIX, com o advento da República, surgiu a necessidade de uma formação da nação brasileira, com a construção de uma identidade enquanto nação, um Brasil coletivo, a ideia de um nós. Esta construção, segundo a autora, exigiu uma uniformidade de ação politicamente eficaz, abrangendo um corpo conceitual em que o indígena figurava como uma parte que se conforma ao projeto de identidade nacional.
Barbosa (2001) e Gagliardi (1989) mencionam que o Brasil República pouco diferiu do Brasil Império na sua política estatal de assimilação dos povos indígenas. Em 1889, com a Proclamação da República, é instituído o Decreto nº 7, que atribui aos Estados o serviço de catequese e civilização dos indígenas, mantendo, desta feita, a política imperial, conforme observado por Barbosa (2001, pg. 200):
Com o advento do federalismo a legislação do Império relativa aos índios foi extinta. Isso aconteceu apenas formalmente porque o sistema de catequese permanecia intacto e atendia plenamente aos grandes fazendeiros que, através das missões que administravam as aldeias, apropriavam-se das terras e da mão de obra indígenas. 
Esta visão de resgate dos povos indígenas passou a figurar como um ideal do Estado Brasileiro, fazendo parte da lógica integracionista de trazer os povos indígenas à comunhão nacional, conforme fica nítido no artigo primeiro do Estatuto do Índio:
Art. 1º Esta Lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressivae harmoniosamente, à comunhão nacional (BRASIL, 1973).
 A visão da sociedade contemporânea em relação aos povos indígenas, segundo Silva (2017), é que estas populações atravancam o desenvolvimento econômico brasileiro, pensamento este que conceitua o ser indígena não como um indivíduo inserido numa sociedade específica, e sim como pessoas numa condição de inferioridade a serem dominadas e pacificadas. O indígena, segundo Silva (2017, pg 21), "é produto da instauração de regime colonial, mas sua densificação como tal perpetuou-se por ocasião das formações dos Estados Nacionais, remanescendo na realidade dos países e em suas estruturas de dominação". 
Tal estrutura de dominação do Estado Brasileiro fica evidente no Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais - SPILTN, posteriormente reduzido à sigla SPI – Serviço de Proteção aos Índios, criado em 1910 através do Decreto 8.072, por articulação do Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, trazendo em seu bojo uma política estatal de integração dos povos indígenas à comunhão nacional, fazendo com que estas populações indígenas se transformassem em trabalhadores nacionais, inofensivos ao Estado, de modo que não configurassem uma ameaça à soberania nacional (OLIVEIRA, 2017). 
O Estado, com o SPI, o primeiro órgão estatal criado especificamente para dedicar-se às populações indígenas, passa a disciplinar e administrar a vida indígena, influenciado pela corrente positivista de Kelsen e pelo darwinismo social predominante, numa tentativa de afastamento da Igreja Católica da catequização dos povos indígenas (OLIVEIRA, 2017; SANTELLI, 2016).
O objetivo do SPI era claro: fazer os povos indígenas “evoluírem” à civilidade, haja vista que pelos ideários evolucionistas da época eram considerados uma sociedade atrasada, que deveriam aproximar seus valores e crenças à sociedade nacional para de fato serem considerados cidadãos brasileiros. O ideário do SPI envolvia também dar sequência ao desbravamento de territórios inexplorados e à expansão nacional e, para tanto, o SPI tinha um papel precípuo de atrair e pacificar as populações indígenas para que os colonos pudessem se estabelecer e tornar a terra produtiva, segundo o pensamento corrente da época (OLIVEIRA, 2017).
A estrutura do SPI envolvia as seções internas do órgão, inicialmente localizadas no Rio de Janeiro e após a estruturação da capital federal em Brasília, foram transferidas para lá. Além de suas seções internas que tratavam da gestão administrativa do órgão, o SPI contava com estruturas descentralizadas denominadas Inspetorias Regionais que tinham sob sua subordinação os Postos Indígenas, estruturas presentes nas terras indígenas com o objetivo de aldear estes povos e promover a atração e pacificação destes com a sua subsequente nacionalização. Segundo Oliveira (2017, pg. 19), os Postos Indígenas contavam com o Chefe de Posto, que era “(...) a pessoa que convivia diariamente com os indígenas, residindo em suas terras, e sendo o responsável direto em coordenar a prestação de assistência sanitária, educacional e promover o "desenvolvimento" dos indígenas buscando a integração nacional.”
O SPI, segundo Oliveira (2017), era considerado o órgão executor do projeto estatal em integrar os indígenas à sociedade brasileira e, para tanto, a transformação do indígena em trabalhador rural era necessária para o cumprimento deste intento, pois como trabalhador rural o indígena contribuiria para o desenvolvimento econômico do país e alçaria a visibilidade de cidadão nacional. Durham (1982, pg. 48), analisando as relações dos povos indígenas e o Estado Brasileiro, ainda observa que
Com efeito, a análise mesmo superficial da relação entre o Estado (corporificado no SPI e na Funai) e os índios demonstra claramente que todo o processo de pacificação, atração e confinamento em reservas consiste, basicamente, na destruição da autonomia econômica e política dos grupos tribais, estabelecendo uma dependência direta e total em face do órgão tutelar. 
O SPI ganha ares ainda maiores de dominação quando da chegada da ditadura brasileira, época em que política integracionista ganha ainda mais força com a implementação da Política de Integração Nacional no período de 1968 a 1988, visando à ocupação da Amazônia Brasileira para o desenvolvimento econômico nacional (BRASIL, 2014). No período em comento, os povos indígenas são alçados a inimigos do Estado Brasileiro, por constituírem uma ameaça ao desenvolvimento e à soberania nacional, sendo aplicado a estes o Direito Penal do Inimigo, conforme delineado por Jakobs; Meliá (2005).
Este tratamento de inimigo nacional conferido aos povos indígenas não passa despercebido pela comunidade internacional e muito menos é aceito pela própria população indígena, que reage às tentativas de assimilação perpetradas pelo Estado Brasileiro. 
Em 1963, o SPI vira alvo de uma Comissão de Inquérito - CI liderada por Jáder Figueiredo, dando origem ao Relatório Figueiredo, relatório este consistindo em um conjunto documental produzido pela Comissão de Inquérito Administrativo do Ministério do Interior comprovando diversas violações praticadas por funcionários do SPI contra as populações indígenas, bem como práticas de corrupção e fraudes administrativas (OLIVEIRA, 2017).
A condução da CI e a elaboração do Relatório Figueiredo, bem como a publicação dos diversos casos de corrupção pela mídia nacional e internacional e a mobilização das lideranças indígenas, levaram o Estado Brasileiro à percepção que seu projeto integracionista estava fadado à falência pela resistência dos povos nativos em abandonarem sua cultura e seu modo próprio de vida (OLIVEIRA, 2017). Em 1967 uma nova Comissão de Inquérito é proposta pelo Ministério do Interior, dando continuidade aos trabalhos paralisados da CI de 1963, instituída pela Portaria nº 154, de 24 de julho de 1967, em decorrência da necessidade imposta pela nova ordem instituída pelos militares em moralizar a máquina pública após o Golpe de 1964 (OLIVEIRA, 2017).
 A CI de 1967, segundo Oliveira (2017), buscou em suas investigações apurar casos de corrupção e negliência praticados por funcionários do SPI e, em suas viagens às Inspetorias Regionais, acabaram por encontrar diversas violações de direitos humanos contra esta população, com uma lista de centenas de responsáveis a serem indiciados pela prática de tais crimes. Oliveira (2017) ainda chama a atenção que a investigação de tais violações, em plena ditadura, não tinham o condão de pensar no respeito ao modo de vida tradicional dos povos indígenas, mas antes em verificar se, de fato, o SPI vinha cumprindo a política intregracionalista do Estado Brasileiro.
Devido aos resultados da investigação da CI de 1967, bem como a pressão exercida pela comunidade internacional e movimentos indígenas, o SPI é extinto e cria-se a Fundação Nacional do Índio – FUNAI para assumir suas atribuições. Assim como seu antecessor, a FUNAI continua com a política de integração estatal, reforçada com a promulgação do Estatuto do Índio pelo Decreto 6.001, de 19 de dezembro de 1973 (BECKER; ROCHA, 2017).
A resistência dos povos indígenas nos anos 70 à época ditatorial com sua política assimilacionista é retratada por Lacerda (2007), que traz a importância do impacto que a Declaração de Barbados I teve em modificar o pensamento e prática indigenista. 
Este documento surge como resultado de um simpósio realizado em 1971 com a participação de antropólogos e sociólogos de toda a América Latina que tratavam da questão indígena no cenário internacional, surgindo neste evento os primeiros movimentos quanto ao questionamento do paradigma integracionista estatal adotado pelos países da América Latina e a idéia embrionária do paradigma da interação, haja vista estes intelectuais verem a necessidade de respeito à diferença destes povos em suas tradições e modos de vida, bem como a concepção de um Estado multiétnico com o protagonismo dos povos indígenas em assuntos de Estado que lhe digam respeito (LACERDA, 2007).
Este marcopossibilitou os avanços dos movimentos indígenas na discussão de sua autonomia, sendo que no ano de 1977, na Segunda Reunião de Barbados, este povo teve participação em peso quando da confecção da Declaração de Barbados II, possibilitando o reconhecimento da pauta dos povos indígenas pela Organização das Nações Unidas (ONU) e uma posterior revisão da Convenção OIT 107 em 1986, suprimindo seu paradigma assimilacionista (LACERDA, 2007). 
Os anos 1970 foram marcados pela aproximação dos povos indígenas do Brasil em discutir pautas comuns a todos os povos, bem como uma agenda organizada para resistência à política assimilacionista estatal (BECKER; ROCHA, 2017; LACERDA, 2007). 
Com o apoio do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e demais organizações indigenistas, os povos indígenas organizam encontros e assembleias, reunindo lideranças, com o fito de trocar informações, bem como resgastar sua imagem enquanto sujeitos ativos de suas vidas, sem a dependência de um Estado tutor e produzir documentos finais de denúncias e reivindicações políticas ao Estado Brasileiro (LACERDA, 2007). O indigena começa se desprender da passividade imposta desde a época colonial e passa a se ver como sujeito, tratando diretamente sua interlocução com o Governo Brasileiro.
Estas assembleias, segundo Lacerda (2007) e Becker; Rocha (2017) , seriam a gênese para a criação da União das Nações Indígenas (UNI), que despontaria como o órgão articulador dos povos indígenas em diversas instâncias, com a proposição de uma agenda positiva de discusões envolvendo diversos atores, dentre eles missionários, indigenistas, antropólogos, cientitas políticos e juristas. 
O indígena passa a sair da esfera de objeto de estudo da Antropologia e passa a reforçar o reconhecimento de sua autonomia e do respeito aos seus sistemas jurídicos tradicionais, levando a diversas discussões nos anos 1980, no âmbito acadêmico e jurídico, envolvendo a Ordem dos Advogados do Brasil, Sociedade Brasileira de Progresso à Ciência (SBPC) e Associação Brasileira de Antropologia (ABA), quanto à relação do Direito Brasileiro e os povos indígenas com vistas a superar o paradigma da integração (LACERDA, 2007).
Todo este contexto, segundo Becker; Rocha (2017), leva, ao período da Constituinte de 1987, à ação organizada do movimento indígena, através da UNI e organizações parceiras indigenistas, para a participação da Comissão Provisória de Estudos Constitucionais,instituída no ano de 1985, com vistas a incluir os direitos dos povos indígenas no texto constitucional. 
Tal participação foi rechaçada pelo presidente da Comissão Provisória, Afonso Arinos, sob a justificativa de que a FUNAI representaria os interesses dos povos indigenas quando da elaboração do texto constitucional relativo aos indígenas, levando desta feita o movimento indígena a articular-se para possuir uma representação no Congresso Nacional.
Não logrando sucesso em conseguir representantes no Congresso Nacional, o movimento indígena, aqui representado pela UNI, com o apoio de demais entidades civis indigenistas, buscou junto ao parlamento apoio para a aprovação de um programa mínimo para os direitos indígenas junto à Assembleia Nacional Constituinte (BECKER; ROCHA, 2017; LACERDA, 2007). 
Este programa mínino para os direitos indígenas incluía em sua agenda o reconhecimento dos povos indígenas tais quais são, como nações indígenas habitando o interior da nação brasileira. Tais quais nações indígenas reivindicavam o reconhecimento de sua estrutura nacional e seus sistemas jurídicos e culturais, buscando assim serem reconhecidos sua autonomia e autodeterminação. 
No entanto, haja vista o estágio frágil que se encontrava a construção da democracia brasileira nos anos 1980, Lacerda (2007) chama a atenção que o reconhecimento dos povos indígenas tais quais nações chocava-se frontalmente com a concepção da soberania nacional, concepção esta fortemente defendida pelos setores mais conservadores e militares.
A busca dos movimentos indígenas e entidades indigenistas parceiras na época pré-Constituinte era de rejeitar totalmente o paradigma assimilacionista estatal com a criação de um Estado Brasileiro pluriétnico, reconhecendo desta feita os diversos sistemas jurídicos dos povos indígenas habitantes do Brasil. Tais anseios do movimento indígena, no entanto, sofreram forte oposição de deputados federais da época, que ainda almejavam manter a política integracionalista estatal, sob a argumentação de que o Estado Brasileiro deveria manter uma sociedade una e que o reconhecimento de outras nações que não a nação brasileira poria em risco essa unicidade e soberania nacional.
Cientes de que seriam novamente invisibilziados pela sociedade não indígena e por suas práticas assimilacionistas, o movimento indígena passou a fazer presença permanente no Congresso Nacional com o intuito de pressionar a Constituinte para garantir um texto constitucional que respeitasse a existência e modo de vida das populações indígenas. 
A UNI não só marcou presença na capital federal, como também esforcou-se à manter um sistema de comunicação com as aldeias, de modo a conscientizar todos os povos indígenas da importância em quebrantar a invisibilidade dos indígenas perante a Constituinte, de modo a garantir o reconhecimento dos indígenas enquanto sujeito de direitos, condição negada a estes desde a colonização.
A resistência dos povos indígenas fica marcada na história da Constituinte quando em 04 de setembro de 1987, o indígena Ailton Krenak, coordenador da UNI, em seu discurso à plenária da Comissão de Sistematização, pinta seu rosto com tintura preta de genipapo em protesto às emendas propostas de cunho assimilacionista propostas pelos deputados federais. A atitude de Ailton Krenak dá o combustível necessário à manutenção de diversas manifestações, tanto em Brasília quando nos estados, dos movimentos indígenas para a aprovação de um texto constitucional favorável aos indígenas.
No dia 25 de maio de 1988, data da votação do capítulo específico aos indígenas pela ANC, os indígenas tiveram presença maciça em Brasília com o fito de garantir a aprovação de um texto constitucional que reconhecesse seus anseios. Esta movimentação dos indígenas é relatada por Lacerda (2007, pg 175) :
No Congresso Nacional formaram mais uma vez um corredor polonês à entrada do plenário da Câmara, abordando os constituintes que chegavam com a distribuição de material em favor das emendas e destaques favoráveis a seus direitos no Capítulo “dos Índios”. 
A forte articulação dos povos indígenas e sua incansável persistência mostraram-se vitoriosas com a aprovação do texto constitucional, no dia 30 de agosto de 1988, nos artigos 231 e 232, além de demais citações em outros artigos da Constituição. A Constituição Federal de 1988 abria ao Estado Brasileiro um novo desafio: abandonar o paradigma da integração e adotar o paradigma da interação, na manutenção dos povos indígenas tais quais são, reconhecendo a existência de suas sociedades, seu modo de vida tradicional e seus sistemas jurídicos próprios para a resolução de conflitos.
Apesar da vitória alcançada na aprovação do texto constitucional relativo aos indígenas, o movimento indígena tinha consciência de que sua luta não cessaria em 1988. A aprovação do texto constitucional garantidor de seus direitos ao reconhecimento e ao respeito iniciava uma nova era: o surgimento do paradigma da interação.
O paradigma da interação visava descontruir seu paradigma antecessor buscando a convivência entre a sociedade nacional e as sociedades indígenas, no sentido de reconhecer as sociedades indígenas tais quais sociedades plenas e capazes, merecedoras de continuarem existindo de maneira tal qual se encontram, com suas dinâmicas próprias de interação com as demais culturas. Ao indígena, por meio do texto constitucional, foi garantido o direito de viver sua cultura tal qual é, não como algo estanque, devendo ser preservada a todo custo como algo estático, e sim como todas as culturas são: numa constante mudança e transformação,sem, no entanto, perder sua essência.
 Obviamente a aprovação do texto constitucional não modificou de imediato as políticas estatais assimilacionistas presentes desde a colonização, mas deu ao movimento indígena uma garantia jurídica constitucional que nunca tiveram, fortalecendo sua luta para continuarem existindo. 
Os setores mais conservadores do governo, na tentativa de manter o status quo ante, haja vista o interesse econômico da expansão das fronteiras agrícolas rumo à região Norte do país, a exemplo do Projeto Calha Norte e Polo Noroeste, ambos financiados pelo Banco Mundial, empreenderam uma forte campanha de difamação às organizações indigenistas, tais como o Conselho Indigenista Missionário - CIMI, numa tentativa de desarticular o movimento indígena.
Em resposta a estas difamações, o movimento indígena passa a se fortalecer regionalmente com a criação de associações indígenas regionais e organizações de base, com o surgimento da União das Nações Indígenas do Acre, UNI-Acre, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), o Conselho Indígena de Roraima (CIR) e a formação da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira – COIAB, dentre tantas outras, chegando a centenas no ano de 1990 (OLIVEIRA; FREIRE, 2006).
O movimento indígena pós-Constituinte até os tempos atuais abandona o papel de mero figurante, dependente de representantes para fazer ecoar seus anseios e torna-se o protagonista na busca por seu espaço. Oliveira; Freire (2006) menciona que as organizações indígenas passam a se profissionalizar politicamente e passam a ocupar espaços políticos em diversos municípios como vereadores, contribuindo desta feita que a política brasileira não seja pensada apenas pelo órgão indigenista estatal, a FUNAI, mas por todas as esferas governamentais.
O avanço do protagonismo indígena atualmente vem alterando a dinâmica das populações indígenas em sua relação com o Estado Brasileiro, que a cada dia buscam entender a estrutura da sociedade nacional a fim de efetivar políticas públicas de educação, saúde e desenvolvimento econômico em suas localidades. Apesar das dificuldades enfrentadas por estes povos em garantir seu direito à uma vida digna, o movimento indígena vê minimamente sua existência reconhecida nas esferas governamentais.
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2 O CONTEXTO INDÍGENA NO JUDICIÁRIO BRASILEIRO
 Com o reconhecimento da autonomia dos povos indígenas pela Constituição Federal de 1988, bem como de sua diversidade e costumes, a tutela estatal exercida pelo órgão de política indigenista formalmente deixa de existir e os indígenas são elevados à posição de cidadãos brasileiros.
 Apesar deste reconhecimento, pela Constituição Federal, da autonomia dos povos indígenas, nota-se que o Poder Judiciário persiste no conceito defasado do indígena como o silvícola retratado no Estatuto do Índio. O silvícola, segundo tal ordenamento jurídico, seria aquele indivíduo à parte da sociedade nacional, primitivo e atrasado, que, com a tutela do Estado Brasileiro, deveria alcançar a integração com a sociedade não indígena para ser reconhecido como um cidadão brasileiro, renegando sua cultura primitiva. O movimento indígena, segundo Santelli (2016), tenta sepultar este poder tutelar do Estado Brasileiro, que ainda se encontra ativo no nosso ordenamento jurídico através do Estatuto do Índio e demais concepções por parte do Poder Judiciário.
 Esta ideologia assimilacionista, segundo Santelli (2016), ainda se faz presente pela compreensão de que os indígenas seriam primitivos, logo, seres inferiores que necessitam da tutela do Estado. Esta tutela se configuraria num paternalismo estatal que defenderia seus interesses, falando por eles, até que os indígenas "evoluíssem" para a integração, nível este que não necessitariam mais da tutela estatal, sendo, portanto, reconhecidos como cidadãos plenos de direitos. 
A Constituição Federal de 1988, segundo Santelli (2016), traz um ponto de inflexão da ideologia assimilacionista por reconhecer o protagonismo indígena e um Estado Pluriétnico. Os indígenas passam a serem atores principais no seu diálogo com o Estado Brasileiro e a sociedade não indígena, não necessitado mais de intermediadores ou tuteladores e sim como sujeitos plenos de direitos.
 O fortalecimento do movimento indígena para serem reconhecido como tais acaba impondo, segundo Silva (2017), o abandono formal do paradigma assimilacionista estatal, trazendo desafios à práxis jurídica na superação pelos agentes judicantes à superação dos estereótipos construídos em relação aos povos indígenas.
Apesar dos avanços ao reconhecimento da diversidade indígena de seus modos tradicionais, ainda existem questões que devem ser superadas junto ao Judiciário brasileiro.
2.1 O DIREITO PENAL E O INDÍGENA
Antes de pensar-se a aplicação do Direito Penal brasileiro aos indígenas, convém fazer uma breve explanação sobre a finalidade a que se propõe o Direito Penal para com a sociedade. 
Capez (2012), ao abordar a função ética-social do Direito Penal, menciona que a missão deste ramo do Direito brasileiro consiste em “proteger os valores fundamentais para a subsistência do corpo social, tais como a vida, a saúde, a liberdade, a propriedade etc., denominados bens jurídicos.” Nucci (2017), ainda sobre da função do Direito Penal, explicita que a atuação do Direito Penal se dá quando “se chega à última opção (ultima ratio), vale dizer, nenhum outro ramo do direito conseguiu resolver determinado problema ou certa lesão a bem jurídico tutelado.”
Quando da defesa dos bens juridicamente tutelados pelo Direito Penal brasileiro, faz mister ressaltar a dinâmica que este ramo do Direito teve e tem com o Direito Consuetudinário dos povos indígenas, se as concepções dos bens jurídicos a tutelar coadunam-se de forma a não trazer um prejuízo na relação entre a sociedade nacional e as sociedades indígenas.
A interação dos povos indígenas com a sociedade ocidental, conforme abordados em capítulos anteriores, foi marcada por conflitos e da negação desses povos com um Direito próprio e uma organização social singular, caracterizada por diferentes visões do que é reprovável no tocante a violações entendidas pelo Direito Penal como transgressoras da ordem estabelecida.
Conforme explicitado no capítulo anterior, a visão do indígena no período colonial era de um ser primitivo, incapaz de compreender plenamente a sociedade portuguesa com a qual estava tendo os primeiros contatos. As missões catequizadoras tiveram por função pacificar as populações indígenas que encontravam, e dentre estes ensinamentos acabavam por ensinar-lhes o Direito Penal oriundo da Coroa Portuguesa.
A Coroa Portuguesa tinha um objetivo claro ao Brasil Colônia: expandir seus domínios, de modo que a posse da terra era considerada um bem jurídico a ser tutelado. Dada a importância que a posse da terra tinha aos portugueses, o Direito Penal aplicado aos indígenas visava a garantir a segurança da posse da terra, e, para, isso a Coroa Portuguesa instituiu decretos no sentido de minimizar as invasões dos indígenas às terras já possuídas e instituir penas aos indígenas considerados bravios, legalizando a escravização destes quando capturados em guerras “justas”.
No Brasil Colônia, conforme mencionado no capítulo anterior, a visão do indígena como sujeito de direitos inexistia, e, em dados momentos ao longo da tumultuosa relação dos povos indígenas com a Coroa Portuguesa, os mesmos eram vistos como inimigos da Coroa, não aplicando-se a eles nenhuma garantia de julgamento. 
Cunha (2012) menciona que, com a chegada de Dom João VI ao Brasil em 1808, esta ofensiva por parte dos portugueses ficou ainda mais evidente com o desencadeamento de uma guerra declarada contra os indígenas Botocudos com o propósito de liberar a região do Rio Doce em Minas Gerais para a colonização portuguesa. 
O posicionamento de D. João VI desencadeia ao longo do século XIX diversos conflitos com os povos indígenas, adentrando o período do Brasil Império, com a construção de presídios com a presença dedestacamento militares para a captura destes indígenas bravios e a aplicação de trabalhos compulsórios como sanção à sua rebeldia.
No século XX, com o advento da República e a criação do SPI como órgão tutelador dos povos indígenas, a questão da sanção ao cometimento de ilícitos por indígenas com a aplicação do Direito Penal fica invisibilizada, haja vista a imagem da incapacidade do indígena e forte ranço tutelador a que são submetidos.
Quando se pensa na questão penal envolvendo réus indígenas, esta, por um longo período, não foi uma preocupação do Estado Democrático de Direito e do Poder Judiciário, pois os indígenas não eram reconhecidos como cidadãos plenos de direito, sendo tutelados pelo órgão indigenista, tanto pelo Serviço de Proteção aos Índios – SPI, quanto pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), após a extinção do SPI no ano de 1967 (FEIJÓ, 2015; SOUZA FILHO, 2012).
O Código Penal de 1940 não traz uma menção direta aos indígenas e de como o Poder Judiciário deveria lidar com estes quando do cometimento de ilícitos penais. Por uma intepretação extensiva do artigo 26 do Código Penal, referindo-se à inimputabilidade daqueles que possuíam um desenvolvimento mental incompleto, interpretação esta vinda da Exposição de Motivos do próprio Código, não é de se estranhar, ainda considerando a influência das teorias antropológicas vigentes na época, de que o Judiciário visualizava um tratamento diferenciado aos indígenas por considerá-los primitivos, a quem não deveriam ser aplicadas as leis nacionais baseando-se numa falta de aparato mental em entender a gravidade de um ilícito praticado por este indígena não ser integrado à sociedade nacional. 
Segundo Souza Filho (2012), tal visão dar-se-ia pelo entendimento de que o indígena estava fadado ao desparecimento, sendo que, aos poucos, com a aplicação da política integracionista estatal, os indígenas evoluiriam a ponto de tornarem-se cidadãos brasileiros plenos, de tal forma que poderiam deixar a invisibilidade e sofrerem as sanções advindas da prática de ilícitos penais previstos na legislação brasileira.
Por não mencionar os indígenas em seu texto, nem em trazer dispositivos que guiassem o Judiciário para o devido tratamento penal a estes réus, o Código Penal de 1940 não revogou o Decreto 5.484/1928, tratando este da situação dos índios no território nacional. Tal decreto traz três artigos que tratam dos crimes praticados por indígenas, em que a verificação da conduta delituosa e a sanção aplicada ficaria a cargo da figura do inspetor dos índios, figura presente na estrutura do SPI, que nos aldeamentos era representado pela figura do Chefe de Posto.
A aplicação de sanções aos indígenas transgressores coube por muito tempo aos órgãos indigenistas, que atuavam como um Poder Judiciário dentro das aldeias, com a figura do Chefe de Posto atuando como delegado da aldeia, investigando, julgando e aplicando a sanção aos indígenas (SOUZA FILHO, 2012). 
Por anos houve o funcionamento de cadeias indígenas e o treinamento de indígenas policiais que aplicavam a pena e até mandavam indígenas para outras terras indígenas para o cumprimento de pena, a exemplo da Centro de Reeducação Indígena Krenak, conhecido também como Reformatório Krenak (BRASIL, 2014). 
Diversas punições aplicadas chegaram ao barbarismo, conforme relatadas pelo Relatório Figueiredo, violando diretamente garantias fundamentais constantes na Declaração Universal dos Direitos Humanos, configurando-se em verdadeiros tribunais de exceção, desconsiderando por completo o sistema de sanção penal consuetudinário destes povos.
Oliveira (2017) menciona que a origem do sistema punitivista implementado pelo SPI, e posteriormente adotado pela FUNAI, deu-se a com o intuito de reprimir rebeliões perpetradas por povos indígenas contra o regime ditatorial e para a repressão dessas rebeliões criou-se a Guarda Rural Indígena (GRIN). A GRIN, conforme conceituada por Oliveira (2017, pg. 50) “[...] consistia no treinamento de indígenas, de diversos grupos, nos moldes da Escola Superior de Guerra e na Doutrina de Segurança Nacional, inclusive ensinando-os as técnicas de tortura aplicadas aos presos políticos [...]”. 
Os policiais indígenas atuavam tanto nos postos indígenas, auxiliando o Chefe de Posto na aplicação de penas, quanto nas cadeias indígenas, como carcereiros e torturadores. As torturas aplicadas iam da palmatória até a utilização do tronco, que consistia em amarrar o transgressor em duas estacas de madeira de modo a infligir dor e se fosse utilizado com muita força poderia levar à fratura do osso e consequentemente ao aleijamento, tortura esta que deixou inúmeros incapacitados, conforme o Relatório Figueiredo (RF, 1968 apud OLIVEIRA, 2017).
A extinção do SPI em 1967 e a criação da Fundação Nacional do Índio – FUNAI no mesmo ano não modificou o tratamento conferido aos indígenas na seara penal, haja vista que a criação da GRIN e do Reformatório Krenak, localizado na cidade de Resplendor – MG, deu-se justamente no ano de 1969, já sob a administração do órgão indigenista, em que uma parcela significativa de seus servidores era composta por militares. O procedimento realizado quando do envio dos indígenas transgressores ao Reformatório Krenak é descrito por Corrêa (2003, pg. 139):
O envio ao reformatório tinha um procedimento básico que se iniciava com a denúncia do(s) índio(s) ou do(s) incidente(s) pela administração local (chefe do posto) ou regional (chefe da delegacia regional), e o pedido de solução para o “problema” à direção da FUNAI. Dentro desse procedimento não estavam incluídos os índios assistidos pela Ajudância Minas-Bahia e os guardas rurais indígenas, que nesses casos não passavam por decisão da direção da FUNAI para serem enviados, sendo remetidos por ordem direta do chefe da AJMB. Após a definição de sua transferência para o reformatório, os índios eram enviados para a sede da AJMB, e de lá escoltados para o reformatório, para cumprimento de seu estágio recuperador. Não se pode esquecer que a recuperação do índio já era tentada nas áreas, com a ameaça do envio ao Krenak e também com medidas como aprisionamento de índios nos postos e o trabalho forçado dos mesmos (...) 
 A FUNAI em nada diferiu de seu antecessor de continuar a política estatal de integração durante o período ditatorial em reprimir as manifestações dos povos indígenas em garantir seus territórios, continuamente ameaçados sob a pressão desenvolvimentista governamental de expansão das fronteiras agrícolas, notadamente nas Regiões Centro-Oeste e Norte do país.
Não há um consenso sobre o período de funcionamento do Reformatório Krenak e demais cadeias indígenas existentes, tais como a Fazenda Guarani, localizada na cidade de Carmésia – MG. Corrêa (2003), acredita que o funcionamento do Reformatório Krenak e demais estruturas de punição aos indígenas transgressores deu-se até o final dos anos 1970 e começo dos anos 1980, cessando devido a fortes mobilizações dos movimentos indígenas e instituições indigenistas. Souza Filho (2012, pg.113) faz uma crítica direta ao funcionamento desse sistema punitivista vigente à margem do Poder Judiciário oficial ao comentar:
O sistema jurídico brasileiro não admite a existência de outros subsistemas paralelos que impliquem em jurisdição e aplicação de lei fora do Poder Judiciário. Entretanto, durante 40 anos conviveram com o sistema punitivo, formas extraoficiais de punição aos índios, não apenas com leis próprias, mas com um completo sistema penitenciário especial, com autoridades e procedimentos alheios à leis do país, mas extremamente eficiente e temido.
Com a recepção da Constituição de 1988 há o rompimento da lógica integracionista do Estado Brasileiro, com a recepção do ideal de interação. Ou seja, os povos indígenas não são mais vistos sob uma ótica etnocentrista, que os considerava como culturas primitivas que deveriam ser resgatadas pela sociedade não indígena evoluída, e sim como povos plenos em seus costumes e tradições a serem respeitadas pelo Estado Democrático de Direito (FEIJÓ,2015).
Este reconhecimento de seus costumes e tradições também inclui o respeito às suas normas de sanção penal aos indivíduos transgressores, mas infelizmente não se vê esse reconhecimento em decisões do Poder Judiciário, com a aplicação de sanções penais que não reconhecem a sentença das comunidades indígenas aos indivíduos transgressores, violando o princípio da não aplicação do bis in idem (FEIJÓ, 2015; SILVA, 2015). 
Ademais, depara-se com uma ausência de normativas administrativas internas do órgão de política indigenista para lidar com a questão penal e penitenciária envolvendo indígenas infratores da lei penal brasileira, deixando o tratamento dos réus indígenas à mercê do entendimento jurídico do juízo criminal e de execução penal. Esta ausência de normativas administrativas também leva à falta de observância de tratados e convenções internacionais ratificadas pelo Estado Brasileiro, a exemplo da Convenção OIT 169.
A magistratura nacional ainda vê o réu indígena na lógica integracionista do Estatuto do Índio, desconsiderando a revogação tácita de diversos artigos pela Constituição Federal por não mais se adequarem à lógica da interação. Utilizam-se dos conceitos de “índio aculturado” e “índio integrado”, como se a adoção de costumes e o uso de tecnologias provenientes da sociedade não indígena tornassem o réu indígena plenamente consciente do modus operandi da sociedade não indígena (SILVA, 2015). 
Deixam de considerar em seus julgamentos, portanto, a ratificação, pelo Brasil, de tratados internacionais que tratam da responsabilização do réu indígena, a saber, dos artigos 8º ao 10º da Convenção 169 da OIT, que tratam sobre o respeito ao modo de vida tradicional e a preferência a outros tipos de sanção penal além do encarceramento (SILVA, 2015), além de perpetuar um racismo institucional, violando tratados internacionais ratificados pelo país, tais como a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), Declaração das Nações Unidas sobre todas as Formas de Discriminação Racial (1963), Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (1965) e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007).
2.2 ASPECTOS PROCESSUAIS PENAIS APLICÁVEIS AO INDÍGENA
Segundo Távora; Alencar (2016), as garantias processuais pautam-se pela Constituição Federal, objetivando a proteção do réu contra as arbitrariedades estatais ao mesmo tempo que consolida a efetivação da prestação jurisdicional. Lopes Jr (2014) complementa que a Constituição Federal deve balizar o processo penal para que as garantias processuais penais sejam efetivadas pelo juízo, atuando este como garantidor dos direitos do acusado.
Lopes Jr. (2014) delineia que as garantias e/ou princípios processuais do processo penal resumir-se-iam a cinco garantias, a saber: a garantia da jurisdicionalidade, do princípio acusatório, da presunção de inocência, do contraditório e ampla defesa; e da motivação das decisões. Nucci (2014) esmiúça as garantias processuais, separando-as em princípios constitucionais explícitos e implícitos no processo penal e aqueles que são meramente processuais penais. Távora; Alencar (2016) lista vinte e sete princípios processuais penais aplicáveis ao processo penal, princípios estes que pautam o processo penal pela Constituição Federal.
Além das garantias processuais penais já mencionadas, a questão indígena possui uma garantia constitucional própria do reconhecimento da existência dos povos indígenas e suas organizações sociais tradicionais conforme apontadas no artigo 231 da Constituição Federal (BRASIL, 1988). Portanto, as ações estatais, incluso aí a prestação da tutela jurisdicional quanto ao julgamento de réus indígenas, segundo Moreira (2014), deve passar pela aceitação e criação de mecanismos de reconhecimento e fortalecimento da diversidade cultural desses povos.
Analisando a situação prisional dos indígenas encarcerados na cidade de Boa Vista, capital do estado de Roraima, Baines (2013) faz uma breve análise da prestabilidade da legislação nacional aplicada aos indígenas em cárcere, notadamente os artigos 56 e 57 do Estatuto do Índio, que reconhecem a aplicação das sanções internas do povo indígena e a aplicação de medidas alternativas à reclusão para o cumprimento de pena. 
Segundo Baines (2013), no momento em que a Constituição de 1988, em seu artigo 231, reconheceu o direito à diferença aos povos indígenas, esta diferença cultural entre os povos indígenas e a sociedade nacional deve ser levada em consideração nos processos penais, inclusive seu sistema sancionatório tradicional quando da aplicação da pena pelo juízo criminal, respeitando também a Convenção OIT 169, em seu artigo 10º, parágrafo 2º, em que devem ser priorizadas outras formas de punição ante ao encarceramento.
No cenário internacional, o Brasil, conforme já mencionado, tem ratificado a Convenção OIT 169 de 1989, incorporada ao direito pátrio em 2002 por meio do Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004. Especificamente aos povos indígenas, a ONU aprovou, por meio da Assembleia Geral das Nações Unidas, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas no ano de 2007, que em seus artigos reforça o texto constitucional de 1988 em reconhecer internacionalmente o direito à diferença dos povos indígenas e o reconhecimento dos seus sistemas jurídicos próprios, incluso as sanções aplicadas pela comunidade indígena quanto ao cometimento de ilícitos. 
Obviamente este reconhecimento internacional dos sistemas jurídicos indígenas deve se harmonizar com as normas internacionais de direitos humanos previamente estabelecidas, conforme o artigo 34 da Declaração. No âmbito da Organização dos Estados Americanos – OEA, da qual o Brasil é um Estado Membro, foi aprovada pela Assembleia Geral da OEA a Declaração Americana sobre Direitos dos Povos Indígenas, esta trazendo em seus artigos o reforço ao reconhecimento à autodeterminação e autoidentificação dos povos indígenas das Américas e de seus sistemas jurídicos próprios, com plena representação de modo a garantir a dignidade da pessoa humana, em conformidade com o artigo 22, parágrafos 2º e 3º da referida Declaração, que rezam:
2. O direito e os sistemas jurídicos indígenas serão reconhecidos e respeitados pela ordem jurídica nacional, regional e internacional.
3. Os assuntos referentes a pessoas indígenas ou a seus direitos ou interesses na jurisdição de cada Estado serão conduzidos de maneira a proporcionar aos indígenas o direito de plena representação com dignidade e igualdade perante a lei. Por conseguinte, têm direito, sem discriminação, à igual proteção e benefício da lei, inclusive ao uso de intérpretes linguísticos e culturais.(ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS - OEA, 2016)
Apesar dessas declarações da ONU e da OEA ainda não possuírem efeito vinculante por não terem sido recepcionadas pelo Direito Brasileiro com a aprovação do Poder Legislativo, segundo os procedimentos constitucionais, as Declarações trazem subsídios necessários à observância do texto constitucional bem como de instrumentos internacionais já ratificados quando da aplicação das garantias processuais e demais princípios fundamentais aos processos envolvendo réus indígenas. 
2.3 TESES DEFENDIDAS NOS TRIBUNAIS
Em se tratando das teses defendidas nos tribunais no que tange aos processos criminais envolvendo réus indígenas, há a predominância de uma visão etnocêntrica, em que as particularidades relativas aos indígenas são desconsideradas quando da aplicação de pena e estabelecimento da forma e regime inicial de cumprimento da pena. 
Em se tratando da seara penal não raro, relativo aos povos indígenas, a aplicação da lógica integracionista ainda se faz presente. Persiste a visão judiciária de que os povos indígenas vivem numa cultura atrasada, inferior à cultura não indígena. Isto acaba levando à desconsideração dos costumes e tradições dos povos indígenas na aplicação da pena em relação aos réus indígenas no tocante ao respeito dos seus costumes no quetange à aplicação das sanções penais tradicionais aos povos indígenas, bem como ao cumprimento de pena nos moldes que respeitem a particularidade de suas culturas. 
Segundo Santelli (2016), o Judiciário ainda possui dificuldade em reconhecer a diversidade dos povos indígenas, adotando o ultrapassado paradigma da integração para negar ou dispensar a perícia antropológica e o intérprete para a tradução, configurando-se, consoante o autor, num racismo institucional.
Analisando a situação dos detentos indígenas no Mato Grosso do Sul, Flores (2008) analisou os atos praticados nos processos do juízo criminal desses detentos, e constatou que a aplicação de pena e a fixação do regime de cumprimento não considerou as particularidades dos povos indígenas, bem como a presença de intérprete para o réu indígena e a perícia antropológica foi descartada na maioria dos processos (78% dos processos não possuía intérprete e 67% não houve solicitação de perícia antropológica). Silva et al. (2008, pg.38), em relatório sobre a criminalização e encarceramento de indígenas nos estados do Amazonas, Bahia e Rio Grande do Sul, em seus resultados preliminares constataram que:
 
(...) se observa o desconhecimento de policiais, agentes carcerários ,delegados, promotores, procuradores, juízes e indigenistas de órgãos oficiais ou da sociedade civil, acerca da legislação aplicável aos índios acusados de crimes (Estatuto do Índio, 1973 e Código Penal) e as recomendações da Convenção 169 OIT (considerar as formas tradicionais de resolução de conflito e punição, evitar a prisão como forma de punição, em casos de crimes que firam os direitos humanos propor o regime semiaberto etc.) que, no Brasil, assumiram estatuto de lei após sua ratificação pelo Congresso Nacional.
Silva (2015), em sua tese de análise da criminalização dos indígenas no Brasil, traz a adoção do critério de inimputabilidade sendo largamente adotada pelos tribunais, devido ao entendimento etnocêntrico de que os indígenas não teriam capacidade mental plenamente desenvolvida, aplicando-se a estes o artigo 26 do Código Penal. Tal aplicação deste critério advém do entendimento adotado por diversos doutrinadores, entre eles Nelson Hungria e Cezar Bitencourt. 
A aplicação da perícia antropológica, segundo Silva (2015), é controversa entre os doutrinadores, que utilizam o grau de integração previsto no Estatuto do Índio para prever sua necessidade. Haja vista esta controvérsia presente entre os doutrinadores, o Projeto de Lei do Senado nº 236/2012, que trata sobre a revisão do Código Penal com o intuito de apurar a culpabilidade do indígena, o laudo antropológico é previsto para verificar se o indígena praticou o ato ilícito de acordo com o erro de ilicitude motivado pela sua cultura:
Índios 
Art. 36. Aplicam-se as regras do erro sobre a ilicitude do fato ao índio, quando este o pratica agindo de acordo com os costumes, crenças e tradições de seu povo, conforme laudo de exame antropológico.
§1º A pena será reduzida de um sexto a um terço se, em razão dos referidos costumes, crenças e tradições, o indígena tiver dificuldade de compreender ou internalizar o valor do bem jurídico protegido pela norma ou o desvalor de sua conduta. 
§2º A pena de prisão será cumprida em regime especial de semiliberdade, ou mais favorável, no local de funcionamento do órgão federal de assistência ao índio mais próximo de sua habitação.
§3º Na medida em que isso for compatível com o sistema jurídico nacional e com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, deverão ser respeitados os métodos aos quais os povos indígenas recorrem tradicionalmente para a repressão dos delitos cometidos pelos seus membros (SENADO FEDERAL, 2012, p. 21).
Portanto, em razão das divergências doutrinárias, verifica-se uma preocupação do Poder Legislativo em modificar o paradigma do integracionismo, para proporcionar ao Judiciário parâmetros normativos que se coadunem com o texto constitucional para a plena efetividade do direito à diferença dos povos indígenas na seara penal e processual penal.
Silva (2015, pag. 104) chama a atenção para o conceito de penalidade civilizatória, que consiste em:
uma função política do direito penal aplicado aos indígenas pelas agências do sistema de justiça que, acriticamente, reproduzem argumentos racistas e etnocêntricos com a finalidade de reforçar a ideia de seu desaparecimento ou neutralização, isto é, de sua assimilação, total ou parcial, de usos e costumes da “sociedade nacional” – o que, simultaneamente, conduz à sua inserção forçada na sociedade de Estado e ao controle dos que são a ela resistentes. (SILVA, 2015)
Tal penalidade civilizatória é avaliada por Silva (2013) ao constatar o “empardecimento” dos indígenas pelo aparato policial do Estado e pelo Poder judiciário como forma de invisibilizar o indígena e não aplicar as garantias constitucionais de direito à diferença. Este “empardecimento” consiste em desconsiderar a etnia indígena do infrator, classificando-o como pardo desde a constituição do inquérito, descaracterização étnica que perduraria até a finalização do processo judicial com o trânsito em julgado, não sendo aplicado no processo particularidades tais como intérpretes e perícia antropológica.
Na análise dos julgados envolvendo réus indígenas nos tribunais estaduais, tribunais regionais federais, Superior Tribunal de Justiça - STJ e Supremo Tribunal Federal - STF, Silva (2015) constatou que as medidas alternativas previstas nos artigos 56 e 57 do Estatuto do Índio, bem como a arguição de nulidade absoluta por cerceamento de defesa ante a ausência de laudo antropológico e o reconhecimento de erro de proibição são pleitos defensivos levantados nos processos analisados pelo autor. Essas teses defensivas podem ser verificadas a título de exemplo no Habeas Corpus - HC nº 84.308-5/MA, em que na ementa o STF se pronuncia:
EMENTA: I. Habeas corpus: crime de latrocínio praticado por índio: competência da Justiça estadual: precedente: HC 80.496, 1ª T., 12.12.2000, Moreira, DJ 06.04.2001.
II. Instrução processual e cerceamento de defesa: infração penal praticada por indígena: não realização de perícias antropológica e biológica: sentença baseada em dados de fato inválidos: nulidade absoluta não coberta pela preclusão.
1. A falta de determinação da perícia, quando exigível à vista das circunstâncias do caso concreto, constitui nulidade da instrução criminal, não coberta pela preclusão, se a ausência de requerimento para sua realização somente pode ser atribuída ao Ministério Público, a quem cabia o ônus de demonstrar a legitimidade ad causam dos pacientes.
2. A validade dos outros elementos de fato invocados pelas instâncias de mérito para concluírem que os pacientes eram maiores de idade ao tempo do crime e estavam absolutamente integrados é questão passível de exame na via do habeas corpus.
3. A invocação de dados de fato inválidos à demonstração da maioridade e do grau de integração dos pacientes, constitui nulidade absoluta, que acarreta a anulação do processo a partir da decisão que julgou encerrada a instrução, permitindo-se a realização das perícias necessárias.
III. Prisão preventiva: anulada a condenação, restabelece- se o decreto da prisão preventiva antecedente, cuja validade não é objeto dos recursos. (STF, 2006)
No Tribunal Regional Federal da 1ª região, tais pleitos defensivos foram utilizados em cinco julgados observados por Silva (2015), sendo levantado pelo juízo o argumento de que a ausência de perícia antropológica não caracterizaria cerceamento de defesa caso estivessem presentes indícios de aculturação do réu indígena de acordo com o Estatuto do Índio. A título de exemplo, no julgamento da Apelação Criminal nº 1010-9/2003, o juízo compreendeu desnecessidade da perícia antropológica, ao argumentar em emenda:
PENAL. PROCESSUAL PENAL. TRÁFICO INTERNACIONAL DE ENTORPECENTE. AUSÊNCIA DE PERÍCIA ANTROPOLÓGICA. DESNECESSIDADE. RÉU INDÍGENA INTEGRADO À SOCIEDADE. NULIDADE INEXISTENTE. PROTEÇÃO TUTELAR DA FUNAI. ART. 10 DA LEI 6.001/1973. CONDENAÇÃOMANTIDA. ART. 10 DA LEI 9.437/1997. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM FEDERAL RECONHECIDA. REGIME DE CUMPRIMENTO DAS PENAS. ART. 56 DO ESTATUTO. I - Desnecessária a realização de perícia antropológica quando há prova suficiente da integração do acusado indígena que, além de versado na cultura da comunidade, tinha fluência na língua portuguesa, certo grau de escolaridade, dirigia motocicleta e mostrou desenvoltura para a prática criminosa, inclusive para fugir da prisão ao lado de outros meliantes. Nulidade inexistente. (grifo nosso) II - O art. 10 do Estatuto do Índio respalda a legitimidade da FUNAI para representar o interesse do recorrente. III - Crime de tráfico internacional de entorpecente suficientemente comprovado em todos os seus elementos, conforme tipificação prevista no art. 12 c/c art. 14, ambos da Lei 6.368/1976. IV - O quantum penalógico refletiu a justa medida da reprovabilidade da conduta do acusado, conforme preconizado nos arts. 59 e 68 do CP. V - O crime do art. 10 da Lei 9.347/97 não teve vínculo com o delito de tráfico perpetrado, sendo, portanto, seu processamento e julgamento da competência da Justiça Comum Estadual. VI - As penas devem cumpridas, se possível, em regime especial de semiliberdade, consoante determina o art. 56 do Estatuto Índio. Precedente do STF. VII - Apelação da Funai parcialmente provida.(BRASIL, 2009)
Após o julgamento de vários Conflitos de Competência em processos envolvendo réus indígenas, o STJ promulgou no ano de 1995 a Súmula nº 140, que diz que “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime em que o indígena figure como autor ou vítima.”. Tal súmula não tem poder vinculante, muito embora tenha sedimentado o entendimento do tribunal superior quando da apreciação da arguição do juízo incompetente nos pleitos defensivos.
No entanto, o entendimento da aplicação da Súmula nº 140 para o julgamento de crimes cometidos por e contra indígenas tem alcance limitado, haja vista o STJ entender que uma vez que a questão versar, segundo Silva (2015), sobre matérias que envolvam a organização social dos povos indígenas e seu modo de vida tradicional, bem como crimes que envolvam conflitos envolvendo direitos sobre terras tradicionalmente ocupadas, configura-se a disputa sobre direitos indígenas e a jurisdição competente para o processamento será a Justiça Federal.
Em relação à atuação da Procuradoria Federal Especializada da Advocacia Geral da União junto à FUNAI – PFE/AGU/FUNAI em processos judiciais envolvendo réus indígenas, a Portaria nº 839, de 18 de junho de 2010 da AGU disciplinou a atuação de procuradores federais na defesa dos direitos indígenas a nível individual quando for observada a necessidade da compreensão pelo juízo da organização social dos povos, seus costumes e ocupação territorial, conforme explicitado no artigo 2º da referida Portaria:
Art. 2º A Procuradoria-Geral Federal, as Procuradorias Regionais Federais, as Procuradorias Federais nos Estados, as Procuradorias Seccionais Federais, os Escritórios de Representação e a PFE/FUNAI atuarão, obrigatoriamente, na orientação jurídica e na defesa judicial dos direitos e interesses individuais indígenas, sempre que a compreensão da ocupação territorial, da organização social, dos costumes, das línguas, das crenças e das tradições for necessária ao deslinde da controvérsia jurídica. 
Apesar da previsão dessa assistência e a indicação nos pleitos defensivos da necessidade da participação dos procuradores federais sob pena de nulidade processual nos julgados levantados por Silva (2015), a compreensão do Judiciário brasileiro é de que os indígenas infratores não precisariam de uma assistência direta da PFE por já estarem integrados à sociedade, nos moldes da definição trazida pelo Estatuto do Índio, e, por isso, não haveria o acolhimento do pleito defensivo em relação à ausência da PFE nos processos com o fito de dirimir dúvidas do juízo sobre as particularidades inerentes aos povos indígenas.
Em resumo, quando Silva (2015, pg. 161) analisa os julgados envolvendo réus indígenas tanto nos tribunais superiores quanto nos tribunais estaduais o autor chega à conclusão que:
 
(...) evidencia-se o alinhamento do Judiciário com o discurso criminológico majoritário acerca da criminalização de indígenas segundo o qual se afirma concretizado o ideal integracionista da legislação ordinária sempre que presentes indícios de contato interétnico. A utilização de língua portuguesa, a posse de documentos públicos, o exercício de atividade laborativa, a prática da fé cristã e até a audiência de programas de televisão são reportados como elementos configuradores da transição almejada pelo Estatuto do Índio, da condição de indígenas para integrados à “sociedade nacional”
Nota-se uma dificuldade generalizada do Judiciário em lidar com os réus indígenas conforme o novo paradigma da interação, apesar deste estar presente no texto constitucional e vigente há mais de três décadas. Faz-se necessário o aprofundamento dos aplicadores do Direito em questões além do Direito positivado, tais como a compreensão das particularidades sociais dos povos indígenas e seus modos de vida para a correta aplicação da lei para a consecução da justiça e garantia da ordem social.
3 O MASSACRE DOS 29 GARIMPEIROS NA TERRA INDÍGENA ROOSEVELT: APLICAÇÃO DAS GARANTIAS PROCESSUAIS PENAIS NO PROCESSO EM CURSO
Conforme se percebe pela explanação dada nos capítulos anteriores, o Poder Judiciário encontra-se numa fase de amadurecimento em relação ao julgamento de réus indígenas, em que paulatinamente incorpora a visão de um pluralismo jurídico, com o reconhecimento à diferença que os povos indígenas possuem quando da aplicação de penas e medidas alternativas ante ao cárcere.
Pautando-se pela análise realizada pelos capítulos anteriores, em como os povos indígenas ao longo da história foram tratados pelo sistema jurídico vigente a cada época, bem como pelo tratamento atual conferido pelo Judiciário, analisar-se-á neste capítulo o processo judicial em tramitação no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Subseção Judiciária de Vilhena, de número 790-04.2015.4.01.4103, processo este que apura a responsabilidade de 16 réus indígenas acusados de cometer o homicídio de 26 garimpeiros no interior da Terra Indígena Roosevelt, fato este ocorrido no ano de 2003. Na presente análise, verificar-se-á a aplicação das garantias processuais penais quanto à instrução processual bem como o reconhecimento e aplicação das garantias constitucionais voltadas aos povos indígenas, tais como o reconhecimento da diferença cultural destes povos e o respeito a essas diferenças.
3.1 O POVO CINTA LARGA: BREVE HISTÓRICO
Os primeiros relatos da existência do Povo Cinta Larga pela sociedade não indígena deram-se nos anos de 1910, quando o Marechal Cândido Rondon, juntamente com o Coronel Roosevelt, empreenderam uma expedição à região do atual Estado de Rondônia com a pretensão de explorar e reconhecer a fauna e a flora do local, bem como se certificar da existência ou não de indígenas nas terras inexploradas do território de Rondônia, com o fito de possibilitar a instalação das linhas telegráficas no território de Rondônia e expandir o desenvolvimento nacional para a Região Norte do país. A comissão formada por Rondon ficaria conhecida como Comissão Rondon, que, além de descobrir a existência dos povos indígenas da região, também intentaria pacificá-los a fim de possibilitar a exploração econômica da região.
Rondon, juntamente com Roosevelt, empreendeu uma expedição de dois meses de duração no território Cinta Larga, na região do Rio da Dúvida, a pé e com auxílio de caiaques para navegação através do rio. Rondon não obteve êxito em estabelecer um contato direto com os indígenas Cinta Larga, sendo apenas alvo de revides com flechas que acarretaram na morte de um dos cães da expedição. 
No ano de 1915, uma nova expedição, chefiada pelo Tenente Marques de Souza, fora alvo de ataques pelos indígenas, acarretando no falecimento do chefe da expedição e, consequentemente,

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