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LETRA DE CÂMBIO ORIGEM E EVOLUÇÃO DA LETRA DE CÂMBIO 11. CONCEITO DE LETRA DE CÂMBIO Entende-se por letra de câmbio uma ordem dada, por escrito, a uma pessoa, para que pague a um beneficiário indicado, ou à ordem deste, uma determinada importância em dinheiro. Requer, assim, a letra de câmbio, três elementos pessoais, que no título têm funções diversas: o que dá a ordem, chamado sacador; o a quem a ordem é dada, que se chama de sacado; e aquele a favor de quem é emitida a ordem, denominado de tomador ou beneficiário. Em virtude do princípio da autonomia das obrigações cambiárias, e sendo diversas as funções exercidas na letra por cada um desses elementos, uma mesma pessoa, física ou jurídica, pode figurar no título como sacador (aquele que cria e emite a letra, dando a ordem de pagamento), como sacado (aquele a quem a ordem para pagar é dada) e mesmo como tomador (aquele em favor de quem é dada a ordem). A lei brasileira que regulava a letra de câmbio (Decreto nº 2.044, de 31 de dezembro de 1908) permitia expressamente que a letra de câmbio fosse emitida em favor do sacado (art. 1º, nº IV), não mencionando, entretanto, se poderia ter como sacado o próprio sacador. A doutrina se dividia a respeito, uns admitindo a permissão, outros a negando. Hoje, adotada entre nós a Lei Uniforme sobre Letras de Câmbio e Notas Promissórias, a dúvida foi desfeita, pois tal lei expressamente permite (art. 3º) seja a letra emitida contra a pessoa que a saca e em favor dela própria. Assim, as divergências que, a respeito, são encontradas entre autores que, antes de entrar em vigor a Lei Uniforme, trataram do assunto entre nós, hoje não têm mais razão de ser, não cabendo a sua invocação em face das disposições expressas da lei. A letra de câmbio é um título de crédito, dotado de literalidade e de autonomia das obrigações. Desempenha importantíssima função econômica pela ampla utilização do crédito que proporciona. Entre nós foi regulada, até 1966, pelo Decreto nº 2.044, de 31 de dezembro de 1908. Havendo, porém, em 24 de janeiro de 1966, pelo Decreto Executivo nº 57.663, promulgado o Governo a Convenção de Genebra para a Adoção de uma Lei Uniforme sobre Letras de Câmbio e Notas Promissórias, a partir de então passou a reger a letra de câmbio, no direito brasileiro, aquela Lei Uniforme, que alterou várias normas no Decreto nº 2.044, de 1908. Tanto a Lei brasileira nº 2.044, como a Lei Uniforme, tratam da letra de câmbio e da nota promissória. São esses títulos diferentes, se bem que tenham muitos princípios em comum. Dada a existência de tais princípios, a letra de câmbio e a nota promissória são chamados títulos cambiários ou, simplesmente, cambiais. 12. HISTÓRICO A origem da letra de câmbio não está devidamente esclarecida, dela só se tendo maior conhecimento a partir da Idade Média. Costuma a história desse título ser dividida em três períodos, o primeiro chamado de período italiano, que vai da Idade Média ao último quartel do século 17; o segundo, período francês, das Ordenanças de Comércio, de 1673, até meados do século 19; e o último, período alemão, de 1848 aos dias atuais. A cada um desses períodos corresponde um conceito da letra de câmbio. 12.1. Período italiano Apesar de pesquisadores do direito afirmarem que os princípios que regulam as letras de câmbio já eram, de forma rudimentar, conhecidos em Roma, e mesmo, antes, entre os assírios, foi na Idade Média que começou a estruturar-se esse instituto jurídico, nas cidades italianas, com a finalidade de facilitar operações comerciais. Realmente, estando as cidades marítimas italianas em pleno florescimento, na Idade Média, para elas acorriam mercadores dos lugares os mais diversos, com o fito de fazer transações. Dada a diversidade das moedas então existentes, havia necessidade de serem elas trocadas pelas moedas das cidades em que se realizavam os negócios. Surgiu, assim, a operação de câmbio ou troca de moedas, exercida pelos cambistas ou banqueiros, pessoas que se especializavam nessas atividades. A troca de moeda por moeda constituía o chamado câmbio manual, sendo a operação imediatamente liquidada. Em regra, tais transações se efetuavam nas feiras. Muitas vezes, entretanto, os mercadores, com receio de regressar às suas terras de origem conduzindo avultadas quantias em dinheiro, depositavam as mesmas em mãos dos banqueiros, estabelecendo com esses que tais importâncias, convertidas em moedas diversas, deveriam ser entregues em lugares outros que não aqueles em que eram depositadas. Para atestar o depósito, os banqueiros emitiam um documento (quirógrafo) em que, convertidas as moedas, declaravam que pagariam a soma mencionada no lugar designado. Esse pagamento poderia ser realizado ou pelo próprio banqueiro ou por seus correspondentes naqueles outros lugares. O pagamento seria feito ao depositante, cujo nome constava do documento, ou a pessoa por esse indicada, que funcionava como seu representante. Tal documento, emitido pelo banqueiro em favor do depositante ou de seu representante, assemelhava-se à atual nota promissória, por ser uma promessa e não uma ordem de pagamento. Emitido o documento, para que o pagamento fosse efetuado era necessário que o banqueiro enviasse uma carta ao seu correspondente na outra localidade, determinando que entregasse à pessoa que conduzia o documento, ou ao seu representante, a importância designada. Essa carta, que era uma ordem de pagamento, deu origem à letra de câmbio; podia ser remetida diretamente pelo banqueiro ao seu correspondente ou entregue ao depositante, devendo este, ou a pessoa por ele designada, apresentá-la ao banqueiro a fim de receber a importância consignada no outro documento. Com o decorrer dos tempos, sempre visando a essa modalidade de troca e de remessa de dinheiro de um lugar para outro, a carta do banqueiro começou a ser entregue diretamente ao depositante, estabelecendo-se, também, que este sempre poderia designar um seu representante para fazer o recebimento da importância dada em depósito. Passou a carta de autorização do banqueiro a ter importância primordial nesse contrato, ficando relegado a segundo plano o título de promessa de pagamento que, inicialmente, era o documento principal da operação. Mas, de qualquer modo, a carta de autorização, que tinha o nome de lettera di pagamento ou simplesmente lettera di cambio, pois sempre tratava de uma troca (cambio) de dinheiro, pressupunha um depósito primitivo, por parte do credor, de dinheiro em mãos de banqueiro. Como o dinheiro em depósito, além de convertido em espécie diferente, deveria ser pago numa praça diversa daquela em que a operação se iniciara, dava-se a esse contrato o nome de cambio trajecticio, diferente, portanto, da troca imediata, verificada nas feiras, em que uma pessoa entregava ao banqueiro moedas de uma espécie e recebia moedas de outra espécie, que era o chamado câmbio manual. Esse primeiro estágio de desenvolvimento da letra de câmbio, denominado período italiano, caracteriza-se, assim, por ser a letra um instrumento para a troca e remessa de dinheiro de um lugar para outro, não havendo, de tal modo, uma verdadeira operação de crédito. O período italiano durou da Idade Média até o terceiro quartel do século 17, quando a Ordenança de Comércio francesa, de 1673, deu novo conceito à letra de câmbio, no que foi seguida pelo Código de Comércio de 1808 e pelos que adotaram a orientação desse. 12.2. Período francês Enquanto, no seu estágio inicial, a letra de câmbio representava apenas o instrumento decorrente de um contrato de troca e remessa de dinheiro de um lugar para outro, ao ser acolhida na Ordenança de Comércio Terrestre de 1673 e, mais tarde, no Código francês de 1808, passou a significar um instrumento de pagamento, não se atendo, simplesmente, à transferência de dinheiro. Por essa razão, já não era o depósito em mãos do banqueiro que dava origem à letra; qualquer importância que o sacado (pessoa a quem era dada à ordem) devia ou poderia dever, futuramente, ao sacador (credor, pessoa que dava a ordem), proveniente de qualquertransação – fornecimento de mercadorias etc. –, possibilitava a emissão de letra. O fato principal desse período foi a adoção da cláusula à ordem e, consequentemente, o nascimento do endosso. Segundo aquela cláusula, constando ela da letra, o tomador ou beneficiário poderia transferir o título a qualquer pessoa sem o consentimento do sacador, e a pessoa a quem a letra era transferida ficava investida de todos os poderes de titular na mesma mencionada. A transferência se fazia de modo simples, com a assinatura do tomador nas costas do título; assim surgiu o endosso, modalidade especial de transmissão dos títulos de crédito. Entretanto, a emissão da letra ainda pressupunha um contrato inicial. Para existir a letra, se tornava necessária provisão do sacador em mãos do sacado; por tal razão, devia a letra, para garantia do tomador, ser, inicialmente, apresentada ao sacado, a fim de que esse declarasse se estava disposto a cumprir a ordem, ou, em outras palavras, se aceitava a ordem do sacador. Surgiu, desse modo, o aceite, consistente na manifestação do sacado de acatar a ordem dada pelo sacador de efetuar o pagamento da letra na época do seu vencimento. Caracterizou-se, assim, esse segundo período evolutivo da letra de câmbio por se transformar ela em um instrumento de pagamento, pelas facilidades criadas para a sua circulação, com adoção da cláusula à ordem e do endosso e pela vinculação do sacado à obrigação, com o aceite. 12.3. Período alemão A partir do início do século 19, os juristas começaram a estudar mais profundamente a letra de câmbio e novas interpretações foram dadas ao seu conteúdo. Foi, sobretudo, na Alemanha onde tais estudos se desenvolveram. E deve-se principalmente a Karl Einert a conceituação da letra de câmbio não mais como um simples meio de pagamento, instrumento de um contrato preliminar, mas como um verdadeiro título que vale por si próprio de acordo com a vontade manifestada pelo subscritor. Chamou Einert a letra de câmbio de “papel-moeda do comerciante” e explicou essa sua afirmativa declarando que, do mesmo modo como o Tesouro emite cédulas representativas de valor, assim o faz o comerciante, ao subscrever uma letra de câmbio. Apesar de reconhecer-se que a letra de câmbio diverge, grandemente, dos títulos emitidos pelo Tesouro, a afirmativa de Einert serviu para mostrar peculiaridades que deviam revestir esses títulos e que, posteriormente, foram adotadas pelas legislações de quase todos os países. Graças, assim, aos estudos dos alemães, principalmente de Einert e de Thöl, a letra de câmbio passou a ser considerada um verdadeiro título de crédito, não estando a sua existência dependente de um contrato preliminar causador do seu aparecimento. Nasce a letra de um ato unilateral da vontade do sacador, e, uma vez preenchidas certas formalidades, vale pelo que nela está escrito. E o direito do seu possuidor é autônomo e abstrato, independente da relação fundamental, ou seja, do negócio que, por acaso, deu origem à letra. Por se tratar de um direito autônomo e abstrato, não são oponíveis exceções aos possuidores da letra baseadas nas relações desses obrigados com os obrigados anteriores. Essa nova conceituação da letra de câmbio veio satisfazer plenamente as necessidades do comércio que, dado o progresso verificado no mundo da metade do século passado para cá, dia a dia se desenvolve. Importante título de crédito, empregado por comerciantes e não comerciantes, a letra de câmbio foi, por lei, revestida de inúmeras garantias, de modo a ser utilizada com facilidade e segurança. Com essas características, conceitua-se, hoje, a letra de câmbio como um título de crédito formal (já que, para valer como tal, devem ser, na sua feitura, atendidos certos requisitos), literal (valendo apenas o que nela está escrito) e abstrato (o que significa que o direito nela mencionado não está na dependência de uma causa anterior, em regra chamada de relação fundamental). A letra tem a sua origem principalmente na vontade unilateral do seu criador e as obrigações dos que assinaram na mesma são obrigações autônomas, cada uma valendo por si própria. 13. A LETRA DE CÂMBIO NO DIREITO ESTRANGEIRO Regulada pela Ordenança do Comércio Terrestre de 1673, a letra de câmbio passou, com nova estrutura, para o Código de Comércio francês de 1808, constituindo o Título Oitavo e constando dos arts. 110 a 189. Essa parte do Código francês foi mais tarde modificada pela lei de 7 de junho de 1894 e, posteriormente, por várias outras leis, entre as quais a de 8 de fevereiro de 1922 e o Decreto-Lei de 30 de outubro de 1935, que deu novo texto ao Título VIII (arts. 110 a 189) do Código de Comércio e que fez uma adaptação da Lei Uniforme de Genebra, de 7 de junho de 1930, com a singularidade de que a Convenção que estabeleceu essa Lei só foi ratificada pela França em 1936, isto é, depois de ter sido adaptada a Lei Uniforme ao direito interno francês. Divergindo da maioria dos países, a França conservou o instituto da provisão, continuando a ser essa necessária para ser emitida uma letra. Pressupõe assim a letra de câmbio francesa um negócio fundamental a que fica ligada, o que a descaracteriza como uma obrigação criada por ato unilateral da vontade do sacador. Os códigos surgidos depois da promulgação do Código de Comércio francês – o espanhol, de 1829, o português, de 1833, o Código Albertino, de 1865 e, em geral, quase todos os sul-americanos, que nada mais foram que a aceitação ou adaptação do código espanhol – seguiram a orientação francesa, enquadrando a letra de câmbio como um título destinado a efetuar pagamentos, só permitido havendo diversidade entre o lugar da emissão e o do pagamento (o art. 110, primitivo, do Código francês declarava: “A letra de câmbio é sacada de um lugar para outro”), resultante de um contrato inicial que se formalizava pela provisão. Entretanto, essa orientação encontrou opositores nos sistemas legais da Inglaterra e da Alemanha, que davam à letra de câmbio um conceito diverso. Na verdade, na Inglaterra existiam duas modalidades de letras de câmbio, uma destinada a circular apenas no país (Inland-Bill) e outra para circulação no exterior (Foreign-Bill). Se a segunda era resultante de um contrato, como a letra de câmbio francesa, a primeira fazia abstenção da distancia loci, não representando, necessariamente, a remessa de valores de um lugar para outro, donde, em consequência, não haver à sua base um contrato de câmbio nem ser necessária a provisão, isto é, o valor fornecido em mãos de sacado. Esse título, em alguns casos, não exigia sequer a assinatura do sacador, bastando que o nome desse constasse do documento, “de maneira a não dar lugar a nenhum equívoco”. Foi na Alemanha, contudo, que maior reação se fez ao conceito francês da letra de câmbio como um título só utilizável de um lugar para outro, sempre ligado a um contrato original. Depois de vários estudos e discussões de notáveis juristas, foi aprovada, em Leipzig, em 24 de novembro de 1848, a “Lei Geral Alemã sobre Letras de Câmbio” (Die Allgemeine Deutsche Wechselordnung), discutida e aceita por representantes de 37 Estados que então compunham a Alemanha. Essa lei, que se baseou, em grande parte, nas ideias expostas, em 1839, por Einert, no seu livro Das Welchselrecht nach dem Bedurfnisse im 19. Iahrhunderts, foi depois ligeiramente modificada pela lei de 18 de abril de 1861, comumente conhecida como Novelas de Nüremberg e, finalmente, tornada obrigatória em todo o Império alemão pela lei de 22 de abril de 1871. O que diferencia a lei alemã da francesa é o fato de que, naquela, a exemplo do que acontecia com o Inland-Bill da Inglaterra, o título não representa o transporte de valores de um lugar para outro nem se requer que haja provisão em mãos do sacado, como estabelecia o Código francês. Entretanto, para que seja o título caracterizado como tal, necessário é que, no contexto, esteja escrita a frase letra de câmbio (Wechsel) em alemão, ou uma expressão estrangeira a ela equivalente. Deve, igualmente, o título conter outros requisitosessenciais, tais como a importância a pagar, o nome da pessoa em favor da qual, ou à ordem de quem deve o pagamento ser feito, a época de pagamento, a assinatura do sacador, a designação do lugar, dia, mês e ano em que a letra foi sacada, o nome da pessoa indicada para pagar (sacado) e a nomeação do lugar onde deve ser efetuado o pagamento, que será o designado ao lado do nome do sacado, se um outro não estiver expressamente mencionado (art. 4º). Se faltar algum desses requisitos o título não será considerado letra de câmbio (art. 7º). Toma, assim, a letra de câmbio o caráter de um título de crédito criado pela vontade unilateral do sacador, sem ficar dependente de um contrato original, como acontece com o direito francês; é, também, um título formal, devendo conter requisitos essenciais para valer como tal. A orientação alemã passou a influenciar os demais países. A Bélgica adotou-a, com algumas restrições, através da lei de 20 de maio de 1872 sobre a letra de câmbio e a nota promissória, a Hungria fez o mesmo pela Lei nº XXVII, de 1876, entrada em vigor em 1877.7A Itália, reformando, em 1882, o seu Código de Comércio de 1865, que obedecia à orientação francesa, aderiu igualmente ao modelo alemão, através dos artigos 251 e seguintes do mesmo Código. Essa orientação foi mantida pelo Decreto Real de 14 de dezembro de 1933, que pôs em vigor a Convenção de Genebra. E em vários outros países – Áustria, Polônia, Suécia, Japão, Portugal – tomou corpo a ideia de dar à letra de câmbio a característica de um título que contém direitos e obrigações autônomos, sem dependência da relação fundamental e valendo pelo que nele está escrito. 14. UNIFORMIZAÇÃO DO DIREITO CAMBIÁRIO Dado o desenvolvimento das relações comerciais entre os povos, que dia a dia, no decorrer deste século, se tornaram mais intensas, em virtude, sobretudo, do surgimento dos novos meios de transportes, juristas e comerciantes voltaram suas atenções para a necessidade do estabelecimento de regras uniformes sobre a letra de câmbio, a serem aceitas pelos governos interessados. E por esse motivo algumas conferências se realizaram, com a participação de grande número de países, logrando êxito final. De há muito, realmente, mostrara-se a necessidade da uniformização das normas do direito cambiário e vários congressos se manifestaram nesse sentido, tendo em vista o fato de se prestar excelentemente a letra de câmbio para pagamentos internacionais. Com a faculdade que têm os países de legislar sobre assuntos de seu próprio interesse, a adoção de regras comuns a todos viria, indiscutivelmente, quebrar óbices que dificultavam a expansão do título, principalmente no que concerne à capacidade, à responsabilidade dos que apõem os seus nomes nos títulos e à circulação destes. Reconhecendo tal fato, já em 1869 o 1º Congresso das Câmaras de Comércio italianas, reunido em Gênova, “acolheu com prazer a proposição de Minguetti, declarando ser útil e oportuno que o governo tomasse a iniciativa de tratados com os governos estrangeiros para se adotar uma lei cambial universal”. Em 1885, o Congresso Internacional de Direito Comercial, reunido em Antuérpia, Bélgica, discutiu e aprovou um projeto de lei cambial internacional, projeto esse que foi emendado no Congresso de Bruxelas, reunido nessa cidade em outubro de 1888. Foi, entretanto, em 1910 e 1912 que, em Haia, se adotaram medidas efetivas para a uniformização das regras relativas à letra de câmbio. Atendendo a uma convocação do governo holandês, feita em 1908, 35 países, através de representações especiais, se reuniram em Haia, em 1910, para a elaboração de uma lei uniforme sobre a letra de câmbio. O Brasil foi representado pelo dr. Rodrigo Otávio, que também foi o nosso delegado na segunda Conferência, realizada na mesma cidade, em 1912, na qual foi finalmente aprovado o texto do Regulamento Uniforme sobre a letra de câmbio e a nota promissória, sendo pedido aos Estados participantes que fizessem adotar, em suas legislações, aquelas regras, facultando-se, contudo, aos mesmos, algumas alterações nas normas gerais. Vinte e sete dos países que participaram das Conferências de Haia assinaram a Convenção sobre o Regulamento Uniforme; entre eles não figuraram, entretanto, a Inglaterra e os Estados Unidos. Cumpre notar que a lei brasileira sobre as letras de câmbio, promulgada em 1908, estava em perfeita harmonia com a doutrina vitoriosa em Haia, o que muito honra a cultura jurídica do país, principalmente os profundos conhecimentos que, sobre o assunto, tinha o inspirador de nossa lei, Desembargador José Antônio Saraiva. Estabeleceu o Regulamento aprovado em Haia em 1912 que a letra de câmbio é um título à ordem, contendo uma ordem de pagamento, dispensando-se o fator relativo à distancia loci para que possa ser sacada. Deve trazer sempre a cláusula cambiária e é destinada à circulação. Garantias especiais foram dadas ao portador de boa-fé e a autonomia das obrigações cambiárias foi afirmada no fato de ser reconhecida a obrigação do avalista ainda mesmo que fosse invalidada a obrigação do avalizado (arts. 1º, 10, 15 e 31 do Regulamento). Apesar do grande avanço dado pelas Conferências de Haia à ideia da unificação do direito cambiário, na prática poucos países adotaram em suas leis os princípios do Regulamento aprovado em 1912. Maiores dificuldades surgiram com a eclosão da guerra de 1914 a 1918. O Brasil, apesar de ter aprovado a Convenção pelo Decreto nº 3.756, de 17 de agosto de 1919, jamais converteu em lei o texto do Regulamento Uniforme. Desejando, contudo, promover realmente a unificação do direito cambiário, realizou-se em Genebra, em 1930, uma Conferência Internacional, sob os auspícios da Liga das Nações, presidida pelo jurista holandês Limburg. Tomando por base o Regulamento Uniforme aprovado em Haia em 1912, essa Conferência, de que participaram 31 Estados, aprovou uma Lei Uniforme sobre Letras de Câmbio e Notas Promissórias, além de ao mesmo tempo, serem adotadas também Convenções sobre conflito de leis em relação às letras de câmbio e notas promissórias e sobre selos em ditos títulos. Adotaram a Convenção de Genebra: a Alemanha, Bélgica, Dantzig, Dinamarca, Finlândia, Holanda, Itália, Japão, Noruega, Portugal, Suécia, Suíça, França, Brasil, Polônia, Rússia e Grécia. 15. A LETRA DE CÂMBIO NO DIREITO ANGLO-AMERICANO O direito anglo-americano, em relação à cambial, difere bastante do chamado sistema continental, ou seja, do adotado pelos países que obedecem a orientação da Lei Uniforme de Genebra. Nem a Inglaterra nem os Estados Unidos aderiram à Convenção de Genebra e a sua não adesão já tinha mesmo sido prevista pela comissão nomeada pelo Comitê Econômico da Liga das Nações, composta dos juristas Jitta, Lyon-Caen, Chalmers e Klein, para dar parecer sobre a possibilidade da unificação. Realmente, aqueles dois países não aceitaram a Lei Uniforme, muito embora tenha a Inglaterra adotado a Convenção sobre selos nas letras de câmbio. Baseado na common law e na equidade, difere bastante o direito anglo-americano do que predomina nos países europeus e sul-americanos. E isso, naturalmente, se reflete no direito cambiário, apesar dos juristas terem tentado uma aproximação dos dois sistemas, atenuando as divergências. Entretanto, algumas dessas ainda perduraram, dando ao sistema anglo-americano características diversas das do sistema continental. Assim é que, enquanto predominou o formalismo no sistema continental, no anglo-americano “há um maior liberalismo em matéria de forma, embora a cambial seja considerada contrato formal em oposição aos simples contratos”. Na letra de câmbio inglesa não constitui requisito essencial a inserção no documento da expressão “letra de câmbio” e uma modalidade especial de causa, a consideration, é requerida para a validade do título. Este só se completa com a sua transferência (delivery). Algumas outras características próprias do sistema jurídico anglo-americano afastam a letra de câmbio do sistema continental. Convém, entretanto, ressaltar que, apesar dessas divergências,“o direito anglo-americano, mais particularista e individualista, fundado no prestígio do precedente judiciário, chega... por outro método e por outros caminhos, a soluções em grande parte semelhantes às alcançadas no sistema continental”. Isso porque “há mais uma diferença de técnica e de conceitos jurídicos do que de resultados”. A LETRA DE CÂMBIO NO DIREITO BRASILEIRO 16. CÓDIGO COMERCIAL O Código Comercial brasileiro regulou as letras de câmbio no Título XVI – Das letras, notas promissórias e créditos mercantis – Cap. I, arts. 354 a 424. O art. 425, integrante do Cap. II desse mesmo Título, tratava das “letras de terra”, que eram “em tudo iguais às letras de câmbio com a única diferença de serem passadas e aceitas na mesma província”. Na Seção I, arts. 354 a 359, tratava o Código “da forma das letras de câmbio e seus vencimentos”, dispondo, inicialmente, que a letra de câmbio devia ser datada e declarar o lugar em que foi sacada, a importância a pagar e a espécie de moeda, o valor recebido, em moedas ou em mercadorias, a época e o lugar do pagamento, o nome da pessoa que devia pagar e a quem, “e se é exigível à ordem e de quem”, o número de vias, entendendo-se, em falta dessa declaração, que se tratava de uma única via (art. 354). A letra poderia ser passada à vista, a dias ou meses da vista, por prazo indeterminado (que o Código chamava “a dias ou meses de vista precisos”), a dias ou meses da data e a dia certo (art. 355). Passava, em seguida, a determinar regras para a contagem dos prazos de vencimento (arts. 356 a 358) e a estipular que, “havendo diferença entre o valor lançado por algarismo no alto da letra e o que se achar por extenso no corpo dela, este último será sempre considerado o verdadeiro, e a diferença não prejudicará a letra” (art. 359). Na Seção II, arts. 360 a 364, tratava o Código “dos endossos”, admitindo o endosso em preto, “completo e regular”, que devia ser datado, escrito nas costas da letra, “expressar o nome daquele a cuja ordem deve fazer-se o pagamento” e “declarar se é valor recebido ou em conta ou se confere somente poderes de mandatário ou procurador”, entendendo-se que “o endosso à ordem, sem declarar se é valor recebido ou em conta, confere somente poderes de mandatário, sem transferência da propriedade” (art. 361). Os endossos incompletos ou em branco eram apenas tolerados, exigindo a lei, entretanto, “para serem válidos, que, pelo menos, contenham a data do dia em que se fizeram, escrita pela própria letra do endossante que o assinar; e presume-se sempre que são passadas “à ordem com valor recebido” (art. 362). O endosso falso era considerado nulo mas só viciava os endossos posteriores; os “de letras já vencidas ou prejudicadas, e daquelas que não são pagáveis à ordem, têm o simples efeito de cessão civil” (arts. 363 e 364). A Seção III, arts. 365 a 370, dizia respeito ao sacador, estatuindo o art. 366 que este “é obrigado a ter suficiente provisão de fundos em poder do sacado, ao tempo do vencimento”, no que seguia a orientação do art. 115 do Código do Comércio francês, já à época da promulgação do nosso Código modificado pela lei de 19 de março de 1817. E o art. 368 explicava que “entende-se que existe suficiente provisão de fundos em poder do sacado quando este, ao tempo de vencimento, é devedor do sacador, ou àquele por conta de quem a letra foi passada, de quantia ao menos igual, ou quando qualquer dos dois tiver crédito aberto pelo sacado, que baste para o pagamento da letra”. A Seção IV, arts. 371 a 391, referia-se ao portador da letra de câmbio, estatuindo normas para a apresentação desta ao sacado e necessidade do protesto por falta de aceite ou de pagamento. A Seção V, arts. 392 a 404, tratava do sacado e aceitante, e a Seção VI, arts. 405 a 414, regulava o processo do protesto. Era nessa seção (art. 408) que o Código obrigava o oficial público perante quem se intentaria o protesto, a fazer imediatamente o apontamento da letra, ou seja, a inscrição do título em livro especial que era obrigado a possuir para tal fim. A figura do apontamento desapareceu no Decreto nº 2.044, mas ainda hoje os cartórios incumbidos do protesto de títulos empregam bastante o termo, temendo os comerciantes o apontamento dos seus títulos por acreditarem que, com isso, fica o seu crédito abalado. O recâmbio era tratado na Seção VII, arts. 415 a 421, e os arts. 422 a 424, Seção VIII, continham disposições gerais. No art. 422 o Código se referia aos abonadores ou avalistas das letras, considerando-se, “ainda que não sejam comerciantes... solidariamente garantes das mesmas letras, e obrigados ao seu pagamento, com juros e recâmbios, havendo-os, e a todas as despesas legais”. O art. 425, já no Cap. II deste Tít. XVI, era dedicado às “letras de terra”, títulos idênticos às letras de câmbio “com a única diferença de serem passadas e aceitas na mesma província”. A fonte desse Título do Código Comercial foi o Código Comercial português de 1833, que tratava das letras de câmbio no Título VII, arts. 321 a 423. Mas tanto o Código português como o nosso seguiram a orientação do francês, sendo aquele mais expresso pois, no art. 321, dizia que “a letra de câmbio é o instrumento do contrato de câmbio, e pode definir-se numa carta solene datada dum lugar, pela qual o que a assina, que se chama sacador, encarrega aquele, a quem escreve, que se denomina sacado, de pagar em outro lugar, quer à vista, quer numa época determinada, a uma pessoa designada, que se conhece pelo nome de portador, ou à sua ordem ao endossatário, uma soma de dinheiro enunciada nela, e reconhecendo haver recebido ou fiado do tomador o valor da letra nas expressões valor recebido, ou valor em conta”. Vê-se aí que o legislador português de 1833 seguiu, em tudo, a orientação do Código francês de 1808, conceituando a letra de câmbio como o instrumento de um contrato de câmbio destinado a transportar valores de um lugar para outro. Não foi tão taxativo o legislador brasileiro de 1850, mas da leitura dos dispositivos do Código Comercial relativos à letra de câmbio facilmente se verifica que a orientação seguida foi idêntica, muito embora, ao ser promulgado o nosso Código, já estivesse em vigor a lei alemã de 1848, sendo de notar que essa se baseou principalmente nos estudos de Einert, que datam de 1830, havendo, desse modo, oportunidade de serem as teorias por este defendidas do conhecimento dos elaboradores do Código Comercial, cujo projeto foi iniciado em 1832. Assim, de maneira expressa, exigia o Código que a letra de câmbio mencionasse o valor recebido, especificando se foi em moeda, e a sua qualidade, em mercadorias, em conta ou por outra qualquer maneira (art. 354, III), e que o sacador tivesse suficiente provisão de fundos em poder do sacado, ao tempo do vencimento (art. 366). Do conjunto dos dispositivos do Código Comercial conclui-se que a letra de câmbio era, por ele, tratada como o instrumento de um contrato de câmbio, servindo para a remessa de valores de um lugar para outro, segundo a doutrina do Código de Comércio francês. Essa orientação foi, contudo, inteiramente modificada pela lei que derrogou o Tít. XVI do Código Comercial, número 2.044, de 31 de dezembro de 1908, que seguiu a doutrina inicialmente emanada da lei alemã e depois ampliada e atualizada por congressos e convenções internacionais, de modo a que a letra de câmbio pudesse melhormente atender às necessidades econômicas dos povos. 17. DECRETO Nº 2.044, DE 1908 Enquanto estiveram em vigor os dispositivos do Código Comercial, coube principalmente à jurisprudência traçar normas para melhor adaptar a letra de câmbio aos interesses do comércio, algumas vezes até mesmo violando a lei como, em parecer de 26 de junho de 1907, se expressava a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, de que foi relator João Luiz Alves. Apesar dessa notável contribuição dos nossos juízes e tribunais, cada dia se tornava mais patente a necessidade de serem modificados os dispositivos do Código Comercial relativos a tão importante matéria. No exterior, váriospaíses que, inicialmente, haviam seguido a orientação francesa, alteraram ou substituíram suas leis, abraçando a doutrina alemã por ser a que melhor atendia às necessidades do comércio. Além disso, inúmeras foram as obras doutrinárias que surgiram apreciando a nova conceituação da letra de câmbio, sendo o assunto, em detalhes, debatido em vários congressos internacionais. No Brasil, sentiu-se a necessidade da reforma do Código nesse tocante, mas o movimento, a tal respeito, só veio a tomar corpo depois da publicação, em 1905, do livro Direito Cambial Brasileiro, do desembargador José Antônio Saraiva, professor na Faculdade de Direito de Minas Gerais. Nessa obra capital para a atualização do nosso direito cambiário, o ilustre mestre mineiro defendia a doutrina alemã que conceituava a letra de câmbio como um título emanado da vontade unilateral do subscritor, mostrando-se perfeitamente a par dos mais modernos conhecimentos sobre o assunto. Convencido da necessidade de ser modificado o Código Comercial no capítulo relativo à letra de câmbio, o então deputado federal Justiniano de Serpa apresentou à Câmara dos Deputados, em 7 de novembro de 1906, projeto de lei modificando o disposto nos arts. 354, 361, 362, 371, 377, 382, 394, 412, 425, 426 e 427 do Código Comercial. As modificações propostas, apesar de a melhorarem, não alteravam, contudo, substancialmente, a doutrina do Código, uma vez que ainda ficava patente a influência francesa, sobretudo pela manutenção do instituto da provisão, que dava à letra de câmbio o caráter de instrumento de um contrato. Isso sentiu a Comissão de Legislação e Justiça da Câmara que, manifestando o desejo de que o assunto fosse tratado não com medidas paliativas mas de maneira mais profunda, ofereceu um substitutivo ao projeto, sendo autor do mesmo o Dr. João Luiz Alves. Para a feitura desse substitutivo foi especialmente ouvido o Desembargador José Antônio Saraiva, “autor do mais profundo estudo que, sobre a matéria, enriquece a nossa literatura jurídica”, segundo o relator. Esse substitutivo, com ligeiras modificações, foi aprovado pela Câmara e pelo Senado, transformando-se no Decreto nº 2.044, de 31 de dezembro de 1908. Seguiu o Decreto nº 2.044 a orientação mais atualizada na época sobre a letra de câmbio, caracterizando-a, segundo a doutrina alemã, como um título autônomo, que vale por si mesmo (per se stante), oriundo de um ato unilateral da vontade do subscritor que, por isso mesmo, pode designar-se beneficiário (tomador) da ordem dada, o que não poderia verificar-se no sistema contratual do Código, já que a ninguém é dado contratar consigo mesmo. Igualmente, segundo o Decreto nº 2.044, não era a letra de câmbio instrumento para transporte de valores de um lugar para outro, podendo, assim, ser sacada para pagamento na mesma praça, o que facilitava enormemente sua circulação. Ainda, tornou-se desnecessária a provisão, feita pelo sacador em mãos do sacado, ao tempo do vencimento, bem como a inclusão no título da expressão valor recebido ou em conta, exigida pelos arts. 366 e 354, III, do Código Comercial, já que a letra era um instrumento destinado a mobilizar o crédito, tendo nesse a sua razão de ser. Os direitos que a letra conferia ao portador não tinham, assim, dependência de qualquer negócio preexistente, ou seja, da relação fundamental. E por tal motivo a falsidade ou nulidade de qualquer assinatura anterior não invalidava a letra, não sendo, portanto, oponíveis exceções aos possuidores anteriores, visto como “as obrigações cambiais são autônomas e independentes umas das outras” (Decreto nº 2.044, art. 43).