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1 CENTRO UNIVERSITÁRIO METODISTA – IPA CURSO DE JORNALISMO Thayna Iglesias Rocha A VIOLÊNCIA DE GÊNERO NA MÍDIA ONLINE: Uma análise do caso Isabela Miranda nos portais G1 e R7 Porto Alegre 2019 2 THAYNA IGLESIAS ROCHA A VIOLÊNCIA DE GÊNERO NA MÍDIA ONLINE Uma análise do caso Isabela Miranda nos portais G1 e R7 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Jornalismo do Centro Universitário Metodista – IPA como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharela em Jornalismo. Orientadora: Profa. Dra. Valéria Deluca Soares de Carvalho Porto Alegre 2019 3 THAYNA IGLESIAS ROCHA A VIOLÊNCIA DE GÊNERO NA MÍDIA ONLINE Uma análise do caso Isabela Miranda nos portais G1 e R7 Este Trabalho de Conclusão de Curso foi julgado e aprovado para a obtenção do grau de Bacharel no Curso de JORNALISMO do Centro Universitário Metodista – IPA. Porto Alegre, Julho de 2019. Profa. Dr. Fabio Ramos Berti Coordenador do Curso Apresentada à banca examinadora integrada pelos professores(as): Prof. Profa. Dra. Valéria Deluca Soares de Carvalho Centro Universitário Metodista –IPA Profa. Dra. Sandra Bitencourt Prof. Me. Maria Lúcia Patta Melão Centro Universitário Metodista – IPA Centro Universitário Metodista – IPA 4 AGRADECIMENTOS Agradeço à minha mãe, meus avós e toda a minha família, que sempre me incentivou a estudar e me ensinou o valor do conhecimento, me dando todo o suporte para alcançá-lo. Agradeço ao meu namorado, que me acompanhou desde o início e esteve presente nos momentos mais importantes e difíceis dessa jornada, nunca me deixando desistir. E a todas as mulheres que encontrei ao longo desse caminho e que, de alguma forma, me ensinaram sobre feminismo, empatia e sororidade. Mulheres que compartilharam suas histórias, seus conhecimentos e suas opiniões, para que eu pudesse falar sobre os assuntos que me moveram até aqui. Obrigada! 5 As rosas da resistência nascem no asfalto. A gente recebe rosas, mas vamos estar com o punho cerrado falando de nossa existência contra os mandos e desmandos que afetam nossas vidas. Marielle Franco 6 RESUMO A pesquisa tem o objetivo de analisar de que forma a mídia online apresenta a cultura do estupro e a culpabilização da vítima, considerando a cobertura do caso envolvendo a violência sexual e o feminicídio de Isabela Miranda, em março de 2019. A pesquisa é descritiva e exploratória, utilizando o método da Análise de Conteúdo para explorar os significados nas narrativas das quatro notícias selecionadas, dos sites G1 e R7. Os resultados alcançados mostram que a cultura do estupro e a culpabilização da vítima se manifestam com base em séculos de construções sociais que afetam toda a população, incluindo jornalistas e instituições de comunicação. E que são percebidas nas notícias por meio de recursos textuais e narrativos como a omissão, o destaque ou a priorização de informações. Palavras-chave: Culpabilização. Cultura do Estupro. Webjornalismo. Teorias Construcionistas. Portais G1 e R7. 7 ABSTRACT The research aims to analyze how the online media presents the culture of rape and victim blaming, considering the coverage of the case involving the sexual violence and feminicide of Isabela Miranda, in March 2019. The research is descriptive and exploratory, using the Content Analysis method to explore the meanings in the narratives of the four news stories selected from the G1 and R7 sites. The results show that the rape culture and victim blaming are manifested on the basis of centuries of social constructions that affect the entire population, including journalists and media outlets. And are perceived in the news through textual and narrative resources such as omission, highlight or prioritization of information. Keywords: Victim Blaming. Rape Culture. Web Journalism. Constructionist Theorys. G1 e R7 Sites. 8 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 10 1.1 PROBLEMA DE PESQUISA ............................................................................ 14 1.2 OBJETIVOS DA PESQUISA ............................................................................ 14 1.2.1 Objetivo geral ........................................................................................... 14 1.2.2 Objetivos específicos .............................................................................. 15 1.3 JUSTIFICATIVA DA PESQUISA ...................................................................... 15 2 REFERENCIAL TEÓRICO ..................................................................................... 17 2.1 GÊNERO, VIOLÊNCIA E DOMINAÇÃO MASCULINA .................................... 17 2.2 HISTÓRIA DO MOVIMENTO FEMINISTA ....................................................... 25 2.3 POLÍTICAS DE PROTEÇÃO À MULHER E LEGISLAÇÃO BRASILEIRA ....... 32 2.4 CULPABILIZAÇÃO DA VÍTIMA E CULTURA DO ESTUPRO .......................... 36 2.5 NEWSMAKING E TEORIAS CONSTRUCIONISTAS ...................................... 40 3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS............................................................... 50 3.1 CARACTERIZAÇÃO DA PESQUISA ............................................................... 50 3.2 DELIMITAÇÃO DA PESQUISA ........................................................................ 51 3.3 TÉCNICAS E INSTRUMENTOS DE COLETA DE DADOS ............................. 53 3.4 TÉCNICAS DE ANÁLISE DOS DADOS .......................................................... 53 4 RESULTADOS E DISCUSSÃO DA PESQUISA ................................................... 55 4.1 APRESENTAÇÃO DAS NOTÍCIAS ................................................................. 55 4.1.1 Notícia 1 - Mulher passa mal, é abusada pelo cunhado e torturada pelo namorado (R7) .................................................................................................. 56 4.1.2 Notícia 2 - Mulher morre em SP após ter o corpo queimado pelo namorado (G1) .................................................................................................. 58 4.1.3 Notícia 3 - Jovem queimada pelo namorado se declarava constantemente nas redes sociais: 'minha sorte grande' (R7)..................... 64 9 4.1.4 Notícia 4 - Mãe passa mal no enterro da filha que morreu queimada pelo namorado em SP (G1) ...................................................................................... 70 4.2 ANÁLISE DO CONTEÚDO .............................................................................. 75 4.2.1 Categoria 1: Representação dos Gêneros na Sociedade ..................... 76 4.2.2 Categoria 2: A Legislação na Notícia ..................................................... 80 4.2.3 Categoria 3: A Notícia na Web ................................................................ 81 4.2.4 Categoria 4: A Narrativa .......................................................................... 83 4.3 INFERÊNCIAS DA PESQUISADORA ............................................................. 87 5 CONCLUSÃO E SUGESTÕES .............................................................................. 90 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 9210 1 INTRODUÇÃO O Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em 2018, mostra que o Brasil registrou mais de 60 mil estupros em 20171. No entanto, estima-se que esse número representa apenas 10% dos casos. A maior parte não chega a ser notificada nem à polícia, nem ao Sistema Único de Saúde, “tendo em vista o tabu engendrado pela ideologia patriarcal”2. No mesmo período foram registrados 606 casos diários de lesão corporal por violência doméstica. E, enquanto os assassinatos em geral tiveram uma redução de 13%, os homicídios femininos foram reduzidos em apenas 6,7%, de acordo com o Monitor da Violência, elaborado pelo site G1. Uma taxa de quatro mulheres mortas para cada grupo de 100 mil mulheres, 74% superior à média mundial.3 Esses dados alarmantes contrastam com o atual cenário do feminismo no Brasil, que vem crescendo principalmente por meio da internet. Em 2015, que foi considerado o ano da Primavera das Mulheres, milhares ocuparam as ruas em protestos que foram organizados por páginas e grupos do Facebook.4 Essa expansão teve como “estopim” a aprovação da PL 5069/2013 na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal, em outubro (Brito, 2017). O projeto limitava o atendimento às mulheres vítimas de violência sexual, de modo que o aborto só pudesse ser feito legalmente após o exame de corpo de delito e denúncia à autoridade policial. Também estabelecia detenção de até 3 anos para profissionais da saúde que induzissem, auxiliassem ou instigassem o aborto, quando não fosse o caso. No mesmo mês, surgiu a campanha #PrimeiroAssédio, que viralizou após Valentina Schulz, participante do programa MasterChef Júnior, na época com 12 anos, ser assediada por diversos homens na internet. A campanha reuniu relatos sobre os 1 Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/02/Anuario-2019-v6- infogr%C3%A1fico-atualizado.pdf Acesso em: 18.03.2019, às 10h00min. 2 Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/wp- content/uploads/2018/06/FBSP_Atlas_da_Violencia_2018_Relatorio.pdf Acesso em: 18.03.2019, às 10h15min. 3 Disponível em: https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2019/03/08/dados-de-violencia- contra-a-mulher-sao-a-evidencia-da-desigualdade-de-genero-no-brasil.ghtml Acesso em: 18.03.2019, às 10h30min. 4 Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2015/11/03/politica/1446573312_949111.html Acesso em: 18.03.2019, às 11h00min. http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/02/Anuario-2019-v6-infogr%C3%A1fico-atualizado.pdf http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/02/Anuario-2019-v6-infogr%C3%A1fico-atualizado.pdf http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2018/06/FBSP_Atlas_da_Violencia_2018_Relatorio.pdf http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2018/06/FBSP_Atlas_da_Violencia_2018_Relatorio.pdf https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2019/03/08/dados-de-violencia-contra-a-mulher-sao-a-evidencia-da-desigualdade-de-genero-no-brasil.ghtml https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2019/03/08/dados-de-violencia-contra-a-mulher-sao-a-evidencia-da-desigualdade-de-genero-no-brasil.ghtml https://brasil.elpais.com/brasil/2015/11/03/politica/1446573312_949111.html 11 primeiros assédios sofridos por milhares de mulheres, em média aos 9,7 anos de idade. A hashtag foi replicada mais de 82 mil vezes no Twitter.5 Já em novembro, a professora Manoela Milkos lançou a campanha #AgoraÉqueSãoElas, em que mulheres ocuparam o espaço de escritores e colunistas homens na mídia por uma semana.6 E, em seguida, na campanha #MeaCulpa, os homens demonstraram apoio ao movimento feminista, reconhecendo e refletindo sobre seus erros e atitudes machistas.7 Segundo dados recolhidos pela ONG Think Olga em parceria com a Agência Ideal, as buscas pelas palavras “feminismo” e “empoderamento feminino” cresceram 86,7% e 354,5% respectivamente, de janeiro de 2014 a outubro de 2015.8 Esses números continuaram crescendo nos anos seguintes, assim como o movimento feminista, que em 2018 chegou a reunir mais de 100 mil pessoas em protestos contra o então candidato à presidência, Jair Bolsonaro. O movimento denominado #EleNão foi classificado pela cientista política Céli Pinto como a maior manifestação de mulheres na história do Brasil.9 Além da crescente popularização do feminismo, a legislação brasileira também tem se aprimorado na proteção das vítimas de violência doméstica. A Lei Maria da Penha, aprovada em 2006, é considerada a terceira melhor lei do mundo no combate à violência doméstica, perdendo apenas para Espanha e Chile10. E em 2015 foi sancionada a lei que tipifica o feminicídio, reconhecendo-o enquanto crime de ódio e tornando-o um agravante ao homicídio. Apesar de tudo isso, a violência de gênero continua sendo um problema muito grave no Brasil, conforme exposto no primeiro parágrafo. É importante destacar que 5 Disponível em: https://thinkolga.com/2018/01/31/primeiro-assedio/ Acesso em: 18.03.2019, às 11h30min. 6 Disponível em: https://catracalivre.com.br/cidadania/campanha-agoraequesaoelas-da-espaco-as- mulheres-na-midia-saiba-como-participar/ Acesso em: 18.03.2019, às 12h15min. 7 Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/tocados-pelo-primeiroassedio-homens-fazem-meaculpa- 17975262 Acesso em: 18.03.2019, às 12h130min. 8 Disponível em: https://thinkolga.com/2015/12/18/uma-primavera-sem-fim/ Acesso em: 18.03.2019, às 12h45min. 9 Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45700013 Acesso em: 19.03.2019, às 10h15min. 10 Disponível em: https://jus.com.br/artigos/36178/lei-maria-da-penha-a-terceira-melhor-lei-do-mundo Acesso em: 19.03.2019, às 10h25min. https://thinkolga.com/2018/01/31/primeiro-assedio/ https://catracalivre.com.br/cidadania/campanha-agoraequesaoelas-da-espaco-as-mulheres-na-midia-saiba-como-participar/ https://catracalivre.com.br/cidadania/campanha-agoraequesaoelas-da-espaco-as-mulheres-na-midia-saiba-como-participar/ https://oglobo.globo.com/sociedade/tocados-pelo-primeiroassedio-homens-fazem-meaculpa-17975262 https://oglobo.globo.com/sociedade/tocados-pelo-primeiroassedio-homens-fazem-meaculpa-17975262 https://thinkolga.com/2015/12/18/uma-primavera-sem-fim/ https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45700013 https://jus.com.br/artigos/36178/lei-maria-da-penha-a-terceira-melhor-lei-do-mundo 12 a maioria das agressões (42%) acontece dentro da casa da própria vítima11, o que ajuda a invisibilizar a violência. Entre os agressores, 76,4% são conhecidos das mulheres, 23,8% são namorados, maridos ou companheiros, 21% são vizinhos e 15% são ex-namorados, ex-maridos ou ex-companheiros.12 Esses fatos são comumente utilizados para justificar a falta de intervenção na violência ou a desconfiança de que a vítima, na verdade, permitiu ou facilitou que ela acontecesse. Isso porque há um pensamento enraizado desde os tempos coloniais na sociedade brasileira, de que a mulher, ao se envolver romanticamente com um homem, se torna propriedade dele. Até 1940, era comum que advogados utilizassem o argumento da “legítima defesa da honra” para absolver homens que assassinavam suas esposas por traição ou ciúmes. Eles se baseavam no artigo 27 do Código Penal brasileiro, que excluía a ilegalidade dos atos cometidos por pessoas que “se acharem em estado de completa privação de sentidos e de inteligencia no acto de commetter o crime”. Embora esse artigo não conste no Código Penal atual, o argumento ainda é presente nos tribunais e, em alguns casos, chega a ser aceito pelos juízes.13 Culturalmente, a violência física e sexual continua sendo vista como uma forma de castigo à mulher que não se comporta de acordo com os padrões conservadoristas. Uma pesquisa do Datafolha, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Públicaem 2016, mostrou que 37% da população concordam com a frase “mulheres que se dão ao respeito não são estupradas”. E 30% acredita que “a mulher que usa roupas provocativas não pode reclamar se for estuprada”.14 Esse senso comum acaba se refletindo também na forma como a violência de gênero é noticiada pela mídia. Porém, com a facilidade de acesso e disseminação de conteúdo que a internet fornece, é comum que matérias com discurso de 11 Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/02/relatorio-pesquisa-2019-v6.pdf Acesso em: 19.03.2019, às 10h45min. 12 Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/02/relatorio-pesquisa-2019-v6.pdf Accesso em: 19.03.2019, às 11h00min. 13 Disponível em: https://www.univates.br/bdu/bitstream/10737/673/1/2014SimoneFernandaFollmer.pdf Accesso em: 19.03.2019, às 11h20min. 14 Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/wp- content/uploads/2017/01/FBSP_Policia_precisa_falar_estupro_2016.pdf Accesso em: 20.03.2019, às 11h35min. http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/02/relatorio-pesquisa-2019-v6.pdf http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/02/relatorio-pesquisa-2019-v6.pdf https://www.univates.br/bdu/bitstream/10737/673/1/2014SimoneFernandaFollmer.pdf http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2017/01/FBSP_Policia_precisa_falar_estupro_2016.pdf http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2017/01/FBSP_Policia_precisa_falar_estupro_2016.pdf 13 culpabilização da vítima cheguem rapidamente ao conhecimento de mulheres e grupos feministas e viralizem pelas críticas que recebem. Foi o caso do estupro e feminicídio de Isabela Miranda, abusada pelo cunhado e, logo após, assassinada pelo namorado. O R7, portal de notícias online do Grupo Record, foi um dos primeiros veículos a noticiar o caso. A publicação levou o título “jovem tem 80% do corpo queimado ao ser flagrada na cama com cunhado”, o que causou revolta nas redes sociais pela culpabilização da vítima e pela omissão da suspeita de estupro15. Após a polêmica, a notícia foi editada com novo título, mas mantendo o mesmo texto e o vídeo do telejornal Cidade Alerta, que entrevistou os familiares da vítima. O R716 é o segundo portal de notícias mais acessado no Brasil, segundo o ranking do Comscore17, abaixo do site da Rede Globo, cujas notícias são redirecionadas para o portal G118. Assim como o R7, o G1 foi um dos poucos veículos de grande porte que noticiou o caso em maior profundidade. A Folha de São Paulo19 e o Estadão20, por exemplo, só realizaram, cada um, uma publicação sobre o assunto. A partir do exposto, esta pesquisa busca analisar o discurso dos portais de notícia online R7 e G1 na veiculação do caso de estupro e feminicídio de Isabela Miranda. Com isso, espera-se compreender de que forma a mídia online apresenta a cultura do estupro e a culpabilização da vítima, tendo como hipótese que as notícias reafirmam e legitimam esses comportamentos. 15 Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/universitaria-de-19-anos-e-queimada-viva-por-namorado/ Accesso em: 20.03.2019, às 12h00min. 16 Disponível em: https://www.r7.com/ Acesso em: 21.03.2019, às 10h15min 17 Disponível em: https://www.comscore.com/por/Insights/Rankings-do-Mercado Acesso em: 21.03.2019, às 10h00min 18 Disponível em: https://g1.globo.com/ Acesso em: 21.03.2019, às 10h20min 19 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/03/homem-mata-namorada-queimada- na-grande-sp-familia-diz-que-ele-confundiu-estupro-com-traicao.shtml Acesso em: 10.03.2019 às 18h15min 20 Disponível em: https://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,jovem-que-foi-queimada-pelo- namorado-sera-enterrada-nesta-sexta-feira,70002747559 Acesso em: 10.03.2019 às 18h00min https://exame.abril.com.br/brasil/universitaria-de-19-anos-e-queimada-viva-por-namorado/ https://www.r7.com/ https://www.comscore.com/por/Insights/Rankings-do-Mercado https://g1.globo.com/ https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/03/homem-mata-namorada-queimada-na-grande-sp-familia-diz-que-ele-confundiu-estupro-com-traicao.shtml https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/03/homem-mata-namorada-queimada-na-grande-sp-familia-diz-que-ele-confundiu-estupro-com-traicao.shtml https://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,jovem-que-foi-queimada-pelo-namorado-sera-enterrada-nesta-sexta-feira,70002747559 https://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,jovem-que-foi-queimada-pelo-namorado-sera-enterrada-nesta-sexta-feira,70002747559 14 1.1 PROBLEMA DE PESQUISA Considerando as questões levantadas anteriormente, tem-se como problema de pesquisa a seguinte pergunta: Como a mídia online apresenta a cultura do estupro e a culpabilização da vítima, considerando a cobertura do caso envolvendo a violência e o feminicídio no caso de Isabela Miranda? A hipótese é de que as notícias sobre violência de gênero publicadas na mídia online reafirmam a cultura do estupro e legitimam a culpabilização da vítima pela sociedade. Entende-se que isso é feito através das escolhas feitas durante a redação da notícia: a ordem das informações na pirâmide invertida, o que é ressaltado ou omitido; e palavras e expressões utilizadas, que podem conduzir, mesmo que implicitamente, ao entendimento de que a vítima tem alguma culpa no crime, que suas atitudes ou personalidade poderiam de alguma forma justificar a violência. Acredita-se também que essas escolhas são resultado de uma construção cultural machista e misógina que atinge os jornalistas por meio de suas vivências, interações sociais ou mesmo pela pressão editorial dentro dos veículos. Dessa forma, o jornalismo é diretamente afetado pela noção de supremacia masculina presente na sociedade, ao mesmo tempo em que ajuda a perpetuá-la, por meio da naturalização e validação desse pensamento. 1.2 OBJETIVOS DA PESQUISA Segue-se com os objetivos da pesquisa: 1.2.1 Objetivo geral O objetivo geral desta monografia é: analisar como a mídia online apresenta a cultura do estupro e a culpabilização da vítima, considerando a cobertura do caso envolvendo a violência e o feminicídio de Isabela Miranda. 15 1.2.2 Objetivos específicos São os objetivos específicos: ● Contextualizar o caso envolvendo a violência e o feminicídio de Isabela Miranda, a partir do conteúdo veiculado nos portais G1 e R7, descrevendo as notícias selecionadas; ● Analisar a produção de sentido nas notícias, levando em consideração a Teoria do Newsmaking e as Teorias Construcionistas; ● Relacionar os discursos presentes nas notícias selecionadas com os conceitos de cultura do estupro e culpabilização da vítima. 1.3 JUSTIFICATIVA DA PESQUISA A pesquisa se justifica pelos altos índices de violência contra a mulher em todo o Brasil. Apesar das leis de proteção, do crescimento dos grupos e iniciativas feministas e das tentativas de conscientização, o país continua sendo o quinto mais perigoso do mundo para mulheres. Por isso é importante, tanto para a área da Comunicação quanto para toda a sociedade, compreender qual o papel da mídia na naturalização da violência, para que seja possível buscar soluções. O jornalismo tem a responsabilidade de transmitir as notícias de forma objetiva e correta, levando em consideração o interesse público. Esse preceito é quebrado quando informações são omitidas ou destacadas desnecessariamente, de acordo com os interesses ou ideologias do jornalista. E é isso que acontece frequentemente em notícias que retratam a violência contra a mulher: matérias que ressaltam roupas vítima ou atitudes de vítima que, no entendimento de boa parte da população, “justificariam” o crime. Isso vai de encontro a outras diretrizes do Código de Ética dos JornalistasBrasileiros: defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos; defender os direitos dos cidadãos, contribuindo para a promoção das garantias individuais e coletivas, em especial das minorias sociais; combater a prática de perseguição ou discriminação por motivos de gênero ou de qualquer outra 16 natureza; respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do cidadão. Enquanto mulheres são violentadas, agredidas e mortas todos os dias, o jornalismo, que deveria proteger direitos e denunciar os abusos, acaba reproduzindo e perpetuando os mesmos preconceitos já presentes na sociedade brasileira. A mulher, após sofrer nas mãos do agressor e, muitas vezes, nas de autoridades mal preparadas, é novamente vitimada pela mídia, mesmo quando não está mais presente para se defender. É preciso compreender como e por que os valores jornalísticos estão sendo ignorados e deturpados em prol de uma dominação patriarcal, pois só tendo dimensão do problema, é possível lidar com ele desde suas bases. O caso de Isabela Miranda foi uma representação cruel de como isso acontece. Violentada e assassinada, ela nunca teve a chance de contar a sua história. Coube ao jornalista escolher a narrativa que seria usada - a de uma mulher infiel, que foi morta por despertar o ciúme do namorado. E mesmo quando as mulheres que sobrevivem, suas vozes são caladas por notícias falsas, acusações ou julgamentos de caráter sem qualquer relação com o crime. Foi assim com Daniela Perez, com Angela Diniz, com Eloá Pimentel e tantos outros casos, famosos ou não. Nesta linha, tanto para a pesquisadora, como para a maioria das mulheres, o medo da violência física e sexual é constante durante toda a vida e o medo da revitimização por parte da sociedade o acompanha. Por isso, acredita-se na importância desse estudo para que se construa um jornalismo verdadeiramente comprometido com seu propósito social, que ajude a educar a população e não reproduza velhos preconceitos, legitimando a violência de gênero em suas diversas camadas. Assim, espera-se desenvolver uma sociedade melhor para as próximas gerações, em que menos mulheres sofram agressões e aquelas que vierem a sofrer tenham, ao menos, uma representação justa e livre de julgamentos. 17 2 REFERENCIAL TEÓRICO Neste capítulo são apresentadas as referências bibliográficas que sustentam teoricamente esta pesquisa. O referencial teórico tem a função de dar embasamento à análise que será feita posteriormente, contextualizando e introduzindo os conceitos que serão utilizados, a partir de autores que já estudaram e publicaram materiais consistentes sobre esses assuntos (PRODANOV; FREITAS, 2013). Primeiramente, é apresentado o conceito de gênero, sua relação com a violência e a dominação masculina estrutural, de acordo com Scott (1995), Beauvoir (1980), Engels (1984), Araújo (2006), Lins (2012), Hirigoyen (2006), Leite e Noronha (2015), Sousa (2017) e Campos (2016). É feita, então, uma contextualização histórica do movimento feminista, desde a Revolução Francesa até os dias atuais, a partir de Gurgel (2010), Pinto (2010), Woitowicz (2014), Pedro (2006), Duarte (2003), Campoi (2011), Damasco (2009), Davis (2016), Soihet (2000) e Perez e Ricoldi (2018). Em seguida, são apresentadas as políticas de proteção à mulher e a caracterização dos crimes de violência sexual e de gênero de acordo com a legislação brasileira e autoras como Souza (2016), Santos (2010), Pasinato (2015) e Rost e Vieira (2015). Após, são conceitualizados os termos ‘culpabilização da vítima’ e ‘cultura do estupro’, com base nos estudos de Jong, Sadala e Tanaka (2008), Narvaz e Koller (2006), Züwick (2012), Lermen (2018), Mentz e Schmidt (2017), Sousa (2017) e Coulouris (2004). Também é abordado o Newsmaking e as Teorias Construcionistas pela visão de Wolf (1995), Traquina (2005), Fernandes (2011) e Vieira e Napolitano (2015). E, por fim, os conceitos, estruturas e rotinas produtivas do Webjornalismo, segundo Reges (2010), Neto (2008), Canavilhas (2006 e 2014), Gonzaga (2010), Neto (2016), Bradshaw (2014), Vieira (2018), Lima (2015) e Salaverría (2014). 2.1 GÊNERO, VIOLÊNCIA E DOMINAÇÃO MASCULINA O termo ‘gênero’, de acordo com Araújo (2006), “na sua acepção gramatical, designa indivíduos de sexos diferentes (masculino/feminino) ou coisas sexuadas”. No 18 entanto, Scott (1995) explica que, no século XX, o movimento feminista passou a empregá-lo de um modo diferente, para se referir à relação entre os sexos na organização social. Segundo ela, o gênero passou a remeter às construções sociais, uma vez que “indicava uma rejeição ao determinismo biológico implícito no uso de termos como “sexo” ou “diferença sexual” (SCOTT, 1995, p.3). A autora define, então, que “o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder” (SCOTT, 1995, p. 21). Lins (2012, p. 24), em concordância com essa teoria, salienta que “a diferença entre os sexos é anatômica e fisiológica, o resto é produto de cada cultura ou grupo social”. Ela explica que o sistema patriarcal, ao se estabelecer, separou homens e mulheres determinando com clareza os padrões, estereótipos de gênero, que cada um deveria seguir. “E, ao fazer isso, dividiu cada indivíduo contra si próprio, porque para corresponder ao ideal masculino ou feminino da nossa cultura, cada um tem que rejeitar uma parte de si, de alguma forma, se mutilando” (LINS, 2012, p. 20). Beauvoir (1980) destaca que, por toda a história, essa construção social do gênero foi determinada pelo homem e, por isso, o coloca em posição de poder perante a mulher. Para ela, “a humanidade é masculina e o homem define a mulher não em si mas relativamente a êle; ela não é considerada um ser autônomo” (BEAUVOIR, 1980, p. 10). Com isso, afirma também que “o presente envolve o passado e no passado toda a história foi feita pelos homens. No momento em que as mulheres começam a tomar parte na elaboração do mundo, esse mundo é ainda um mundo que pertence aos homens” (BEAUVOIR, 1980, p.15). A autora também expõe que a dominação ocorre a partir do momento em que os homens se entendem como uma unidade e a mulher é vista por eles como “o Outro”. Ela explica que “nenhuma coletividade se define nunca como Uma sem colocar imediatamente a Outra diante de si” e que “o sujeito só se põe em se opondo: ele pretende afirmar-se como essencial e fazer do outro o inessencial, o objeto” (BEAUVOIR, 1980, p. 19). Como exemplos, cita que os judeus são “o Outro” para o antissemita, os negros são “o Outro” para os brancos, e assim por diante. Dessa forma, os homens veem a si mesmos e uns aos outros como os “Sujeitos” absolutos, e colocam a mulher, “o Outro”, no papel de objeto. 19 Para Engels (1884), a opressão de gênero, embora sempre tenha existido de forma mais implícita, se materializou a partir das noções de propriedade privada, monogamia e capitalismo. Segundo ele, “o primeiro antagonismo de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher, na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a opressão do sexo feminino pelo masculino” (ENGELS, 1884, p.18). O autor explica que, em determinado tempo, a sociedade era organizada pelo sistema matriarcal, em que a herança era passada da mulher para seu clã. Na época, as comunidades produziam apenas os alimentos e as ferramentas necessários para a subsistência geral. Os homens, por serem fisicamente mais fortes, eram responsáveis pela caça e pesca, enquanto as mulheres permaneciam no lar, realizando tarefas como jardinagem, tecelagem e fabricação de vasilhames. Mas essas atividades eram consideradas importantes na vida econômica e produtiva,e por isso, não havia desigualdade entre os sexos. Além disso, as famílias eram poligâmicas e, como a única forma possível de determinar a descendência era por uma linha feminina, as mulheres tinham a posição social mais elevada. Lins (2012) explica também que os seres humanos não tinham conhecimento sobre o papel do homem na reprodução. A historiadora Riane Eisler diz que nossos ancestrais do Paleolítico e do começo do Neolítico imaginavam o corpo da mulher como um receptáculo mágico. Devem ter observado como sangrava de acordo com a Lua e como miraculosamente produzia gente. (LINS, 2012, p. 17) No entanto, Beauvoir (1980) acredita que o sistema reprodutivo foi uma das desvantagens [grifo nosso] que o homem apontou para inferiorizar a mulher. A gravidez, o parto e a menstruação diminuíam sua capacidade de trabalho e as condicionava à proteção e alimentação provida por eles. Como não existiam métodos contraceptivos, “nasciam crianças demais em relação aos recursos da coletividade; a fecundidade absurda da mulher impedia-a de participar ativamente na ampliação desses recursos, ao passo que criava indefinidamente novas necessidades” (BEAUVOIR, 1980, p. 80). Para Engels (1984), a suposta igualdade entre os sexos começou a mudar quando foram inventadas ferramentas de cobre que facilitaram a agricultura e os animais passaram a ser domesticados. Assim, o ser humano conseguiu produzir mais 20 do que consumia, sendo possível realizar trocas e acumular riquezas. Engels (1984, p. 181) explica a relação desse fato com a dominação masculina: O providenciar a alimentação fora sempre assunto do homem; e os instrumentos necessários para isso eram produzidos por ele e de sua propriedade ficavam sendo. Os rebanhos constituíam nova fonte de alimentos e utilidades; sua domesticação e sua ulterior criação competiam ao homem. Por isso o gado lhe pertencia, assim como as mercadorias e os escravos que obtinha em troca dele. Todo o excedente deixado agora pela produção pertencia ao homem; a mulher tinha participação no consumo, porém não na propriedade. Nessa época, também, o homem descobriu o vínculo entre o sexo e a reprodução, ao observar o que acontecia entre os animais. E como agora eram detentores da riqueza, a noção de propriedade privada se estendeu também aos filhos e, consequentemente, à mulher. Assim se instaurou o sistema patriarcal e a monogamia, que exigia fidelidade da mulher para garantir que os filhos fossem legítimos e que o patrimônio continuasse em sua linha sanguínea. (ENGELS, 1984) Essa nova organização levou ao entendimento de que a mulher, mantida pelo homem e responsável pela criação de seus filhos, seria uma de suas propriedades. Conforme Lins (2012, p. 20), “a mulher adquiriu o status de mercadoria: podia ser comprada, vendida ou trocada. Passou a ser considerada inferior ao homem e, por conseguinte, subordinada à sua dominação”. Beauvoir (1980), embora concorde com a linha traçada por Engels, indica que a explicação foi superficial, reduzindo a opressão a um conflito de classes e estabelecendo a invenção das ferramentas de bronze como sua origem. Para a autora, “se não houvesse nela [a consciência humana] a categoria original do Outro, e uma pretensão original ao domínio sobre o Outro, a descoberta da ferramenta de bronze não poderia ter acarretado a opressão da mulher” (BEAUVOIR, 1980, p.73). Compreende-se então, que a opressão da mulher não se originou apenas de sua desvantagem biológica e, consequentemente, sua condição econômica. Mas, sim, da tendência humana a se fazer superior perante aqueles que não vê como iguais, e a forma como a mulher é entendida pelos homens: “uma parceira sexual, uma reprodutora, um objeto erótico, um Outro através do qual ele se busca a si próprio” (BEAUVOIR, 1980, p. 75). Para Beauvoir (1980), a comparação que Engels faz entre a opressão de gênero e a de classes não é sustentável. Isso porque a cumplicidade que o homem 21 encontra na mulher não existe nas relações entre patrão e empregado ou entre escravo e senhor, por exemplo. Nesses casos, o explorado tem consciência e revolta pela sua condição, tendo como objetivo e desaparecimento como classe. Já no caso da mulher, “nenhum desejo de revolução a habita, nem ela poderia suprimir-se enquanto sexo: ela pede somente que certas consequências da especificação sexual sejam abolidas” (BEUAVOIR, 1980, p. 75). As mulheres, de acordo com Beauvoir (1980), não se enxergam como uma classe, nem vêem os homens como “o Outro”, por isso não se apresentam como “Sujeito”. Ela atribui isso à falta de algo que as conecte - um passado, uma história em comum, uma religião própria ou uma solidariedade de trabalho e interesses, que as torne uma comunidade. “Vivem dispersas entre os homens, ligadas pelo habitat, pelo trabalho, pelos interesses econômicos, pela condição social a certos homens — pai ou marido — mais estreitamente do que a outras mulheres” (BEAUVOIR, 1980, p. 21). Além disso, jamais seria possível existir uma sociedade em que a relação entre homens e mulheres fosse inexistente, o que torna o laço da mulher com seu opressor incomparável. O casal é uma unidade fundamental cujas metades se acham presas indissoluvelmente uma à outra: nenhum corte por sexos é possível na sociedade. Isso é o que caracteriza fundamentalmente a mulher: ela é o Outro dentro de uma totalidade cujos dois termos são necessários um ao outro. (BEAUVOIR, 1980, p. 21) A dominação da mulher pelo homem sofreu transformações ao longo dos séculos e dependendo da localização, mas sempre tendo como base as relações amorosas e familiares, como mostram Beauvoir (1980) e Lins (2012). Beauvoir (1980) destaca também o papel da religião. Ela explica que, quando o ser humano adquiriu a capacidade de registrar por escrito suas mitologias e leis, o patriarcado já estava completamente instaurado. Portanto, eram os homens que criavam esses códigos. E, para manter sua soberania, eles impuseram à mulher uma situação de subordinação ainda pior do que já se encontravam. Como a autora mostra, isso aconteceu na maior parte das religiões: [...] de sagrada, ela se torna impura. Eva entregue a Adão para ser sua companheira perde o gênero humano; quando querem vingar-se dos homens, os deuses pagãos inventam a mulher e é a primeira dessas criaturas, Pandora, que desencadeia todos os males de que sofre a humanidade. [...] A mulher é, assim, votada ao Mal. [...]. As leis de Manu definem-na como um ser vil que convém manter escravizado. O Levítico assimila-a aos animais de carga que o patriarca possui. As leis de Sólon não lhe conferem nenhum direito. O código romano coloca-a sob tutela e proclama-lhe a “imbecilidade”. 22 O direito canônico considera-a a “porta do Diabo”. O Corão trata-a com o mais absoluto desprezo. (BEAUVOIR, 1980, p. 94) Também ressalta que, por reconhecerem a importância da mulher para a saciar seus desejos e a perpetuação da espécie, os homens buscam integrá-las na sociedade, sob a condição de que se submetam à ordem estabelecida por eles. O cristianismo, por exemplo, “apesar de seu ódio à carne, respeita a virgem consagrada e a esposa casta e dócil” (BEAUVOIR, 1980, p. 94). E, sendo o cristianismo até os tempos de hoje considerado a maior religião do mundo (PEW RESEARCH CENTER, 2015), esse pensamento serviu como fundamento para a dominação masculina durante séculos (LINS, 2012) e ainda encontra respaldo na sociedade atual, mesmo que de forma mais implícita. Por meio da propriedade privada, da monogamia, da construção social e da moral religiosa, então, o homem conseguiu submeter a mulher à posição de objeto. E sendo a mulher uma “posse” do homem, ele poderia fazer com ela o que bem entendesse. Inclusive punir sua desobediência e usar dos artifícios que achasse necessários para manter sua soberania. Segundo Lins (2012, p. 21),“a sujeição física e mental da mulher foi o único meio de restringir sua sexualidade e mantê-la limitada a tarefas específicas”. Assim, compreende-se que a violência física, psicológica e sexual aparece como formas de manter o controle e a submissão do gênero feminino. A agressividade também se mostra como uma forma de reafirmar o ideal de masculinidade, que de acordo com Lins (2012) é pautado, entre outras características, nas noções de força, poder, repressão afetiva e uma sexualidade ativa e incontrolável. Leite e Noronha (2015) ressaltam que desde as civilizações antigas existiam leis que permitiam a violência e até o homicídio da mulher pelo homem, em casos de infidelidade, por exemplo. Até o século XX, mesmo que de modo mais implícito, ainda existiam leis que protegiam os crimes dos homens contra suas esposas. No Brasil, por exemplo, a ‘legítima defesa da honra’ era usada como argumento e frequentemente era aceita como justificativa para absolver feminicídios, quando o assassino havia sido traído ou desconfiava da fidelidade da mulher (RAMOS, 2012). Lins (2012) observa que apenas nos anos 1960 houve uma mudança radical na relação entre homens e mulheres, motivada pela invenção da pílula anticoncepcional. Segundo ela, as mulheres, que antes tinham quantos filhos os 23 homens desejassem e passavam a maior parte da vida grávidas, agora se opunham a essa realidade e reivindicavam a liberdade sobre o próprio corpo. “A mulher, a partir de então, passa a ter a possibilidade de não só dividir o poder econômico com o homem, como ter filhos se quiser ou quando quiser” (LINS, 2012, p. 216). Para a autora, isso marca o declínio do patriarcado, atenuando as diferenças entre homens e mulheres. A partir daí, ela afirma que se iniciou uma mudança de mentalidade tanto nos homens quanto nas mulheres, motivada pelos movimentos de contracultura - Movimento Hippie, Movimento Feminista, Movimento Gay e Revolução Sexual. “Eles alteraram as correlações de força na sociedade, desfizeram preconceitos, ridicularizaram falsos poderes e criaram novos paradigmas culturais que vieram para ficar, como o modo de vestir, de fazer arte e de se relacionar” (LINS, 2012, p. 220), o que conferiu mais liberdade à mulher. Hirigoyen (2006) reconhece que, com o crescimento do movimento feminista e a mudança nos costumes sociais, o esperado seria a diminuição da violência e a sensibilização da sociedade perante os problemas da dominação masculina. Mas, segundo ela, não é o que acontece. “A violência não desapareceu, tornou-se apenas mais sutil. Em toda parte, é condenada, mas essa condenação moral em termos de princípios atinge apenas sua parte visível” (HIRIGOYEN, 2006, p. 09). Ou seja, o homem, mesmo sem controle legal sobre a natalidade e a vida profissional e pessoal da mulher, continua a utilizar a violência como mecanismo de opressão. E encontra respaldo social para isso, uma vez que não há reprovação pública ao que acontece no ambiente privado. A autora destaca que a violência psicológica perpassa todas as outras formas de agressão. Homem algum vai começar a espancar sua mulher da noite para o dia, sem razão aparente, em uma crise de loucura momentânea. A maior parte dos cônjuges violentos prepara o terreno, aterrorizando a companheira. Não há violência física sem que antes não tenha havido violência psicológica. (HIRIGOYEN, 2006, p. 27) E explica que esse tipo de violência “não se trata de um desvio ocasional, mas de uma maneira de ser dentro da relação: negar o outro e considerá-lo como objeto”, com o objetivo de “obter a submissão do outro, a controlá-lo e a manter o poder” (HIRIGOYEN, 2006, p. 28). 24 Percebe-se então que a agressão muitas vezes é sutil e subjetiva, podendo vir em forma de humilhação, isolamento da vida social, assédio, desqualificação intelectual, atos de intimidação, indiferença às demandas afetivas ou, até mesmo, um olhar de desprezo ou um tom ameaçador. Hirigoyen (2006) relata que para muitas vítimas, esse tipo de abuso psicológico é ainda pior e mais difícil de suportar. A pressão econômica e financeira pode ser entendida como uma forma particular de violência psicológica. Geralmente, consiste em garantir a manutenção do poder econômico, tirando a autonomia financeira da mulher - pressionando-a para que deixe o emprego ou limitando o acesso às próprias contas. Assim, mesmo quando o homem é agressivo, a mulher sente mais dificuldade em se separar. Principalmente quando existem filhos, elas “temem não conseguir juntar as duas pontas, arranjar um trabalho e um local de moradia” (HIRIGOYEN, 2006, p. 54). As agressões físicas, de acordo com Hirigoyen (2006) geralmente surge quando a mulher resiste à violência psicológica e o homem não é capaz de controlá- la dessa forma. Na maior parte das vezes elas não são diárias, e sim relacionadas a eventos específicos como uma discussão, um dia estressante, uma resistência da mulher a obedecer. Isso dificulta a identificação da violência e a aceitação da identidade de vítima, já que por serem perpassados por momentos de felicidade e calmaria, os episódios de violência parecem casos isolados, justificáveis. Principalmente porque a violência se apresenta em ciclos, conforme proposto por Walker (1979 apud FALCKE; OLIVEIRA; ROSA; BENTANCUR, 2009, p. 86): (i) Construção da Tensão: início de pequenos incidentes, ainda considerados como se estivessem sob controle e aceitos racionalmente; (ii) Tensão Máxima: perda do controle sobre a situação e agressões levadas ao extremo; (iii) Lua-de-mel: fase de reestruturação do relacionamento, na qual ficam evidentes o arrependimento, o desejo de mudança, a promessa de que nunca mais se repetirá o ato violento e o restabelecimento da relação conjugal. Dessa forma, a vítima, que já está psicologicamente frágil é levada a acreditar que a agressão é apenas um erro e que não acontecerá novamente. Porém, como essa violência é cíclica, a lua-de-mel eventualmente acaba, retornando ao ponto de construção da tensão e assim por diante, até que a mulher seja capaz de se libertar. Segundo Hirigoyen (2006, p.48), a violência sexual “na maior parte das vezes, trata-se simplesmente de obrigar uma pessoa a uma relação sexual não desejada”. No entanto, ela afirma que esse tipo de agressão é bastante ampla e abrange várias situações além do estupro, assédio e exploração sexual. Impor à mulher uma gravidez 25 não desejada, por exemplo, é um tipo de violência sexual e mais uma forma de dominação e controle. Sousa (2017, p. 11) acrescenta que a violência sexual pode acontecer nos mais variados lugares e momentos, “desde o temido beco escuro onde todas as mães instruem suas filhas a não transitarem, até mesmo o grande número de incidência dentro da ‘pretensa casa segura’ da vítima”. Ela destaca também que nem sempre ela se caracteriza pela penetração vaginal, seja por limitações físicas do estuprador, para dificultar a descoberta de evidências ou apenas por ser a preferência dele. Hirigoyen (2006, p. 50) observa que a violência sexual pode se manifestar pela dominação ou pela humilhação, fazendo a mulher se sentir degradada como ser humano. Destaca também que essa agressão “é, sobretudo, um meio de sujeitar o outro. O que não tem nada a ver com desejo; é simplesmente, para o homem, um modo de dizer: ‘Você me pertence’”. Por fim, o feminicídio, recentemente caracterizado no Brasil, é legalmente definido, de acordo com Campos (2016, p. 107), como a “forma extrema de violência de gênero que resulta na morte da mulher”. Hirigoyen (2006) observa que o crime, na maior parte das vezes, acontece logo após a separação. Os assassinos geralmente apontam como motivo o ciúme ou a vontade de vingança contra a pessoa que o abandonou. “Sentindo-se abandonado porque ela lhe escapa simplesmente por ser ela mesma, ele prefere matá-laa ver essa alteridade” (HIRIGOYEN, 2006, p. 60). Os casos premeditados são menos comuns, mas acontecem quando o agressor se vê injustiçado e busca reparação. Ou seja, quando o homem se vê incapaz de controlar a mulher por outros meios, apela ao assassinato como último recurso para se manter no poder. “O que está na base é sua afirmação como todo-poderoso, afirmação esta que só pode se impor à custa da negação do outro e de seu valor” (HIRIGOYEN, 2006, p. 60). 2.2 HISTÓRIA DO MOVIMENTO FEMINISTA Duarte (2003) explica que a história do feminismo é geralmente dividida em “ondas”. Isso pelo movimento natural, de fluxo e refluxo, apresentado em seus 26 momentos de grande relevância. Assim como as ondas do mar, “começam difusas e imperceptíveis e, aos poucos (ou de repente) se avolumam em direção ao clímax – o instante de maior envergadura, para então refluir numa fase de aparente calmaria, e novamente recomeçar” (DUARTE, 2003, p. 152). O primeiro registro de mulheres se organizando para lutar por seus direitos específicos foi na Revolução Francesa de 1789. Em meio a luta por direitos políticos e igualdade para o povo, as mulheres francesas ainda reivindicavam o direito ao alistamento na carreira militar e o acesso às armas, na defesa da revolução. Desta forma, além de lutarem pela consolidação do poder popular em contraponto ao poder burguês, as mulheres iniciaram uma batalha histórica em torno do direito de participar ativamente da vida pública, no campo do trabalho, da educação e da representatividade política. (GURGEL, 2010, p. 01) Gurgel (2010, p. 02) conta que, por manterem a resistência na busca por esses direitos, as mulheres foram consideradas um perigo à ordem burguesa que se estabelecia e, portanto, tiveram suas reuniões proibidas. Além disso, “o regime burguês reafirmou a hierarquia na família como base para a organização social, posicionando-se contra o direito ao amor livre e ao divórcio, reclamado pelas mulheres no processo da Revolução Francesa”. Mesmo assim, elas continuaram se organizando e buscando apoio nos movimentos de trabalhadores. Na maior parte das reivindicações, as mulheres tinham o apoio desses movimentos. Porém, havia grande resistência na aceitação do trabalho feminino, que foi negado pelos delegados no congresso da Internacional dos Trabalhadores. De acordo com Gurgel (2010, p. 02), esta decisão causou revolta nas mulheres, que intensificaram as manifestações e formaram a primeira associação feminista, chamada Liga das Mulheres, em 1868. Os protestos por igualdade de gênero foram amenizados em 1871, quando a experiência da Comuna de Paris fez com que a luta por uma sociedade socialista ganhasse mais espaço, deixando as reivindicações específicas das mulheres em segundo plano. “Neste contexto, as mulheres tiveram grande contribuição nas ações de boicote, confronto e resistência ao poder dominante”. Segundo Duarte (2003), a primeira onda feminista do Brasil aconteceu no século XIX, com a conquista do direito básico de ler e escrever. A autora conta que, até 1827, as únicas opções de estudo para as mulheres eram alguns poucos conventos, escolas particulares ou ensino individualizado. A partir desse ano, a 27 legislação passou a permitir a abertura de escolas públicas femininas. Assim, as poucas mulheres que já haviam tido acesso à educação “tomaram para si a tarefa de estender as benesses do conhecimento às demais companheiras, e abriram escolas, publicaram livros, enfrentaram a opinião corrente que dizia que mulher não necessitava saber ler nem escrever” (DUARTE, 2003, p. 152). Uma das grandes feministas dessa época foi Nísia Floresta Brasileira, autora do livro Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens, de 1832, “o primeiro no Brasil a tratar do direito das mulheres à instrução e ao trabalho, e a exigir que elas fossem consideradas inteligentes e merecedoras de respeito” (DUARTE, 2003, p. 153). Tal texto, conforme Duarte (2003), é o marco fundante do feminismo brasileiro. Nísia atuou como educadora no nordeste e no sul do país, inaugurou uma escola no Rio de Janeiro e publicou outras obras sobre a educação de meninas e sobre o ensino em geral, sendo uma das primeiras mulheres brasileiras com relevância na área (CAMPOI, 2011). Embora o livro de Nísia Floresta tivesse como base obras e textos europeus, Duarte (2003, p. 154) destaca que ela não endossava a revolução proposta pelos autores originais. Isso devido à grande diferença cultural, social e política que ela reconhecia entre o Brasil e os países europeus. Enquanto lá as vindicações se faziam sob a forma de crítica a uma educação já existente, aqui as solicitações eram ainda as primárias, pois mesmo a alfabetização mais superficial esbarrava em toda sorte de preconceitos. Nossas mulheres precisavam, primeiro, ser consideradas seres pensantes, para então, depois, pleitear a emancipação política. Nísia, conforme conta Duarte (2003), abriu o caminho para que a educação de meninas fosse ampliada e outras mulheres também começassem a publicar livros e jornais. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, a primeira onda chegou ocorreu entre a segunda metade do século XIX e o início do século XX, quando o direito ao voto foi conquistado. Outras demandas, como melhores condições de trabalho, também eram reivindicadas na época, principalmente por meio de greves e atuação em associações trabalhistas (DAMASCO, 2009). Uma dessas mobilizações, inclusive, motivou o Dia da Mulher, devido à morte de várias mulheres queimadas em confronto com a polícia, em uma fábrica em Nova York, no dia 8 de março de 1857. É importante destacar, no entanto, que esses grupos eram formados majoritariamente por mulheres brancas e universitárias de classes altas, de acordo 28 com Davis (2016) e Damasco (2019). Davis (2016) ressalta que, embora inicialmente as sufragistas estadunidenses estivessem ligadas ao movimento abolicionista e buscassem a inclusão de mulheres e homens negros, suas pautas foram se afastando. Isso aconteceu à medida em que os interesses dos homens brancos apontavam para o sufrágio do homem negro, antes das mulheres brancas. Muitas ativistas feministas consideravam que, com a emancipação conquistada após a Guerra Civil, o povo negro havia se equiparado com as mulheres e o direito ao voto tornaria o homem negro superior a elas. O que, de acordo com Davis (2016), estaria incorreto, uma vez que o discurso ignorava a privação econômica e a violência terrorista de gangues racistas com as quais os negros sofriam. Além disso, ao contrário do que pensavam as sufragistas, o interesse dos homens brancos em conceder o direito do voto aos homens negros não era incluí-los no ideal de supremacia masculina. Os capitalistas do Norte almejavam o controle econômico sobre toda a nação. Sua luta contra a escravocracia do Sul não significava, portanto, que apoiassem a libertação de mulheres negras e homens negros enquanto seres humanos. [...] era uma jogada tática pensada para garantir a hegemonia política do Partido Republicano no caos do Sul após a guerra. (Davis, 2016, p. 86) Aos poucos, como Davis (2016) mostra, líderes sufragistas como Elizabeth Cady Stanton e o Susan B. Anthony passaram a incorporar um forte discurso de supremacia branca. Um dos exemplos disso foi a resposta de Staton quando um líder negro questionou se ela estaria disposta a ver o homem negro conquistar o direito ao voto antes dela: eu não confiaria a ele meus direitos; desvalorizado, oprimido, ele poderia ser mais despótico do que nossos governantes anglo-saxões já são. Se as mulheres ainda devem ser representadas pelos homens, então eu digo: deixemos apenas o tipo mais elevado de masculinidade assumir o leme do Estado (STATON et al, 1887, p.146 apud DAVIS, 2016, p. 93) Por esses motivos, as mulheres negras acabaram fundando sua própriaorganização, a Agremiação Nacional das Associações de Mulheres de Cor, e posteriormente outras agremiações regionais. Mesmo diante da rejeição das sufragistas brancas, elas continuaram lutando pelo direito ao voto, que teoricamente foi conquistado em 1920, embora as mulheres negras ainda encontrassem resistência e tenham sido impedidas de exercer seus direitos em diversos lugares, principalmente no Sul e, portanto, tenham levado ainda mais tempo do que as mulheres brancas para alcançarem a igualdade de direitos civis (DAVIS, 2016). 29 Também no século XX, inspiradas pelas feministas europeias e estadunidenses, surgiram as sufragistas brasileiras. Damasco (2009) e Pinto (2010) definem esse período, que se estende até a década de 1970, como a Primeira Onda do feminismo brasileiro. Damasco (2009, p. 20) aponta que, embora a história exposta por Duarte (2003) esteja correta, “não se pode falar propriamente em movimento feminista, pois o que existiu teria sido mais uma movimentação feminista composta por um grupo de mulheres das classes altas e intelectualizadas”. O movimento feminista que se iniciou em 1918, liderado pela bióloga Bertha Lutz, reivindicava principalmente o direito ao voto. Mas, ao contrário do que acreditavam as sufragistas norte-americanas segundo Davis (2016), para Lutz (apud SOIHET, 2000, p.116), “o sufrágio feminino não é um fim em si, mas um instrumento a ser usado para melhorar o status das mulheres”. Mesmo antes do direito ao voto, Bertha Lutz já reivindicava também melhores condições de trabalho, o estabelecimento de creches para os filhos das trabalhadoras, a plenitude de direitos civis, entre outras demandas, algumas atendidas e outras não, de acordo com Soihet (2000). O sufrágio feminino foi conquistado em 1932 no Brasil, e logo foram eleitas as primeiras deputadas federais, como “Carlota Pereira de Queiroz em São Paulo (primeira deputada eleita no país), Lili Lages em Alagoas, Maria Luiza Bittencourth na Bahia e Maria Miranda Jordão no Amazonas” (DAMASCO, 2009, p. 24). De acordo com Pinto (2010), o movimento feminista perdeu força em todos os países na década de 1930, o que Damasco (2009) explicou ter ocorrido devido à Segunda Guerra Mundial e, no Brasil, também à instauração da ditadura do Estado Novo. Mas, de acordo com a autora, voltou a ter relevância nos anos 1960, somando- se ao movimento hippie nos Estados Unidos e o movimento estudantil na Europa, além da revolução cultural na música e na literatura de ambos. Pela primeira vez, mulheres puderam falar e escrever diretamente sobre o feminismo e a dominação do homem sobre a mulher. No Brasil, porém, o ambiente repressivo da ditadura militar tornava mais difícil a ação dos movimentos sociais, impedindo a rápida ascensão alcançada em outros lugares. A Segunda Onda Feminista aparece no país apenas nos anos 1970, “em meio ao período mais radical contra a ditadura militar, contando com a participação de mulheres que passaram pela experiência do exílio” (WOITOWICZ, 2014, p. 02). Ainda assim, o feminismo tinha pouco apoio e reconhecimento de outros grupos de esquerda. De acordo com Pedro (2006, p. 16), 30 os grupos de reflexão, as lutas pelo controle e autonomia do corpo, sexualidade, as manifestações pela liberação da mulher, eram consideradas ‘ideias específicas’, e portanto, divisionistas da luta geral que consideravam ter prioridade: pela democratização, pela anistia, pelo socialismo. Pinto (2010, p. 17) também registra a oposição dos homens de esquerda ao movimento, e acrescenta que, apesar disso, “enquanto as mulheres no Brasil organizavam as primeiras manifestações, as exiladas, principalmente em Paris, entravam em contato com o feminismo europeu e começavam a reunir-se”. A partir daí, segundo Woitowicz (2014), a luta por direitos de igualdade entre os gêneros volta a avançar. A Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu o Dia Internacional da Mulher em 1975, estimulando a organização de reuniões e centros específicos para o desenvolvimento das mulheres, de forma que, nos anos 1980, com a redemocratização, já existiam dezenas de grupos por todo o país, marcando assim a terceira onda do feminismo. Pinto (2010, p. 17) destaca que esses grupos se reuniam principalmente em favelas e bairros pobres, lutando por pautas como educação, saneamento, habitação e saúde. Dessa forma, apesar de ter origem na classe média intelectual, o feminismo brasileiro passou a abranger as classes populares, provocando “novas percepções, discursos e ações em ambos os lados”. Em 1984, foi criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), que promoveu uma campanha nacional pela inclusão dos direitos da mulher na nova constituição. Pinto (2010, p. 17) ressalta que esse esforço resultou na Constituição de 1988, como “uma das que mais garante direitos para a mulher no mundo”. No entanto, o Conselho perdeu toda a sua importância durante os governos de Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso. Apenas no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o Conselho foi recriado, junto com a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, que tinha status de ministério. Em 2016, o então presidente Michel Temer retirou o status de ministério da Secretaria, o que, de acordo com Freitas (2018) causou uma drástica redução nos recursos e na autonomia para planejar e executar projetos voltados aos direitos das mulheres. Atualmente, de acordo com as informações contidas no site do Governo Federal, o CNDM continua existindo como parte do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Pinto (2010) aponta que, ainda nos últimos anos do século XX, o movimento feminista sofreu mais uma transformação, com a criação de Organizações Não- Governamentais focadas principalmente na luta contra a violência de gênero, 31 buscando “aprovar medidas protetoras para as mulheres e buscar espaços para a sua maior participação política” (PINTO, 2010, p. 17). A maior conquista, segundo a autora, foi a sanção da Lei Maria da Penha (Lei n° 11 340, de 7 de agosto de 2006), que criou mecanismos para prevenir e punir a violência doméstica e familiar contra a mulher, além de dar assistência às vítimas. Atualmente, o movimento feminista vive o que autoras como Perez e Ricoldi (2018), Matos (2010) e Rocha (2017) definem como a “quarta onda”. Esse momento, de acordo com Perez e Ricoldi (2018, p. 03), é marcado por três características principais: “a mobilização construída e divulgada na internet, a interseccionalidade e a atuação por meio de coletivos”. Os meios digitais têm permitido uma disseminação muito maior das ideias feministas, levando empoderamento para muito mais mulheres e facilitando a mobilização política, uma vez que torna muito mais simples a organização de protestos e o compartilhamento de resultados. A interseccionalidade se refere à “diversidade de clivagens sociais abarcadas pelos movimentos feministas” (PEREZ; RICOLDI. 2018, p. 09). O feminismo contemporâneo passou a fazer recortes de classe, raça e orientação sexual, lutando contra diversas opressões, mostrando uma descentralização do original movimento branco e de elite. Perez e Ricoldi (2018) atribuem essa transformação nas pautas primeiramente à internet, na medida em que abre espaço para todas as discussões, e depois à presença das mulheres negras e lésbicas no movimento. O feminismo negro, apesar de existir há décadas, tomou uma proporção maior a partir do ingresso de negros nas universidades e da “possibilidade de expressão na internet de grupos com menor presença nos meios de comunicação tradicionais” (PEREZ; RICOLDI, 2018, p. 09). Embora alguns artigos indiquem a proximidade com o Estado como uma característica da quarta onda, as autoras destacam que, com a entrada de Michel Temer na presidência em 2016, o financiamento de ONGs feministaspelo governo foi praticamente encerrado, motivando o distanciamento em relação à institucionalização das organizações. Perez e Ricoldi (2018) destacam, no entanto, que isso não enfraqueceu o feminismo, apenas fortaleceu a busca por autonomia e pelo retorno do movimento às ruas. 32 2.3 POLÍTICAS DE PROTEÇÃO À MULHER E LEGISLAÇÃO BRASILEIRA De acordo com Souza (2016), uma das primeiras políticas de proteção à mulher foi a criação das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs), na década de 1980, a partir da expansão dos movimentos feministas. Após a instalação da primeira Delegacia de Defesa à Mulher em São Paulo, grupos feministas de todos os estados passaram a se mobilizar para realizar o mesmo. Mas, segundo Santos (2010, p. 10), uma vez que a criação das DDMs precisava ser negociada com os governos de cada estado, as demandas das mulheres, em geral, foram só parcialmente aceitas, restringindo a atuação das delegacias especializadas à criminalização e não permitindo “a institucionalização da capacitação das funcionárias das DDM a partir de uma perspectiva feminista”. Essas delegacias também atendiam apenas casos de violência sexual e lesão corporal. Santos (2010) afirma que, apesar das tentativas dos grupos feministas, havia muita resistência quanto à capacitação das policiais que atuavam nas DDM. A autora observa que, com isso, o atendimento nas delegacias especializadas não se diferenciava muito das delegacias comuns e careciam de uma infraestrutura adequada. Nos anos que se seguiram, esses grupos perderam ainda mais espaço e poder de negociação, com os governos de Fernando Collor (1990-1992), Itamar Franco (PMDB, 1992-1993) e Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 1995-1998 e 1999- 2002). Ainda assim, as DDMs continuaram se espalhando. Até 2008, existiam 403 delas em todo o país (SANTOS, 2010) e, até 2016, o número subiu para 461 (BERTHO, 2016). No entanto, essa quantidade ainda é baixa e a distribuição pelo Brasil é muito falha, visto que as delegacias só existem em 5% das cidades do país (BERTHO, 2016). A partir de 1995, a Lei 9.099/9521 instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, que, embora não tenham sido criados com esse objetivo, passaram a atuar sobre os crimes de violência contra a mulher. Isso por se tornarem responsáveis pelos crimes com penas inferiores a dois anos, como os delitos de lesão corporal (de natureza leve) e ameaça. Os grupos feministas, de acordo com Santos (2010, p. 160), 21Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9099.htm> Acesso em: 13 de maio de 2019, às 11h24min http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9099.htm 33 criticavam essa lei como uma forma de descriminalização, invisibilização e trivialização da violência doméstica, uma vez que “a (re)conciliação é utilizada como um fim, não como um meio de solução do conflito, tendo por enfoque a celeridade e a informalidade, sem desafiar as relações familiares”. Apenas em 2006, o Brasil passou a ter uma legislação específica de enfrentamento à violência doméstica: a Lei 11.340/200622, também conhecida como Maria da Penha, em vigor até o momento atual. O objetivo da Lei é criar mecanismos para prevenir e coibir, no âmbito doméstico, familiar ou em relação íntima de afeto, “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial” (BRASIL, 2006). No ponto de vista punitivo, a Lei Maria da Penha, entre outras determinações, invalida a Lei 9.099/95 em casos de violência contra a mulher, extingue a possibilidade de pena pecuniária ou multa, aumenta a pena para crimes cometidos nos formatos determinados, amplia as possibilidades de prisão preventiva e impede que a mulher retire a queixa, tornando o crime independente de representação. Pasinato (2015, p. 534) destaca, porém, que ela não se restringe ao âmbito penal, prevendo a articulação com outras áreas do Direito (cível, de família), com os setores da saúde, assistência social, do trabalho e previdência social, com as políticas de previdência social, trabalho e emprego, para o empoderamento econômico das mulheres, bem como as políticas de educação para a prevenção e mudança social que se almeja alcançar. Dessa forma, ela apresenta “medidas estruturais, como a necessidade de criação de serviços, incluindo as varas e promotorias especializadas, e medidas voltadas à proteção da mulher e à prevenção da violência” (SOUZA, 2016, p. 02). Em relação à prevenção, Souza (2016, p.41) afirma que a Lei Maria da Penha tem um grande mérito por explorar diversos métodos, não apenas educacionais, mas também culturais, tendo foco na “mudança de valores, em especial no que tange à cultura do silêncio quanto à violência contra as mulheres no espaço doméstico e à banalização do problema pela sociedade”. Além dos mecanismos de prevenção, que variam entre campanhas informativas, programas educacionais, estímulo a pesquisas, entre outros esforços, também existem medidas para proteção e assistência às mulheres já vitimadas (SOUZA, 2016). 22 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm> Acesso em: 13 de maio de 2019, às 11h26 min http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm 34 Os programas de assistência, de acordo com Souza (2016, p. 44), “são importantes para que a mulher tenha sua autonomia econômica e emocional garantidas”. A Lei também prevê medidas de urgência, que podem suspender imediatamente o porte de armas do agressor, afastá-lo do lar ou local de convivência com a vítima, proibir a aproximação e o contato com a vítima e pessoas relacionadas à ela, restringir ou suspender a visitação aos dependentes menores de idade e obrigá- lo a prestação de alimentos provisionais ou provisórios. Além disso, o juiz poderá também: I - encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento; II - determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor; III - determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos; IV - determinar a separação de corpos. Art. 24. Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as seguintes medidas, entre outras: I - restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida; II - proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial; III - suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor; IV - prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida. (BRASIL, 2006) Souza (2016) explica que os agentes do direito responsáveis pelo processo devem orientar as vítimas a respeito dessas possibilidades, sendo que cabe a elas a decisão de solicitar ou não determinadas medidas. No entanto, esses mecanismos são provisórios e, no período até o decreto da sentença final, podem ser revistos, cassados ou substituídos por outros. “Seu impacto então na proteção na vida das mulheres dependerá da estrutura policial e judicial disponível que deve garantir: a devida orientação às mulheres sobre sua possibilidade, celeridade no julgamento e o monitoramento de sua implementação” (SOUZA, 2016, p. 46). Em 2015, a Lei 13.104/201523 surge como mais um instrumento de combate à violência doméstica, definindo o crime de feminicídio. Ele é entendido quando o assassinato ocorre emrazão do gênero feminino ou por “menosprezo ou discriminação à condição de mulher”, como uma “circunstância qualificadora do crime de homicídio”, estando incluído no rol dos crimes hediondos (BRASIL, 2015). Com 23Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13104.htm> Acesso em: 13 de maio de 2019, às 11h29min http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13104.htm 35 essa mudança, a pena é aumentada de um terço até a metade, se o crime for praticado: I - durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto; II - contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência; III - na presença de descendente ou de ascendente da vítima. (BRASIL, 2015) Saindo do âmbito doméstico e familiar, é importante destacar também a legislação acerca dos crimes de violência sexual. Segundo Rost e Vieira (2015, p. 263), “a construção jurídica do sexo não consentido foi um processo de muita lentidão e justificação: a noção de violência sexual como uma violação aos direitos individuais é recente”. Até 2005, quando foi sancionada a Lei 11.106/0524, a legislação ainda previa a extinção da punibilidade por estupro caso o agressor se casasse com a vítima. Também condicionava a punibilidade de alguns tipos de violência sexual ao termo “mulher honesta” e, para o aumento da pena em crimes contra meninas menores de idade, requeria que elas fossem virgens. (BRASIL, 1940) Atualmente, em razão da pressão promovida pelos grupos feministas de acordo com Rost e Vieira (2015), a violência sexual se tornou um crime hediondo. O artigo 213 da Lei 12.015/0925 define o crime de estupro como o ato de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” (BRASIL, 2009). Até então, o delito consistia em “constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”, limitando-se à penetração e excluindo atos como o sexo oral forçado, por exemplo. Também incluiu a “violação sexual mediante fraude” que, embora tenha pena menor do que o estupro, criminaliza a conjunção carnal e outros atos libidinosos em situação que “impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima”, ou seja, pessoas adormecidas, alcoolizadas, inconscientes ou incapazes de resistir por qualquer motivo. E o “estupro de vulnerável”, que prevê pena de oito a 15 anos pela conjunção carnal ou ato libidinoso com menores de 14 anos, independente do “consentimento” da vítima. 24 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11106.htm> Acesso em: 13 de maio de 2019, às 11h54min 25 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12015.htm> Acesso em: 13 de maio de 2019, às 11h55min http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11106.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12015.htm 36 Em 2018, também foi incluída a Lei 13.718/1826, que define toques indesejados e beijos roubados, por exemplo, como crimes de “importunação sexual” e criminaliza a divulgação de vídeos ou fotos que contenham cenas de estupro ou incitação à essa prática, assim como a divulgação sem consentimento de vídeos e fotos que contenham nudez ou cenas de sexo. Apesar de todos os avanços, a aplicação e a eficácia dessas leis e políticas públicas esbarra em fatores sociais e culturais que atingem até mesmo o meio jurídico, como observam Souza (2016) e Sousa (2017), o que é exposto com mais profundidade no próximo item. 2.4 CULPABILIZAÇÃO DA VÍTIMA E CULTURA DO ESTUPRO De acordo com Jong, Sadala e Tanaka (2008, p. 745), estudos mostram que existe uma grande subnotificação da violência contra a mulher, uma vez que as vítimas não denunciam os crimes e, quando o fazem, tendem a desistir da denúncia. “A violência cotidiana nem mesmo é percebida como violação dos seus direitos, pela mulher: é considerada normal no contexto familiar”. Os relatos presentes na pesquisa mostram os sentimentos conflituosos de mulheres que desistiram de denunciar os agressores, no caso seus maridos. “Os depoimentos revelam matizes desta afetividade – do amor à raiva e à desesperança - até a piedade e o arrependimento, quando percebem a fraqueza do agressor” (JONG; SADALA e TANAKA, 2008, p. 748). Muitas também demonstram culpa por estar prejudicando o parceiro ou afastando o pai de seus filhos. A dependência financeira se mostra como mais um motivo para a desistência da denúncia. Narvaz e Koller (2006, p. 09) destacam ainda a existência de “um padrão de transmissão das experiências de violência ao longo das gerações” - meninas que presenciaram a violência doméstica durante a infância internalizam os estereótipos de gênero da mulher subordinada e se tornam mais suscetíveis a abusos, por considerá- los normais. “A violência contra as mulheres fica, assim, banalizada, minimizada, negada e naturalizada pela cultura sexista, sendo percebida como algo que não 26 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13718.htm> Acesso em: 13 de maio de 2019, às 11h56min http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13718.htm 37 poderia ser evitado”. Além disso, em casos de abuso crônico, é comum que as vítimas busquem se adaptar e sobreviver à situação por meio de mecanismos inconscientes de defesa. Entre eles, “a dissociação do pensamento, a negação e a anulação dos sentimentos, o que exerce um efeito mutilador sobre as capacidades cognitivas e sobre a capacidade de ação efetiva” (NARVAZ; KOLLER, 2006, p. 10) Percebe-se, então, que existem diversos fatores emocionais, psicológicos, sociais e financeiros que podem levar a mulher a permanecer em uma relação abusiva. Mesmo assim, Züwick (2012, p. 86) destaca que a “aparente passividade demonstrada por muitas mulheres ao serem violadas, frequentemente, é interpretada como aquiescência”. Essa constatação também é percebida por Narvaz e Koller (2006), que criticam o posicionamento de outras pesquisadoras, como Gregori (1993) e Grossi (2001), ao atribuírem às vítimas uma parcela de culpa pela violência conjugal sofrida e pela passividade ao continuar se relacionando com o agressor. Saindo da esfera acadêmica, em que a culpabilização da mulher é mais implícita, na esfera social, e principalmente online, isso se mostra ainda mais comum e é exposto sem escrúpulos. É o que mostra Lermen (2018), ao analisar os comentários de notícias sobre a violência contra a mulher, nos portais Yahoo e Terra. No caso da violência física, foi analisada a matéria sobre um homem que agrediu uma mulher na saída de uma festa e outra em que o agressor colou a vagina de sua companheira por suspeitar de traição. Na primeira matéria, a maioria dos comentários criticaram a atitude do homem e foram favoráveis à decisão do juiz, que decidiu submeter o agressor a júri popular. Já na segunda notícia, mais da metade dos comentários fazia piadas e minimizava o crime. A autora aponta que a diferença na percepção das agressões se deve ao fato de que, no segundo caso, ela aconteceu entre cônjuges. Segundo ela, há um senso comum de que não se deve intervir em brigas de casais. Essa naturalização da violência doméstica, de acordo com Lermen (2018), é evidenciada por meio de músicas, piadas e ditados populares como “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. Além disso, a suposta infidelidade feminina justificaria a agressão sofrida, visto que apenas os homens têm autorização social para a poligamia. Nesse sentido, a atitude agressiva do homem serve para recuperar seus status, honra e poder
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