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Mariana Oliveira Arantes História da América Pré-Colombiana AULA 12 As mulheres na América colonial Basearemos nossa aula nas ideias expostas por Mary Del Priore em seu texto “Imagens da terra fêmea: a América e suas mulheres”, que faz parte do livro América em tempo de conquista, publicado em 1992. A América é uma mulher... É com a frase acima que Mary Del Priore inicia seu estudo sobre o papel das mulheres na América colonial. A autora afirma que na iconografia, entre os séculos XVI e XVIII, as terras do Novo Mundo são representadas como uma mulher com “o ventre opulento, o longo cabelo amarrado com conchas e plumas, as pernas musculosas, nus os seios. Nas procissões religiosas realizadas durante as festas coloniais, era exibida em carro alegórico como uma dama de cor baça, quase nua, coroada e cingida de penas, tendo ao lado um arco, a aljava aos pés e, aí, uma cabeça humana passada por uma flecha” (PRIORE, 1992). A América é uma mulher... http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-77042011000200007 A América é uma mulher... A representação assim construída pelos europeus traduzia um discurso que tentava se impor como concepção social sobre o Novo Mundo: a América, como uma bela e perigosa mulher, tinha que ser vencida e domesticada para ser melhor explorada (PRIORE, 1992). A metáfora para a exploração do continente serviu, na prática, para ilustrar as relações de gênero no período da Conquista. Nesse momento, o estupro, segundo François Giroud, podia ser lido como paradigma de uma história e, simultaneamente, uma estrutura de relações sociais (PRIORE, 1992). Havia dois grupos disputando essa mulher, tanto a terra quanto a fêmea. De um lado, o espanhol, marcado pela obsessão da honra e da pureza sexual, violava terras e mulheres, com o comportamento exagerado que se esperava de um violento vencedor. Por outro, o indígena via no estupro das brancas um signo de rejeição ao domínio europeu. Através da brutalização dos corpos de seus inimigos, ele se mostrava selvagem, lúbrico, incontrolável (PRIORE, 1992). A conquista da América pode ser entendida como uma história de estupros, tanto de mulheres como de uma cultura pela outra. Na construção desse Novo Mundo, houve a participação de homens e mulheres com papéis sociais bem delimitados. Os primeiros contatos entre duas culturas diferentes na América ocorreram entre 1492 e 1519, no Caribe. Os povos Arawak, das Antilhas do Norte, passaram a oferecer aos europeus suas mulheres como guias de incursões às regiões vizinhas e outras ilhas. Mas elas também foram utilizadas para outros fins, fato que motivou as críticas do padre Las Casas contra os espanhóis que carregavam à força esposas nativas e suas filhas, sem qualquer consideração. Na maior parte do território americano, os líderes dos povos nativos desenvolveram, como estratégia de estabelecimento de alianças, a prática de oferecer suas mulheres como presente. Os nativos também pagavam escravas como tributos aos espanhóis ou vendiam suas mulheres para servi-los, modificando os papéis que essas mulheres tinham nas suas sociedades. Casamento O casamento na América espanhola ocorria entre as elites como um compromisso associado a interesses econômicos e políticos com o intuito de promover a hegemonia de poucos. Entre famílias indígenas, também prevaleceram os interesses familiares. Em 1501, a Coroa consente explicitamente em casamentos mistos e dá ordens ao governador Nicolás Ovando para que “algunos christianos se casen com algunas mujeres yndias e las mujeres christianas com algunos yndios porque los unos e los otros se comuniquen e enseñen”. Entre 1521 e 1524, outros decretos e leis sublinharam a necessidade de casamentos mistos para agilizar a cristianização dos ameríndios através, sobretudo, da conversão de suas mulheres (PRIORE, 1992). O dote matrimonial constituía-se num primeiro reconhecimento da personalidade jurídica da mulher. Ao “tomar estado”, ela passava da supervisão paterna para aquela do marido que lhe administrava o dote destinado a sustentar os encargos do matrimônio. Mas o marido era obrigado a separar o valor dos bens – móveis e imóveis – da esposa em seu testamento ou em qualquer situação em que os gananciales (bens adquiridos durante o casamento) estivessem correndo perigo. Dessa forma, esposas defendiam-se de maridos dilapidários e de uma eventual bancarrota (PRIORE, 1992). Apesar da existência de leis do Estado e da Igreja Católica que regulamentassem o casamento, essa prática ainda era um compromisso não generalizado na América espanhola colonial. As ligações consensuais e o concubinato foram os tipos mais comuns de relações pós-conquista. O concubinato afro-indígena era disseminado e, embora as autoridades lhe resistissem ferozmente receosas do incremento de mestiços bastardos, as condições sociais o tornavam inevitável (PRIORE, 1992). Uma vez batizadas, as novas cristãs deviam cumprir todos os preceitos da religião, e que as mulheres casadas ao modo tradicional fossem perseguidas como barregãs e ameaçadas com os castigos divinos. Na prática, a abolição legal da poligamia só fomentou a existência de situações irregulares, assim como a irresponsabilidade de homens que, apesar de manterem relações extraconjugais, estavam obrigados a manter uma única esposa e família (PRIORE, 1992). A condenação das atitudes desviantes era, nesse contexto, apenas um recurso para manter a ordem social. A doutrina cristã, divulgada por padres, chocava-se portanto com muitos desses princípios: condenava a poliginia corrente entre nobres e exercida com um privilégio e responsabilidade de classe; impunha impedimentos de parentesco para enlaces matrimoniais que estavam longe dos critérios ocidentais; perseguia as cerimônias correspondentes aos ritos matrimoniais originais como uma prática supersticiosa e impunha, finalmente, uma prática litúrgica sem qualquer sentido para os neófitos ameríndios (PRIORE, 1992). Mulheres Nativas Mesmo nos locais em que puderam conservar a língua e as tradições ancestrais, o processo da conquista afetou o modo de vida das mulheres nativas. Os preceitos da religião católica e a legislação espanhola incentivaram mudanças no dia a dia e na organização familiar, sublinhando as contradições entre a doutrina e a prática no que dissesse respeito ao comportamento dos conquistadores em relação às mulheres. No México pré-hispânico, as normas reguladoras da conduta individual ou coletiva respondiam às necessidades de fortalecimento do Calpulli e do Tlatocayotl. O rigor imposto aos comportamentos sexuais das nobres, especialmente as donzelas, correspondia a métodos para garantir a coesão de grupos familiares e o fortalecimento da autoridade de pais e anciãos (PRIORE, 1992). Mulheres Europeias Classificadas na Europa como membros do chamado imbecilitas sexus e vivendo sob uma legislação que as considerava equivalentes a crianças ou inválidos, as espanholas não tardaram a vir para a América. Sua presença no Novo Mundo só acentuou a aura de desigualdade entre sexos. Desigualdade paradoxal, pois se por um lado as imigrantes hispânicas eram reconhecidas como um mal necessário para o desempenho de certas funções sociais e econômicas, sendo movimentadas como peões no jogo político da Coroa, por outro, tal como as ameríndias, foram exploradas como escravas e serventes por maridos, companheiros ou senhores (PRIORE, 1992). Educação A educação que as mulheres recebiam na América colonial não era muito diferente de acordo com a origem. Tanto as senhoras espanholas quanto as serventes, as futuras freiras, as trabalhadoras, as vendedoras nos mercados e as agricultoras recebiam os mesmos princípios religiosos e morais. As mulheres compartiam a submissão à hierarquia e às crenças católicas. O mais comum era fazer com que as meninas de elite fossem educadas de modo elementar na leitura, escritae religião em algum convento de monjas, ou com alguma “amiga”, ou as chamadas migas, professoras de certo nível intelectual. Estas maestras tinham que ter sobretudo conhecimentos de doutrina cristã e habilidade em trabalhos manuais. A educação que davam às meninas era essencialmente piedosa e doméstica, ainda que se tratassem de professoras laicas (PRIORE, 1992). As mulheres da América colonial podem ser inseridas na categoria de “excluídos da história”, uma vez que eram majoritariamente analfabetas e estavam subordinadas aos homens. Não tinham influência política nos círculos onde eram tomadas as decisões político-administrativas. Ou seja, não puderam deixar registros diretos a respeito de sua vida no período. A despeito da pouca educação que tiveram, as mulheres na América hispânica nunca deixaram de ter vida social e mesmo intelectual. O fato de serem analfabetas, em sua grande maioria, não permitiu que deixassem registros de seus pensamentos e pontos de vista sobre a situação colonial. Documentos indiretos revelam, todavia, que se ressentiam de sua inferioridade em relação aos homens e que reagiam aos preconceitos misóginos escorados na legislação e observados por vários viajantes estrangeiros entre os séculos XVIII e XIX (PRIORE, 1992). Tão difícil era a vida da maior parte das mulheres que em toda a bacia platina só havia um hospital de “mujeres”, além de uma casa de correção para esconder da sociedade aquelas que teriam cometido afrontas à lei da Igreja; elas eram ensinadas sobre “a forma correta de viver” (PRIORE, 1992). O encontro entre as culturas nativas e europeias modificou hábitos, costumes e tradições. Todos os aspectos da vida foram sacudidos, como as práticas sociais, técnicas agrícolas, crenças. Foram as mulheres que mais contribuíram para o desenvolvimento de novas formas de participação na vida comunitária, ajudando a superar a incompreensão inicial dos contatos. As hispânicas beneficiaram-se nesse jogo, adquirindo costumes, conhecimentos e concepções estéticas que fecundaram a vida na América espanhola, distinguindo-se daquela que se levava na metrópole. O uso de plantas medicinais locais, de alimentos até então desconhecidos, das joias usadas por criollas, das flores que adornavam seus cabelos e petrechos de suas cozinhas foram testemunhas do contato entre as culturas, como também foram a incorporação dos bordados, dos xales, das romarias e peregrinações pelas indígenas (PRIORE, 1992). Mestiçagem A mestiçagem aconteceu de várias formas. As filhas das lideranças nativas que tiveram terras e bens para dar como dote casaram-se com nobres espanhóis. As despossuídas que moravam nas cidades converteram-se em serventes domésticas, contribuindo para acelerar o processo de mestiçagem através de concubinatos esporádicos ou ligações consensuais, e adaptaram-se à nova vida, vivendo pobremente em bairros periféricos. As mulheres na América espanhola tiveram que se adaptar a um mundo essencialmente masculino, no qual os instrumentos de domínio foram a violência, a força física, a riqueza concentrada nas mãos de pais, maridos e companheiros. Mas, se a América, esta terra fêmea, e suas mulheres têm uma história de intensa repressão, têm também uma história que é a expressão da resistência, da revanche e da capacidade de amoldamento da população feminina ao Novo Mundo (PRIORE, 1992). Reflexões Finais Desse modo, podemos perceber que a história de subordinação, violência e transgressão ao feminino esteve presente no território americano desde os primeiros contatos entre povos nativos e europeus, ou mesmo antes, no bojo das próprias sociedades nativas. A história da conquista da América foi também a história da resistência das mulheres envolvidas nesse processo, que tiveram que se moldar e sutilmente desenvolver formas de atuar nos espaços que lhes foram constantemente negados. Referências Bibliográficas PRIORE, Mary Del. Imagens da terra fêmea: a América e suas mulheres. In: VAINFAS, Ronaldo (Org.). América em tempo de conquista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. LAVRIN, Asunción. La mujer en la sociedad colonial hispano- americana. In: BETHELL, Leslie (Org.). Historia de América Latina. Vol. IV. Barcelona: Editorial Crítica, 1990.
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