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1 Opinião Pública e Comportamento Político Aula 1 Prof. Wellington Nunes 2 Conversa inicial Esta disciplina trata de dois temas de pesquisa intimamente relacionados com a área da Ciência Política. Isso porque o processo de formação da opinião pública, além de estar estreitamente relacionado com questões mais evidentes, tais como esfera pública (isto é, assuntos de interesse público), qualidade da democracia e natureza dos regimes políticos em geral, também tem influência em outros assuntos, como campanhas políticas, comportamento eleitoral e marketing político. Portanto, este texto-base tem como objetivo geral, por um lado, oferecer um panorama acerca do surgimento e desenvolvimento dessas duas áreas de pesquisa e, por outro, apontar algumas das suas implicações em questões teóricas mais amplas, como aquelas citadas acima. Para tanto, o texto está dividido em duas partes: na primeira delas, trata-se especificamente da opinião pública, e na segunda, do comportamento político. Contextualizando O objetivo desta primeira aula é oferecer uma discussão contextualiza acerca da opinião pública. Dessa forma, partimos das dificuldades de conceituação e oferecemos uma definição inicial do tema, resgatamos as origens do debate, passamos pelas suas fases moderna e contemporânea e tratamos dos seus principais componentes. Tema 1 – Dificuldades de Conceituação A discussão acerca da opinião pública está longe ser uma novidade e, como veremos no Tema 3, tem raízes na Antiguidade Clássica. Então, é possível imaginar que os esforços no sentido de definir conceitualmente o tema também têm raízes remotas. Assim, em 1965, Harwood L. Childs analisou 200 anos de controvérsia em torno das diversas definições de opinião pública. A conclusão dessa análise indicava que o cerne do problema podia ser resumido à limitação da abrangência do sentido atribuído à expressão, por meio de “premissas limitadoras”, conforme pode ser visto no 3 quadro 1 (Childs, 1965 apud Figueiredo; Cervellini, 1995, p. 174). Quadro 1 Tipo de definição Limite Julgamento social ou consciência comunitária sobre questão de interesse geral, após discussão racional. O processo de formação da opinião pública não é sempre racional. Sentimentos sobre qualquer assunto entre grupos dos mais informados, inteligentes e moralmente superiores da sociedade. Elitiza o sujeito da opinião pública. Não existem critérios objetivos para definir quem sejam os “moralmente superiores”. Quando o grupo envolvido é secundário, sem intermediações e contato direto com a fonte. Restringe mais uma vez o sujeito da opinião pública. Atitudes, sentimentos e ideias de um grande número de pessoas sobre um assunto público importante. Limita os fenômenos a assuntos públicos importantes desconsiderando aqueles que podem vir a ser importantes. Opinião que, embora não necessariamente consensual, seja majoritariamente aceita. Não lida com as frequentes situações de conflito. Opinião pública é um composto de número e intensidade de opiniões. Número e intensidade qualificam, e não definem, opinião pública. Reações e afirmações definidas em uma situação de entrevista. Opera um reducionismo, pois associa a opinião pública ao momento da entrevista. Opiniões das pessoas que o governo acha por bem conhecer e seguir. Restringe o sujeito e os temas da opinião pública. Fonte: Figueiredo; Cervellini (1995, p. 174). Childs, por sua vez, ao tentar resolver o problema das definições muito restritas, acaba por cometer o pecado oposto: a definição sugerida pelo autor – opinião pública sendo uma “coleção de opiniões individuais” –, por ser excessivamente genérica, acaba por perder a utilidade definidora (ibidem, p. 175). Tendo em vista as dificuldades de conceituação presentes no debate aqui apenas delineado, o tema seguinte apresenta algumas definições que ficam a meio caminho tanto daquelas que são excessivamente restritas quanto daquelas exageradamente genéricas. Tema 2 – Definições Iniciais de Opinião Pública Esse tema trata, a título de aproximação do assunto a ser desenvolvido, de apresentar algumas definições iniciais acerca da opinião pública. Estas, no entanto, não devem ser utilizadas como limites rígidos ou instrumentos de censura para diferenciar 4 o que é e o que não é opinião pública. Devem servir apenas como primeiras aproximações ao tema na tentativa de mapear o terreno a ser explorado. Uma dessas definições foi formulada por Figueiredo e Cervellini (1995, p. 177- 178) e envolve quatro aspectos distintos. O primeiro deles refere-se ao processo de formação da opinião pública: este devendo originar-se no debate público, isto é, em processo (implícita ou explicitamente) de discussão pública. O segundo diz respeito à sua forma, ou seja, à necessidade de que haja expressão pública da opinião, já que se trata de uma condição necessária ao debate. O terceiro aspecto envolve o objeto específico do debate, cuja relevância deve ser suficiente “para gerar discussão pública”. O quarto e último aspecto diz respeito ao sujeito da opinião pública, e a única exigência é que se refira a um coletivo (isto é, a um grupo de pessoas com algumas características comuns). Assim, de acordo com os autores, pode ser chamado de opinião pública: “todo fenômeno que, tendo origem em um processo de discussão coletiva e que se refira a um tema de relevância pública (ainda que não diga respeito à toda a sociedade), esteja sendo expresso publicamente, seja por sujeitos individuais em situações diversas, seja em manifestações coletivas” (ibidem, p. 178). Na mesma direção vai a ideia de caracterizar opinião pública como um conjunto de opiniões que surge em resposta a questões de ordem diversa: sociais, econômicas, políticas etc.; e que, além disso, sofre influência de fatores emocionais em âmbito individual (Kinder, 1998 apud Cervi, 2012, p. 16). Adicionalmente, é possível acrescentar que o termo público envolve dois sentidos: de um lado, refere-se a temas que despertam interesse público, e de outro, diz respeito a espaços públicos diversos (Cervi, 2012). Perspectiva também presente, ainda que de forma implícita, na construção conceitual de Figueiredo e Cervellini (1995). Tema 3 – As Origens do Debate Como foi dito no Tema 1, a discussão acerca da opinião pública está longe de 5 ser uma novidade e suas raízes, como muitas outras áreas do conhecimento, remontam à Grécia antiga. Desde então, persiste uma característica que tem acompanhado todo o processo de desenvolvimento e o amplo debate sobre o tema: “uma visão pessimista e pejorativa da opinião pública” (Cervi, 2012, p. 17). A referida característica já aparece durante a Antiguidade Clássica, nos escritos de Platão. Nesse caso, os contornos pejorativos aparecem em função do viés “antidemocrático”1 (Bobbio, 2009, p. 99) presente nos escritos do autor. Nesse sentido, na perspectiva platônica, “o público é o grande sofista” (Cervi, 2012, p. 17). Essa visão perdurou por vários séculos e pode ser encontrada nos escritos de Thomas Hobbes, para quem o soberano (leviatã) pode utilizar-se de todos os recursos disponíveis (inclusive a força), da forma que considerar mais conveniente, a fim de assegurar a paz e o bem comum, e nada tem a ganhar considerando a opinião dos súditos: ao contrário, a opinião do público é considerada como fonte de anarquia (Hobbes, 1988). Mesmo na obra de Maquiavel, na qual a opinião pública é considerada a partir da sua utilidade para os interesses do governante (o que representa um avanço em relação às posições anteriores), a visão pejorativa sobre a opinião pública é reproduzida (Cervi, 2012, p. 18). Ainda de acordo com Cervi, uma perspectiva que considere a opinião pública como sendo “consistente e coerente” e, portanto, digna de ser consideradano processo decisório, aparece apenas a partir do Iluminismo. No pensamento de John Locke, por exemplo, surge a chamada “lei da opinião ou da reputação”, que serviria para distinguir entre os atos públicos que seguem o caminho da virtude e aqueles identificados com a falta dela. Outros liberais, como Edmund Burke e François Guizot, dão continuidade à essa linha de pensamento (ibidem, p. 19-20). 1 Na perspectiva platônica, a democracia é terreno em que predominam “a licenciosidade e o desregramento”. (Bobbio, 2009, p. 99) 6 Não obstante, mesmo após o Iluminismo e o surgimento do pensamento liberal, a visão pessimista e pejorativa acerca da opinião pública continuou existindo. No pensamento hegeliano, por exemplo, ela aparece como um emaranhado de opiniões cuja a generalização pode assumir caráter formal, mas não científico (ibidem, p. 20). Mesmo na atualidade, existe uma perspectiva bastante influente que considera que a opinião pública, em vez de “espontânea” e “racional” – como postula o Liberalismo – seria “artificial” e “irracional”, podendo ser “produzível” e “manipulada” (Amaral, 2000, p. 198)2. Tema 4 – O Debate Contemporâneo Mesmo a partir da difusão de trabalhos empiricamente orientados como os que se utilizam de técnicas quantitativas de amostragem, por exemplo, o caráter pejorativo que acompanha a discussão acerca da opinião pública não desapareceu. O já clássico estudo intitulado The american voter, por exemplo, chega à conclusão, a partir de análise empírica do eleitorado americano, de que não é possível “formar uma opinião pública coerente e racional” (Campbell et al., 1964 apud Cervi, 2012, p. 22). Os resultados para a realidade brasileira vão na mesma direção. Na tentativa de traçar um perfil do eleitorado nacional, já com a utilização de técnicas quantitativas, boa parte das pesquisas enfatiza características, como a amorfia, a falta de participação e a ausência de capacidade de conscientização (ibidem, p. 23). No entanto, outra parte (cada vez mais numerosa e relevante) dos estudos empíricos recentes tem mostrado um cenário distinto. É o caso dos trabalhos de Benjamin Page e Robert Shapiro, por exemplo, que mostram que, apesar das flutuações existentes nas opiniões individuais, a opinião pública é notavelmente coerente (Page; Shapiro, 1992), podendo, inclusive, influenciar no desenho de políticas públicas (idem, 1983). 2 Esse tipo de visão pode ser encontrado, entre outros tantos, em Bourdieu (1983) e Champagne (1998). 7 Na mesma direção, Althaus (1998) demostra que baixos níveis de informação não impedem que os eleitores ostentem opiniões consistentes com suas respectivas visões de mundo – ainda que o nível de informação possa impactar na responsividade, quer dizer, na responsabilização dos governantes diante dos cidadãos. Ainda assim, como vimos no Tema 1, definir opinião pública não é uma tarefa simples. Isso porque, mesmo na atualidade, não há uma “base conceitual consolidada” (Cervi, 2012, p. 24-25) – o que leva alguns autores a duvidar da possibilidade de tratar de uma opinião pública. Essa dificuldade de conceituação também produz definições de matizes teóricos bastante distintos e até contraditórios. Não obstante, a partir do imperativo de dar publicidade aos atos da res publica, aumentando sobre estes últimos o grau de vigilância e, ao mesmo tempo, emprestando-lhes maior legitimidade (Bobbio, 2009), é possível formular uma definição a partir da qual possamos avançar para análise dos seus componentes. É a partir dessa perspectiva que Cervi (2012, p. 28) entende a opinião pública como aquela referente “à nação ou a outro agregado social” que, apesar de ser expressa por indivíduos situados fora do governo, “reclamam o direito de que suas opiniões possam influenciar ou determinar as ações governamentais”. Tema 5 – Os Componentes da Opinião Pública Conforme visto nas seções anteriores, apesar da influência e da difusão de uma perspectiva pejorativa e pessimista, que perdura desde os escritos platônicos sobre o assunto, estudos empiricamente orientados têm, mais recentemente, mostrado a consistência da opinião pública e a pertinência de tê-la em conta em processos decisórios (Page; Shapiro, 1992; 1983). A partir dessa perspectiva, a opinião pública tem dois componentes centrais a serem considerados: direção e intensidade. Diz-se que opinião, individual ou coletiva, tem direção quando apresenta um julgamento valorativo, seja de aprovação, seja de desaprovação, acerca de determinado assunto. A intensidade de uma opinião, por sua 8 vez, refere-se ao nível de interesse sobre determinado assunto, já que os indivíduos se sentem mais interessados em informa-se e opinar sobre determinado assunto do que outros. Além disso, a maior ou menor persistência da intensidade das opiniões ao longo do tempo pode ser um dos indicadores de maior ou menor lealdade dos indivíduos a determinado grupo social, discutindo e opinando sobre os temas mais relevantes para este último (Cervi, 2012, p. 30). Nem a direção nem a intensidade das opiniões, no entanto, são categorias estanques: em sociedades contemporâneas, com amplo acesso à informação e difusão da mobilidade social, as mudanças de opinião podem se tornar cada vez mais frequentes. O que, por sua vez, permite que a opinião pública seja capaz de responder, em boa medida, aos processos de mudança social. Entre os fatores que podem influenciar as opiniões individuais e, por consequência, a opinião pública, está a interação social entre os indivíduos. Dentro dessa categoria, podem ser destacados três tipos de grupos fundamentais: o primeiro deles é aquele em que o tipo de interação predominante entre os indivíduos é o face a face (grupo primário), como ocorre entre familiares e colegas de trabalho, por exemplo; no segundo grupo, esse tipo de interação (face a face), entre quem emite opinião e seus receptores, ocorre com menos frequência (grupo secundário), tal qual em sindicatos e partidos políticos; já no terceiro grupo não há relações formalizadas entres os indivíduos (grupo terciário) e o tipo de interação é mais vago, como ocorre entre indivíduos de determinada região geográfica ou classe social. A identificação desses grupos de influência é importante na medida em que eles influenciam a direção e a intensidade das opiniões, isto é, a formação e a mudança da opinião pública (Cervi, 2012, p. 33-34). Não obstante, a interação social não é o único fator de influência na opinião pública: diversos autores enfatizam a importância da mídia como fonte de informação e interpretação do debate público. Dessa perspectiva, o cidadão pode formular e/ou reformular suas opiniões a partir de conteúdo previamente selecionado por ele. É importante ressaltar que, mesmo nesse caso, há grupos sociais intermediários entre o 9 conteúdo emitido pela mídia e o indivíduo que recebe a mensagem. No modelo explicativo formulado por Vitaliano Rovigatti, por exemplo, o conteúdo da opinião pública matriz, emitido pelos meios de comunicação, é influenciado pela opinião secundária – na qual atuam fatores diversos, como características socioculturais dos grupos primários, novas interpretações oriundas de grupos secundários, entre outros3. Na prática A perspectiva pejorativa ou pessimista da opinião pública da qual tratamos pode ser encontrada ainda nos dias de hoje. A ideia de uma opinião pública manipulável – seja em função dos interesses de grupos economicamente dominantes, seja em função dos interesses dos próprios meios de comunicação – é um exemplo nesse sentido. Síntese Como vimos, a discussão acerca da opinião pública está longe de ser novidade e tem adquirido importância progressiva nas sociedades contemporâneas. Para alémdo caráter pejorativo que acompanha essa discussão, desde seu início, a opinião pública tem sido, mais recentemente, objeto de estudos empíricos sistemáticos – o que tem contribuído para uma compreensão mais apurada do assunto. A investigação acerca dos componentes de direção e intensidade, bem como da sua transformação ao longo do tempo, é um bom exemplo disso. Esse tipo de estudos demonstra que a opinião pública pode, sim, ser coerente e consistente, podendo inclusive ser útil nos processos de construção, implementação e avaliação de políticas públicas. Referências 3 Esse modelo interpretativo da opinião pública está resumido na figura 1.1 do livro da disciplina (Cervi, 2012, p. 37). 10 Althaus, S. Information effects in collective preferences. The American Political Science Review, v. 92, n. 3, 1998. Amaral, R. Imprensa e controle da opinião pública: informação e representação popular no mundo globalizado. Revista de Informação Legislativa, a. 37, n. 148, out.-dez., 2000. Bobbio, N. O futuro da democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2009. Bourdieu, P. Questões de sociologia. Lisboa: Fim de Século Edições, 2003. Cervi, E. Opinião pública e comportamento político. Curitiba: Editora InterSaberes, 2012. Champagne, P. Formar opinião. São Paulo: Vozes, 1998. Cucurella, M. B. La opinión pública en Habermas. Anàlisi, n. 26, p. 51-70, 2001. Figueiredo, R.; Cervellini, S. Contribuições para o conceito de opinião pública. Opinião Pública, v. 3, n. 3. p. 171-185, 1995. Page, B.; Shapiro, R. Effects of public opinionon policy. The American Political Science Review, v. 77, issue 1, p. 175-190, 1983. __________________. The racional public. Chicago: Chicago University Press, 1992.
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