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CAPÍTULO I: DIVERSIDADE DAS LÍNGUAS, UNIVERSALIDADE DA TRADUÇÃO A torre de Nimrud foi construida de palavras. George Steiner, Language and Silence, 1966 1. Babel e a diversidade das línguas Estima-se que atualmente se falem mais de 6.000 línguas. Há quem diga que são menos, mas isso faz pouca diferença: seu número exato é tamanho que se ria quimérico pretender aprender todas elas. A torre de Babel constitui a figura emblemática dessa profu são, para além de suas diversas representações pictó ricas, e mesmo que a torre tenha realmente existido em Babilônia (seus vestígios ainda são visíveis no Ira que), um mito é feito de palavras. No livro do Gênesis (11,9), o relato se conclui assim: Iáhweh os dispersou de lá para toda a superfície da terra, e eles pararam de constmir a cidade. Foi assim que passaram a chamá- -la de Babel, porque foi lá que Iahweh confundiu a linguagem de todos os habitantes da terra e foi lá que ele os dispersou por toda a superfície da terra 1 La Bible de Jérusalem. Paris: Editions du Cerf, 1998. Há edi ção brasileira: Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002. 12 TRADUÇÃO - HISTÓRIA, TEORIAS E MÉTODOS Em parte alguma, encontraremos referência à tradução, mas ler a Bíblia a pressupõe: raros são os lei tores capazes de ler o Antigo Testamento “no texto”, isto é, em hebraico. E impossível falar de tradução deixando de levar em consideração os textos bíblicos, seja-se ou não cren te, especialmente porque eles foram e continuam a ser, de longe, o objeto do maior empreendimento de tradu ção na história da humanidade: atualmente, a Bíblia está traduzida em 2.233 línguas. Nenhum outro texto de igual importância é enunciado em tantos idiomas. A di versidade das línguas, é preciso ainda superpor a diver sidade de versões: mesmo que tenhamos tomado como referência a Bíblia deJerusalém, existem muitas outras. Independentemente da dimensão religiosa, a tra dução da Bíblia faz surgirem três dados fundamentais que se aplicam a toda modalidade de tradução. Para co meçar, a questão, evidente, da mudança de língua: tra duzimos porque a língua original não é ou não é mais compreendida. Se, no século III a.C., a colônia judaica de Alexandria traduz para o grego a Bíblia dos Setenta é para torná-la acessível ao maior número possível, o que implica recorrer à língua dominante da época. E por razões análogas que o Novo Testamento será redigido em grego e não na língua do Cristo, o aramaico. Inteiramente traduzidos ou redigidos em grego, os textos bíblicos serão, por sua vez, traduzidos para o latim, que se tornara a língua dominante da cristandade. A primeira função da tradução é, então, de or dem prática: sem ela, a comunicação fica comprome tida ou se torna impossível. Vemos imediatamente DIVERSIDADE DAS LÍNGUAS, UNIVERSALIDADE DA TRADUÇÃO 13 todo o proveito que podemos extrair dessa faculdade: os intérpretes tinham o status de príncipes no Egito, em razão da importância primordial que eles podiam assumir em matéria de diplomacia. Em contrapartida, podemos compreender por que a tradução pode se revelar, na plena acepção do termo, como a condição de sobrevivência de uma lín gua. Se a pedra de Roseta não contivesse a tradução de um texto redigido em hieróglifos e em demótico (uma versão simplificada dos hieróglifos) para uma língua conhecida, o grego, Champollion não teria chegado a decifrá-los, e a língua dos faraós teria permanecido, sem dúvida, tão impenetrável quanto a dos etruscos. Uma língua que não se consegue mais traduzir é uma língua morta, antes de a tradição vir a ressuscitá-la. O segundo aspecto a considerar é a questão da língua — nesse caso específico, das línguas em pre sença. Não é a mesma coisa traduzir do hebraico, língua camito-semítica, para o grego, língua indo-eu- ropeia, ou do grego para o latim, línguas pertencen tes à mesma família, ou do espanhol para o francês, mesmo que o mecanismo de base permaneça o mes mo. E desse modo que, em Jona et le signifiant errant, Henri Meschonnic nos fornece a retranscrição do ori ginal hebraico “mechamrim / havlé-chav / / / hasdam / y a ’zóvu” (Jonas 2,9) e sua tradução literal: “Guar diões orvalhos-vaidades sua piedade abandonarão”2, Henri Meschonnic, Jona et le signifiant errant. Paris: Galli mard, 1981, p. 73. 14 TRADUÇÃO - HISTÓRIA, TEORIAS E MÉTODOS tradução que pressupõe claramente o conhecimento do hebraico, mas que vai dar, em português, num dis parate. A Bíblia de Jerusalém traduz: “Os que servem a vaidades, é sua bênção que eles abandonam”. Po deríamos perfeitamente multiplicar os exemplos nos quais o “decalque” de uma língua sobre outra dá um resultado absurdo, quaisquer que sejam as línguas consideradas, sejam elas próximas ou distantes. Sem dúvida, é infinitamente mais difícil para um falante do português brasileiro ou do francês aprender o hebrai co do que o inglês ou o espanhol, mas a tradução não poderia ser reduzida, como vemos frequentemente, a essa única dimensão linguística. Segundo essa concep ção, bastaria ser, ao mesmo tempo, um bom linguista para conhecer a “língua de partida” (o hebraico, ou qualquer outra língua) e dominar suficientemente a “língua de chegada” (em nosso caso, o português bra sileiro) para chegar a uma tradução que representa o original sob uma forma equivalente, sem considerar a diferença das línguas. Trata-se de uma condição ne cessária, mas não suficiente. Com efeito, à função comunicativa da tradução e a sua dimensão linguística acrescenta-se um tercei ro fator, vinculado aos anteriores, o da pluralidade das versões de um mesmo texto. O exame de outras traduções dadas por Iienri Meschonnic dá testemu nho disso. Além da tradução da Bíblia de Jerusalém, ele cita a do rabinato francês, sob a direção de Zadoc Kahn (1899): “Aqueles que reverenciam ídolos m en tirosos fazem pouco de sua salvação”; a de Louis Se- gond (1910): “Aqueles que se apegam a ídolos vãos / DIVERSIDADE DAS LÍNGUAS, UNIVERSALIDADE DA TRADUÇÃO 15 Afastam de si a misericórdia”; a tradução dirigida por Édouard Dhorme para “La Plêiade” (1969): “Aqueles que reverenciam os ídolos vãos, / abandonam sua pie dade”; a da Tradução Ecumênica da Bíblia (1975): “Os fanáticos pelos ídolos vãos, / que renunciem a sua devoção!”. Por fim, duas traduções deliberadamente mais próximas da formulação hebraica, a de Choura- qui (1976): “Os conservadores das fumaças do pro blema sua dileção abandonam”, e a do próprio Henri Meschonnic (1981), cuja disposição gráfica busca re produzir a poética do ritmo do original: “Sentinelas de vento vapores Sua fé abando narão”. Não é à luz de considerações de ordem unica mente linguística que podemos distinguir as versões entre si: não é quem quer que pode se lançar à tradu ção da Bíblia. A competência dos tradutores não está em causa na multiplicação das variantes. Realmente, essas variações são impressionantes, como também destaca Julien Green, escritor e po liglota. Ele registra em Le langage et son double que, ali onde a Vulgata de são Jerônimo trazia: “Nam et si ambulavero in medio umbrae mortis, non timebo mala” (Salmo 23,4), que ele traduz como: “E mesmo que eu ande em meio às sombras da morte não temerei mal algum”, a Bíblia de Lutero dá: “Und ob ich schon wanderte im finster Tal, fürchte ich kein Unglück” (“E mesmo que eu vague pelo vale das trevas não temerei mal algum”), enquanto a Authorized Version traduz por: “Yea, though I walk through the valley of the sha- 16 TRADUÇÃO - HISTÓRIA, TEORIAS E MÉTODOS dow of death, I will fear no evil” (“Sim, mesmo que eu ande no vale da sombra da morte, não terei medo do mal”). A versão latina contém “a sombra da morte”, mas não “o vale”, a versão alemã contém o “vale”, mas não “a sombra da morte”, enquanto a versão inglesa contém os dois3. Diante dessas diferenças, podemos adotar várias atitudes. A primeira consiste em concluir pela intra- duzibilidade radical de toda língua por outra. Paraos muçulmanos do mundo inteiro, o Corão não deveria ser traduzido: ele deve ser lido na língua original, seja o leitor falante do árabe ou não. Podemos também concluir pela relativa intraduzibilidade das línguas: traduzir é, forçosamente, trair, para retomar o adágio italiano traduttore, traditore. A tradução arrisca-se, assim, a ser considerada como um mal menor, m an tendo-se a consulta direta ao original como melhor que qualquer outra forma de acesso, mesmo quando existam traduções que todos concordem em classifi car como excelentes. Uma terceira solução consiste em inverter a interpretação habitual do mito de Babel e em ver na diversidade das línguas qualquer coisa, menos um dado negativo. 2. Línguas e visões do mundo “Jamais deveríamos calar a questão da língua na qual se põe a questão da língua e se traduz um discurso 3 Julien Green, Le langage et son double. Paris: Le Seuil, 1987, p. 184-187. DIVERSIDADE DAS LÍNGUAS, UNIVERSALIDADE DA TRADUÇÃO 17 sobre a tradução”, diz Jacques D errida4. A questão da língua é, realmente, determinante, em vários sentidos. Na Escócia, no século XVI, ao lado do gaélico, a língua nacional era o escocês (língua falada ainda hoje, que está para o inglês assim como o português está para o espanhol ou o holandês para o alemão, ou até mesmo o dinamarquês para o sueco) e que desfrutava de um prestígio comparável pelo menos ao do inglês britâni co até a introdução, em 1560, da Bíblia traduzida por protestantes ingleses refugiados em Genebra. A tra dução para o escocês veio tarde demais. E essa foi sua perdição5: ele figura no Bureau européen des langues moins répandues [European Bureau for Lesser-JJsed Languages (EBLUL)] entre as línguas “m inoritárias” (1.500.000 falantes), enquanto, se as coisas tivessem se desenrolado de outro modo, teria, não há dúvida, permanecido como “majoritário” (o gaélico, sim, está em vias de extinção: 67.000 falantes em 1991, 55.000 em 2001): o escocês não estaria listado entre as cerca de cinquenta línguas que devem ser protegidas no seio da União Europeia. Se o impacto da tradução, às ve zes, se apresenta como salvador, sua ausência é quase sempre fatal, o que representa um problema de vulto quando pensamos que 96 % das línguas existentes são faladas por apenas 4% da população do globo. As ex pressões “língua majoritária” e “língua m inoritária” 4 Jacques Derrida, Des tours de Babel, in: Difference in Trans lation. Org.: Joseph F. Graham. Ithaca: Cornell University Press, 1985, p. 210. 5 Ver Tom McArthur, The Status of English in and furth of Scotland, in: A. J. Aitken, T. McArthur (orgs.), Languages of Scotland. Edirnburgo: Chambers, 1979. TRADUÇÃO - HISTÓRIA, TEORIAS E MÉTODOS são completamente relativas: a equação pode muito bem se inverter, a depender da época considerada. O contraste oferecido pelas línguas célticas a esse respei to é surpreendente, quando recordamos que no século I a.C. elas se estendiam pela maior parte do continente europeu, atingindo até a Ásia M enor6. Por isso, antes de dar exemplos em línguas majoritárias, e até mesmo internacionais, como o francês ou o inglês, a seguinte pergunta, feita pelo escritor italiano Andrea Camille- ri, merece ser respondida em um quadro mais geral: [...] será que não sobreviveu um único tradutor, um só intér prete dessas línguas desaparecidas, alguém que pudesse con tar aos outros o que essas palavras significavam para aquele que as pronunciava?7 E exatamente essa a pergunta inicial que todo leitor de uma tradução está no direito de fazer, a per gunta pela diferença que distingue o original do tex to traduzido. Se a tradução da Bíblia suscita tantos problemas de interpretação e de variantes, o que di zer de outras formas de textos? As divergências não serão menores quando as línguas em presença forem da mesma família? Uma tradução é capaz de evocar a mesma coisa que o original? São todas interrogações que exigem que comecemos pela questão da língua, avançando depois também pela questão das línguas. Com efeito, uma língua, a exemplo da torre de Babel, não é feita exclusivamente de palavras: cada Ver Henriette Walter, L’aventure des langues en Occident. Pa ris: Robert Laffont, 1994, p. 66-67. Andrea Camilleri, Le destin de Babe). Courrier internatio nal, n° extra, março-abril-maio de 2003, p. 12. DIVERSIDADE DAS LÍNGUAS, UNIVERSALIDADE DA TRADUÇÃO 19 uma encerra uma “visão” de mundo própria (“Welt- ansicht”), concepção elaborada por Wilhelm von Humboldt no século XIX e retomada por Edward Sa- pir e Benjamin Lee W horf no século seguinte e que veio a dar naquela que costumamos chamar a hipótese “Sapir-Whorf”8. O exemplo tipo para ilustrar o “recorte” específi co que toda língua efetua sobre o “real” é o das cores. Ao termo português “azul” o russo faz corresponder “goluboj” (“azul-claro”) ou “sinij” (azul-escuro”); por sua vez, nas línguas célticas, a “verde” e a “azul” cor responde apenas um termo, “glas”. E é fato que aquilo que se aplica ao léxico das cores aplica-se ao conjunto da língua. A incidência disso sobre a tradução é evi dente: se Marie Bonaparte traduz por L ’inquiétante étrangeté o texto de Freud intitulado Das Unheimli- che, isso não está desvinculado do fato de que Freud indica não ter encontrado equivalente exato em latim, em grego, em inglês, em francês, em espanhol, regis trando que o português e o italiano se contentam com “perífrases”, que em árabe e em hebraico “unheim li- ch” coincide com o demônico (“dámonisch”), aquilo que causa calafrios [“schaurig”]. Ele conclui: “Chega mos até a pensar que, em muitas línguas, essa nuance do aterrorizante não existe”9. Em chinês, “China” se diz “zhõngguó”, mas um sinófono pode aqui reconhecer as palavras “zhõng” Ver Benjamin Lee Whorf, Language, Thought and Reality. Cambridge (Mass.): The MIT Press, 1956. Sigmund Freud, Das Unheimliche and andere Texte / L’inquiétante étrangeté et autres textes, trad.: F. Cambon. Paris: Gallimard, 2001, p. 34-37. 20 TRADUÇÃO - HISTÓRIA, TEORIAS E MÉTODOS (meio) e “guó” (“país”): a China é “o país do Meio” ou, como se dizia na época da China Imperial, “o im pério do Meio”. O poder de evocação de “China” e de “zhõngguó” não é, então, completamente semelhan te. Jacques Derrida assinala, mas em um quadro de análise diferente, que “Babel” não é apenas um nome próprio, porque ele também significa “confusão”, e também pode ser lido como “ba” (“pai”) e “bei” (“ci dade”): Babel, mas também confusão, cidade do pai, cidade de Deus Pai10. Temos aqui algo bem diferente de uma mera questão vocabular. Em um artigo célebre, Emile Benveniste demons trou que as categorias de Aristóteles, enquanto “cate gorias de pensam ento”, são manifestamente o espelho das categorias da língua grega: Ele pretendia definir os atributos dos objetos; ele só estabe lece seres linguísticos: é a língua que, graças a suas próprias categorias, permite reconhecê-los e especificá-los11. Quanto à noção do “ser”, ela foi construída a par tir de um verbo grego, igualmente presente nas outras línguas indo-europeias. Mas o que teria acontecido, questiona-se Emile Benveniste, se Aristóteles tivesse se expressado em uma língua semelhante ao jeje, fa lado no Togo e no qual o verbo “ser” se divide entre cinco verbos, “nyê”, “le”, “wo”, “fa” e “di”, que ge ralmente nada correlaciona no seio dessa língua? Isso 10 Des tours de Babel, op. cit., p. 210-211. Émile Benveniste, Catégories de pensée et catégories de lan gue, in: Problèmes de linguistique générale, t. 1. Paris: Gallimard, 1966, p. 70. DIVERSIDADE DAS LÍNGUAS, UNIVERSALIDADE DA TRADUÇÃO 21 não quer dizer que Aristóteles não teria conseguido conceber sua filosofia se o grego obedecesse a outras estruturas, mas que ela teria tomado caminhos dife rentes: a língua dá forma ao pensamento. Portanto, a língua não é um simples instrum en to, uma operação intransitiva entre o pensamento e sua expressão. Tomar consciência dessa densidadeda língua certamente não estava ao alcance da Grécia antiga, visto que ela possuía uma “visão de m undo” essencialmente monolíngue, como indicado pela eti mologia de “bárbaro”: aquele que pronuncia sílabas incompreensíveis (“bar-bar”) porque fala uma língua estrangeira. Não que os gregos não tivessem tido con tatos com outras línguas, mas simplesmente porque eles consideravam sua própria língua como superior a todas as demais. Outra razão, mais fundamental, é que há a tendência de cada um identificar sua língua com a realidade, algo que André M artinet nos leva a obser var12, o que explica que tenha sido necessário esperar o fim do século XIX para ver surgir uma disciplina que se atribui a língua como objeto de estudo autônomo e para chegar ao Curso de linguística geral de Ferdinand de Saussure, publicado em 1916, depois de sua morte13. E mais fácil tomar consciência desse etnocentrismo linguístico quando entramos em contato com línguas e culturas distanciadas das nossas, como o basco ou o André Martinet, Éléments de linguistique générale. Paris: Ar mand Colin, 1980, p. 2. Ferdinand de Saussure, Cours de linguistique générale, edi tado por Tullio de Mauro. Paris: Payot, 1982. Há edição brasileira: Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 2006. Doravante cita do abreviadamente como CLG. 22 TRADUÇÃO - HISTÓRIA, TEORIAS E MÉTODOS kavi (língua malaio-polinésia) no caso de Wilhelm von Humboldt, figura emblemática dessa posição. Ao retomar uma distinção aristotélica, W. von Humboldt insiste no fato de que a língua não é um “er- gon” (raiz indo-europeia “*werg”, que encontramos no inglês “w ork”: “uma obra realizada”), mas uma “energeia” (“uma atividade em vias de se fazer”)14. As concepções humboldtianas têm implicações epistemo lógicas e filosóficas consideráveis, que transbordam o quadro da presente obra, mas têm também repercus sões não menos essenciais para a tradução. A mais fundamental é, não há dúvida, a seguin te: não existe tradução “neutra” ou “transparente” através da qual o texto original apareceria idealmen te como em um espelho, identicamente. Por isso, aqui não há espaço para “decalque”, em razão do próprio trabalho (“energeia”) da língua, seja aquele que se opera 110 interior da língua “tradutória” ou aquele que se produz no próprio seio da língua original. Desse ponto de vista, escrita e tradução devem ser situadas exatamente no mesmo patamar. Em Crise des vers, Mallarmé diz: “Sendo as lín guas imperfeitas pelo fato de serem muitas, falta a su prema”. E adiante, ele acrescenta: A diversidade, na terra, dos idiomas impede toda pessoa de proferir as palavras que, de outro modo, se encontrariam, por uma cunhagem só, ela-mesma materialmente a verdade15. 14 Wilhelm von Humboldt, Sur le caractère national des langues et autres écrits sur le langage, editado por D. Thouard. Paris: Le Seuil, 2000, p. 171. 15 Stéphane Mallarmé, Œuvres complètes. Paris: Gallimard, 1945, p. 363-364. D IVERSIDADE DAS LÍNGUAS, UNIVERSALIDADE DA TRADUÇÃO 23 Portanto, não deveríamos censurar a tradução pelo fato de ela proceder a todo um conjunto de trans formações: isso está na própria natureza da linguagem. 3. A tradução, operação fundamental da linguagem Em um artigo fundamental, “Aspectos linguís ticos da tradução” — o título exato em inglês é “On Linguistic Aspects of Translation” —, Roman Jakob- son atribui à tradução um valor primordial que até então geralmente passava despercebido. Para chegar a isso, ele distingue três espécies de tradução: a “tra dução intralingual” ou “reformulação” (em inglês, “rewording”); a “tradução interlingual”, de uma para outra língua, ou “tradução propriamente dita”; a “tra dução intersemiótica”, que “consiste na interpretação dos signos linguísticos por meio de sistemas de signos não linguísticos”16. De fenômeno marginal, a tradução passou a ocupar um lugar central: “Tanto para o lin guista quanto para o usuário comum da linguagem, o sentido de uma palavra não é nada além de sua tradu ção por outro signo que possa substituí-lo”17. A terceira modalidade de tradução supõe um exa me à parte: ela será examinada no capítulo VI. Contu do, convém esclarecer desde já vários pontos. Roman Roman Jakobson, Aspects linguistiques de la traduction (1959), in: Essais de linguistique générale, trad. Nicolas Ruwet. Pa ris: Éditions de Minuit, 1963, p. 71-86. 17 Ibidem, p. 79. 24 TRADUÇÃO - HISTÓRIA, TEORIAS E MÉTODOS Jakobson parece limitar seus exemplos ao domínio artístico, onde a “transposição criadora” permitiria passar “da arte da linguagem à música, à dança, ao cinema ou à pintura”18. Essa não é uma extensão abusiva da noção de tradu ção? Começaremos dizendo que esse conceito tem valor operacional claro. Por meio dele, a obra Ponto e linha sobre plano, de Kandinsky, pode ser lida como um verdadeiro tratado de “tradução intersemiótica”: o termo “tradução” é utilizado várias vezes para estabelecer correspondên cias, esquemas de apoio, entre as diferentes artes19. Mais fundamentalmente, podemos nos interro gar sobre o fato de saber se todo sistema de signos não é, por sua própria natureza, intersemiótico. Ao postu lar que o sentido de um signo é sua tradução por outro signo, pouco importa que ele seja visual (língua escri ta ou “língua de sinais”), fonética (língua oral), tátil (alfabeto braile) etc., isto é, ele é resultante de vários sistemas de signos ao mesmo tempo. Essa terceira dimensão, sempre presente, aparece com uma intensidade toda particular no caso da tradu ção da poesia chinesa: Na China, as artes não são compartimentadas: um artista se aplica à tríplice prática poesia-caligrafia-pintura como a uma arte completa na qual todas as dimensões espirituais 18 Ibiâem. Ver Wassily Kandinsky, Point et ligne sur plan (1926), trad.: S. e J. Leppien. Paris: Gallimard, 1991, p. 52-53.166s. Há edição bra sileira: Ponto e linha sobre plano - Contribuição à análise dos elementos da. pintura. Trad.: E. Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2011], DIVERSIDADE DAS LÍNGUAS, UNIVERSALIDADE DA TRADUÇÃO 25 de seu ser são exploradas: canto linear e figuração espacial, gestos encantatórios e falas visualizadas20. Ao operar sobre signos, a tradução não decorre apenas da linguística, mas de um domínio mais vasto, o domínio do estudo de seus signos, a semiótica. Ao utilizar o termo “semiótica”, Roman Jakob- son inspira-se explicitamente nos escritos de Charles Sanders Peirce21, mas, ao falar de “signos”, de “signi ficantes” e de “significados”, ele se inscreve na linha gem de Ferdinand de Saussure. Nesse aspecto, a obra de J.-P. Vinay e J. Darbelnet, Slylislique comparée dufrançais et de Vanglais (“Esti lística comparada do francês e do inglês”, doravante ci tada como VD), publicada em 1958, marca época22: com efeito, trata-se do “primeiro método de tradução basea do em uma análise científica”23. Quase todos os manuais de tradução atualmente disponíveis lhe são devedores. Mas, mesmo tendo marcado época, ele também ficou da tado: tributário das concepções da época, os avanços da linguística operados a partir de então são tantos que boa parte das análises desses autores estavam condenadas à obsolescência. Mas sua contribuição, nem por isso, é menos considerável, como veremos adiante. François Cheng, L’écriture poétique chinoise. Paris: Le Seuil, 1996, p. 15. Ver Anne Hénault (org.), Questions de sémiotique. Paris: PUF, 2002. Jean-Paul Vinay e Jean Darbelnet, Stylistique comparée du français et de l ’anglais (1958). Paris: Didier, 1977. Inès Oseki-Dépré, Théories et pratiques de la traduction litté raire. Paris: Armand Colin, 1999, p. 56. 26 TRADUÇÃO - HISTÓRIA, TEORIAS E MÉTODOS Assim como R. Jakobson (os textos “On Linguis- tic Aspects of Translation” e VD foram publicados pra ticamente ao mesmo tempo), Vinay e Darbelnet se vin culam a Ferdinand de Saussure. As considerações sobre a tradução estão praticamente ausentes do CLG, novos conceitosprecisam ser elaborados, entre os quais um dos mais importantes é o das “unidades de tradução”. Exatamente como evidencia Saussure, a “delimi tação” das unidades é fundamental: contrariamente à opinião corrente, ela não deveria se reduzir a fazer das “palavras” as unidades básicas. Com efeito, uma con cepção dessas tem como consequência fazer da língua uma simples “nomenclatura”, isto é, “uma lista de ter mos correspondente a tantas outras coisas”24. Contudo, a noção de “palavra” tem de ser levada em consideração: Seria necessário pesquisar sobre que se funda a divisão em palavras — porque a palavra, a despeito da dificuldade que temos para defini-la, é uma unidade que se impõe ao espíri to, algo de central no mecanismo da língua25. Em tradução, não se traduzem as palavras isola damente umas das outras: a tradução “palavra a pala vra” é muito frequentemente impossível. Para Vinay e Darbelnet, a unidade essencial é, no plano dos signifi cados, a “unidade de pensamento”, 110 plano dos signi ficantes, a “unidade lexicológica”, à qual corresponde, em perfeita simetria, a “unidade de tradução”, com esses três termos sendo considerados como “equiva lentes”. Desse modo, eles chegam à seguinte definição: CLG, p. 97. CLG, p. 154. DIVERSIDADE DAS LÍNGUAS, UNIVERSALIDADE DA TRADUÇÃO 27 Poderíamos ainda dizer que a unidade de tradução é o me nor segmento do enunciado, com uma coesão de signos tal que eles não devem ser traduzidos separadamente26. Vamos dar um exemplo concreto, o da citação de George Steiner escolhida como epígrafe para este capí tulo: “Nim rud’s tower was built of words”. Ao dividi- l a em “unidades de tradução”, chegamos a “Nim rud’s tower / was built of / words”. Se a compararmos a sua tradução brasileira, encontramos a mesma divi são: “A torre de Nimrod / era feita de / palavras”27. Uma “decupagem” dessas tem um alcance prático evi dente: ela permite, uma vez que as unidades estejam delimitadas, proceder à análise das relações que vin culam o original e sua tradução (relações que serão examinadas no capítulo IV: a relação entre a unidade de tradução n° 2, “was built of” e sua tradução por “era fe ita de” destaca a tendência do inglês de recor rer a um termo específico (ou “hipônimo”) no mesmo lugar em que o português ou o francês manifestam a tendência inversa, ao traduzir por um termo genérico (ou “hiperônimo”): em vez de utilizar “construir” (“to build”), o tradutor preferiu “fazer”. Como cada língua tem sua própria visão de mundo, logo, sua própria “decupagem” da realidade, essas correspondências são sistematizáveis. O mesmo método pode, então, ser aplicado tanto no nível puramente linguístico quanto no estilístico. Fatos de língua, fatos de estilo e fatos de tradução, a partir disso, se reúnem. 2B VD, p. 37. Tradução citada porjacques Vicari, La tour de Bahel. Paris: PUF, 2000, p. 5. 28 TRADUÇÃO - HISTÓRIA, TEORIAS E MÉTODOS A despeito de suas vantagens de ordem prática, uma abordagem desse tipo suscita dois grandes in convenientes. O primeiro é aquele que consiste em conceder espaço demasiado aos aspectos linguísticos da tradução, de onde vem a crítica formulada por Ed- mond Cary: “A tradução literária não é uma operação linguística, é uma operação literária”28. O segundo inconveniente é deixar de ter na devi da conta a noção das “unidades linguísticas” no pró prio Ferdinand de Saussure. Os Escritos de linguística geral (ELG ), publicados originalmente na França em 2002, acentuam todo o tempo a importância que deve ser atribuída à dimensão diferencial da linguagem: Como não existe nenhuma unidade (de nenhuma ordem e de nenhuma natureza que possamos imaginar) que repouse sobre algo além das diferenças, na realidade a unidade é sempre imaginária, só a diferença existe29. Sem dúvida, a noção de “unidade diferencial” pa recerá abstrata e difícil de delimitar, mas voltamos a encontrá-la quando se trata de estabelecer “unidades de leitura” em um texto, que são chamadas por Roland Barthes de “lexias”: Essa decupagem, deve-se dizê-lo, será sempre mais arbitrá ria; [...] A lexia compreenderá ora poucas palavras, ora algu mas frases30. 28 Comment faut-il traduire? (1958), apud Georges Mounin, Les problèmes théoriques de la traduction. Paris: Gallimard, 1963. Ferdinand de Saussure, Écrits de linguistique générale, éd.: S. Bouquet, R. Engler. Paris: Gallimard, 2002, p. 83. Há edição brasileira: Escritos de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 2004. 30 Roland Barthes, S/Z. Paris: Le Seuil, 1970, p. 20. D IVERSIDADE DAS LÍNGUAS, UNIVERSALIDADE DA TRADUÇÃO 29 Se a tradução é justam ente uma “propriedade fundam ental” da linguagem31, ela pode, por razões práticas, ser considerada de maneira linear, fazendo intervir apenas unidades simples. Mas não se pode es quecer, contudo, que, tanto quanto a língua, a tradu ção também faz intervirem “unidades diferenciais”. Se não fosse assim, não se poderia compreender por que as maneiras de praticá-la e de apreendê-la puderam va riar tanto ao longo da história. 31 Ver Claude Hagège, La structure des langues (1982). Paris: PUF, 2001, p. 10.
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