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ConJur - Direito Comparado_ A influência do Código Civil alemão de 1900 (parte 1)

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21/04/2021 ConJur - Direito Comparado: A influência do Código Civil alemão de 1900 (parte 1)
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DIREITO COMPARADO
A in�uência do Código Civil alemão de 1900 (parte 1)
26 de junho de 2013, 17h21
Por Otavio Luiz Rodrigues Junior
Em uma anotação sobre o Direito Privado Comparado, dois importantes civilistas alemães analisaram os códigos
dos países da América Latina. Sobre o Brasil, Hans Karl Nipperdey e Ludwig Enneccerus anotaram que o Código
Civil de 1916 seria “mais independente das codificações latino-americanas” (para conhecer melhor esses dois
juristas, leia a coluna Os juristas que não traíram a História). Esse reconhecimento da qualidade da cultura
jurídico-civilística nacional deu-se na década de 1930, o que o torna ainda mais valioso, na medida em que nossa
codificação mal experimentara 15 anos de vigência.[1]
A influência alemã na formação do Direito Civil brasileiro é inegável e deita suas raízes em diferentes momentos
de recepção. Os costumes, os institutos e as normas do que hoje se denomina de Alemanha “entraram” para o
Direito português, ainda sob o domínio do invasor visigótico, no anoitecer violento e trágico do Império Romano
do Ocidente. Posteriormente, houve nova recepção nos tempos medievais do ius commune. No Brasil Colônia
muitos desses elementos foram introduzidos por efeito da aplicação das leis portuguesas. No século XIX, Teixeira
de Freitas, Coelho Rodrigues e Clóvis Beviláqua contribuíram para essa recepção, o que se deu pelo acesso ou pelo
diálogo com o movimento pandectista, liderado por Savigny e seus discípulos.
O Código Civil alemão (Bürgerliches Gesetzbuch — BGB) é o símbolo mais reluzente desse processo de recepção
e de influência da cultura jurídica germânica no Brasil, embora não seja o único, evidentemente. É (quase)
impossível encontrar um manual, um tratado ou um curso de Direito Civil brasileiro, de algum nível, que
desconheça o BGB ou que não cite seus dispositivos. Assim como o homem é ele e suas circunstâncias, as
codificações entrelaçam-se com suas circunstâncias históricas e com o momento no qual foram concebidas e
aprovadas. Por ser tão relevante o BGB para o Direito brasileiro, esta coluna será dedicada ao processo de
elaboração desse que foi o último grande código do século XIX e a contar um pouco da história de seus
elaboradores.
O marco inaugural do processo de codificação do Direito Civil do recém-instituído Reich foi a alteração do artigo
4o, 13, da Constituição de 1871, por efeito de uma luta legislativa intensa, que se desdobrou por alguns anos, sob a
liderança de Johann von Miquel (1829-1901) e Eduard Lasker (1829-1884). Essa alteração ganhou o nome
histórico de Lei Miquel-Lasker.[2] Miquel, um nobre de Hanover, descendente de émigrés (franceses que
emigraram fugindo da Revolução Francesa), foi um dos fundadores da Associação Nacional Alemã [Deutscher
Nationalverein, organização política liberal e pró-unificação alemã] e, apesar de hanoveriano, não se opôs à
anexação de seu reino pela Prússia. Eduard Lasker, de ascendência judaica, fundador do Nationalliberale Partei
[Partido Nacional Liberal, uma agremiação pró-unidade alemã], foi o grande líder da reforma constitucional que
permitiu a transferência plena da competência legislativa cível para o governo central. Seu lema era que a
codificação assegurava a liberdade dos indivíduos.
Há todo um contexto histórico envolvido na elaboração do BGB, que tem como cenário a disputa entre grupos
políticos alemães, especialmente os nacional-liberais (e os liberais-radicais), os defensores da aristocracia e o
fortíssimo Partido do Centro (Deutsche Zentrumspartei, que durou até 1933), representante dos interesses políticos
dos católicos nos territórios unificados. O Zentrum foi o grande opositor da nova codificação, com receio da
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política bismarckiana conhecida pela expressão Kulturkampf (Luta pela cultura), que pretendia subtrair o novo
Estado à influência da Igreja Católica. Uma legislação nacional sobre Direito de Família, que não respeitasse as
particularidades dos reinos católicos (Baviera, especialmente) integrantes do novo Reich, era considerada perigosa
pelos partidários do Zentrum. A vitória da dupla von Miquel e Lasker resultou de uma “fugaz combinação” de
circunstâncias[3], de difícil repetição, pois uniu forças absolutamente díspares como os conservadores e os
liberais-radicais.
O respeito da dogmática brasileira pelo BGB não é desacompanhado de referências sobre seu caráter liberal e pelo
aparente esquecimento dos pobres.[4] Essa crítica é devedora da obra de Anton Menger von Wolfensgrün (1841-
1906), um jurista austro-húngaro que lecionou na Universidade de Viena e ocupou funções políticas importantes
no Governo Real e Imperial. Menger é muito conhecido (e citado) por seu clássico livro “Das Bürgerliche Recht
und die besitzlosen Volksklassen. Eine Kritik des Entwurfs eines Bürgerlichen Gesetzbuches für das Deutsche
Reich” [literalmente, O Direito Civil e as classes populares despossuídas[5]: Uma crítica ao projeto de Código
Civil para o Reich alemão], publicada por H. Laupp, de Tübingen, no ano de 1890, que ganhou o título (em
espanhol) “O Direito Civil e os Pobres”, versão que é muito difundida no Brasil.[6]
Menger, até por sua origem de classe e sua fidelidade à Monarquia Dual, de quem foi servidor, nunca se filiou a
partidos políticos, nem teve militância política. Seus estudos eram ligados ao “socialismo jurídico”, embora seu
legado intelectual seja até hoje muito polêmico, até em razão de suas (veementes) críticas ao trabalho de Karl
Marx.[7]
De fato, autores como Menger e, na Itália, Enrico Cimbali, deram ênfase a uma transformação social que o ocaso
do século XIX começava a deixar entrever e cujo efeito se revelaria de maneira trágica nas décadas iniciais do
século XX, com a Revolução Russa e a I Guerra Mundial.
O Direito Civil, por diversas razões, foi o epicentro dessa transformação. Uma passagem de Enrico Cimbali, tão
poética quanto impressiva por sua eloquência, consegue captar esse estado de coisas:
“Um desejo profundo de novidade, uma mania febril de reforma em todas as esferas
múltiplas da vida, da sciencia, da arte, oprime e agita violentamente as fibras da
sociedade moderna. Nenhum sistema, nenhuma instituição, nenhum organismo científico,
artístico, social, ainda que tenha o selo e a consagração dos séculos, se considera como
inviolável e sagrado. Tudo cai e se transforma, a nossas vistas, sob o martelo inexorável
da crítica, sob impulso irresistível de novas necessidades.
“
Entretanto, como nau encantada a navegar sobre as águas revoltas do oceano, cheio de
cadáveres e moribundos, o Direito Civil parece inteiramente insensível a todas essas
modificações. Forma coeva a muitas outras, que desapareceram ou se transformaram, o
Direito Civil, tal como nos foi transmitido pelo Direito Romano, depois de ter resistido ao
torvelinho social da Idade Média, só com mui ligeiras alterações passou para o Direito
moderno e parece ainda destinado, tal como nos veio da antiguidade latina, a dirigir as
sociedades futuras”.[8]
“
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Mas, seria realmente o Código Civil alemão um texto legislativo liberal? Esse pensamento não contém algumas
mistificações e reducionismo histórico censurável? Seria possível transpor esses questionamentos, por exemplo,
para a codificação civil brasileira de 1916, como fez o recém-doutor pela Universidade Federal de Pernambuco,
Venceslau TavaresCosta Filho?[9]
É precisamente essa questão da qual se cuidará, em sequência, na próxima coluna, tomando-se por base um
trabalho de Joachim Rückert, que rediscute muitos consensos sobre o processo de codificação alemã e cuja
reprodução se tem dado no Brasil há muito tempo. Talvez há tempo demais.[10]
[1] ENNECCERUS, Ludwig; NIPPERDEY, Hans Carl; KIPP, Theodor; WOLFF, Martin. Tratado de Derecho
Civil. 15. rev. por Hans Carl Nipperdey. Traduccion de la 39. ed. alemana. 3. ed.Barcelona: Bosch, 1981. p. 108.
[2] REIS, Carlos David Santos Aarão. A elaboração do BGB : homenagem no centenário do Código Civil alemão.
Revista de Informação Legislativa, v. 33, n. 130, p. 121-131, abr./jun. 1996. p. 123.
[3] WIEACKER, Franz. Der Kampf des 19. Jahrhunderts um die Nationalgesetzbücher. In. KASER, Max et alii
(Hrsg). Festschrift für Wilhelm Felgentraeger: Zum 70. Geburtstag. Göttingen: O. Schwartz, 1969. S. 409-422.
[4] Alguns exemplos dessa visão do BGB e de sua influência liberal no Brasil: RÊGO, Nelson Melo de Moraes.
Da boa-fé objetiva nas cláusulas gerais de direito do consumidor e outros estudos consumeristas. Rio de Janeiro :
Gen : Forense, 2009. p. 44; OLIVEIRA, Francisco Cardozo. Hermenêutica e tutela da posse e da propriedade. Rio
de Janeiro: Forense, 2006. seção XIV.
[5] A tradução italiana prefere “O Direito Civil e o proletariado”.
[6] Há uma edição argentina (El Derecho Civil y los Pobres. Versión española, revisada y corregida, de Adilfo G.
Posada. Buenos Aires :Atalaya, 1947) e outra espanhola, com mesmo tradutor, publicada em 1998, pela editora
Comares, de Granada.
[7] MÜLLER, Eckhart. Menger, Anton. In: Neue Deutsche Biographie (NDB). Band 17, Duncker & Humblot,
Berlin 1994. p. 71-74.
[8] CIMBALI, Enrico. A nova phase do direito civil em suas relações economicas e sociaes. Porto: Livraria
Chardron, 1900. p. 13.
[9] COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Um Código “social” e “impopular”: uma história do processo de
codificação civil no Brasil (1822-1916). Tese de Doutorado. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2013.
[10] RÜCKERT, Joachim. Das Bürgerliche Gesetzbuch - ein Gesetzbuch ohne Chance? Juristenzeitung (JZ), 2003,
S. 749-760.
Otavio Luiz Rodrigues Junior é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de
Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em
sua página.
Revista Consultor Jurídico, 26 de junho de 2013, 17h21
http://www.direitocontemporaneo.com/

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