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1 3. Acesso à Justiça e a Construção da Cultura de Paz. Cultura de sentença x Cultura de Paz. Acesso à Justiça por meios adequados. 3.1. Acesso à Justiça O princípio do acesso à justiça também é conhecido como “inafastabilidade de apreciação jurisdicional” e está previsto na Constituição Federal e no Código de Processo Civil. Ter acesso à justiça significa buscar e conseguir uma prestação jurisdicional justa e adequada. É o direito de provocar o Judiciário e obter uma resposta. Tradicionalmente, a ordem constitucional emanada do art. 5o, XXXV, era vista como um mero direito de ação, ou seja, dava-se ao litigante tão somente o direito de ingresso ao judiciário, sem se discutir qualquer efetividade da tutela que seria prestada (DINAMARCO, 2018, p. 54). Contudo, o novo sistema processual civil visa garantir aos indivíduos não somente o direito de ação, mas também uma tutela jurisdicional efetiva, adequada e tempestiva, bem como impedir óbices que prejudiquem a concessão da tutela devida (DINAMARCO, 2018, p. 55). Cappelletti e Garth (1998, pág. 8) defendem que o acesso à justiça tem como objetivo determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico: o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e resolver seus litígios sob os auspícios do Estado. O “acesso” não é apenas um direitos social fundamental, crescentemente reconhecido; ele é, também, necessariamente o ponto central da moderna processualística. Seu estudo pressupõe um alargamento e aprofundamento dos objetivos da moderna ciência jurídica. Tutela Jurisdicional: Capacidade/ função do Estado de resolver conflitos no âmbito jurídico. 2 O problema da “efetividade” do direito de ação (...) tornou-se mais nítido da consagração dos chamados “novos direitos”, ocasião em que a imprescindibilidade de um real acesso à justiça se tornou ainda mais evidente (...) os novos direitos sociais e econômicos, caso ficassem destituídos de mecanismos que fizessem impor o seu respeito, assumiriam a configuração de meras declarações políticas, de conteúdo e função mistificadores. Por isso, logo se percebeu que a administração da justiça civil e os processos judiciais não mais poderiam ficar reduzidos a uma dimensão meramente técnica e socialmente neutra, devendo investigar-se as funções sociais por eles desempenhadas e, em especial, o modo como as opções técnicas no seu seio vinculavam opções a favor ou contra interesses sociais divergentes ou mesmo antagônicos (MARINONI, ARENHAR, MITIDERO, 2019, pág. 258 Nesse prisma, o novo sistema processual trouxe uma alteração quando comparado ao art. 5o, XXXV, da CF, ao mencionar que não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito. O termo jurisdicional atende a nova tendência, qual seja a de que devem ser dadas soluções de direito às ameaças e lesões a direito, o que não implica dizer que essas soluções serão dadas pelo Poder Judiciário, tanto é assim que os parágrafos elencados pelo artigo 3º do CPC mencionam os chamados meios alternativos/adequados de solução de conflitos. Importa lembrar ainda que o art. 5o, XXXV, do Texto Fundamental prevê, além do princípio da inafastabilidade da jurisdição, a chamada cláusula de acesso à justiça, que visa assegurar um sistema jurídico igualitário e acessível a todos. Pode-se afirmar que na época do Estado Liberal, o ente Estatal não despendia esforços para as questões de ordem econômica e social, ocorria apenas o “acesso formal, mas não efetivo à justiça, correspondia à igualdade, apenas formal, mas não efetiva” (CAPELLETI, 1988, p. 108). Por meio deste princípio, essencialmente é assegurado que toda situação conflituosa, que implique ameaça ou lesão a direitos, sejam eles individuais ou coletivos, possa ser submetida ao controle jurisdicional, independentemente de possuir ou não expressão econômica. A garantia de inafastabilidade da tutela jurisdicional traz consigo, portanto, a imposição de universalidade dessa proteção. Exige-se resposta jurisdicional útil, efetiva e tempestiva. Além disto, o próprio acesso à justiça foi facilitado na CF, por exemplo, com o benefício da justiça gratuita (art. 5º, LXXIV) ou isenção de custas nas ações populares e habeas data (art. 5º, LXXVII). “Com serviços jurisdicionais de boa qualidade obtém-se uma tutela adequada, compatível e aderente aos interesses em jogo no processo e capaz de fazer justiça com observância dos valores presentes nas normas de direito material.” (DINAMARCO, 2018, p. 55). 3 3.2. Evolução do conceito teórico de acesso à justiça O direito de acesso à justiça evoluiu com a formação dos estados, acompanhando suas ideologias predominantes, qual seja o laissez-faire (liberalismo) nos séculos XVIII e XIX e o estado do bem-estar social nos séculos XX e XXI. O conceito evoluiu com a evolução teórica dos direitos fundamentais sociais (CAPPELLETTI; GARTH, 1998). Inicialmente, ainda nos estados liberais, prevalecia a ideia deque a proteção judicial consistiria no direito formal de propor ou contestar uma ação, posto ser um direito natural, não sendo necessária a intervenção do Estado. Nota-se a imagem de um Estado inerte, que não possuía qualquer preocupação com a efetivação do direito subjetivo nem com a (in)capacidade dos cidadãos de reivindicarem seus direitos subjetivos (CAPPELLETTI; GARTH, 1998). Ainda, a preocupação processualista era dogmática, sem qualquer preocupação com a realidade fática. Então, com as revoluções populares, iniciou-se o questionamento da posição do Estado, sendo reconhecidos os seus deveres sociais. Iniciou-se a preocupação com a efetivação dos direitos proclamados, ou seja, a sua acessibilidade à população. Reconheceu-se a necessidade de atuação positiva do Estado para assegurar o gozo dos direitos sociais básicos. O direito ao acesso efetivo tem sido progressivamente reconhecido como sendo de importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez que a titularidade é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação. (CAPELLETI, GARTH, 1988, pág. 11). Tendo como base um regime democrático, todos os empecilhos que surjam no decorrer do deslinde processual de forma a obstaculizar o acesso à justiça devem ser superados, pois se o Estado tomou para si o dever de tutela, por meio da jurisdição, proibindo a autotutela, este deve oferecer meios adequados que visem efetivar de forma concreta o acesso à justiça (NUNES, 2010, p. 110). Percebe-se, então, que o acesso à justiça é um requisito fundamental do sistema jurídico moderno igualitário, não podendo limitar-se em sua previsão formal (não acessiva igualitariamente), como era no estado do laissez-faire. Ainda, tornou-se o enfoque do estudo processual moderno, expondo a necessidade dos juristas reconhecerem as diversas funções sociais às quais as técnicas processuais servem (CAPPELLETTI; GARTH, 1998). 3.3. Os Métodos Adequados de Solução de Conflitos como ferramenta de efetivação do Acesso à Justiça 4 Percebemos que o Acesso à Ordem Jurídica Justa vai além da garantia material de um Judiciário “acessível” – utiliza-se o termo em aspas pois, apesar das bonificações concedidas, como a assistência judiciária gratuita, os jogadores frequentes ainda têm vantagem. O Acesso à Justiça, na verdade, apresenta um dever estatal de garantir a pacificação social, assegurando o correto tratamento de cada conflito, uma vez que não são homogêneos, indo além da entrega de uma sentença, que, costumeiramente, não pacifica a relação, apenas a estabiliza. A mediação e a conciliação não devem ser encaradas como medidas destinadas a desafogar o Poder Judiciário, mas como o melhor e mais adequado meio de resolução de disputas. Há disputas que são melhor e mais adequadamente resolvidas pela mediação, enquanto há outras que se resolvem mais apropriadamente pela conciliação,sendo certo que há outras ainda que só se resolvem mais adequadamente pelo julgamento realizado por um juiz. A mediação e a conciliação também não devem ser vistas como alternativas a quem não foi bafejado com as melhores condições de aguardar um desfecho demorado de um processo judicial. Constituem, na realidade, medidas aptas e adequadas a resolver conflitos em determinados casos. Há, efetivamente, casos que serão melhor resolvidos por esses meios. A conciliação e a mediação constituem técnicas que se destinam a viabilizar a autocomposição de disputas ou litígios. Nelas, um terceiro intervém, contribuindo para que as partes componham por si mesmas a disputa que há entre elas. (CABRAL; CUNHA, 2016, pág. 473) Como abordado por Cappelletti e Garth (1988), a longa duração de um processo, assim como seus custos, costuma afastar dos financeiramente menos favorecidos a obtenção de tutela adequada da jurisdição. Logo, a possibilidade de resolução do conflito no início do processo facilita o acesso à justiça para essas pessoas. É importante ressaltar que a boa-fé se faz necessária, assim como a cooperação, para que os mais favorecidos financeiramente não intimidem a outra parte a aceitar um acordo injusto. Entretanto, a sociedade brasileira é litigante e ainda desconfia de outros métodos de solução de conflitos – dai se fala em uma cultura de sentença. As pessoas querem saber o que o juiz vai dizer a respeito do conflito delas. (...) o grande obstáculo à utilização mais intensa da conciliação e mediação é a formação acadêmica dos nosso operadores do direito, que é voltada, fundamentalmente, para a solução contenciosa e adjudicada dos conflitos de interesses. Ou seja, toda ênfase é dada à solução dos conflitos por meio do processo judicial, em que é proferida uma sentença, que constitui a solução imperativa dada pelo representante do Estado. O que se privilegia é a solução pelo critério “certo ou errado”, do “preto ou branco”, sem qualquer espaço para a adequação da solução, pelo concurso da vontade das partes, à especificidade de 5 cada caso (WATANABE, 2005, n.p.).Desta forma, vislumbra-se muita resistência por parte dos magistrados, membros do Ministério Público, advogados e da sociedade em geral, a outros meios de solução de conflitos que não seja a adjudicação judicial. A cultura brasileira ainda preza pela prolação da sentença em detrimento da pacificação social. A mentalidade predominante, não somente entre os profissionais do direito, como também entre os próprios jurisdicionados, é a que vê na sentença a forma mais sublime e correta de se fazer a justiça, considerando os chamados meios alternativos de solução de conflitos — como mediação, conciliação, arbitragem e outros —, formas atrasadas e próprias de povos pouco civilizados (GRINOVER, 1985:159). Sabemos, no entanto, por experiência própria, que há conflitos de interesses que, em razão de sua natureza peculiar e das particularidades das pessoas envolvidas, exigem soluções diferenciadas, muitas vezes bem diversas das que decorreriam da pura aplicação de uma norma jurídica aos fatos, da solução pelo critério do “certo ou errado”, “do tudo ou nada”, “do branco ou preto”, que é a dada pelo método da solução adjudicada pela autoridade estatal. (WATANABE, 2017) Neste sentido, é preciso observar que a função precípua do processo não é o julgamento da lide por si só, mas a pacificação social, atendendo ao direito material. Não existe uma única maneira de se solucionar os conflitos de interesses das partes. Kazuo Watanabe (2016), em parecer ao Tribunal de Justiça de São Paulo, defendeu a necessidade de uma política pública judiciária de solução adequada dos conflitos que (...) ao contrário de barrar o acesso à justiça, assegurará aos jurisdicionados o acesso à ordem jurídica justa, e além disso atuará de modo importante na redução da quantidade de conflitos a serem ajuizados e também, em relação aos conflitos judicializados ou que venham a ser judicializados. Ele ainda defende que a solução pelos mecanismos de solução consensual dos conflitos auxiliará na redução substancial da quantidade de sentenças, de recursos e de execuções judiciais. Deste modo, esta cultura litigante de sentença é insustentável e deve dar lugar à cultura da paz que passa por se verificar qual o meio mais adequado para solução do conflito, especialmente pela utilização dos meios autocompositivos. Eduardo Cambi corrobora o papel da conciliação na pacificação social: [...] trata-se de uma forma de evitar a solução do conflito pelo transcurso regular do processo. É a forma mais adequada, célere, econômica e eficaz de resolução de conflitos. Promove a reaproximação das partes, restaura relacionamentos prolongados, contribui para a pacificação social, evita que o litígio seja resolvido com uma decisão impositiva do Estado-Juiz, além de contribuir para o descongestionamento do Poder Judiciário (CAMBI, 2015, p. 880 e 881). 6 Para Roberto Bacellar (apud Tartuce, 2008, p. 143) “o processo perante o Poder Judiciário só deve aparecer na impossibilidade de um modelo consensual que propicie a resolução pacífica e não adversarial da lide”. Percebe-se que a garantia de proteção judiciária implica ser possível acessar a jurisdição para definir situações controvertidas relevantes, sem que tal possibilidade impeça a adoção de outros meios de distribuição de justiça. Como afirmado, o acesso à justiça, no sentido de composição justa do litígio, difere do acesso ao Poder Judiciário (mecanismo jurisdicional heterocompositivo). (TARTUCE, 2008, p. 144). Sendo assim, evidencia-se que “a verdadeira Justiça só se alcança quando os casos se solucionam mediante consenso que resolva não só a parte do problema em discussão, mas também todas as questões que envolvam o relacionamento entre os interessados.” (BACELLAR apud TARTUCE, 2008, p. 229) CULTURA DE PAZ CULTURA DE SENTENÇA Verificação de qual o meio mais adequado para a solução do conflito. Resolução dos aspectos jurídicos, sociológicos e psicológicos do conflito. Prevalece o diálogo, a boa-fé e a compreensão. Utilização do método de solução adjudicada para dirimir os conflitos sociais, a qual se funda no princípio do estabelecimento de uma sentença proferida pelo juiz e que resulta, para as partes, uma sensação de vitória/ derrota. As partes querem saber o que o juiz vai “dizer” a respeito do conflito delas. 3.4. Proposta de atividade: Agora que temos o conhecimento do que é o Acesso à Justiça e de quais as características necessárias para a sua concretização (adequabilidade, efetividade e tempestividade), vamos pesquisar quais são os obstáculos à sua efetivação. Para tanto, utilizem os materiais disponíveis no classroom e na internet, de modo geral. Sugestão: o livro “Acesso à Justiça”, Mauro Cappelletti e Bryant Garth, é doutrina referencia neste tópico e certamente será de grande auxílio. Discutiremos em sala na aula da semana seguinte. REFERÊNCIAS BACELLAR, Roberto Portugal APUD TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis. São Paulo: Método, 2008. 7 CAMBI, Eduardo. Audiência de Conciliação ou de Mediação. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al (coords.). Breves comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. CAPELETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil: Teoria do Processo Civil (vol. 1). 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis. São Paulo: Método, 2008. WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e meios consensuais de solução de conflitos. CRESPO, Maria Hernandez. et. al. (Coord.). Tribunal Multiportas – Investindo no capital social para maximizar o sistema de solução de conflitos no Brasil. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2012,p. 87. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/10361/Tribunal%20Multiporta s.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em 30 mai. 2017. WATANABE, Kazuo. Cultura da sentença e cultura da pacificação. Estudos em homenagem à professora Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: DPJ, 2005, n.p. WATANABE, Kazuo. Política Pública do Poder Judiciário Nacional para tratamento adequado dos conflitos de interesses. Disponível em: http://www.tjsp.jus.br/download/conciliacao/nucleo/parecerdeskazuowatanabe.pdf. Acesso em: 10 mar. 2016. http://www.tjsp.jus.br/download/conciliacao/nucleo/parecerdeskazuowatanabe.pdf
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