Buscar

Câncer: Doença Genética e Molecular

Prévia do material em texto

Entende-se o câncer como uma doença genética, o que não significa ser uma doença hereditária, pois só alguns tipos de câncer são hereditários. O fato que explica o câncer como uma doença genética é de que ele afeta diretamente o DNA celular, o genoma da célula (COUTO; FREIRE, 2018). 
O câncer é um grupo de doenças complexas, com comportamentos diferentes, conforme o tipo celular do qual se originam. As doenças que compõem o câncer variam em sua idade de início, velocidade de desenvolvimento, capacidade invasiva e em seu prognóstico e capacidade de resposta ao tratamento. No entanto, em nível molecular, todos os tipos de câncer apresentam características comuns, que os reúnem em uma classe abrangente de doenças (BORGES-OSÓRIO; ROBINSON, 2013).
Tais características são: a proliferação celular descontrolada, caracterizada por crescimento e divisão celulares anormais, e as metástases, um processo que permite que as células cancerosas se disseminem e invadam outras partes do corpo. Nas células normais, a proliferação e a invasão são estritamente controladas por genes que se expressam em ocasiões e locais apropriados. Nas células cancerosas, muitos desses genes são mutantes, ou se expressam de forma inadequada (BORGES-OSÓRIO; ROBINSON, 2013).
Essas mutações podem ocorrer em células germinativas, e dessa forma, podem ser transmitidas para a próxima geração - câncer hereditário; ou podem ocorrer em células somáticas e ficam restritas apenas ao indivíduo - câncer esporádico (COUTO; FREIRE, 2018).
Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), o câncer é a segunda principal causa de morte no mundo e é responsável por 9,6 milhões de mortes em 2018. Ainda mais agoniante que a mortalidade associada, é o sofrimento físico e emocional infligido por ele. Os pacientes e o público com frequência indagam: “Quando haverá cura para o câncer?”, é difícil a resposta a essa pergunta simples porque o câncer não é uma doença, mas muitas desordens que compartilham uma profunda desregulação de crescimento, como já citado anteriormente. Por isso, a única esperança para o controle do câncer é aprender mais sobre sua patogenia, e largos passos foram dados na compreensão da base molecular do câncer, através do estudo do genoma (KUMAR; ABBAS; ASTER, 2013).
Além disso, o avanço no conhecimento da genômica do câncer permitiu uma melhor compreensão da doença e suas particularidades e variabilidades. O conhecimento de ciências básicas - aliado ao conhecimento clinico e avanços de técnicas de biologia molecular – permitiu grande avanço da medicina personalizada, com impacto positivo no diagnóstico, tratamento, manejo, prevenção, sobrevida e qualidade de vida dos pacientes com câncer (COUTO; FREIRE, 2018), as explicações em seguida, exemplificam tal afirmação.
1. Compreensão mínima do funcionamento do câncer
Atualmente sabe-se que o DNA é a molécula que carrega a informação genética de todos os seres vivos. É uma estrutura linear, em dupla hélice, composta de uma sequência, não aleatória, de nucleotídeos (adenina, guanina, citosina e timina). A sequência exata desses nucleotídeos é a informação genética em código e alterações nessa sequência são reconhecidas como mutações, que podem ou não ter consequências para o indivíduo. As sequências codificantes do DNA, ou seja, que possuem as informações genéticas que são transcritas em RNA para a produção de proteínas, são conhecidas como genes. São esses genes, ou as mutações presentes neles, que são exaustivamente estudados na oncologia como marcadores moleculares, ou seja, marcas moleculares que diferenciam uma célula normal de uma célula cancerígena (COUTO; FREIRE, 2018).
Existem cerca de 25.000 genes em cada célula humana, mas, na maioria dos casos, uma única mutação dentro de um gene não levará ao desenvolvimento de câncer, é somente quando ocorre acúmulo de mutações em certos genes-chave que o câncer se desenvolve (COUTO; FREIRE, 2018). A carcinogênese (processo de formação do câncer) resulta de múltiplas etapas e pode envolver dezenas, até centenas, de genes, por meio de mutações gênicas, quebras e perdas cromossômicas, amplificações gênicas, instabilidade genômica e mecanismos epigenéticos, sendo os principais grupos de genes envolvidos nesse processo: proto-oncogenes, genes supressores de tumor e genes relacionados ao reparo do DNA (DANTAS et al. 2009).
Os proto-oncogenes são genes que, em circunstâncias normais, dão o comando para as células se multiplicarem e se dividirem. Quando eles se tornam ativos, eles aceleram a taxa de crescimento de uma célula. Quando um proto-oncogene sofre uma mutação ele se torna um oncogene, e nesse caso, ele funciona como um “pedal do acelerador preso”: essa célula, e todas as células que crescem a partir dela, são permanentemente instruídas a se multiplicar. Dessa forma, a proliferação celular acontece de forma desordenada e contínua, o que contribui para a carcinogênese. Em contrapartida, os genes supressores de tumor regulam negativamente a multiplicação celular e, se forem mutados, podem fazer com que as células não entendam mais a instrução para parar de crescer e, por esse motivo, passam a se dividir de forma descontrolada, dando início a um câncer. Já os genes de reparo de DNA são responsáveis por corrigir imediatamente qualquer dano gerado ao DNA, sem efeitos nocivos. Mas, se uma mutação ocorre em um gene de reparo, uma célula tem menos capacidade de se corrigir. Assim, os erros se acumularão em outros genes ao longo do tempo e contribuirão para o desenvolvimento de um câncer. Exemplos clássicos de proto-oncogene, gene supressor tumoral e gene de reparo de DNA são o EGFR, o TP53 e o BRCA, respectivamente (BORGES-OSÓRIO; ROBINSON, 2013).
2. Diagnóstico molecular
Um número crescente de técnicas moleculares é usado para o diagnóstico de tumores e para prever seu comportamento.
2.1 Diagnóstico de malignidade
Como cada célula T e B mostra um rearranjo exclusivo de seus genes receptores de antígenos, a detecção, baseada na reação em cadeia da polimerase (PCR), do receptor de célula T ou de genes de imunoglobulina permite a distinção entre proliferações monoclonais (neoplásticas) e policlonais (reativas). Muitas neoplasias hematopoiéticas, assim como alguns tumores sólidos, são definidas por translocações específicas, assim o diagnóstico pode ser feito pela detecção de tais translocações (KUMAR; ABBAS; ASTER, 2013).
2.2 Prognóstico e comportamento 
Certas alterações genéticas estão associadas a mau prognóstico e, portanto, a presença dessas alterações determina a terapia subsequente do paciente. Os métodos FISH e PCR podem ser usados para detectar a amplificação de oncogenes, como HER2/NEU e NMYC, que produzem prognóstico e informações terapêuticas para cânceres de mama e neuroblastomas (KUMAR; ABBAS; ASTER, 2013).
2.3 Detecção de doença residual mínima
 Outro uso emergente das técnicas moleculares é na detecção de doença residual mínima após o tratamento. Por exemplo, a detecção de transcritos de BCR-ABL pelo ensaio PCR confere uma medida da doença residual em pacientes tratados de leucemia mieloide crônica. O reconhecimento de que praticamente todos os tumores avançados estão associados a células tumorais circulantes intactas e produtos derivados dos tumores (p. ex., DNA do tumor) levou ao interesse em acompanhar a carga tumoral por meio de exames de sangue sensíveis (KUMAR; ABBAS; ASTER, 2013).
2.4 Diagnóstico de predisposição hereditária ao câncer
 A mutação na linhagem germinativa de vários genes supressores de tumor, como BRCA1, aumenta o risco do paciente para o desenvolvimento de certos tipos de câncer. Assim, a detecção desses alelos mutados pode permitir que o paciente e o médico planejem um protocolo agressivo de triagem, assim como uma oportunidade para a cirurgia profilática. Além disso, tal detecção permite o aconselhamento genético dos parentes em risco (KUMAR; ABBAS; ASTER, 2013).
3. Tomada de decisão terapêutica
Número crescente de terapias que visam diretamente às mutações específicas está sendo desenvolvido e, portanto, a detecçãodessas mutações em um tumor pode guiar o desenvolvimento da terapia direcionada. 
Atualmente está se tornando evidente que certas mutações que podem se tornar alvos podem transgredir as categorias morfológicas. Por exemplo, as mutações da ALK quinase, originalmente descritas em um subgrupo de linfomas de células T, também foram identificadas em uma pequena porcentagem de carcinomas de células não pequenas e neuroblastomas. Estudos clínicos demonstraram que os cânceres de pulmão com mutações de ALK respondem aos inibidores de ALK, enquanto em outros cânceres de pulmão isso não ocorre, levando à recente aprovação pela Food and Drug Administration (FDA) dos inibidores de ALK para uso em pacientes com câncer de pulmão “com ALK mutada” (KUMAR; ABBAS; ASTER, 2013).
Outro exemplo recente, drástico, da terapia molecularmente “elaborada” é vista no melanoma, em que os tumores com uma substituição da valina por glutamato no aminoácido 600 (V600E) da serina/treonina quinase, BRAF, respondem bem à inibição de BRAF, enquanto os melanomas sem essa mutação não mostram qualquer resposta. De algum interesse é que a mutação V600E também está presente em um subgrupo de cânceres de cólon, em certos cânceres tireóideos, em 100% das leucemias de células pilosas e na histiocitose de Langerhans. Esses tumores são morfologicamente diversos e têm origens celulares distintas, mas compartilham idênticas lesões oncogênicas em uma via comum de pró-crescimento (KUMAR; ABBAS; ASTER, 2013).
 
Figura 1: Alteração de paradigma: classificação de câncer de acordo com os alvos terapêuticos em vez de célula de origem e morfologia.
Fonte: KUMAR; ABBAS; ASTER. Robbins Patologia Básica, 2013.
	Como já citado anteriormente, os avanços da genética molecular e da citogenética têm aumentado a capacidade de detecção das alterações das células neoplásticas hematopoiéticas e de tumores sólidos, possibilitando, em muitos casos, o esclarecimento dos mecanismos responsáveis pela etiologia e patogênese das neoplasias. Têm, inclusive, permitido o mapeamento de vários genes envolvidos nos processos neoplásicos, como oncogenes e genes supressores de tumor (FETT-CONTE et al. 2000). 
	Em estudo publicado pela revista Nature, foi relatada a análise integrativa de 2.658 genomas completos de câncer e seus tecidos normais correspondentes em 38 tipos de tumores do consórcio Pan-Cancer Analysis of Whole Genomes (PCAWG), do International Cancer Genome Consortium (ICGC) e do The Cancer Genome Atlas (TCGA). É o retrato mais detalhado já obtido de como e por que cada tipo de tumor surge no nível molecular, apontando o caminho para novos tratamentos e métodos de diagnóstico precoce e evidenciando a importância do estudo do genoma para o câncer (CAMPBELL et al. 2020).
	As dimensões e a complexidade do projeto são difíceis de imaginar. O estudo colocou lado a lado o genoma completo do paciente, o de seu câncer e o genoma humano de referência, e os leu 30 vezes, letra por letra, para conhecer todas as mutações que diferenciam a célula cancerosa da saudável. No total, mais de um trilhão de letras de DNA foram lidas, um número maior que o número de galáxias no universo e o de estrelas em toda a Via Láctea. A obtenção e a compreensão dessa imensidão exigiram o esforço de 1.300 cientistas de 37 países e o uso de 13 supercomputadores e centros de análise por cerca de 10 milhões de horas; mais de 1.100 anos de computação (CAMPBELL et al. 2020).
A principal conclusão do trabalho é que o genoma do câncer é finito e pode ser conhecido. Pela primeira vez na história, foi possível identificar todas as alterações genéticas que produzem um tumor específico e até classificá-las cronologicamente para conhecer sua biografia (CAMPBELL et al. 2020).
Para os cientistas é surpreendente a diferença entre o genoma do câncer de uma pessoa comparada a de outro. Existem milhares de combinações de diferentes mutações que produzem a doença, e mais de 80 processos que causam essas mutações; alguns são devidos a causas hereditárias, outros ao estilo de vida (tabagismo, bebida, dieta inadequada, exposição à luz solar) e outros são causados por desgaste simples (acaso e idade). O mais interessante desse projeto é que ele permite começar a identificar padrões recorrentes entre toda essa enorme complexidade. O estudo demonstra que alguns tumores aparecem anos ou décadas antes do diagnóstico dessa condição médica. Há casos em que o primeiro acontece durante a infância (CAMPBELL et al. 2020).
Os resultados do trabalho não melhorarão o tratamento do câncer em curto prazo, mas o conhecimento que eles fornecem é essencial para a medicina de precisão, na qual pacientes com câncer podem receber um tratamento ou outro, dependendo de seu perfil genético, argumentam os responsáveis pelo projeto (CAMPBELL et al. 2020).
Em 5% dos pacientes não foi encontrada mutação causal, o que indica que o catálogo de erros genéticos que causam câncer em todas as suas formas possíveis não está completo, e outros casos devem ser analisados (CAMPBELL et al. 2020).
De acordo com os resultados mais recentes, dois terços de todos os tumores são devidos ao acaso. O outro terço é explicado por mutações herdadas dos pais e por fatores externos e evitáveis, como estilo de vida, conforme ilustrado pelo trabalho. Um dos fatores que mais destroem a metilação do DNA e favorecem a replicação desses fragmentos perigosos do genoma é a fumaça do tabaco. O álcool também afeta e, curiosamente, todos os tumores causados por esses fragmentos de genoma transponíveis são do sistema digestivo (CAMPBELL et al. 2020).
A própria abrangência do estudo também causa preocupações. Em 2025, o genoma de mais de 60 milhões de pessoas terá sido sequenciado nos centros hospitalares, propondo a criação de regulamentos internacionais que garantam a maior acessibilidade possível aos dados e ao mesmo tempo protejam privacidade dos pacientes, uma vez que o estudo Pan-Câncer foi realizado em grande parte na nuvem, para facilitar o acesso a dados de diferentes países. Estudos anteriores com bancos de dados genéticos mostraram que pode ser possível identificar os pacientes. Sem vigilância, o sonho de um futuro com bancos de dados de milhares ou milhões de pacientes que ajudem a procurar novos tratamentos contra o câncer pode se tornar uma distopia na qual os planos de saúde saberão quem já tem uma ou várias mutações causais preditivas de tumores (CAMPBELL et al. 2020).
O projeto Pan-Câncer também confirma o potencial da inteligência artificial. Um dos trabalhos mostra que um algoritmo é capaz de aprender a identificar padrões de mutações inofensivas em uma amostra de tumores que permitem apontar em qual órgão o tumor primário foi produzido com uma taxa de sucesso que dobra a dos patologistas humanos (CAMPBELL et al. 2020).
Xosé Bustelo, presidente da Associação Espanhola de Pesquisa do Câncer (ASEICA, na sigla em espanhol), afirma
 A principal novidade deste projeto é que um número muito grande de tumores é analisado, tanto em seus tipos quanto no número total de pacientes analisados, o que nos dá uma resolução sem precedentes. De certa forma, é como a descoberta da América: na primeira viagem, Colombo viu apenas uma pequena parte da ilha recém-descoberta. Mas suas viagens sucessivas, como as dos outros conquistadores, nos permitiram visualizar e mapear um mundo totalmente novo, neste caso mapeando o genoma das células do câncer (CAMPBELL et al. 2020).
Referências 
	BORGES-OSÓRIO, Maria Regina; ROBINSON, Wanyce Miriam. Genética Humana. Porto Alegre: Artmed, 2013.
	COUTO, Patrícia Gonçalves Pereira; FREIRE, Maíra Cristina Menezes. Câncer: Uma doença genética. Oncologia Brasil, 2018. Disponível em: < https://www.oncologiabrasil.com.br/cancer-uma-doenca-genetica/>. Acesso: 8 de maio 2020.
DANTAS, É. L. R. et al. Genética do Câncer Hereditário. Revista Brasileira de Cancerologia, 2009.
FETT-CONTE, A. C. et al. Estudo cromossômico no sangue periférico de pacientes com diferentes tipos de leucemia do Hospitalde Base, São José do Rio Preto – SP. Revista Brasileira de Hematologia. Hemoterapia, 2000.
KUMAR, Vinay; ABBAS, Abul; ASTER, Jon. Robbins: Patologia Básica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013.
CAMPBELL, P.J. et al. Pan-cancer analysis of whole genomes. Nature, 2020.

Continue navegando