Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
História Medieval Ocidental Danielle O. Mércuri AULA 1 A Idade Média ao longo do tempo Uma rotulação a posteriori Quando falamos de Idade Média, ainda que haja controvérsias entre os historiadores, estamos nos referindo a um período que corresponde tradicionalmente a 10 séculos, isto é, que se estende do século V ao século XV. Ao atribuirmos este nome ao período mencionado, estamos nos referindo a um rótulo construído a posteriori (posteriormente) como resposta a uma necessidade que compartilhamos de dar nomes, classificar e agrupar momentos do passado a partir de características que julgamos defini-los e distingui-los. Como enfatiza o medievalista brasileiro Hilário Franco Júnior, em sua obra Idade Média: Nascimento do Ocidente “Se numa conversa com homens medievais utilizássemos a expressão ‘Idade Média’, eles não teriam ideia do que estaríamos falando. Como todos os homens de todos os períodos históricos, eles viam-se na época contemporânea. De fato, falarmos em Idade Antiga ou Média representa uma rotulação a posteriori, uma satisfação da necessidade de se dar nome aos eventos passados” (2001, p. 9). Segundo Hilário Franco Júnior, o que chamamos de Idade Média foi um conceito, ou melhor, um preconceito elaborado pelos homens do século XVI que se viam como representantes do renascimento da civilização greco-latina. Desse modo, compartilhavam a ideia de que o período que os separava dessa tradição antiga representava um hiato, um intervalo, ou melhor, um tempo mediano/intermediário. De Petrarca (séc. XIV) aos iluministas (séc. XVIII) De acordo com Hilário Franco Júnior, embora o termo “tempo médio” tenha se cristalizado no século XVI, o italiano Francesco Petrarca (1304-1374), no século XIV, referia-se a esse período utilizando o termo tenebrae. Nascia, assim, o mito historiográfico da Idade das Trevas, visão pessimista acerca do período que foi disseminada por Petrarca. Em 1469, por exemplo, o bibliotecário papal e bispo, Giovanni Andrea, escrevera sobre a media tempestas (tempo médio) atribuindo a esse momento o sentido de ruína e flagelo. O pintor Giorgio Vasari (1511-1574), em meados do século XVI, foi outro responsável por fixar a ideia de Idade Média. Quando reuniu em uma obra biográfica os grandes artistas do seu tempo e denominou-os renascentistas, por contraste, difundiu as expressões media aetas, media antiquitas e media tempora para designar o período anterior à existência desses artistas. Giordano Vasari. Autorretrato. https://en.wikipedia.org/wiki/Giorgio_Va sari#/media/File:Giorgio_Vasari_Selbstp ortr%C3%A4t.jpg https://en.wikipedia.org/wiki/Giorgio_Vasari#/media/File:Giorgio_Vasari_Selbstportr%C3%A4t.jpg Hilário Franco Júnior destaca que o século XVII manteve o sentido básico de Idade Média proposto pelos renascentistas, ou seja, de que o período medieval teria sido uma interrupção no progresso humano, inaugurado pelos gregos e romanos e retomado pelos homens do século XVI. Além disso, lembra- nos de que, para os homens do século XVII, os tempos “medievais” teriam sido de barbárie, ignorância e superstição. Nas palavras do historiador: “Os protestantes criticavam-nos como época de supremacia da Igreja Católica. Os homens ligados às poderosas monarquias absolutistas lamentavam aquele período de reis fracos, de fragmentação política. Os burgueses capitalistas desprezavam tais séculos de limitada atividade comercial. Os intelectuais racionalistas deploravam aquela cultura muito ligada a valores espirituais” (2001, p. 10). Nesse período, foi elaborada a primeira história da Idade Média de que se tem notícia. A Historia Medii Aevi a temporibus Constantini Magni ad Constantinopolim a Turcis captam deducta, escrita pelo alemão Christoplher Keller, em 1688, abarcava desde a ascensão de Constantino, o Grande, até a tomada de Constantinopla pelos turcos em 1453. Assim, foi estabelecida a temporalidade recorrentemente atribuída ao que se passou a entender por Idade Média. No século XVIII, em virtude da forte tendência anticlerical e antiaristocrata que ganhou força através das críticas de Denis Diderot (1713-1784), Condorcet (1743-1784), Voltaire (1694- 1778) e Rousseau (1712-1778), acentuou-se o menosprezo pela Idade Média. Guiados pela luz da Razão, os iluministas criticavam a acentuada religiosidade medieval, bem como o peso político que a Igreja havia logrado no medievo. Conforme salienta o historiador Jérôme Baschet a esse respeito: “Voltaire e Rousseau denunciam a tirania da Igreja e forjam a temática do obscurantismo medieval a fim de melhor valorizar as virtudes da liberdade de consciência” (2006, p. 25). Foi com o Iluminismo que a visão da idade das trevas medievais se estabeleceu. Ora, como salienta Baschet, o Iluminismo se definiu justamente em oposição ao período medieval, pois essa corrente filosófica afirmou que tudo o que lhe havia precedido representava o fanatismo, a arbitrariedade e o marasmo. Em suma: “Quer se trate dos humanistas do século XVI, dos eruditos do século XVII ou dos filósofos do século XVIII, a Idade Média aparece claramente como o resultado de uma construção historiográfica que visa valorizar o presente através de uma ruptura proclamada com o passado próximo” (2006, p. 25). Os românticos (séc. XIX) É nesse sentido de ruptura com o passado próximo que, após a Revolução Francesa (1789-1799), tem início um desprezo pelo despotismo do período absolutista e, na viragem do século XVIII para o XIX, a construção da ideia de Idade Média passa por um outro momento em que esse período começa a ser visto de maneira positiva. Pode-se dizer, conforme destaca Hilário Franco Júnior, que o Romantismo inverteu o preconceito em relação à Idade Média. Não podemos nos esquecer de que estamos nos referindo ao momento posterior à Revolução Francesa (1789), no qual os Estados europeus buscaram compor uma identidade nacional. Dois elementos desse contexto são importantes, como nos lembra Franco Júnior: 1. As pretensões imperialistas de Napoleão Bonaparte (1769- 1821) de liderar toda Europa despertou o sentimento nacional a partir do passado identitário de cada região (a França atrelou-se às Cruzadas, a Alemanha à figura de Frederico Barba Ruiva e a Espanha ao personagem El Cid); 2. Ademais, instalou-se certa desconfiança em relação ao tão exaltado racionalismo das Luzes que conduziu a Europa a um cenário de guerras e revoluções. Assim, os românticos atribuíram à Idade Média o momento de origem das nacionalidades europeias, bem como à fé, autoridade e tradição que esse período havia apresentado, uma espécie de panaceia para os problemas desencadeados pelo excesso de cientificismo. Ao século XIX remonta a elaboração de diversas obras que tematizavam a Idade Média, a saber: O corcunda de Notre Dame (1831), de Victor Hugo, Fausto (1808 e 1832), de Goethe, os romances de Walter Scott, entre outros. De acordo com o medievalista brasileiro Hilário Franco Júnior, essa Idade Média descrita por músicos e escritores românticos era tão preconceituosa quanto aquela narrada pelos renascentistas e iluministas. https://www.google.com.br/search?q=o+corcunda+de+notre+dame+vi ctor+hugo+primeira+edi%C3%A7%C3%A3o&hl=pt- BR&authuser=0&tbm=isch&tbs=rimg:CSq8pVPV8sTZIjiKKu2MC4E L6I93BEwcyH2OrgRtfYr2DD6ntcP8Z85j5nWMa0RLM4oVHdGbLp vniYGxUDYnB57_1rioSCYoq7YwLgQvoEQhCM_1EE0Uy1KhIJj3c ETBzIfY4RKu99H9ZSt6gqEgmuBG19ivYMPhGOVV9fVMVEdyoS Cae1w_1xnzmPmEROsYyqfV4SiKhIJdYxrREszihUR6iiVlXXMRx4q Egkd0Zsum-eJgRGLf8JwXSsSAioSCbFQNicHnv- uEYFNQuOc1_1KS&tbo=u&sa=X&ved=2ahUKEwjqpZfj4_HeAhU MkZAKHYzdAZgQ9C96BAgBEBs&biw=1366&bih=657&dpr=1#im grc=KrylU9XyxNmfxM: https://www.google.com.br/search?hl=pt- BR&authuser=0&biw=1366&bih=657&tbm=isch&sa=1&ei=C8L7W__SNoO JwgSdoaKgDg&q=fausto+goethe+primeira+edi%C3%A7%C3%A3o&oq=fau sto+goethe+primeira+edi%C3%A7%C3%A3o&gs_l=img.3...26876.29930..30 135...0.0..0.167.1990.0j16......1....1..gws-wiz- img.......0j0i30j0i5i30j0i24.9b_6ekKaOKo#imgrc=WPrKraoV3I3lzM:Segundo o medievalista francês Jacques Le Goff, o historiador francês Jules Michelet (1798-1874), com seu trabalho nos arquivos e ao escrever a Histoire de France (História da França), foi responsável por marcar a história da Idade Média. Além de ter reservado seis volumes da Histoire de France à Idade Média, nos quais enfatizou o papel desse período como progenitor da França, oscilou entre a elaboração de imagens positivas e negativas sobre esse período histórico (isto é, dissertou sobre a “lenda dourada e a lenda negra” da Idade Média). https://www.google.com.br/imgres?imgurl=https://citacoes.in/media/authors/jules- michelet.jpg&imgrefurl=https://citacoes.in/autores/jules- michelet/&h=300&w=240&tbnid=KYLLOWgSxaBOCM:&q=jules+michelet&tbnh=186 &tbnw=148&usg=AI4_- kSXMdivPULNBoYvhR4ySo7N8g7AQA&vet=12ahUKEwiJ287e4PHeAhVDgpAKHfw fAq0Q_B0wCnoECAEQBg..i&docid=0gIK- Bj3PAH9DM&itg=1&sa=X&ved=2ahUKEwiJ287e4PHeAhVDgpAKHfwfAq0Q_B0wC noECAEQBg Jules Michelet (1798-1874) - Historiador francês História da França https://www.google.com.br/search?q=jules+michelet+histoire+de+france&hl=pt- BR&authuser=0&source=lnms&tbm=isch&sa=X&sqi=2&ved=0ahUKEwiiyPWU4fHeAh XDh5AKHYgxDoAQ_AUIDigB&biw=1366&bih=657#imgrc=GNVZtkdGXPtb3M: É importante lembrar que foi no século XIX o momento da institucionalização da História e da construção dos quatro grandes recortes do conhecimento histórico: História Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea. Para Jacques Le Goff, o florescimento dessa história científica se deu em um momento em que cartas e escritos do período medieval eram alvo de estudos, o que pode ser exemplificado pela elaboração das coletâneas Monumenta Germaniae Historica e a Histoire de France, de Ernest Lavisse. https://www.google.com.br/search?q=Histoire+de+France+de+lav isse&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwjGt5fZ6fHe AhUGFpAKHRpqBa0Q_AUIDigB&biw=1366&bih=657#imgrc =hrapAxnHdThCSM: https://pt.wikipedia.org/wiki/Monumenta_Germaniae_Historic a#/media/File:Monumenta_Germaniae_Historica.png A Idade Média na historiografia contemporânea (séc. XX) Os historiadores do século XX foram, nas palavras de Hilário Franco Júnior, responsáveis por superar os preconceitos ligados às lendas negra e dourada que rondavam a Idade Média. Esses historiadores buscaram mapear o que os homens medievais pensavam sobre si próprios, isto é, procuraram compreender a Idade Média a partir dela mesma. Para esse trabalho, experimentaram métodos novos, reconsideraram certos conceitos e abriram o diálogo com outras ciências humanas. São relevantes as pesquisas desenvolvidas por Marc Bloch (1886-1944), Jacques Le Goff (1924-2014) e Georges Duby (1919-1996), considerados os maiores medievalistas do século XX. Georges Duby https://pt.wikipedia.org/wiki/Georges_Duby Jacques Le Goff https://pt.wikipedia.org/wiki/Jacques_Le_Goff#/media/File:Jacques_Le_Gof f.jpg Marc Bloch https://www.google.com.br/imgres?imgurl=https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/2/21/Marc_Bloch.jpg/200px- Marc_Bloch.jpg&imgrefurl=https://pt.wikipedia.org/wiki/Marc_Bloch&h=263&w=200&tbnid=p- T7SkdOEB8K_M:&q=marc+bloch&tbnh=160&tbnw=121&usg=AI4_- kQ9zoI_yLJ_AqQgMFxyYnX0U2WyMQ&vet=12ahUKEwjht8Kp9PHeAhUEjpAKHSR1Cg0Q_B0wCnoECAUQEQ..i&docid=3HG1ZtisdLnEAM &itg=1&sa=X&ved=2ahUKEwjht8Kp9PHeAhUEjpAKHSR1Cg0Q_B0wCnoECAUQEQ Marc Bloch foi responsável por fundar, em parceria com Lucien Febvre (1878-1956), a revista Annales, na qual passou a defender a elaboração de uma história problematizadora que dialogasse com diversos campos do saber, tais como a psicologia e a antropologia. Essa primeira geração de historiadores dos Annales abriu brechas para novas abordagens históricas. Marc Bloch, por exemplo, em Os Reis Taumaturgos (1924), propôs-se a analisar o significado das crenças que envolviam os monarcas medievais e faziam deles entes sagrados capazes de curar. Jacques Le Goff, por sua vez, contribuiu para a elaboração da coleção La nouvelle histoire (A nova história), no final da década de 1970. A proposta dessa nova história era superar os problemas da história tradicional, dentre os quais: uma história essencialmente política, focada na narrativa dos grandes acontecimentos e dos grandes feitos de personalidades. Le Goff se apresentava como discípulo de Marc Bloch e buscava em suas pesquisas refletir sobre aspectos da vida coletiva, das mentalidades, da vida privada, das pessoas comuns durante o medievo. Com Georges Duby consolidou-se, na França, durante a década de 1980, o conceito de História Cultural. Segundo essa vertente, as relações sociais, mentais e econômicas são âmbitos de práticas e produção cultural. Todo simbolismo é fator de identidade, isto é, sociedade e cultura são indissociáveis. Reflexões Finais Para Jacques Le Goff, não obstante a Idade Média possa ser considerada o berço de várias técnicas (cultivo, impressão, navegação, etc) ou representativa do aprimoramento de algumas delas, o grande desafio daqueles que tentam escrever uma história medieval é: não atribuir à Idade Média a invenção de tudo, bem como não desconsiderar a admiração que os medievos nutriram pelo racionalismo (a exemplo de Tomás de Aquino, Anselmo e Abelardo). Referências Bibliográficas BASCHET, Jérome. A civilização Feudal. Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006. BURKE, Peter. A escrita da história. Novas Perspectivas. São Paulo: Editora Unesp, 1992. FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2001. KOSELLECK, Reinhardt. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto Editora; Editora PUC Rio, 2006. LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média. Tempo, trabalho e cultura no Ocidente. Lisboa: Estampa, 1979. Quer saber mais? Seguem algumas referências para você estudar um pouco mais sobre os autores usados em nossa aula. • Hilário Franco Júnior https://bv.fapesp.br/pt/pesquisador/86829/hilario-franco-junior/ • Marc Bloch https://educacao.uol.com.br/biografias/marc-bloch.htm • Jacques Le Goff https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,jacques-le-goff-foi- decisivo-para-o-estudo-da-idade-media,1148193 https://bv.fapesp.br/pt/pesquisador/86829/hilario-franco-junior/ https://educacao.uol.com.br/biografias/marc-bloch.htm https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,jacques-le-goff-foi-decisivo-para-o-estudo-da-idade-media,1148193 Conhecendo alguns termos Annales Em torno do periódico francês Annales d'histoire économique et sociale (Anais de história econômica e social), reuniram-se vários historiadores franceses na primeira metade do século XX. Os dois principais nomes ligados à fundação desse periódico foram Lucien Febvre e Marc Bloch. Seus principais objetivos eram combater o positivismo histórico e desenvolver um tipo de História que levasse em consideração o acréscimo de novas fontes à pesquisa histórica e realizasse um novo tipo de abordagem. Sugestão de Vídeos • A Idade Média e Nós. Profa. Dra. Néri De Barros Almeida https://www.youtube.com/watch?v=x-CjZapMwTs • IV Semana de História. Escola dos Annales. Profa. Dra. Claudia Moraes de Souza https://www.youtube.com/watch?v=AG_qkvfDQ4g https://www.youtube.com/watch?v=bMpKG6b1Tbk https://www.youtube.com/watch?v=_McOOK1DSsQ https://www.youtube.com/watch?v=x-CjZapMwTs https://www.youtube.com/watch?v=AG_qkvfDQ4g https://www.youtube.com/watch?v=bMpKG6b1Tbk https://www.youtube.com/watch?v=_McOOK1DSsQ
Compartilhar