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1 A APLICAÇÃO DO INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DE PERSONALIDADE JURÍDICA, PREVISTO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL AOS PROCESSOS JUDICIAIS E ADMINISTRATIVOS EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA. Betina Treiger Grupenmacher1 1. Considerações iniciais A desconsideração da personalidade jurídica em matéria tributária é assunto polêmico na doutrina e na jurisprudência, consequência da ausência de disciplina específica no ordenamento jurídico pátrio. O novo Código de Processo Civil, destarte, introduz o incidente de desconsideração de personalidade jurídica que promete solucionar o embate. O tema da responsabilidade tributária está diretamente relacionado à sujeição passiva tributária e adquiriu, nos últimos anos, grande relevância dadas as práticas das Administrações Fazendárias, adotadas diante de seu interesse de realizar a receita tributária de forma concreta e eficiente. Na relação jurídica tributária, o sujeito passivo é a pessoa obrigada ao pagamento do tributo ou da penalidade pecuniária, podendo ser o contribuinte ou o responsável, conforme dicção do artigo 121 do Código Tributário Nacional. Como regra geral, o sujeito passivo é o contribuinte. É aquele que realiza o fato jurídico-tributário e deve efetuar o adimplemento da obrigação de índole pecuniária, além de cumprir os deveres instrumentais tributários. A sujeição passiva pode, no entanto, ser trasladada a terceiro alheio à relação jurídica tributária, conforme disciplina estabelecida entre os artigos 128 e 138 do Código Tributário Nacional. Enfrentaremos, no âmbito do presente estudo, uma das recentes alterações promovidas pelo novo Código de Processo Civil, qual seja o incidente de desconsideração da personalidade jurídica e a sua aplicação aos processos judicias e administrativos em matéria tributária. 1 Pós-Doutora pela Universidade de Lisboa. Doutora pela UFPR. Professora de Direito Tributário dos cursos de graduação e pós-graduação da UFPR. Visiting Scholar pela Universidade de Miami. E-mail: betina@grupenmacher.com.br. 2 2. Sujeição passiva e responsabilidade tributária A Constituição Federal atribui e distribui competências tributárias e, ao fazê-lo, desde logo, estabelece o arquétipo dos tributos e os possíveis critérios da regra-matriz de incidência. O critério pessoal indica os sujeitos da relação tributária, sendo o sujeito ativo o credor e o passivo aquele que pratica o fato jurídico-tributário. Precisamente em relação aos impostos, é aquele que manifesta uma das formas de riqueza previstas no texto constitucional e que, por essa razão, deve transferir parcela desta ao Estado, por meio do pagamento do tributo. Ocorre que, embora a Constituição Federal indique, desde logo, quem é o sujeito passivo da relação jurídica tributária, o legislador complementar, ao exercer sua prerrogativa de estabelecer normas gerais, definiu, no artigo 121 do Código Tributário Nacional, o sujeito passivo da respectiva obrigação principal e o fez nos seguintes termos: Art. 121. Sujeito passivo da obrigação principal é a pessoa obrigada ao pagamento do tributo ou à penalidade pecuniária. Parágrafo único. O sujeito passivo da obrigação principal diz-se: I - contribuinte, quando tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador; II - responsável, quando, sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei. Como regra, o devedor é aquele que pratica o fato que constitui a materialidade2 do arquétipo constitucional do tributo, que, em se tratando de impostos, revela manifestação de capacidade contributiva (fato signo-presuntivo de riqueza).3 No entanto, há hipóteses em que não é o contribuinte quem assume a condição de devedor do tributo, pois tal ônus é transferido para um terceiro, por disposição expressa em lei. Trata-se das hipóteses de responsabilidade tributária, que comportam duas modalidades, quais sejam: a responsabilidade por transferência e a por substituição. 2 O critério material revela o núcleo da regra-matriz de incidência e indica o fato tributável, o qual há de ser identificado pela busca de um verbo agregado a um complemento. Paulo de Barros Carvalho leciona acerca do critério material: “Nele há referência a um comportamento de pessoas, físicas ou jurídicas, condicionado por circunstâncias de espaço e tempo (critérios espacial e temporal)”.2 Ressalta que o comportamento de uma pessoa está representado na hipótese por um verbo agregado a um complemento, consideradas determinadas condições espaciais e temporais, afastando a utilização de verbos impessoais2 (CARVALHO, P. de B. Curso de Direito Tributário. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 326). 3 BECKER, A. A. Teoria Geral do Direito Tributário. 3. ed. São Paulo: Lejus, 1998. p. 497. 3 Quanto à responsabilidade por transferência, está assim prevista no artigo 128 do Código Tributário Nacional: Art. 128. Sem prejuízo do disposto neste Capítulo, a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação. A responsabilidade por transferência se opera em duas hipóteses: (i) quando o contribuinte deixa de efetuar o pagamento do tributo ou (ii) quando pratica uma das infrações descritas no artigo 135 do CTN, hipótese esta que tem, para Paulo de Barros Carvalho, natureza sancionatória.4 3. Responsabilidade tributária por infração à lei, ao contrato social e aos estatutos O artigo 135 do Código Tributário Nacional5 é reiteradamente invocado, pelas autoridades fazendárias, como fundamento para requerer o “redirecionamento” da execução fiscal tendente à cobrança do débito tributário, para o sócio, para o gerente ou para o administrador, sempre que for atestada a inexistência de acervo patrimonial da pessoa jurídica – contribuinte do tributo – apta a satisfazer a pretensão fazendária. O mero inadimplemento da prestação tributária, contudo, não autoriza a desconsideração da personalidade jurídica do contribuinte e a responsabilização pessoal do sócio, do gerente e do administrador. Para que a personalidade jurídica seja desconsiderada e, consequentemente, o débito seja redirecionado para os administradores, a autoridade fazendária deve demonstrar – de forma inequívoca – a prática de ação dolosa anterior ao nascimento da obrigação tributária e responsável pelo seu nascimento, para, após tal providência, inseri-los na condição de sujeito passivo da obrigação tributária. A análise detida dos preceitos que disciplinam a responsabilidade tributária demonstra, inequivocamente, que o legislador intentou resguardar o seu direito à percepção do tributo, elegendo, para tanto, pessoas relacionadas à prática da infração tributária que 4 “Nosso entendimento é no sentido de que as relações jurídicas integradas por sujeitos passivos alheios ao fato tributado apresentam natureza de sanções administrativas” (CARVALHO, P. de B. Curso de Direito Tributário. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 393). 5 Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos: I - as pessoas referidas no artigo anterior; II - os mandatários, prepostos e empregados; III - os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado. 4 desencadeou o nascimento do crédito tributário. Segundo dispunha o revogado artigo 10 do Decreto n. 3.708/1919, “os sócios- gerentes não respondem pessoalmente pelasobrigações contraídas em nome da sociedade, mas respondem para com esta e para com terceiros solidária e ilimitadamente pelo excesso de mandato e pelos atos praticados com violação do contrato ou da lei”. O Código Civil de 2002 introduziu novas regras acerca da responsabilidade dos administradores no ordenamento jurídico pátrio, estabelecendo disciplina própria para as hipóteses de ação dolosa e culposa no exercício da gerência. O artigo 50 do Código Civil6 regula a responsabilidade decorrente da ação dolosa do administrador, autorizando a desconsideração da pessoa jurídica, sempre que o administrador agir com abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial.7 Por dispor de liberdade para agir, praticando todos os atos necessários ao bom gerenciamento da sociedade, há circunstâncias em que o administrador utiliza sua autonomia para, dolosamente, cometer ilícitos tributários. Em tais circunstâncias, responderá pessoalmente pelo respectivo débito. Efetivamente, quando executada a pessoa jurídica, é possível – se devidamente comprovado o abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial – o redirecionamento da ação executiva para os gestores da sociedade, autores do ilícito descrito no artigo 50 do Código Civil. Por expressa aplicação do disposto no artigo 333, inciso I, do Código de Processo Civil, bem como diante da dificuldade de se produzir prova negativa da ação dolosa do eventual responsável tributário, a única conclusão admissível, em face do princípio da segurança jurídica, é a de que à Fazenda, com exclusividade, incumbe a prova da ocorrência de uma das hipóteses legais autorizadoras da responsabilização pessoal dos gestores. Reiteramos que, inicialmente, é o autor quem deve provar o que alega, dada a 6 Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. 7 A prática culposa do administrador que causa prejuízo à sociedade está, inclusive, prevista no artigo 1.016, do Código Civil: “Art. 1.016. Os administradores respondem solidariamente perante a sociedade e aos terceiros prejudicados, por culpa no desempenho de suas funções”. 5 circunstância de que os fatos afirmados são pressupostos do direito invocado e devem, por essa razão, ser demonstrados por quem afirma a existência do direito. Não se admite, portanto, a inversão do ônus probandi em hipóteses como as que são objeto de investigação no presente estudo. Ao realizar o pedido de redirecionamento da dívida tributária para o administrador, supostamente infrator, a autoridade fazendária deverá, de antemão, comprovar os fatos constitutivos de seu direito, pois a mera alegação da ocorrência de infração à lei, ao contrato social ou aos estatutos não é bastante em si mesma para autorizar a responsabilização pessoal do respectivo agente. Tais fatos, por serem constitutivos do alegado direito do sujeito ativo, devem ser, por isso, amplamente comprovados, quando da formulação de seu pedido. Nesse sentido, afirma também Rodrigo XAVIER LEONARDO: “A simples alegação da ocorrência dos fatos afirmados pelo autor, entretanto, não retira do autor a carga probatória sobre os fatos constitutivos”.8 Melhor esclarecendo, para a aplicação da regra de responsabilização pessoal prevista no artigo 135 do Código Tributário Nacional, a Autoridade Fazendária deverá comprovar a infração à lei, ao contrato social ou aos estatutos, quando for desencadeadora do nascimento da relação jurídica tributária. Ao sujeito passivo, por sua vez, incumbirá a prova de que foi diligente na administração da empresa, cumprindo todos os deveres decorrentes de tal múnus e que não praticou atos abusivos da personalidade jurídica. O executado deverá, portanto, fazer prova positiva da sua ação responsável e não prova negativa de uma atuação dolosa. Revela-se especialmente importante a regra do artigo 2º da Portaria PGFN n. 180/2010, que impõe que a inclusão do nome do corresponsável na CDA seja precedida de “declaração fundamentada” da autoridade competente. A relevância da referida regra deve- se ao fato de ser elemento neutralizador das inconsistências geradas por um sem número de decisões do Superior Tribunal de Justiça, na medida em que, embora o sócio e/ou o administrador tenham que fazer prova negativa sobre sua responsabilidade tributária, tal ônus ficará mitigado diante da necessária prova inconteste por parte da administração fazendária, para fins de inclusão dos seus respectivos nomes na CDA. Essas e as demais regras trazidas pela Portaria PGFN n. 180/2010 são dignas de 8 LEONARDO, R. X. Imposição e Inversão do Ônus da Prova. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 166. 6 nota por atribuírem maior segurança jurídica às relações entre fisco e contribuinte.9 Como registrou Maria Rita FERRAGUT, ao comentar o artigo 5º da referida Portaria, “tal prescrição revela-se como uma grande esperança de que as relações entre Fisco e contribuinte passarão a ser mais equilibradas. E a sociedade só tem a ganhar com isso”.10 4. Desconsideração da personalidade jurídica: pressupostos legais Segundo pontua Denise Lucena Cavalcante, o pedido de desconsideração da personalidade jurídica deverá observar os pressupostos previstos em lei, sempre ressaltando que este é um incidente excepcional, pois a regra, no direito brasileiro, é a separação das personalidades das pessoas jurídicas em relação aos seus sócios. Essa garantia não poderá, no entanto, ser uma regra absoluta, ao ponto de servir para acobertar fraudes e abusos de direito.11 Segundo a doutrina do disregard entity person, a autonomia patrimonial da pessoa jurídica é desconsiderada em situações de fraude e abuso na gestão empresarial e em hipóteses em que, excepcionalmente, admite-se a constrição patrimonial dos administradores. Não se trata de uma despersonificação da sociedade, mas de um afastamento temporário da personalidade jurídica.12 A compreensão de que as hipóteses arroladas no artigo 135 do Código Tributário Nacional estão diretamente relacionadas à desconsideração da personalidade jurídica não é unânime na doutrina. Há quem entenda que a responsabilização pessoal dos gestores, 9 GRUPENMACHER, B. T. Responsabilidade tributária de grupos econômicos. In: QUEIROZ, M. E.; BENÍCIO JÚNIOR, B. C. (Coords.). Responsabilidade de Sócios e Administradores nas Autuações Fiscais. São Paulo: Foco Fiscal, 2014. p. 55. 10 FERRAGUT, M. R. Portaria PGFN nº 180/2010 e a responsabilidade do administrador: um avanço. In: Revista Dialética de Direito Tributário, n. 178, p. 105, 2010. 11 CAVALCANTE, D. L. A responsabilidade solidária no caso dos grupos econômicos de fato. In: QUEIROZ, M. E.; BENÍCIO JÚNIOR, B. C. (Coords.). Responsabilidade de Sócios e Administradores nas Autuações Fiscais. São Paulo: Foco Fiscal, 2014. p. 88. 12 “Não se pode confundir a despersonificação com a desconsideração. Na primeira, a sociedade perde por completo a sua personalidade jurídica, enquanto, na desconsideração, a personalidade jurídica é afastada, temporariamente, para atingir o patrimônio dos sócios que se tenham utilizado da sociedade de forma fraudulenta. No mesmo sentido Rubens Requião (Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica, artigo publicado em 1969). Para alguns, a teoria da desconsideração da personalidade excepciona o princípio da separação patrimonial. Divirjo.A nosso ver, a teoria não é exceção a esse princípio, mas uma reafirmação dele, na medida em que não permite a utilização fraudulenta da sociedade pelos sócios, ou o desvio de finalidade” (GUSMÃO, M. Lições de Direito Empresarial. 10. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 157). 7 naquelas hipóteses, opera-se independentemente da desconsideração da personalidade jurídica. Ao se conceber tal compreensão como correta, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, previsto no novo Código de Processo Civil, não teria aplicação no âmbito do Direito Tributário, ao menos em relação às hipóteses descritas no artigo 135 do Código Tributário Nacional, quais sejam: infração à lei, ao contrato social ou aos estatutos, quando praticadas para desencadear o nascimento de relação jurídica tributária. Observamos que, segundo a dicção do dispositivo em questão, haverá responsabilidade pessoal do sócio com poderes de gerência ou do administrador sempre que a obrigação tributária decorrer da prática de ato ilícito consistente em infração à lei, ao contrato social ou aos estatutos. Ou seja, para que se opere a responsabilização pessoal por dívidas da pessoa jurídica, a relação jurídica tributária há de ter nascido em consequência de prática das pessoas indicadas no dispositivo em questão, em infração à lei, ao contrato social ou aos estatutos, da qual decorra a obrigação tributária que originou o crédito. A intepretação do disposto no artigo 135 do Código Tributário Nacional impõe o reconhecimento de que a responsabilização pessoal dos indivíduos nele arrolados só se opera se a relação tributária, cujo polo passivo é ocupado pela empresa, irrompeu no universo jurídico como decorrência direta do fato doloso e infracional praticado por um daqueles sujeitos. Ocorre que, na prática, a aplicação da regra em questão pelo STJ, como também pelos tribunais intermediários, não observa os critérios impostos pelo legislador para reconhecer a responsabilização pessoal tal qual prevista no artigo 135 do Código Tributário Nacional. Tem sido reiteradamente admitida a responsabilização dos administradores, independentemente do fato de o débito inadimplido ter nascido em decorrência de infração à lei, ao contrato social ou aos estatutos. Segundo entendimento assente na jurisprudência pátria, não encontrados bens da empresa para satisfazer o débito tributário e havendo pedido do representante da fazenda pública nesse sentido, a ação de execução fiscal poderá ser redirecionada para o sócio com poderes de gerência ou para o administrador, independentemente de terem sido os promotores do fato desencadeador no nascimento da relação jurídica tributária, embora em todos os casos o fundamento jurídico invocado e aceito para que se opere a responsabilização 8 pessoal seja o artigo 135 do Código Tributário Nacional. Ou seja, na quase totalidade das hipóteses em que se opera o redirecionamento da ação executiva, o artigo 135 do Código Tributário Nacional é equivocamente invocado como fundamento de validade, inclusive e especialmente nas hipóteses de dissolução irregular da sociedade. Embora não prevista expressamente no artigo 135 do Código Tributário Nacional, a dissolução irregular é admitida como hipótese de infração à lei, inclusive sumulada pelo STJ.13 Tal entendimento está, no entanto, segundo pensamos, equivocado. Em coerência com os argumentos apresentados até aqui, acreditamos que a dissolução irregular só poderia autorizar a responsabilização pessoal dos administradores se ela própria tiver sido determinante para o nascimento da relação jurídica tributária. Ocorre que não é o que se dá na prática. Independentemente de ter desencadeado a obrigação inadimplida, a dissolução da sociedade, é o fundamento frequentemente invocado pela fazenda pública e aceito pelo Poder Judiciário para que se dê o redirecionamento da execução. Conforme pondera Maria Rita FERRAGUT, “há responsabilidade quando a infração resulta na obrigação tributária”.14 E ainda: “como o artigo 135 determina que o fato lícito resulte na obrigação tributária, ele deverá ser, necessariamente, anterior a ela, para poder implicá-la”.15 Diante de tal circunstância, o que se verifica concretamente é a responsabilização pessoal dos administradores, sem que tenham efetivamente praticado qualquer dos atos capitulados no artigo 135 do Código Tributário Nacional, o que nos permite concluir, com razoável margem de segurança, que, embora a regra aqui enfrentada não contemple hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica e, sim, de responsabilidade pessoal dos sujeitos nela arrolados,16 a instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica conferirá, por certo, maior segurança jurídica às partes envolvidas, que poderão, por meio de dilação probatória, comprovar a subsunção ou não às hipóteses do artigo 135 do Código 13 SÚMULA N. 435-STJ: Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente. 14 FERRAGUT, M. R. Responsabilidade Tributária e o Código Civil de 2002. 3. ed. São Paulo: Noeses, 2013. p. 141. 15 FERRAGUT, M. R. Ob. cit., p. 142. 16 O que impõe o reconhecimento de que a obrigação tributária surge apenas aparentemente com a empresa no polo passivo, mas que, de fato, diante da prática de ato infracional, o débito sempre teve que ser saldado pessoalmente pelos sujeitos descritos no texto normativo. 9 Tributário Nacional. Por outro lado, no âmbito da jurisprudência pátria, há decisões que inserem a hipótese de dissolução irregular entre aquelas arroladas no artigo 137 do Código Tributário Nacional, 17 as quais autorizam a responsabilização pessoal do agente que praticou as infrações descritas neste artigo. O disposto no artigo 137 estabelece a responsabilização exclusiva do agente, quando age em nome e por conta de terceiro, no que se distingue do disposto no artigo 136,18 que atribui a responsabilidade por infrações à legislação tributária ao agente ou ao responsável. Segundo se infere das hipóteses contempladas no artigo 137, o propósito do legislador foi: em relação ao disposto no inciso I, responsabilizar aqueles que praticam crimes ou contravenções buscando reduzir a carga tributária ou impedir o nascimento da relação jurídica tributária, o que, aliás, é lógico e coerente, eis que quem pratica crime ou contravenção com o objetivo de deixar de pagar tributos ou reduzir a carga tributária há de responder pessoalmente pela prática criminosa e pelo ilícito tributário. Embora o disposto no artigo 136 refira-se apenas ao ilícito tributário, aquele decorrente do mero inadimplemento ou do descumprimento dos deveres instrumentais e formais, e o artigo 137 integre o capítulo concernente às infrações tributárias, que se inaugura com o artigo 136, o inciso I do artigo 137 estabelece a responsabilidade pessoal do agente da infração tributária quando prevista na legislação penal. O disposto no inciso II alcança as hipóteses em que o agente busca consequências específicas com a prática do ilícito, ou seja, o dolo é específico para atingir um resultado determinado. Finalmente, quanto ao inciso III, este trata das hipóteses em que os responsáveis tributários, agindo em nome e por conta dos seus representados, praticam ilícitos tributários. 17 Art. 137. A responsabilidade é pessoal ao agente: I - quanto às infrações conceituadas por lei como crimes ou contravenções, salvo quando praticadas no exercício regular de administração, mandato, função, cargo ou emprego, ou no cumprimento de ordem expressa emitida por quem de direito; II - quanto às infrações em cuja definição o dolo específico do agenteseja elementar; III - quanto às infrações que decorram direta e exclusivamente de dolo específico: a) das pessoas referidas no artigo 134, contra aquelas por quem respondem; b) dos mandatários, prepostos ou empregados, contra seus mandantes, preponentes ou empregadores; c) dos diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado, contra estas. 18 Art. 136. Salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato. 10 É relevante destacar, afinal, que as regras veiculadas pelo inciso III, alíneas a e b, são complementares ao disposto no artigo 135, que estabelece a responsabilidade pessoal do sócio, gerente, mandatário ou empregado que deixa de pagar o tributo infringindo a lei, o contrato social ou os estatutos. Em ambos os dispositivos, está estabelecida a responsabilização pessoal do agente e que agiu dolosamente. No primeiro, pelo crédito; no segundo, pela penalidade. A dissolução irregular da sociedade, como afirmamos anteriormente, não se subsume à regra do artigo 135 do Código Tributário Nacional, ou seja, não é fato apto a desencadear o nascimento da relação jurídica autorizadora da responsabilização pessoal dos administradores e, nesse sentido, embora as decisões judiciais apliquem o artigo 135 para responsabilização pessoal dos sujeitos nele referidos, há efetivamente uma “distorção” na referida interpretação: a uma porque a dissolução irregular não é prévia ao nascimento da relação jurídica tributária; a duas porque o que se opera de fato a partir do entendimento pretoriano é a desconsideração da personalidade jurídica e não a responsabilização pessoal. Também, segundo pensamos, não se subsume às hipóteses do artigo 137, porque não é ilícito penal tributário, assim capitulado na legislação penal de regência, não são todas as hipóteses de dissolução irregular que se configuram como infração cujo dolo específico é elementar ou, ainda, infração cometida pelos gestores contra a empresa; assim, há efetivamente uma lacuna normativa quanto à responsabilização pessoal na hipótese de dissolução irregular, o que move o Poder Judiciário, segundo pensamos, a adotar o artigo 135 do Código Tributário Nacional como fundamento genérico de validade para a responsabilização pessoal, o que faz, destarte, desconsiderando a personalidade jurídica da empresa – sujeito passivo da obrigação – devedora do crédito tributário. 5. O incidente de desconsideração de personalidade jurídica e a responsabilidade por infrações tributárias Embora na maior parte dos casos os gestores da empresa inadimplente possam acompanhar e produzir defesa na esfera administrativa, pois estão indicados na CDA como possíveis responsáveis tributários, a efetiva desconsideração da personalidade jurídica do contribuinte opera-se no âmbito da execução fiscal, quando (i) não forem encontrados bens 11 da empresa para satisfazer a pretensão fazendária19 e (ii) for atestada a prática de uma das infrações arroladas no artigo 135 do Código Tributário Nacional, oportunidade em que a Fazenda Pública requer o “redirecionamento” da execução para o/os responsável/eis tributário/os. Verificada as referidas circunstâncias de fato, o juiz determina a inclusão do responsável no polo passivo do executivo fiscal, a fim de que responda pessoalmente pelo respectivo débito, ordenando a sua citação para que pague ou indique bens a serem penhorados, essa é a oportunidade em que usualmente é apresentada a exceção de pré- executividade, com o propósito de exclusão do administrador do polo passivo da demanda. Ocorre que, por ser fruto de construção pretoriana, a utilização da exceção de pré-executividade como instrumento de defesa sempre esteve envolta em intensa controvérsia, tanto na doutrina20 quanto na jurisprudência. O embate funda-se no fato de que, além de não estar positivada no sistema jurídico, a exceção de pré-executividade, quando admissível, só pode ser utilizada para oposição de argumentos relativos à matéria de direito, que independam de dilação probatória. Sendo certo que a verificação dos pressupostos necessários à desconsideração da personalidade jurídica em matéria tributária envolve, necessariamente, a produção de provas tendentes a afastar a alegação de que houve prática de infração à lei, ao contrato social ou aos estatutos, ou, ainda, de dissolução irregular de sociedade, muitas vezes o responsável 19 Conforme dispõe o artigo 1º, da Lei n. 6.830, aplicam-se à execução fiscal subsidiariamente as disposições do Código de Processo Civil. Assim como o disposto no artigo 795, do novo CPC, também o artigo 4º, § 3º, da citada Lei de Execuções Fiscais, prevê que bens do sócio responsável só responderão pelo débito se os da empresa não forem suficientes para tanto. É o que se verifica dos referidos dispositivos: Art. 795, do novo CPC: “Os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade, senão nos casos previstos em lei. § 1o O sócio réu, quando responsável pelo pagamento da dívida da sociedade, tem o direito de exigir que primeiro sejam executados os bens da sociedade. § 2o Incumbe ao sócio que alegar o benefício do § 1o nomear quantos bens da sociedade situados na mesma comarca, livres e desembargados bastem para pagar o débito. § 3o O sócio que pagar a dívida poderá executar a sociedade nos autos do mesmo processo. § 4o Para a desconsideração da personalidade jurídica, é obrigatória a observância do incidente previsto neste Código”. E art. 4º, § 3º, da Lei n. 6.830: “Os responsáveis, inclusive as pessoas indicadas no § 1º deste artigo, poderão nomear bens livres e desembaraçados do devedor, tantos quantos bastem para pagar a dívida. Os bens dos responsáveis ficarão, porém, sujeitos à execução, se os do devedor forem insuficientes à satisfação da dívida”. 20 Mary Elbe QUEIROZ, de forma elucidativa, inventaria os requisitos para aplicar a desconsideração da personalidade jurídica, assim sintetizados: “i) existência de uma obrigação legal; ii) obrigação não cumprida; iii) o não cumprimento esteja relacionado com outro ato ilícito; iv) abuso da personalidade jurídica decorrente de desvio de finalidade ou confusão patrimonial; v) a desconsideração será aplicada e procedida por autoridade judicial; vi) a pessoa que está habilitada a requerer a desconsideração seja o credor ou Ministério Público” (QUEIROZ, M. E. A elisão e a evasão fiscal: o planejamento tributário e a desconsideração de atos, negócios e personalidade jurídica. In: TORRES, H. T.; QUEIROZ, M. E. (Coords.). Desconsideração da Personalidade Jurídica em Matéria Tributária. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 137). 12 tributário não consegue ilidir a sua responsabilidade de imediato com a só apresentação da exceção de pré-executividade, e a solução acaba se verificando de forma definitiva no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, momento em que, muitas vezes, já houve constrição patrimonial, ora de forma devida, ora indevida. Com a entrada em vigor do novo CPC, a desconsideração da personalidade jurídica só se dará após a decisão judicial que acolher definitivamente o respectivo pedido. A inserção no ordenamento jurídico positivo do incidente de desconsideração da personalidade jurídica evitará que a matéria continue sendo discutida em sede de exceção de pré-executividade, o que, em tudo e por tudo, a par de gerar insegurança jurídica para o contribuinte, pode ocasionar prejuízos ao erário, decorrentes da morosidade na realização da receita tributária. Diante da prática reiterada de desconsideração da personalidade jurídica operada por requerimento das Fazendas Públicas e acatada pelos juízes e tribunais pátrios, com a entrada em vigor do novo CPC, a desconsideraçãoda personalidade jurídica poderá ser requerida pela parte interessada ou pelo Ministério Público – quando lhe couber intervir no processo –,21 na petição inicial22 ou, incidentalmente, em qualquer das fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução de título extrajudicial – é extensível, portanto, à execução da CDA –, sendo aplicável, inclusive, para a desconsideração inversa da personalidade jurídica.23 Examinado o pedido formulado na petição inicial ou incidentalmente, e convencendo-se da probabilidade da existência dos pressupostos aptos a autorizar a desconsideração da personalidade jurídica, o juiz admitirá o incidente; caso contrário, dará oportunidade para que o requerente demonstre a presença dos pressupostos autorizadores do pedido. Impõe-se ressaltar que os pressupostos para desconsideração da personalidade jurídica são estabelecidos por cada um dos ramos do direito material; no direito tributário, aplica-se subsidiariamente àqueles arrolados no artigo 50, do Código Civil. 21 Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo. 22 Art. 134. § 2o. Dispensa-se a instauração do incidente se a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, hipótese em que será citado o sócio ou a pessoa jurídica. 23 Art. 133. § 2o. Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica. 13 Embora os Tribunais tenham fundamentado a desconsideração da personalidade jurídica em matéria tributária no artigo 135 do Código Tributário Nacional, tal entendimento parte, segundo compreendemos, de uma interpretação distorcida do dispositivo em questão. A responsabilização pessoal decorrente do artigo 135 só está autorizada quando o ilícito tributário for prévio ao nascimento da relação jurídica tributária e é exclusiva do agente, nunca solidária ou subsidiária, o que afasta a hipótese de desconsideração da personalidade jurídica. Não estamos afirmando, no entanto, que não há hipótese de desconsideração da personalidade jurídica no direito tributário. Haverá sempre que sócios com poderes de gerência e administradores incidirem nas práticas descritas no artigo 50 do Código Civil. Segundo pondera Alexandre Freitas CÂMARA: “Ao Código de Processo Civil incumbe, tão somente, regular o procedimento do incidente de desconsideração da personalidade jurídica (o qual será sempre o mesmo, qualquer que seja a natureza da relação jurídica de direito substancial deduzida no processo)”.24 Atestada da probabilidade da desconsideração da personalidade jurídica, o juiz receberá o pedido e instaurará o incidente, determinando a citação do sócio ou da pessoa jurídica – em caso de desconsideração inversa –, para que se manifeste e requeira as provas cabíveis. Todos os meios de prova são admissíveis. A citação é o marco a partir do qual presume-se fraudulenta qualquer alienação patrimonial realizada pelo sócio ou pela empresa. Como referido em linhas anteriores, o incidente pode ser instaurado em qualquer fase do processo de conhecimento, inclusive na fase recursal, quando será requerido ao relator do feito, o qual, assim como o juiz de primeiro grau de jurisdição, fará o juízo de admissibilidade, verificando presença ou não dos pressupostos autorizadores da desconsideração da personalidade jurídica, determinando a citação do requerido para que se manifeste sobre o pedido. Segundo dispõe o artigo 137 do novo CPC, “acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente”. Embora a interpretação isolada do referido dispositivo possa levar a crer que o termo a quo para fins de caracterização de fraude à execução seja o 24 CÂMARA, A. F. In: WAMBIER, T. A. A. et al. Breves Comentários ao CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 427. 14 da instauração do incidente, se interpretado conjuntamente com o disposto no artigo 792, § 3º, do mesmo diploma processual,25 a conclusão é a de que se considera fraude à execução qualquer alienação patrimonial levada à cabo após a citação. Efetivamente, antes da citação, o sócio ou a empresa – na hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica – ignoram a possiblidade da desconsideração da personalidade jurídica e, portanto, não faz sentido que a só decretação do incidente tenha o condão de estabelecer o marco inaugural para consideração de fraude à execução. Merece destaque a previsão de atribuição do efeito suspensivo decorrente da instauração do incidente de desconsideração de personalidade jurídica,26 efeito este que, com rara frequência, era atribuído à exceção de pré-executividade, o que, como ponderamos, em alguns casos, gerava a constrição indevida do patrimônio do suposto responsável tributário, o que, a despeito de ocasionar prejuízos àquele cujo patrimônio foi comprometido, também não é do interesse da Administração Fazendária, a qual, em nome do interesse público, busca perceber o que é efetivamente devido pelo sujeito passivo da obrigação tributária. Ressalta-se que a suspensão do processo se opera apenas na hipótese de a desconsideração da personalidade jurídica ter sido requerida incidentalmente, não se aplicando na hipótese de pedido formulado na petição inicial; e diz respeito à suspensão imprópria, já que o processo não permanecerá integralmente paralisado, pois o incidente terá o seu curso normal, o que permanecerá suspenso será o curso de todos os atos processuais, exceto os urgentes, que não digam respeito ao incidente. Conforme leciona Alexandre Freitas CÂMARA: Fica claro, então, que não se está diante da verdadeira e própria suspensão do processo. O que se tem é, apenas, a vedação à prática de certos atos do processo (aqueles que não integram o procedimento incidente), o que perdurará até que o incidente de desconsideração seja decidido. Há, pois, apenas uma suspensão imprópria, assim considerada a vedação temporária à prática de alguns atos do processo, permitida a prática de outros (no caso é permitida a prática dos atos processuais referentes ao processamento do incidente de desconsideração da personalidade jurídica). Enquanto pendente o incidente, então, os atos que não lhe digam respeito não poderão ser praticados. Fica, de todo modo, ressalvada a possibilidade de prática de atos urgentes, destinados a impedir a consumação de algum dano irreparável, nos restritos termos do disposto no artigo 134. 25 Art. 792, § 3o. Nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, a fraude à execução verifica-se a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar. 26 Art. 134, § 3º. 15 Encerrada a dilação probatória, o juiz proferirá a sua decisão, cuja natureza interlocutória permite a oposição de agravo de instrumento, conforme, inclusive, está previsto no artigo 1.015, inciso IV, do novo CPC, que arrola quais são as decisões agraváveis.27 Se, na fase recursal, a decisão for do relator, caberá agravo interno nos termos do artigo 1.021 do novo CPC.28 6. A desconsideração da personalidade jurídica e o processo administrativo fiscal O NCPC estabelece, em seu artigo 15, que “Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente”. Para os fins do presente estudo, interessa-nos, particularmente, a referência ao processo administrativo, precisamente o processo administrativo tributário. A interpretação sistemática das regras do NCPC, em especial daquelas insertas no capítulo I – concernentesàs normas fundamentais do processo civil –, demonstra que a pretensão do legislador foi estabelecer uma Teoria Geral do Processo, aplicável não apenas ao processo civil, mas aos processos judiciais ou administrativos em que se decidem controvérsias atinentes a todos os ramos do Direito e, embora o legislador não tenha feito referência expressa a todos eles, pensamos que o dispositivo há de ser interpretado extensivamente para alcançá-los. Exemplo claro de que foi essa a intenção do legislador processual do NCPC são as regras relativas aos precedentes judiciais e à sua necessária observância pela administração pública, o que se verifica, em especial, quanto ao incidente de resolução de demandas 27 No novo sistema processual, só serão agraváveis as decisões interlocutórias expressamente referidas no artigo 1.015, quais sejam as que versarem sobre: “I - tutelas provisórias; II - mérito do processo; III - rejeição da alegação de convenção de arbitragem; IV - incidente de desconsideração da personalidade jurídica; V - rejeição do pedido de gratuidade da justiça ou acolhimento do pedido de sua revogação; VI - exibição ou posse de documento ou coisa; VII - exclusão de litisconsorte; VIII - rejeição do pedido de limitação do litisconsórcio; IX - admissão ou inadmissão de intervenção de terceiros; X - concessão, modificação ou revogação do efeito suspensivo aos embargos à execução; XI - redistribuição do ônus da prova nos termos do art. 373, § 1º, XII - (VETADO); XIII - outros casos expressamente referidos em lei. Parágrafo único. Também caberá agravo de instrumento contra decisões interlocutórias proferidas na fase de liquidação de sentença ou de cumprimento de sentença, no processo de execução e no processo de inventário”. 28 Art. 1.021. Contra decisão proferida pelo relator, caberá agravo interno para o respectivo órgão colegiado, observadas, quanto ao processamento, as regras do regimento interno do tribunal. 16 repetitivas e à observância da respectiva decisão pela administração pública, no que concerne aos contratos de concessão, permissão e autorização para a prestação de serviços públicos.29 Assim, partindo-se da premissa de que as normas estabelecidas no NCPC são aplicáveis aos processos judiciais e administrativos em que se decidem controvérsias de todos os ramos do direito, inclusive o tributário, cumpre investigar em que medida será permitida e possível tal aplicação. O artigo 15 do NCPC não só determinou a aplicação das suas disposições aos processos administrativos, além dos eleitorais e trabalhistas, mas também restringiu tal aplicação às hipóteses em que inexistam normas que regulassem os referidos processos, acrescendo que a aplicação das suas disposições dar-se-á de forma supletiva ou subsidiária. Aparentemente, o dispositivo em questão contém uma contradição interna, pois, ao mesmo tempo em que restringe a aplicação das normas processuais às hipóteses de lacuna nas leis de regência dos processos que elenca, estabelece que as normas do NCPC lhes serão aplicadas subsidiaria ou supletivamente. Subsidiariedade e supletividade não são figuras análogas ou mesmo afins. Segundo o Dicionário Digital da Língua Portuguesa Caldas Aulete, subsidiário indica a condição daquele que “subsidia, auxilia”,30 e supletivo a condição daquele que “completa, que serve de suplemento”.31 Conforme se verifica das definições em questão, os significados dos termos subsidiário e supletivo não se equivalem e se assim o são, há de se distinguir a aplicação do NCPC em uma e em outra hipótese, sobretudo no que toca os processos administrativos, gênero no qual se insere a espécie “processo administrativo tributário”. Embora haja expressa referência no texto normativo à “ausência de norma” regulatória, o legislador não se referiu apenas à aplicação supletiva do NCPC aos processos administrativos, no preciso sentido de colmatação de lacunas, mas autorizou também a sua 29 Art. 985. Julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada: I - a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou região; II - aos casos futuros que versem idêntica questão de direito e que venham a tramitar no território de competência do tribunal, salvo revisão na forma do art. 986. § 1o Não observada a tese adotada no incidente, caberá reclamação. § 2o Se o incidente tiver por objeto questão relativa a prestação de serviço concedido, permitido ou autorizado, o resultado do julgamento será comunicado ao órgão, ao ente ou à agência reguladora competente para fiscalização da efetiva aplicação, por parte dos entes sujeitos a regulação, da tese adotada. 30 Dicionário Digital Caldas Aulete. Disponível em: <http://www.aulete.com.br/subsidiario>. Acesso em: 12 set. 2015. 31 Dicionário Digital Caldas Aulete. Disponível em: <http://www.aulete.com.br/supletivo>. Acesso em: 12 set. 2015. 17 aplicação subsidiária, o que, conquanto antinômico com a alusão à “ausência de norma” – já que nessa hipótese a aplicação seria apenas supletiva –, guarda coerência com a intenção do legislador de atribuir ao NCPC a condição de veículo introdutor de uma nova Teoria Geral do Processo. Ao reportar-se à aplicação subsidiária das regras do NCPC ao processo administrativo, o que intencionou o legislador foi determinar que, mesmo diante da completude da respectiva legislação de regência, as suas disposições – as do NCPC – devem auxiliar e dirigir a atividade do intérprete, inclusive daqueles envolvidos na condução dos processos administrativos – entre eles os tributários –, que são aqueles que de perto nos interessam. Assim, as disposições no NCPC, uma vez em vigor, poderão subsidiar e suplementar a aplicação das leis regulatórias dos processos administrativos fiscais (PAFs). Importa destacar que, embora o CPC possa ser aplicado supletiva e subsidiariamente aos PAFs, as normas que os regulam devem prevalecer quando em conflito com as normas do CPC, pois, diante da antinomia entre norma genérica e norma especial, por imposição do critério da especialidade, aplica-se a última (qual seja a específica, regulatória do PAF) em detrimento da primeira (qual seja o CPC, que ostenta a condição de norma genérica). Por outro lado, na hipótese de ausência de norma disciplinadora de alguma situação específica em relação aos PAFs, a legislação processual só poderá ser empregada supletivamente se compatível com o rito do respectivo processo administrativo. É neste preciso ponto que cabe a análise sobre a aplicabilidade do incidente de desconsideração da personalidade jurídica aos PAFs. É certo que, como regra, a legislação regulatória dos PAFs nos âmbitos federal estadual e municipal não contempla a possiblidade de instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica, tal qual o faz o NCPC, assim, a aplicação da disciplina criada pelo NCPC seria supletiva e não subsidiária. Cumpre, no entanto, investigar se o incidente de desconsideração da personalidade jurídica é compatível com os PAFs. Pensamos que não. É certo que a participação do responsável tributário no processo administrativo de verificação da legalidade do lançamento, quando houver indícios da prática de ilícito, quer 18 nas hipóteses do artigo 135 do Código Tributário Nacional, quer nas do artigo 137 do mesmo diploma legal, é imprescindível em homenagem ao princípio do contraditório e do devido processo legal, sob pena de nulidade do respectivo procedimento. Embora a jurisprudência reconheça a necessidade da indicação dos possíveis responsáveis tributários na CDA, para que não se opere a sua nulidade, pensamos que a mera indicação dos nomes dosadministradores na referida certidão é de todo insuficiente para garantir o contraditório e o devido processo legal. Em toda e qualquer hipótese em que haja indícios da prática de ilício pela pessoa física, deverá esta ter a oportunidade de produzir defesa e apresentar provas na via administrativa, inclusive e sobretudo, com vistas a se eximir da suposta responsabilidade tributária. Ocorre que, diante da inaplicabilidade do incidente de desconsideração da personalidade jurídica ao processo administrativo, para que se alcance o mesmo resultado que se obterá com a sua aplicação no âmbito do processo judicial, qual seja a observância do artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal, se a Administração Fazendária verificar a prática do ilícito antes da lavratura do auto de infração, deverá incluir o responsável tributário no respectivo ato administrativo de imposição da penalidade, propiciando-lhe, desde logo, juntamente com a pessoa jurídica, a possibilidade de impugnação e produção de defesa. Se, por outro lado, durante o trâmite do processo administrativo fiscal, constatar-se que o administrador praticou algum dos ilícitos previstos nos artigos 135 ou 137 do Código Tributário Nacional, a Administração Fazendária deverá lavrar novo auto de infração contra a pessoa física, o que só poderá ocorrer, ressalvamos, se ainda não tiver decorrido o prazo decadencial.32 Observados esses pressupostos, pensamos que estará por igual garantida a segurança jurídica das partes envolvidas nos atos administrativos de cobrança do crédito e de imposição da penalidade. 32 Maria Rita Ferragut compactua de tal entendimento quando afirma: “Não haverá nulidade se a apuração final dos fatos concluir que a responsabilidade pelo pagamento da dívida não deva ser do administrador. Já na hipótese inversa, o processo terá se instaurado em face de pessoa não devedora, o que gera sua nulidade por vício formal. Ocorrendo essa situação, o fisco deverá lavrar novo auto de infração, desta vez contra o administrador, gerando novo processo administrativo se o auto for impugnado. Tal fato, porém, só poderá ocorrer se o prazo decadencial não tiver se exaurido, conforme já visto anteriormente” 32 (FERRAGUT, M. R. Responsabilidade Tributária e o Código Civil de 2002. 3. ed. São Paulo: Noeses, 2013. p. 206 e 207). 19 A suspenção da eficácia da pessoa jurídica é, em princípio, prerrogativa exclusiva do julgador no âmbito do processo judicial e a partir do NCPC não pode ser feita informalmente, ou seja, sem que se observe o contraditório e o devido processo legal, assegurados com a tramitação do incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Finalmente, não vislumbramos a possibilidade de aplicação do incidente de desconsideração da personalidade jurídica aos PAFs, pois sendo certo que a atribuição da personalidade jurídica se dá por ato administrativo praticado pelo Registro de Comércio, não se admite o afastamento dos seus efeitos por autoridade administrativa diversa, qual seja a autoridade fazendária. 7. Considerações finais São muitos, sem dúvida, os aspectos positivos trazidos pelo incidente de desconsideração da personalidade jurídica e, entre todos eles, o mais importante é a sua aptidão de materialização da garantia ao devido processo legal e ao contraditório, já que a Constituição Federal assegura no artigo 5º, incisos LIV e LV,33 que ninguém será privado de seus bens sem a observância do devido processo legal, sendo assegurado o contraditório e a ampla defesa no processo judicial e, também, no administrativo. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica é, portanto, um avanço que imprimirá maior segurança e certeza às relações entre a administração fazendária e o sujeito passivo da relação jurídica tributária, seja ele contribuinte ou responsável, garantido que a chamada teoria maior – aquela que só autoriza a desconsideração da personalidade jurídica se comprovado o abuso tendente à prática do desvio de finalidade e da confusão patrimonial, tal qual estabelecido no artigo 50 do Código Civil – prevaleça sobre a teoria menor – segundo a qual, o mero inadimplemento autoriza a desconsideração da personalidade jurídica. O que, como ressaltado em passagem anterior do presente texto, já é a orientação seguida pela Administração Fazendária Federal, segundo o que disciplina a Portaria PGFN n. 180/2010. Na mesma linha do que estabelece a referida Portaria da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, também o § 4º do artigo 134 do novo CPC, que impõe que o requerimento 33 LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. 20 de desconsideração esteja acompanhado da comprovação de preenchimento dos pressupostos legais autorizadores da medida. Em matéria de direito tributário, o maior avanço trazido pela criação do incidente de desconsideração da personalidade jurídica foi a possiblidade de realização plena do direito ao contraditório, permitindo ao responsável que demonstre a sua ausência de responsabilidade ou, se comprovada a sua atuação dolosa, substitua de imediato aquele que integra polo passivo da relação processual, assumindo a condição de executado. Diante da regra constante do artigo 15 do NCPC e inexistindo na disciplina regulatória dos PAFs a previsão de procedimento análogo ao incidente de desconsideração da personalidade jurídica tal qual previsto no NCPC, poder-se-ia admitir-lhes a sua aplicação, no entanto, quer pela incompatibilidade procedimental, quer pelo fato de que uma autoridade administrativa não pode desconsiderar ato produzido por outra, ou seja, a autoridade fazendária não pode desconsiderar ato praticado pela autoridade que conferiu a personalidade jurídica, qual seja a do Registro de Comércio, o incidente em questão não se aplica aos processos administrativos em que se discute matéria tributária. Referências BECKER, A. A. Teoria Geral do Direito Tributário. 3. ed. São Paulo: Lejus, 1998. CARVALHO, P. de B. Curso de Direito Tributário. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. CAVALCANTE, D. L. A responsabilidade solidária no caso dos grupos econômicos de fato. In: QUEIROZ, M. E.; BENÍCIO JÚNIOR, B. C. (Coords.). 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