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Autor: Prof. Marco Antonio Loschiavo Leme de Barros Colaboradores: Prof. Renato Bulcão de Moraes Profa. Tânia Sandroni Rousseau e o Contrato Social Re vi sã o: T al ita - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 5/ 11 /1 8 Professor conteudista: Marco Antonio Loschiavo Leme de Barros Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo (USP), com apoio da bolsa de doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Mestre em Direito e Desenvolvimento pela Fundação Getulio Vargas de São Paulo (FGV‑SP), é bacharel em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC‑SP). É professor titular da Faculdade de Direito da Universidade Paulista (UNIP). Pesquisa nas áreas de Filosofia Política e do Direito, Direito Público, Sociologia e Teoria do Direito, Pesquisa Empírica e Metodologia em Direito. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) M361r Marros, Marco Antonio Loschiavo Leme de. Rousseau e o Contrato Social / Marco Antonio Loschiavo Leme de Marros. ‑ São Paulo: Editora Sol, 2019. 132 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XXV, n. 2.061/19, ISSN 1517‑9230. 1. Direitos civis. 2. Rousseau. 3. Contrato social. I. Título. CDU 32 U501.71– 19 Re vi sã o: T al ita - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 5/ 11 /1 8 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona‑Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Talita Ló Ré Ricardo Duarte Re vi sã o: T al ita - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 5/ 11 /1 8 Sumário Rousseau e o Contrato Social APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................8 Unidade I 1 BASES DA POLÍTICA MODERNA ................................................................................................................. 13 2 RENASCIMENTO ............................................................................................................................................... 13 3 TEORIA DO CONTRATO SOCIAL .................................................................................................................. 17 3.1 Hugo Grotius (1583‑1645) ............................................................................................................... 18 3.2 Thomas Hobbes (1588‑1679) .......................................................................................................... 19 3.3 John Locke (1632‑1704) .................................................................................................................... 25 3.4 Samuel Pufendorf (1632‑1694) ..................................................................................................... 29 4 DIREITOS CIVIS ................................................................................................................................................. 31 Unidade II 5 DISCURSO SOBRE A ORIGEM E OS FUNDAMENTOS DA DESIGUALDADE ENTRE OS HOMENS: PRIMEIRA PARTE ....................................................................................................... 36 5.1 Prefácio do Discurso sobre a Desigualdade ............................................................................... 39 5.2 Descrição do homem no estado de natureza ........................................................................... 41 5.3 Aspecto físico ......................................................................................................................................... 43 5.4 Aspecto metafísico .............................................................................................................................. 46 5.5 Aspecto moral ........................................................................................................................................ 48 6 DISCURSO SOBRE A ORIGEM E OS FUNDAMENTOS DA DESIGUALDADE ENTRE OS HOMENS: SEGUNDA PARTE ..................................................................................................... 51 6.1 Estado de natureza histórico ........................................................................................................... 52 6.2 Idade de Ouro ........................................................................................................................................ 54 6.3 Propriedade ............................................................................................................................................. 55 6.4 Estado de guerra ................................................................................................................................... 57 7 CONTRATO SOCIAL .......................................................................................................................................... 61 7.1 Visão geral ............................................................................................................................................... 61 7.2 Livro I do Contrato Social ................................................................................................................. 62 7.2.1 Família e Estado ....................................................................................................................................... 63 7.2.2 Força e Direito .......................................................................................................................................... 65 7.2.3 Escravidão .................................................................................................................................................. 67 Re vi sã o: T al ita - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 5/ 11 /1 8 7.2.4 Primeira convenção ............................................................................................................................... 68 7.2.5 Pacto social................................................................................................................................................ 69 7.2.6 Soberano .................................................................................................................................................... 73 7.2.7 Estado civil ................................................................................................................................................. 74 7.3 Livro II do Contrato Social ................................................................................................................ 76 7.3.1 A vontade geral pode errar? ...............................................................................................................78 7.3.2 Direito de vida e de morte .................................................................................................................. 80 7.3.3 Lei .................................................................................................................................................................. 81 7.3.4 Legislador ................................................................................................................................................... 83 7.3.5 Povo .............................................................................................................................................................. 84 7.3.6 Divisão das leis ......................................................................................................................................... 87 7.4 Livro III do Contrato Social ............................................................................................................... 88 7.4.1 Divisão e tipos de governos ................................................................................................................ 90 7.4.2 Abuso do governo e a tendência a degenerar ............................................................................ 96 7.4.3 A morte do corpo político ................................................................................................................... 97 7.4.4 Como se mantém a autoridade soberana? .................................................................................. 98 7.4.5 Instituição do governo .......................................................................................................................101 7.5 Livro IV do Contrato Social .............................................................................................................103 8 REPERCUSSÕES DO CONTRATO SOCIAL ...............................................................................................105 8.1 A crítica de Gérard Lebrun ..............................................................................................................105 8.2 A obra de Luiz Roberto Salinas Fortes .......................................................................................107 8.3 A dimensão histórica em Rousseau ............................................................................................108 8.4 Trama institucional no Contrato Social ....................................................................................111 8.5 Governo, Judiciário e responsividade após o Contrato Social .........................................115 8.6 Modernidade e Rousseau ................................................................................................................118 7 Re vi sã o: T al ita - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 5/ 11 /1 8 APRESENTAÇÃO Jean‑Jacques Rousseau (1712‑1778) é considerado o principal pensador político da Revolução Francesa, período que marcou a queda do poder absolutista de Luís XVI e o surgimento do Estado de Direito, caracterizado pelo império da lei e pela proteção das liberdades civis na França. A influência desse filósofo não se circunscreveu apenas ao continente europeu, no século XVIII: seus escritos também foram base para diferentes movimentos de independência, tal como o estadunidense, em 1776, e o movimento de democratização ao longo do século XX. Esse filósofo genebrino é lembrado por muitos defensores do Estado Democrático de Direito e por seus ensinamentos em prol da educação cívica. Importante ideia na filosofia rousseauniana é a formação de um pacto de associação capaz de proteger cada pessoa com toda a força comum. Tal ideia se aproxima à figura jurídica das constituições soberanas, que, historicamente, marcaram o surgimento dos Estados modernos e da afirmação dos direitos civis ou individuais. Inegável, então, reconhecer a importância das teses republicanas e igualitárias inauguradas por esse filósofo, fundamentando a instituição de um Estado capaz de limitar e punir os abusos praticado pelo Estado via a imposição da letra da lei; além de ter sido um defensor das liberdades básicas do homem – como os direitos de circulação, de manifestação de pensamento, de propriedade privada, de defesa, de resistência e de petição –, sempre orientado para a redução das desigualdades sociais em prol das necessidades do povo. Diante dessas teses, Rousseau se consagrou na história como um dos principais expoentes da Filosofia Moderna e da Filosofia Política, além de influente pensador em outras áreas, como Ciência Política, Antropologia, Sociologia e Direito. É nesse contexto que nossa disciplina se insere com o principal objetivo de apresentar ao(à) aluno(a) de graduação o pensamento de Rousseau, de forma sistemática e objetiva, com base, sobretudo, no exame dos principais argumentos das obras Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, publicada em 1754, e o Contrato Social, publicada em 1762 na França. Essas obras se completam e podem ser lidas em sequência, dada a continuidade do pensamento que as caracteriza. Na primeira obra, Rousseau explicará o fundamento da desigualdade e a decadência da vida social dos homens. Na segunda obra, o autor mostrará a importância do pacto social para a proteção da liberdade e da igualdade em uma ordem civil, resgatando, assim, a vida social degenerada. No plano de ensino, esta disciplina contempla como objetivos gerais: entender o significado, para Rousseau, do surgimento das primeiras sociedades e do aparecimento da propriedade como principal instrumento de diferenciação e de produção de desigualdade entre os homens, além, é claro, de entender o Contrato Social e sua importância para a sociedade republicana moderna. Como objetivos específicos, destacam‑se ainda: a liberdade natural do ser humano; o questionamento da vida em sociedade como privação da liberdade; a convenção formada pelos homens como forma de defesa contra o mal; o pacto social e a discussão do papel do soberano; a soberania do povo; a passagem do estado natural para o civil, a liberdade moral e o sentimento de autonomia do homem; a soberania indivisível do povo, a vontade geral; a vontade geral como o limite do poder do governante; a lei como condição essencial para a associação civil; o abuso dos governos que degeneram o Estado e a preservação e prosperidade dos seus membros. Desejamos a todas e todos uma boa leitura e bons estudos! 8 Re vi sã o: T al ita - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 5/ 11 /1 8 INTRODUÇÃO O enciclopedismo foi um movimento filosófico‑cultural do Iluminismo que se propôs a catalogar todo o conhecimento humano disponível na época. A Enciclopédia, ou Dicionário Razoado das Ciências, das Artes e dos Ofícios, foi editada por Denis Diderot e Jean Le Rond d’Alembert em 17 volumes de textos e 11 volumes de ilustrações, publicados entre 1751 e 1765. Importantes filósofos da época contribuíram com as edições, como Voltaire, Montesquieu e Rousseau. O início da carreira de Jean‑Jacques Rousseau, principal filósofo da Revolução Francesa, decorreu de certo sucesso em um concurso da Academia de Dijon, ao responder à questão “O restabelecimento das ciências e das artes contribuiu para aperfeiçoar os costumes?”, em 1750. Até então Rousseau era um músico que tentava a sorte em Paris, sobrevivendo por meio de seu trabalho como professor e de suas produções artísticas. Nesse meio cultural, o filósofo conheceu os principais intelectuais franceses, envolvendo‑se, assim, no projeto do enciclopedismo. Rousseau participou do concurso de Dijon com o texto Discurso sobre as Ciências e as Artes (também chamado de Primeiro Discurso). Nesse texto inaugural, que o próprio autor rejeita diante de sua imprecisão lógica, Rousseau já antecipa alguns traços de sua filosofia e diz “antes que a arte houvesse moldado nossas maneiras e ensinado nossas paixões a falar uma linguagem rebuscada, nossos costumeseram rústicos, mais naturais” (1999, p. 13). Para esse filósofo as ciências e as artes corrompem a vida social, indicando que suas origens decorrem justamente do enaltecimento e do exame dos vícios humanos. Tal ideia irá ecoar em toda a sua filosofia, afinal a civilização desregrada justifica a desigualdade, origem de todo mal entre os homens. Rousseau ficou conhecido como o autor do elogio do homem primitivo e da crítica da civilização degenerada. Não obstante, ele também contribuiu para a defesa de um modelo de sociedade civil capaz de retomar um ideal de paz e prosperidade, mesmo que tal modelo fosse artificial. Em sua filosofia, prevalece a articulação de uma série de opostos: natureza e sociedade, liberdade e igualdade, soberano e súdito, força e direito, entre outros. Dessa forma, o filósofo inaugura uma maneira paradoxal de analisar a sociedade, indicando a dificuldade de reduzir o exame a apenas um dos lados da diferença da observação. Sempre existem pontos cegos e limitações parciais, que refletem a própria sociedade. Importante comentador de sua obra, o professor Luiz Roberto Salinas Fortes indica a importância de seu método paradoxal: Dada a importância da reflexão sobre a constituição do social e de sua gênese histórica na obra de Rousseau, é possível afirmar que ele não apenas está nas origens do pensamento sociológico como fornece elementos para a grande revolução teórica realizada por Hegel (1770‑1831) e por Karl Marx (1818‑1882), que colocam em bases inteiramente novas o estudo da história social dos homens. Já Friedrich Engels (1820‑1895), em sua obra Anti‑Dühring, via elementos do método dialético – que fora sistematizado por Hegel – já na genealogia exposta no Discurso sobre a Origem e os 9 Re vi sã o: T al ita - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 5/ 11 /1 8 Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. Segundo Rousseau, a evolução da humanidade caminha na base da contradição entre termos opostos (SALINAS FORTES, 1989, p. 116). No plano político, ainda que tenha falecido antes da Revolução Francesa, de 1789, seus escritos ganharam extremo prestígio entre os grandes líderes, como Robespierre (1758‑1794). Vale lembrar que esse movimento revolucionário resultou na derrota do absolutismo monárquico, na libertação dos camponeses e na proteção dos interesses dos burgueses ao consagrar os direitos individuais. O filósofo também contribuiu diretamente para a estruturação de alguns Estados, como seu projeto político para a ilha de Córsega e uma reforma das leis da Polônia. No plano da Filosofia, Rousseau entrou em diálogo com os autores do contratualismo – corrente com distintos filósofos que explicavam a formação do Estado com base na teoria dos contratos sociais, capaz de superar um estado de natureza que colocava em risco a sobrevivência humana. As principais referências são Hugo Grotius, Thomas Hobbes, Samuel Pufendorf e John Locke. Além disso, Rousseau também foi amigo do filósofo David Hume, que, inclusive, o abrigou durante o período de exílio. No plano das artes, Rousseau também contribuiu com a produção de algumas óperas, como As Musas Galantes e O Adivinho da Aldeia, além de peças teatrais e romances, como Júlia: ou A Nova Heloísa e Devaneios de um Caminhante Solitário. Figura 1 – Retrato de Jean‑Jacques Rousseau Jean Starobinski, importante comentador da obra do filósofo, assim descreve sua trajetória: “aventureiro, sonhador, filósofo, antifilósofo, teórico político, músico, perseguido: Jean‑Jacques foi tudo isso” (1991, p. 9). 10 Re vi sã o: T al ita - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 5/ 11 /1 8 Vale registrar que Rousseau nasceu em 28 de junho de 1712, em Genebra, Suíça. Na juventude mudou‑se para uma pensão em Annecy, na França, onde dedicou seu tempo à música e ao estudo religioso. Na maturidade foi para Paris, onde trabalhou como professor de música, escrevendo suas principais obras entre 1741 e 1754. Durante o regime absolutista sofreu perseguições, refugiando‑se na Suíça e na Inglaterra. Nos últimos anos de sua vida, conseguiu retornar a Paris e viveu ao lado de sua esposa até morrer, isolado da sociedade. Não à toa, esse filósofo é descrito como um sujeito solitário e em conflito com a sociedade, o que justifica seu distanciamento e sua reflexão sobre as contradições observadas da época. Jean‑Jacques não é um “sujeito” filosófico que analisa o espetáculo do mundo exterior e que o põe em dúvida como uma aparência formada pela mediação enganadora dos sentidos. Jean‑Jacques descobre que os outros não vão ao encontro de sua verdade, de sua inocência, de sua boa‑fé, e é apenas em seguida que o campo se obscurece e se vela. Antes que ele se experimente distante do mundo, o eu sofre a experiência de sua distância em relação aos outros (STAROBINSKI, 1991, p. 21). Na sua última obra, Devaneios de um Caminhante Solitário, fica em evidência a construção conflituosa e ensimesmada de Rousseau. Diante de um acidente que dificulta suas caminhadas diárias, afirma: “sou cem vezes mais feliz em minha solidão do que poderia ser vivendo com eles. Arrancaram de meu coração todas as doçuras da vida em sociedade” (ROUSSEAU, 2008, p. 10). Aliás, historicamente, a solitude é uma marca constante nos filósofos modernos, que preferem a reclusão para o desenvolvimento de suas ideias – ainda que defendam a prática do debate e a projeção da discussão na cidade, característica oriunda da tradição socrática. Sobre o ponto, explica Marilena Chaui com base em um comentário do método cartesiano: “separado do mundo, isolado com suas percepções, opiniões, ideias, sua solidão torna indispensável um método que possa guiar o pensamento em direção aos conhecimentos verdadeiros e distingui‑los dos falsos” (CHAUI, 2000, p. 200). Rousseau foi casado com Thérèse Levasseur, com quem teve cinco filhos, os quais, diante das dificuldades financeiras, foram abandonados em um orfanato. Além das Artes e da Filosofia, Rousseau também se dedicou à Botânica. Morreu em 2 de julho de 1789, por causas não esclarecidas, e, diante da sua influência na Revolução Francesa, seus restos mortais foram guardados no Panteão de Paris, dedicado aos heróis da pátria. 11 Re vi sã o: T al ita - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 5/ 11 /1 8 Figura 2 – A impressão mostra uma visão do nível da rua do Panthéon, em Paris (França), com pedestres na rua em primeiro plano Segue uma relação cronológica de suas principais obras. • Dissertação sobre a Música Moderna, 1736. • Discurso sobre as Ciências e as Artes, 1750. • Narciso ou o Autoadmirador: uma Comédia, 1752. • O Adivinho da Aldeia, 1752. • Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, 1754. • Discurso sobre Economia Política, 1755. • Carta a M. D’Alembert sobre Espetáculos, 1758. • Júlia: ou A Nova Heloísa, 1761. • Emílio: ou A Educação, 1762. • Contrato Social: ou Princípios do Direito Político, 1762. • Quatro Cartas para M. de Malesherbes, 1762. • Pygmalion: uma Cena Lírica, 1762. 12 Re vi sã o: T al ita - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 5/ 11 /1 8 • Cartas Escritas da Montanha, 1764. • Confissões de Jean‑Jacques Rousseau, 1770. • Projeto Constitucional para a Córsega, 1772. • Considerações sobre o Governo da Polônia, 1772. • Ensaio sobre a Origem das Línguas, 1781. • Diálogos: Rousseau, Juiz de Jean‑Jacques, 1782. • Devaneios de um Caminhante Solitário, 1782. Saiba mais Os filmes a seguir podem propiciar uma perspectiva histórica sobre a Revolução Francesa. CASANOVA e a revolução. Dir. Ettore Scola. França: Opera Film Produzione, 1982. 150 minutos. DANTON: o processo da revolução. Dir. Andrzej Wajda. França: Gaumont, 1983. 136 minutos. MARIA Antonieta. Dir. Sofia Coppola. Estados Unidos: Columbia Pictures Corporation, 2006. 122 minutos. 13 Re vi sã o: T al ita - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 5/ 11 /1 8 ROUSSEAU E O CONTRATO SOCIALUnidade I 1 BASES DA POLÍTICA MODERNA Incialmente, é preciso estudar a obra de Rousseau tendo‑se em vista a contextualização dos movimentos do Renascimento político, da teoria social do contrato e da criação e defesa dos direitos civis, movimentos teóricos que antecederam sua obra e formaram as bases da atual política moderna na sociedade. Assim sendo, vale esclarecer para o leitor o sentido mobilizado do conceito de sociedade política, pois, considerando sua relevância para a disciplina, é possível sustentar três orientações. No sentido teórico do termo, a expressão sociedade é compreendida como uma conquista em face do estado de natureza, seja em razão de uma necessária natureza de o homem viver em conjunto (Aristóteles), seja por um acordo de vontades (como será apresentado na sequência por Hobbes, Locke e Rousseau). No sentido teórico, a sociedade é um resultado de uma necessidade natural do homem, sem excluir a participação das distintas vontades humanas. No sentido prático, a sociedade é compreendida como um fato histórico diante da impossibilidade da solução dos problemas privados pelo homem, isoladamente considerado. A sociedade permite transformar a pluralidade dos interesses privados em um interesse geral e público, e a solução se coloca por meio do consenso, da cooperação ou da coerção (poder). Juridicamente, sociedade é aquela pessoa jurídica de direito público dotada de capacidade de direito, podendo figurar em relações jurídicas e proteger seus próprios interesses públicos. A sociedade pode ser titular e destinatária de direitos e obrigações. Tecnicamente, sociedade é uma forma específica de pessoas jurídicas, correspondendo estas a sujeitos detentores de direitos e obrigações que não se confundem com seus membros (pessoas físicas) e possuem patrimônios distintos. Ressalta‑se que a seguir são mobilizados os conceitos teórico e prático de sociedade política. 2 RENASCIMENTO Desde o início do século XIV, em várias regiões da Europa, prevaleceu um resgate das tradições culturais e políticas do Império Romano, período que ficou conhecido como Renascimento. É nesse ambiente que surge o pensamento político moderno, abordando os problemas da política por meio de critérios próprios e autônomos em relação às demais ciências e religiões. 14 Re vi sã o: T al ita - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 5/ 11 /1 8 Unidade I Saiba mais A Filosofia da Renascença compreende o período do século XIV ao século XVI e teve como centro os pensadores florentinos, que defendiam a participação política e republicana, além da autonomia das cidades italianas contra o poder imperial e papal. Tal período também foi marcado por grandes descobertas e pelo desenvolvimento do conhecimento científico, destacando‑se Nicolau Copérnico, Galileu Galilei, Johannes Kepler, Nicolau de Cusa e Leonardo da Vinci. O principal traço em comum entre os cientistas era a compreensão idealizada do homem como centro de todo o pensamento da época. Uma importante referência na história do Renascimento é a obra indicada a seguir. BURCKHARDT, J. A Cultura do Renascimento na Itália. São Paulo: Companhia do Bolso, 2009. O surgimento desse conceito moderno depende de uma visão humanística da vida. Sobre o ponto, explica o professor Newton Bignotto que é preciso definir o humanismo do Renascimento como uma orientação cultural. O humanismo italiano do Renascimento foi um humanismo que não era nem verdadeiro, nem integral, nem cristão, nem científico no sentido corrente da palavra. Ele era simplesmente (o que não é pouco) uma orientação cultural em direção ao estudo das línguas, da literatura, da história e da filosofia da Antiguidade grega e latina e uma renovação da poesia e da prosa oratória, da historiografia e do pensamento moral – tudo isso buscando inspiração, tanto na forma quanto no conteúdo, nos modelos fornecidos pelos autores antigos (BIGNOTTO, 2001, p. 21). Para a política, a retomada do valor dos discursos e a atividade da vida pública significavam uma nova relação entre o homem e a cidade. Tratava‑se de discutir, por exemplo, a capacidade do homem, como integrante e participante, de agir e propor a defesa de um conjunto de valores vinculados à cidade. É por isso que nos textos políticos do humanismo cívico a questão política se apresenta sempre como a pergunta sobre a melhor forma de governo, já que, nesse sentido, não haveria possibilidade de pensar o problema da fundação dos regimes separadamente da dificuldade da realização do homem no interior da cidade – a preocupação era pensar a relação do homem com seu meio. O fato é que essa produção teórica do humanismo abandonou a sistematização em torno dos eixos da ética medieval dos grandes modelos neoplatônicos para ater‑se ao ressurgimento 15 Re vi sã o: T al ita - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 5/ 11 /1 8 ROUSSEAU E O CONTRATO SOCIAL de uma preocupação voltada para a prática, isto é, para os problemas da cidade e para um conjunto de valores ligados à ação dos homens nos domínios públicos a partir da retomada da Antiguidade clássica. Destacavam‑se no cenário florentino os autores contemporâneos Nicolau Maquiavel (1469‑1527) e Francesco Guicciardini (1483‑1540), que compartilhavam os mesmos propósitos. Ambos políticos e pensadores, pretendiam definir novos procedimentos a fim de promover uma reforma política, sobretudo da cidade de Florença, diante da necessidade de atenuar ou reverter os processos de corrupção dos costumes e de degradação dos valores republicanos. Observação A originalidade do pensamento político de Maquiavel está na capacidade de analisar os eventos levando em conta certa vivência imediata do mundo político, naquilo que chamou a verità effetuale della cosa. Tal perspectiva é uma constante nas obras do autor florentino e revela o importante lugar reservado ao saber histórico no interior do seu pensamento. Nessa posição, o fato é que o conhecimento histórico proporciona acesso a dois níveis de compreensão: o imediato do acontecimento particular e o mediato com base no conhecimento dos movimentos e das paixões que precedem as circunstâncias. Em Maquiavel o grande tema é a tomada e manutenção do poder, afinal o príncipe precisa saber agir politicamente. Dessa forma, é preciso perceber a virtú (e a ação humana) como circunscrita a uma determinada situação, exigindo do agente a definição para agir visando à produção de bons efeitos naquele momento ou de acordo com um objetivo claro e preciso. A proposta da teoria da ação política em Maquiavel se direciona para os fatos e vivências concretos em razão da necessidade das cidades italianas em cada época. Caberia, então, aos homens voltar ao conhecimento do que foi feito e que mostrou bons resultados em relação ao governo para manter uma boa ordenação do Estado. A grande República para Maquiavel é Roma. Em seus Discursos, por meio de exemplos e razões, ressalta‑se o fato de que os romanos não só foram menos ingratos que outras repúblicas, mas também mais piedosos e cautelosos na punição de seus comandantes. Tal movimento, que valoriza a ação humana e a avaliação da história, influenciou e confirmou o surgimento de um campo autônomo da Filosofia Política, que foi aperfeiçoada com o contratualismo. Para alguns autores, os pensadores do Renascimento foram responsáveis por inaugurar o sentido moderno de política, em especial Maquiavel. Nesse sentido, a filósofa brasileira Marilena Chaui afirma a existência de uma verdadeira “revolução maquiavelista”. 16 Re vi sã o: T al ita - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 5/ 11 /1 8 Unidade I Sua obra funda o pensamento político moderno porque busca oferecer respostas novas a uma situação histórica nova, que seus contemporâneos tentavam compreender lendo os autores antigos, deixando escapar a observação dos acontecimentos que ocorriam diante de seus olhos (CHAUI, 2000, p. 512). Seguindo o exame da professora Chaui,é possível afirmar que Maquiavel consegue romper com a tradição e inaugurar a política moderna baseando‑se em quatro pontos principais, destacados a seguir. • Maquiavel admite a compreensão histórica do sistema político, marcado por uma série de lutas e conquistas. Esse filósofo político não admite nenhuma justificativa anterior e exterior à política. • A grande questão política é a tomada e a manutenção do poder, relativizando narrativas que justifiquem o exercício do poder político em prol do bem comum ou da justiça. Em alguma medida, é possível dizer que Maquiavel defendeu uma racionalidade política autônoma e diversa da moral. • O dirigente deve cultivar determinadas qualidades para o sucesso do poder político, deve ser respeitado e temido ao mesmo tempo que deve dispor do conhecimento necessário e suficiente para saber agir diante das oportunidades. • O regime político adequado é o republicano, aquele que articula a atuação de dirigentes e instituições tendo em vista um determinado projeto – o que não se relaciona com os desejos e interesses particulares. Há uma evidente revolução maquiavelista que contribuiu para a autonomia do pensamento político. Diz Marilena Chaui: [...] diferentemente dos teólogos, que partiam da Bíblia e do Direito Romano para formular teorias políticas, e diferentemente dos contemporâneos renascentistas, que partiam das obras dos filósofos clássicos para construir suas teorias políticas, Maquiavel parte da experiência real de seu tempo (CHAUI, 2000, p. 511). As obras de Maquiavel narram sua experiência como diplomata e conselheiro da cidade de Florença. Essa revolução orientada para o exame real da política marcou o desdobramento da Filosofia Política nos séculos seguintes e influenciou Rousseau por meio da compreensão da autonomia da política. Lembrete Maquiavel é considerado um dos expoentes do pensamento político, pois admite a autonomia do sistema político. 17 Re vi sã o: T al ita - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 5/ 11 /1 8 ROUSSEAU E O CONTRATO SOCIAL Figura 3 – Vista do Priorado de Florença e do Palácio do Magistrado Chefe, registrada da praça da Igreja dos Padres do Oratório, em Florença 3 TEORIA DO CONTRATO SOCIAL A compreensão moderna da política foi complementada pela teoria do contrato social, ou contratualismo, que pode ser caracterizada como um movimento da Filosofia Política, durante o período da Idade Moderna, que se propôs a discutir a fundamentação legítima do Estado, a natureza do poder soberano, a dimensão da liberdade presente na condição civil e as formas do seu devido exercício. Em especial, essa corrente é tributária de uma tradição racionalista e baseada exclusivamente na vontade individual diante da preservação de direito naturais, como o direito à sobrevivência e à liberdade. A política, nesse sentido, refere‑se ao surgimento e à constituição de um Estado civil, capaz de organizar e dirigir os distintos interesses particulares de uma coletividade. Para tanto, é preciso a instituição de um artifício como o Direito, que é capaz de definir a estrutura e a organização estatal. A organização política é desejável diante do interesse da manutenção da paz e da sobrevivência entre os homens, além, é claro, de facilitar o desenvolvimento de uma série de atividades econômicas e sociais. Sem um Estado é difícil regular conflitos, determinar os limites da atuação individual, proteger a propriedade privada, distribuir e fornecer serviços aos mais necessitados, entre tantas outras atividades. Nesse movimento, ainda que o homem, em sua condição natural, seja criado à imagem e semelhança de Deus, a instituição do Estado civil se origina na natureza humana racional baseada em um pacto social. Os contratualistas herdaram, por assim dizer, certa tradição do jusnaturalismo. Sem embargo, esses filósofos destacaram a necessidade da construção de um artifício capaz de superar na prática os problemas práticos da proteção dos direitos, que acabaram tendo aplicações deturpadas por várias circunstâncias da existência humana no estado de natureza. 18 Re vi sã o: T al ita - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 5/ 11 /1 8 Unidade I Observação O jusnaturalismo é uma corrente teórica que defende a existência de um direito natural, universal e imutável, fundado em normas que independem da vontade dos homens. Nesse sentido, o jusnaturalismo retira seus fundamentos de fontes sagradas e anteriores ao ser humano, além de defender uma relação necessária entre Direito e Moral. O estado de natureza é um elemento metodológico capaz de explicar e descrever a vida humana em uma situação anterior à constituição do Estado civil. Para alguns autores, trata‑se do estado primitivo da vida humana, quando os homens viviam isolados e em constante disputa pela sobrevivência. A passagem do estado de natureza à sociedade civil se dá por meio de um contrato social, pelo qual os indivíduos renunciam à liberdade natural e à posse natural de bens, riquezas e armas e concordam em transferir a um terceiro – o soberano – o poder para criar e aplicar as leis, tornando‑se autoridade política. O contrato social funda a soberania (CHAUI, 2000, p. 517). Pelo exposto, o contratualismo se difundiu como corrente teórica entre os séculos XVI e XVIII para justificar a consolidação da formação do Estado moderno, apoiando‑se em leis preestabelecidas por um poder legítimo baseado em um pacto ou convenção entre os homens. Nesse sentido, para esses filósofos o poder do monarca não poderia derivar de uma fonte sagrada, como pela graça divina, mas de um pacto de submissão dos súditos em relação ao soberano. Nessa linha, diferentes teorias foram consolidadas, sendo importante destacar os trabalhos de Hugo Grotius, Thomas Hobbes, John Locke e Samuel Pufendorf. 3.1 Hugo Grotius (1583‑1645) Jurista holandês, foi um dos primeiros autores contratualistas, pois defendeu a existência de um direito natural com base na formação de um pacto ainda no final do período medieval. Grotius ficou conhecido por seu extenso e importante trabalho na área do Direito Internacional e Marítimo, decorrente das relações comerciais, além de pela abordagem do direito de guerra e da ideia da guerra justa. Esse pensador defendia o humanismo tolerante e buscou o consenso entre o culto calvinista e o católico nas Províncias Unidas (Holanda e Países Baixos). Diante de sua posição teológica e política, fugiu para a França, no reinado de Luís XIII. Sobre sua obra, comenta o professor José Reinaldo de Lima Lopes: Seu método, seu estilo e sua obra são ainda devedores de pressupostos aristotélicos e tomistas. No De Iure Belli ac Pacis, reconhece que a sociabilidade é um traço intrínseco dos homens, um desejo não de qualquer 19 Re vi sã o: T al ita - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 5/ 11 /1 8 ROUSSEAU E O CONTRATO SOCIAL convivência, mas pacífica e organizada, na medida de sua inteligência, com os seus semelhantes. Não o medo ou a própria segurança fazem o Estado, mas o appetitus socialis, a sociabilidade. Aristóteles ocupa a primeira posição entre os filósofos, diz Grotius, e sua preeminência é merecida, embora tenha sido transformado em uma autoridade e tirania e não em verdade. Aceita ainda que o direito é objetivo, uma regra de conduta. E que o direito natural não se confunde com a vontade de Deus e nem com o direito positivo (LOPES, 2008, p. 180). Importante obra do jurista holandês é Direito da Guerra e da Paz, publicada em 1625, que analisa uma série de casos históricos à luz da sua posição jusnaturalista mitigada pela perspectiva racionalista do pacto comunitário. Portanto, ainda que a instituição do Estado civil seja criada à imagem e semelhança da lei divina, tal instituição depende de um pacto racional entre os homens. Nessa obra, Grotius sustenta a existência de um direito natural de guerra capaz de conduzir à paz, admitindo a legalidade das disputas entre as nações. Importantecaso analisado foi a Guerra dos Trinta Anos, que opôs a França e a Espanha. Ainda, também reflete sobre a compreensão de capacidade jurídica ao distinguir acepções da palavra direito. Há outra acepção da palavra direito, diferente dessa, ainda que surja dela, que está diretamente relacionada à pessoa. Nesse sentido, direito é uma qualidade moral anexada à pessoa, habilitando‑a justamente a possuir algum privilégio particular, ou a desempenhar algum ato particular. Esse direito está agregado ao indivíduo, embora por vezes acompanhe as coisas, como os títulos de propriedade, que são chamados “direitos reais”, em oposição àqueles meramente “pessoais”. Não porque não estejam anexados às pessoas, mas a distinção é feita porque eles pertencem somente àquelas que possuem algumas coisas particulares. Tal qualidade moral, quando perfeita, é chamada “capacidade”; quando imperfeita, “aptidão”. A primeira responde ao ato, e a segunda ao poder quando falamos de coisas naturais (GROTIUS, 2004, p. 103). 3.2 Thomas Hobbes (1588‑1679) Thomas Hobbes, nascido em 5 de abril de 1588 em Westport, Inglaterra, foi também cientista e historiador, reconhecido por sua obra sobre Filosofia Política. Dedicou‑se também a estudos sobre Física, especialmente em relação à teoria dos gases. Em razão do trabalho do seu pai, que era um vigário, encarregado de uma pequena igreja paroquial de Wiltshire, Hobbes recebeu seus primeiros ensinamentos na igreja. Durante a juventude, o pequeno Hobbes foi para Magdalen Hall, em Oxford, local onde anos mais tarde cursaria Artes Tradicionais na Universidade. Em 1608, depois de se formar em Oxford, ele foi contratado como tutor de William Cavendish, importante duque da região. Ao longo de décadas, Hobbes trabalhou para a família Cavendish enquanto 20 Re vi sã o: T al ita - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 5/ 11 /1 8 Unidade I tradutor, companheiro de viagem, conselheiro político e colaborador científico. Foi nesse período que Hobbes, em suas viagens pela Europa, pôde observar a influência das ideias de pensadores modernos, como Galileu Galilei e Kepler. Hobbes ficou fascinado com o problema da percepção sensorial e toda essa imersão influenciou suas obras: Uma Curta Abordagem a Respeito dos Primeiros Princípios, acerca da diversidade do momento; De Corpore, acerca dos fenômenos físicos; De Homine, sobre movimento; De Cive, que trata da organização social. Essas obras têm interesse direto sobre os corpos físicos e suas propriedades, tratam do entendimento da Filosofia e da Ciência enquanto uma busca por conhecimento da origem das coisas e também dos fenômenos observados como efeitos da matéria em movimento. Na visão de Hobbes, a Filosofia não deveria ater‑se às questões espirituais ou não corpóreas, assunto de responsabilidade da teologia e da fé individual, visto que o objeto de estudo é Deus, cuja origem não se pode descobrir. Além disso, em seus estudos, ele objetivava entender como se daria a vida humana em uma condição apolítica, o estado de natureza. Em 1637, agora na Inglaterra, Hobbes publicou Elementos da Lei Natural e Política, influenciado pelo prelúdio do que seria a Guerra Civil Inglesa. Poucos anos depois, morando em Paris, publicou Objeções às Ideias de Descartes. Já em 1650, publicou Os Elementos da Lei, Natureza Humana e Do Corpo Político. No ano seguinte, publicou a obra que seria o marco de sua carreira como filósofo: Leviatã, obra influenciada pela Guerra Civil, especialmente pela execução de Carlos I e pelo exílio de Carlos II. Hobbes, um admirador da História Antiga, aos 80 anos de idade realiza a tradução de obras de Homero. Por fim, em 4 de dezembro de 1679, aos 91 anos de idade, em Hardwick Hall, Derbyshire, morre. Fato é que Hobbes foi um racionalista, desenvolveu um sistema em que, partindo‑se de noções fundamentais, se procede de maneira a derivar delas todas as demais noções que compõem o conhecimento – trata‑se de uma explicação da gênese das coisas. A razão é, então, um artifício que permite aos homens realizarem as suas necessidades. Não à toa, Hobbes era também um matemático, trazendo o raciocínio matemático para o campo político ao defender a importância de afirmar situações críveis. Observação Hobbes sustenta que os homens são capazes de realizar um cálculo mental de prudência, forma de conhecimento que leva em consideração os resultados da experiência passada e é determinante para as novas relações que pretendem estabelecer. Na sua teoria, Hobbes (2008) defende a ideia de que a condição natural do homem é uma condição de guerra de todos contra todos. Ele resgata um provérbio em latim, no capítulo XLII do Leviatã, para descrever a situação: o homem é o lobo do homem (homo homini lupus). Para Hobbes, tal condição decorre das próprias paixões humanas, sendo o caso de observar certa lógica do comportamento. 21 Re vi sã o: T al ita - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 5/ 11 /1 8 ROUSSEAU E O CONTRATO SOCIAL O que determina e explica o nosso modo de agir e tal condição perversa? Segundo o pensador, a circunstância que explica é a igualdade entre os homens: possuímos as mesmas capacidades físicas e espirituais para agir e buscar a preservação. Porém, sempre que os homens desejarem um bem que não possa ser compartilhado e usufruído em conjunto, eles se tornarão inimigos, disputando tal bem. Essa situação é caracterizada por Hobbes, no capítulo XIII de Leviatã, como uma situação de desconfiança, capaz de gerar a guerra diante do comportamento de antecipação dos homens para subjugar pela força os outros homens. Desta igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à esperança de atingirmos nossos fins. Portanto, se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam‑se inimigos. E no caminho para seu fim (que é principalmente sua própria conservação, e às vezes apenas seu deleite) esforçam‑se por se destruir ou subjugar um ao outro e disto se segue que, quando um invasor nada mais tem a recear do que o poder de um único outro homem, se alguém planta, semeia, constrói ou possui um lugar conveniente, é provavelmente de esperar que outros venham preparados com forças conjugadas, para desapossá‑lo e privá‑lo, não apenas do fruto de seu trabalho, mas também de sua vida e de sua liberdade. Por sua vez, o invasor ficará no mesmo perigo em relação aos outros. E contra esta desconfiança de uns em relação aos outros, nenhuma maneira de se garantir é tão razoável como a antecipação; isto é, pela força ou pela astúcia, subjugar as pessoas de todos os homens que puder, durante o tempo necessário para chegar ao momento em que não veja qualquer outro poder suficientemente grande para ameaçá‑lo (HOBBES, 2008, p. 107). É preciso ter acuidade para fazer uma distinção importante em Hobbes: esse filósofo não afirma que estamos sempre em guerra no estado de natureza, mas que existe uma predisposição diante da condição da igualdade pressuposta. Logo, não existe uma natureza perversa do homem, mas uma condição que determina a situação de discórdia entre os homens – tal ponto reforça sua tese de que todo comportamento tem por causa uma paixão, e toda a paixão se explica por uma circunstância que a determina. Não à toa, Hobbes afirma que as paixões que fazem os homens tenderem para a paz são o medo da morte, o desejo de uma vida confortável e segura e a esperança de conseguir tranquilidade por meio do trabalho. Dessa forma, a razão orienta os homens para as condutas de paz, sendo possível alcançarem um acordo – o que Hobbes designará como leis da natureza. Leis da natureza são preceitos gerais estabelecidos pela razão, imutáveis e eternos, mediante os quais se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir a sua vida ou privá‑lo dos meios necessários para a sua sobrevivência. No Leviatã, capítulos XIV e XV, Hobbes enumera uma série de leis da natureza, em ordem de importância e derivação.• Primeira lei da natureza: buscar a paz. Em sua obra, diz “que todo homem deve esforçar‑se pela paz, na medida em que tenha esperança de consegui‑la, e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra” (2008, p. 113). 22 Re vi sã o: T al ita - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 5/ 11 /1 8 Unidade I • Segunda lei da natureza: contratar para obter a paz. No Leviatã está escrito: [...] que um homem concorde, quando outros também o façam, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito a todas as coisas, contentando‑se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo (p. 113). • Terceira lei da natureza: a justiça. Diz Hobbes: “Que os homens cumpram os pactos que celebrarem” (p. 124). • Quarta lei da natureza: a gratidão. Segundo o pensador, “Que quem recebeu benefício de outro homem, por simples graça, se esforce para que o doador não venha a ter motivo razoável para arrepender‑se de sua boa vontade” (p. 130). • Quinta lei da natureza: a complacência. Lê‑se na obra: “que cada um se esforce por acomodar‑se com os outros” (p. 130). • Sexta lei da natureza: a facilidade de perdoar. Nas palavras do autor, “que como garantia do tempo futuro se perdoem as ofensas passadas àqueles que se arrependam e o desejem” (p. 131). • Sétima lei da natureza: na vingança só se olhe ao bem futuro. Diz o filósofo: “Que na vingança (isto é, a retribuição do mal com o mal) os homens não olhem à importância do mal passado, mas só à importância do bem futuro” (p. 131). • Oitava lei da natureza: contra a contumélia. Nas palavras de Hobbes, “que ninguém, por atos, palavras, atitude ou gesto, declare ódio ou desprezo pelo outro” (p. 132). • Nona lei da natureza: contra o orgulho. Lê‑se no Leviatã: “que cada homem reconheça os outros como seus iguais por natureza” (p. 132). • Décima lei da natureza: contra a arrogância. No Leviatã está escrito: “que ao iniciarem‑se as condições de paz ninguém pretenda reservar para si qualquer direito que não aceite seja também reservado para qualquer dos outros” (p.133). • Décima primeira lei da natureza: a equidade. Segundo o filósofo, “se a alguém for confiado servir de juiz entre dois homens, é um preceito da lei de natureza que trate a ambos equitativamente” (p.133). • Décima segunda lei da natureza: o uso equitativo das coisas comuns. São palavras de Hobbes: “que as coisas que não podem ser divididas sejam gozadas em comum, se assim puder ser; e, se a quantidade da coisa o permitir, sem limite; caso contrário, proporcionalmente ao número daqueles que a ela têm direito” (p. 133). 23 Re vi sã o: T al ita - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 5/ 11 /1 8 ROUSSEAU E O CONTRATO SOCIAL • Décima terceira lei da natureza: o sorteio. Na obra é dito “que o direito absoluto, ou então (se o uso for alternado) a primeira posse, sejam determinados por sorteio” (p.134). • Décima quarta lei da natureza: da primogenitura e primeira posse. Com relação a tal tema, posiciona‑se o pensador: [...] há duas espécies de sorteio, o arbitrário e o natural. O arbitrário é aquele com o qual os competidores concordaram; o natural ou é a primogenitura (que os gregos chamavam kleronomía, o que significa dado por sorteio) ou é a primeira apropriação (p.134). • Décima quinta lei da natureza: dos mediadores. Para Hobbes, “que a todos aqueles que servem de mediadores para a paz seja concedido salvo‑conduto” (p. 134). • Décima sexta lei da natureza: da submissão à arbitragem. No Leviatã podemos ler: “que aqueles entre os quais há controvérsia submetam seu direito ao julgamento de um árbitro” (p. 134). • Décima sétima lei da natureza: ninguém é seu próprio juiz. Na obra, diz o autor “ninguém pode ser um árbitro adequado em causa própria” (p. 134). • Décima oitava lei da natureza: não seja juiz quem tem em si causa natural de parcialidade. Segundo o pensador, “em nenhuma causa alguém pode ser aceite como árbitro, se aparentemente para ela resultar mais proveito, honra ou prazer da vitória de uma das partes do que da outra” (p. 135). • Décima nona lei da natureza: das testemunhas. Hobbes afirma que “numa controvérsia de fato, dado que o juiz não pode dar mais crédito a um do que a outro (na ausência de outros argumentos), precisa dar crédito a um terceiro, ou a um terceiro e a um quarto, ou mais” (p. 135). Diante da situação de guerra, é razoável supor que os homens não queiram ficar em um estado de disputa infinita para assegurar as leis naturais. Logo, o desejo de paz prevalece como primeira lei da natureza, o que justifica a reunião dos homens em um contrato social. O contrato social em Hobbes é uma criação artificial e jurídica, baseada em três ideias. Primeiro, a ideia de soberania: o poder do Estado é o maior de todos os poderes que os homens podem constituir para assegurar a paz. Uma importante questão é saber se a soberania é o poder da multidão reunida. Para Hobbes, trata‑se de um conceito diverso, já que dela decorre uma abdicação voluntária e que supera a mera reunião em prol de um bem maior. Trata‑se, em verdade, de um ato racional para assegurar a sobrevivência, cabendo apenas ao Estado o poder punitivo – condição material do contrato, cuja finalidade é a segurança. Vale destacar que a soberania pode ser apresentada em uma dupla perspectiva. Externamente, a soberania é sinônimo de independência e assim tem sido invocada pelos dirigentes dos Estados que desejam afirmar, sobretudo ao seu próprio povo, não serem mais submissos a qualquer potência estrangeira. Internamente, trata‑se da expressão de poder jurídico mais alto, significando que, dentro dos limites da jurisdição do Estado, este é que tem o poder de decisão em última instância. 24 Re vi sã o: T al ita - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 5/ 11 /1 8 Unidade I Exemplo de aplicação A soberania é a configuração de um poder supremo e absoluto pelo Direito; logo, sem Direito não há soberania. Reflita sobre a diferença do exercício do poder soberano em um Estado totalitário e em um Estado constitucional, quando direitos que limitam esse poder estão preestabelecidos e são controlados pelo povo. A segunda ideia que justifica o contrato é que ele permite a sociabilidade, regulamentando a vida econômica e social. Certamente, no estado de natureza o homem vivia isolado, sem estabelecer interações com outros, sobretudo diante da sua dificuldade de confiar e evitar se antecipar em relação às atitudes de seus semelhantes. Vale lembrar que Hobbes descreve esse estado baseando‑se em um modelo de competição pela sobrevivência. A instituição de um Estado civil rompe com esta dinâmica, assegurando a sociabilidade entre os indivíduos. Por fim, os atos estatais representam a vontade de seus cidadãos e dos servidores que atuam em nome dela. Daí Hobbes deriva e discute o conceito da obediência, fixado por um direito e determinando uma série de sanções diante de suas violações. O momento do pacto é assim descrito por Hobbes: Cedo e transfiro meu direito de governar‑me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembleia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. É esta a geração daquele grande Leviatã, ou antes (para falar em termos mais reverentes) daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa. Pois, graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado, é‑lhe conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de conformar as vontades de todos eles, no sentido da paz em seu próprio país, e da ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros. É nele que consiste a essência do Estado, a qual pode ser assim definida: uma pessoa de cujos atos uma grandemultidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum (HOBBES, 2008, p. 148). Por fim, cumpre destacar que Hobbes também diferencia Estado, conceito jurídico e baseado na ideia de contrato, de governo, modo como a soberania é exercida. Para esse filósofo, a questão do bom governo não é um problema relacionado à instituição do Estado civil – questão relacionada com a soberania de seu poder. O bom governo é a situação na qual se constata a obediência civil: permitir homens abdicarem de seus direitos naturais em nome do Leviatã; afinal, se uma monarquia cumpre o contrato para assegurar a paz, é possível afirmar se tratar de um bom governo. 25 Re vi sã o: T al ita - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 5/ 11 /1 8 ROUSSEAU E O CONTRATO SOCIAL Aqui ganha destaque uma base moral em seus escritos, o que se revela na finalidade dos atos estatais. Nesse sentido, Hobbes se aproxima de Maquiavel, pois, para ambos, o monarca e o príncipe devem ser virtuosos, capazes de compreender as peculiaridades da história e agir. Na visão hobbesiana, o Estado precisa ser racional e trabalhar com um parâmetro de moralidade, capaz de assegurar a sociabilidade tal como expresso por um cálculo matemático. 3.3 John Locke (1632‑1704) Outra importante contribuição para a teoria do contrato social foi a obra do filósofo britânico John Locke. Originariamente médico em Oxford, Locke contribuiu com o conhecimento não apenas na Filosofia Política, mas também em outras áreas, desenvolvendo, por exemplo, importantes trabalhos sobre a ciência e a teoria do conhecimento, abrindo espaço para a corrente do empirismo científico. Locke nasceu em 29 de agosto de 1632, em Wrington, na Inglaterra. Sua infância é descrita como dolorosa, já que perdeu a mãe quando criança e foi criado por seu pai, um advogado da cidade de Pensford que era adepto ao puritanismo e capitão na cavalaria dos parlamentares à época da Guerra Civil. Diante da situação de guerra, Locke recebeu seus estudos em casa. Aos 14 anos, entrou na Escola de Westminster, uma escola com prestígio onde, permanecendo por seis anos, recebeu estudos, por exemplo, de Latim, Grego, Hebraico, Árabe, Matemática e Geografia. Em 1652, Locke entra na Universidade de Oxford, na sede da corte de Carlos I. A universidade tinha como foco os estudos de Aristóteles, em especial a lógica, não se atendo muito a novas ideias sobre a natureza e as origens do conhecimento que haviam sido desenvolvidas por filósofos modernos, como Bacon e Descartes. Locke formou‑se em Medicina e cuidou de importantes figuras da época, como o lorde Ashley, conde de Shaftesbury, futuro lorde chanceler da Inglaterra. Aliás, foi por meio desse tratamento que o autor construiu uma grande amizade com o conde, pessoa que muito o influenciou na sua aproximação aos assuntos políticos. No período que permaneceu na França, 1675 a 1679, Locke fez muitos amigos na comunidade protestante, incluindo alguns intelectuais importantes, além de ficar impressionado com a pobreza da população local e com as vastas quantias que o rei francês Luís XIV gastava no Palácio de Versalhes. De volta à Inglaterra, em um contexto de crise, ele escreve seu trabalho principal em Filosofia Política, Dois Tratados sobre o Governo, uma espécie de resposta à situação política inglesa. Em seu prefácio, o filósofo explica os argumentos dos dois tratados, os quais são uma justificativa da Revolução Gloriosa, que levou os protestantes Guilherme III e Maria II ao trono após a fuga de Jaime II para a França. Nos anos de 1683 a 1689, Locke foge para a Holanda, acompanhando o exilado lorde Ashley. Sua boa condição na nova pátria permite escrever outros livros, muitos deles publicados após o autor ter mais de 50 anos. 26 Re vi sã o: T al ita - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 5/ 11 /1 8 Unidade I Em 1688, após a Revolução Gloriosa, Locke retornou à Inglaterra e depois serviu como comissário de comércio até 1700. Ele passou sua aposentadoria em Oates, em Essex, e morreu lá no dia 28 de outubro de 1704. Figura 4 – Retrato de John Locke É importante lembrar que no empirismo defende‑se a ideia de que as fontes de todo o conhecimento são a experiência sensível. As principais características dessa corrente são: • o ponto de partida para o conhecimento são as coisas, tal como elas se encontram no mundo (objetos); • a representação que fazemos do real depende dos objetos; • o conhecimento se estabelece como adequação do intelecto em relação aos objetos observados (por exemplo, nossos conceitos e ideias se adéquam às coisas); • o mundo é tal como o vemos e percebemos, enfatizando‑se a importância dos sentimentos no processo de conhecimento. Observação Para a corrente empírica, o conhecimento não é inato nem o poder político poderia ser inato. Dessa forma, Locke elabora uma sofisticada crítica ao absolutismo. Há a defesa da razão para evitar o abuso do poder da autoridade via nepotismo ou via fundamento divino. 27 Re vi sã o: T al ita - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 5/ 11 /1 8 ROUSSEAU E O CONTRATO SOCIAL No plano político, Locke é considerado fundador do movimento liberal, que pretendia defender os direitos e as liberdades individuais, em especial a propriedade privada. Sobre essa posição, a professora Marilena Chaui destaca três características da teoria liberal inaugurada por Locke. • O Estado deve garantir o direito natural de propriedade sem interferir na vida econômica, o que inclui a liberdade profissional e a livre‑iniciativa. • O Estado tem apenas a função de garantidor e de árbitro dos conflitos entre particulares. • O Estado possui uma série de restrições para legislar e interferir na vida particular – proteção das liberdades civis, como a liberdade de consciência, a liberdade de pensamento e a liberdade de circulação, entre outras. Esse filósofo escreveu duas importantes obras políticas justificando a Revolução Gloriosa, que marcou a substituição do monarca Jaime II por Guilherme III dos Países Baixos. Tal substituição assinalou o fim da monarquia católica e limitou os poderes do rei com a Bill of Rights, aprovada em 1689. Nessa ocasião, o poder real precisava respeitar o controle feito pelo Parlamento, que estabelecia uma série de regras. Como toda lei precisa ser sancionada pelo Parlamento, o rei não pode criar leis sem autorização do Parlamento. No Primeiro Tratado sobre o Governo, Locke refutou os argumentos de Robert Filmer que justificavam o poder absoluto e divino dos monarcas. Aliás, o filósofo defendeu a separação entre Igreja e Estado – contribuindo para o debate da laicização do poder. No Segundo Tratado sobre o Governo, sua principal obra, Locke propõe descobrir o papel do governo legítimo, permitindo distinguir a natureza do governo ilegítimo. Para tanto, recorrendo ao modelo empírico, examina como seria a vida social na ausência de governo civil para, então, constatar qual é o papel que o governo deve desempenhar. Esse filósofo recorre ao exame da condição natural dos homens, que é uma situação de igualdade, sendo a razão capaz de ordenar e preservar a vida individual. Um estado, também, de igualdade, onde a reciprocidade determina todo o poder e toda a competência, ninguém tendo mais que os outros; evidentemente, seres criados da mesma espécie e da mesma condição, que, desde seu nascimento, desfrutam juntos de todas as vantagens comuns da natureza e do uso das mesmas faculdades, devem ainda ser iguais entre si, sem subordinação ou sujeição, a menos que seu senhor e amo de todos, por alguma declaração manifesta de sua vontade, tivesse destacado um acima dos outros e lhe houvesse conferido sem equívoco, por uma designação evidente e clara, os direitos de um amo e de um soberano (LOCKE, 2002, p. 36). 28 Revi sã o: T al ita - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 5/ 11 /1 8 Unidade I Diferentemente de Hobbes, na perspectiva de Locke, o estado de natureza não é um estado de guerra, desregrado e de licenciosidade. Esse filósofo descreve tal momento como uma situação de igualdade política, em que flui a obrigação de amor mútuo e de deveres particulares entre si. Sobre esse ponto, comenta José Reinaldo de Lima Lopes: O estado de natureza é o seu ponto de entrada no sistema racional. O estado de natureza é aquele em que todos podem fazer cumprir a lei natural e esta impõe que cada um cuide da sobrevivência do seu semelhante, enquanto não afetar sua própria sobrevivência. O estado de natureza é também um estado de necessidade e de carências: a abundância ou riqueza vem com a sociedade civil. O direito natural não existe nas coisas, mas no espírito (é uma razão), ou, como definirá Reiman, o contrato social para Locke deixa de ser externo para ser interno. A razão para a obediência a uma lei na sociedade civil consiste em confiar na razão dos seus semelhantes. Este exercício de racionalidade e razoabilidade transfere o contrato político para o foro interno. Dessa forma, não é a autoridade da coação, mas do convencimento que impõe o respeito recíproco. O que nos obriga ao direito? Não é o temor da pena, mas a reta razão (LOPES, 2008, p. 184). Para explicar a situação de desequilíbrio no estado de natureza, Locke vai recorrer aos riscos que o direito natural de propriedade pode possuir. Na sua perspectiva, a propriedade não é uma mera soma dos bens materiais e produtos auferidos, mas resultado da própria liberdade de escolha que cada indivíduo possui e que, por meio do trabalho, pode tomar como seu. Há uma sequência lógica subentendida na argumentação de Locke, o trabalho atribui valor às coisas da natureza que, modificadas em algo novo, justificam a propriedade. Ainda que a terra e todas as criaturas inferiores pertençam em comum a todos os homens, cada um guarda a propriedade de sua própria pessoa; sobre esta ninguém tem qualquer direito, exceto ela. Podemos dizer que o trabalho de seu corpo e a obra produzida por suas mãos são propriedade sua. Sempre que ele tira um objeto do estado em que a natureza o colocou e deixou, mistura nisso o seu trabalho e a isso acrescenta algo que lhe pertence, por isso o tornando sua propriedade. Ao remover este objeto do estado comum em que a natureza o colocou, através do seu trabalho adiciona‑lhe algo que excluiu o direito comum dos outros homens. Sendo este trabalho uma propriedade inquestionável do trabalhador, nenhum homem, exceto ele, pode ter o direito ao que o trabalho lhe acrescentou, pelo menos quando o que resta é suficiente aos outros, em quantidade e em qualidade (LOCKE, 2002 p. 42). No estado de natureza há um limite para a acumulação da propriedade, o homem só pode acumular o que for capaz de consumir. Trata‑se de um limite fixado pelo próprio uso humano. Assim, acumular mais que o necessário é causar escassez para o resto da humanidade – o que vai contra a lei da natureza. Nesse sentido, é possível perceber a importância da invenção do dinheiro, já que deixam de existir limites naturais para o acúmulo de propriedade. 29 Re vi sã o: T al ita - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 5/ 11 /1 8 ROUSSEAU E O CONTRATO SOCIAL “Assim foi estabelecido o uso do dinheiro – alguma coisa duradoura que o homem podia guardar sem que se deteriorasse e que, por consentimento mútuo, os homens utilizariam na troca por coisas necessárias à vida, realmente úteis, mas perecíveis” (LOCKE, 2002, p. 48). É nesse contexto que a conservação da propriedade no estado de natureza se torna cada vez mais frágil e justifica a instituição de um contrato social, capaz de estabelecer uma lei fixa e conhecida que regule as controvérsias, além de um juiz imparcial e um poder capaz de executar as sentenças. Logo, diferentemente de Hobbes, a instituição do contrato se justifica para assegurar a propriedade com base em um consentimento dos indivíduos – e não a partir de uma abdicação de direito em prol de outro. O que move uma comunidade é sempre o consentimento dos indivíduos que a compõem, e como todo objeto que forma um único corpo deve se mover em uma única direção, este deve se mover na direção em que o puxa a força maior, ou seja, o consentimento da maioria; do contrário, é impossível ele atuar ou subsistir como um corpo, como uma comunidade, como assim decidiu o consentimento individual de cada um; por isso cada um é obrigado a se submeter às decisões da maioria. E por isso, naquelas assembleias cujo poder é extraído de leis positivas, em que a lei positiva que os habilita a agir não fixa o número estabelecido, vemos que a escolha da maioria passa por aquela do conjunto, e importa na decisão sem contestação, porque tem atrás de si o poder do conjunto, em virtude da lei da natureza e da razão (LOCKE, 2002, p. 61). O governo legítimo é, então, instituído pelo consentimento explícito dos governados. Aqueles que fazem esse acordo transferem para o governo seu direito de executar a lei da natureza e julgar seu próprio caso. Esses são os poderes que eles dão ao governo central, e é isso que faz do sistema de justiça dos governos uma função legítima. O objetivo de um governo legítimo é preservar, na medida do possível, os direitos à vida, à liberdade, à saúde e à propriedade de seus cidadãos, além de processar e punir aqueles que violarem os direitos de outros. Ainda vale pontuar que um governo civil ilegítimo sistematicamente viola os direitos naturais de seus cidadãos, o que caracteriza uma retomada do estado de guerra. Em tais circunstâncias de negação sistemática dos direitos individuais, Locke defende um direito de resistência capaz de proteger as garantias básicas e restituir o pacto. Os poderes, pela razão que foram formados, não podem ser exercidos de forma arbitrária e contrária, pois haveria uma tirania – novamente, esse filósofo faz sucessivas críticas aos regimes absolutistas. 3.4 Samuel Pufendorf (1632‑1694) Samuel Pufendorf, nascido na Saxônia, foi percursor da escola prussiana. Lecionou na cátedra de Direito Natural na Universidade de Heidelberg, em 1661, e posteriormente na Universidade de Lund, Suécia. Suas posições marcam uma transição do contratualismo, ao defender que a lei é um limite à liberdade individual e não depende apenas do direito natural. 30 Re vi sã o: T al ita - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 5/ 11 /1 8 Unidade I Na visão desse pensador, o homem é ao mesmo tempo egoísta e sociável, cabendo ao Direito equilibrar esses instintos. Seu modelo se aproxima da visão de Hobbes, pois o dever é a ação conformada às determinações legais. Todavia, a lei não é uma derivação imediata da razão, mas um ato pelo qual um superior obriga um sujeito a se conformar aos mandamentos. Somente as autoridades possuem capacidade de produzir as leis, já que têm razão para conhecê‑las e vontade para segui‑las. Para José Reinaldo de Lima Lopes, Pufendorf já antecipa traços do Direito moderno: Em Pufendorf, já encontramos duas características do Direito que triunfará no século XIX: o voluntarismo (a lei como expressão da vontade do legislador ou do soberano) e o individualismo (o indivíduo como prius da sociedade, em que o todo equivale à soma – posterior – de partes que preexistem). A ação humana, segundo ele, depende da vontade, mas as vontades individuais são muitas e nem sempre concordes (LOPES, 2008, p. 190). Na visão de Pufendorf, é possível distinguir deveres naturais, fundamentos dos direitos naturais. O primeiro consiste em não causar dano a ninguém, pois é possível conviver com quem não se concorde (daí se sustentar o direito natural da proibição do furto). O segundo, desdobramento da reciprocidade, consiste no dever de cada um tratar o outro como um igual. O terceiro dever é a promoção do bem do outro, base da fraternidade entreos homens. Em poucas palavras, o método de Pufendorf deixa entrever o que virá a ser mais tarde tão típico do Direito burguês e liberal, individualismo e voluntarismo nominalista dos ingleses da Baixa Idade Média por meio de Hobbes e Descartes. Será influente na teoria geral do direito justamente por desenvolver uma ética profana e laica, e por dar acentuado destaque ao contrato, como meio capaz de organizar as liberdades e egoísmos, centro do novo Direito (LOPES, 2008, p. 192). Saiba mais Os livros indicados a seguir aprofundam o estudo da teoria do contrato social. HOBBES, T. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2008. LOCKE, J. Segundo Tratado sobre o Governo. São Paulo: Martin Claret, 2002. 31 Re vi sã o: T al ita - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 5/ 11 /1 8 ROUSSEAU E O CONTRATO SOCIAL 4 DIREITOS CIVIS Um último ponto que deve ser registrado como base da definição do campo da política moderna é a constituição e o fundamento dos direitos civis como garantia para o exercício da atividade política. Em uma visão moderna, Direito e Política são dois campos distintos de atuação, mas simultaneamente dependentes na medida em que o Direito assegura as possibilidades de atuação política e a Política determina o conteúdo dos direitos. Tal fato, que marca o Direito moderno, é caracterizado pelo regime do Estado de Direito (rule of law), ninguém está acima da lei. Em outras palavras, o direito é produzido pela e para a sociedade política e a forma de produção do direito é pela política. Certamente a Filosofia Política de Rousseau contribuiu com tal formulação, em especial ao mobilizar e defender o conceito de soberania popular e de vontade geral, como será visto na sequência. Lembrete Não existe uma definição única do conceito de Estado de Direito ou de império da lei (rule of law). No entanto, há uma compreensão comum que admite que esse conceito corresponde à ideia de todos estarem submetidos à lei, expressão que é também reconhecida por todos. Pelo exposto, apenas haverá direitos em uma sociedade política quando houver a possibilidade de fazer valer o direito em face de outros, ou seja, quando existir uma faculdade ou pretensão de afirmar e realizar um direito específico. Caso contrário, não será possível exigir o simples cumprimento de qualquer direito perante um órgão jurisdicional (seja na jurisdição nacional, seja na internacional) e até mesmo se defender contra os abusos praticados eventualmente por autoridades. Dessa forma, direitos não se reduzem apenas à compreensão jusnaturalista, quando o direito do homem nasce vinculado ao fundamento teológico, tido como universal, irrefutável, incontestável – isto é, como uma verdade eterna revelada por Deus. Nesse sentido, sustenta o filósofo britânico Thomas Paine: “[s]eu dever para com Deus, que deve ser sentido por todo homem, e o respeito por seu próximo, de tratar os outros como esperaria ser tratado” (PAINE, 2005, p. 54). Ora, a Filosofia Política moderna justamente indica a necessidade da existência de uma condição anterior e específica, fruto de um ato de vontade, que assegura a proteção dos direitos, isto é, o reconhecimento da condição de pessoa de direito – requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano um ser dotado de características intrínsecas de suas condições. Nesta compreensão, os direitos humanos são subjetivos, e, portanto, é imprescindível para a sua realização o indivíduo pertencer e participar de um ordenamento jurídico determinado, reconhecido como sujeito de direito. 32 Re vi sã o: T al ita - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 5/ 11 /1 8 Unidade I Nessa relação entre Direito e Política, é possível estabelecer quatro situações distintas da atuação da atividade do Estado: atuação política legal, abuso de poder, desvio de finalidade e arbitrariedade. Quadro 1 – Relações entre Direito e Política de acordo com a atuação do Estado Atuação estatal Descrição Legal A força política pode se manifestar de maneira autorizada para resultados desejáveis para a sociedade e, portanto, será válida e legítima. Abuso de poder A força política pode se manifestar de maneira não autorizada para resultados desejáveis para a sociedade e, portanto, será inválida e legítima. Desvio de finalidade A força política pode se manifestar de maneira autorizada para resultados não desejáveis para a sociedade e, portanto, será válida e ilegítima. Arbitrariedade A força política pode se manifestar de maneira não autorizada para resultados não desejáveis pela sociedade e, portanto, será inválida e ilegítima. No Estado de Direito só se admite a primeira manifestação da força política, limitada e controlada pelo direito, em razão da validade, e pelos valores da sociedade, em razão da legitimidade. Percebe‑se, ademais, a importância da formalização e da associação por meio de um pacto social, que assegura esse vínculo entre um indivíduo e o Estado civil, tradicionalmente conhecido como nacionalidade, e possibilita o exercício de diferentes direitos que conformam a atuação política. No limite, todos os contratualistas defendem a instituição de uma série de direitos civis que permitem a manutenção do Estado e sua orientação para a paz. Resumo A compreensão da filosofia de Rousseau depende da contextualização do surgimento da reflexão política moderna com Maquiavel e das teses de alguns pensadores contratualistas. Maquiavel foi responsável por sustentar que a única preocupação real do governante é a aquisição e manutenção do poder. Tal reflexão marcou a autonomia do pensamento político, que pressupõe a operação por meio de regras e modelos próprios. A teoria contratualista é, por sua vez, uma corrente da Filosofia Política moderna que discute a fundamentação do Estado civil por meio da formulação de um pacto social. Para tanto, os principais teóricos recorreram a certo modelo lógico que retrata a situação antes e depois do acordo. Como uma organização das posições de Hobbes e Locke, obtém‑se o quadro comparativo a seguir. 33 Re vi sã o: T al ita - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 5/ 11 /1 8 ROUSSEAU E O CONTRATO SOCIAL Quadro 2 – Comparação entre Hobbes e Locke Filósofos contratualistas Thomas Hobbes John Locke Origem Influência inglesa Influência inglesa Período 1588‑1679 1632‑1704 Obra Leviatã Segundo Tratado sobre o Governo Estado de natureza O estado de natureza é um estado de guerra. Não existe moralidade. Todo mundo vive em constante medo. Por causa desse medo, ninguém é realmente livre, mas, uma vez que mesmo o “mais fraco” poderia matar o “mais forte”, os homens são iguais. Homens são livres. O estado de natureza não é necessariamente bom ou ruim, é caótico. Portanto, é preferível constituir um acordo para assegurar as liberdades individuais. Propósito do acordo Para impor a lei e a ordem, para evitar o estado de guerra. Para garantir os direitos naturais, ou seja, os direitos de propriedade do homem e da liberdade. Representação Os governos são projetados para controlar, não necessariamente representam interesses. É uma alienação absoluta. Representação é uma salvaguarda contra a opressão. Nesse sentido, se o poder sair da órbita do direito, todos têm o direito de usar a força (autorização da guerra civil e direito à resistência). É uma relação de confiança. Liberdade A liberdade é cedida ao poder soberano Liberdade é um direito natural Propriedade privada O poder soberano é responsável por tudo que existe, móvel ou imóvel, podendo ainda legislar sobre a vida e a morte Propriedade privada é um direito natural e inviolável Elemento‑chave Soberania Liberdade Configuração do Estado (avaliação) Estado absolutista Estado liberal Exercícios Questão 1. Considere a tirinha e as afirmativas a seguir. Disponível em: <http://www.portaldovestibulando.com/2016/12/filosofia‑ politica‑contrato‑social.html>. Acesso em: 3 dez. 2018. I – De acordo com a perspectiva
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