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Exercício para o dia 13/5 (Vale dois pontos da terceira menção) Prefácio PRINCÍPIOS DA FILOSOFIA DO DIREITO G. W. F. Hegel LEIA AS SEGUINTES TRANSCRIÇÕES E RESPONDA AS DUAS QUESTÕES NO FINAL O primeiro motivo que me levou a publicar este esboço foi a necessidade de oferecer aos meus ouvintes um fio condutor para as lições que oficialmente ministro sobre a Filosofia do Direito. Este manual é o desenvolvimento mais completo e mais sistemático das idéias fundamentais sobre o mesmo assunto expostas na Enciclopédia das ciências filosóficas que dediquei também ao ensino (Heidelberg, 1817). Um segundo motivo explica que este esboço apareça impresso e, assim, atinja também o grande público: o desejo de que as notas, que primitivamente não deviam passar de breves alusões a concepções mais próximas ou mais divergentes, a conseqüências longínquas, etc., e ulteriormente seriam explicadas nas lições, nesta redação se tenham desenvolvido umas vezes para esclarecer o conteúdo mais abstrato do texto, outras para tornarem mais explícita a referência a idéias atualmente correntes. Disso nasceu uma série de observações mais extensas do que as habitualmente abrangidas nos limites e no estilo de um resumo. No seu sentido próprio, um resumo tem por objeto uma ciência que se dá por acabada, e a sua singularidade reside essencialmente, a não ser alguma breve indicação suplementar aqui e ali, na composição e ordem dos momentos essenciais de um conteúdo dado, há muito admitido, conhecido e apresentado segundo regras e processos definitivos. Ora, de um esboço filosófico não se pode esperar esse caráter de definitivo, que mais não seja porque a filosofia, como obra, pode imaginar- se um manto de Penélope que à noite se desfia e todos os dias recomeça desde o princípio. O que, desde logo, diferencia este ensaio de um resumo é o método que o dirige. Supomos, porém, admitido que a maneira como a filosofia passa de uma matéria para outra ou fornece uma demonstração científica, que o que é conhecimento especulativo em geral se distingue de qualquer outro modo de conhecimento. Só reconhecendo a necessidade deste caráter singular se poderá arrancar a filosofia à vergonhosa decadência em que a vemos nos nossos dias. É certo ter-se já reconhecido, ou, antes, ter-se sentido em vez de reconhecer-se, que as regras da antiga lógica, da definição, da classificação e do raciocínio que contêm as regras da intelecção não convêm à ciência especulativa. Rejeitaram-se essas regras, é certo, mas como se fossem simples cadeias, para se passar a dissertar arbitrariamente, de acordo com o sentimento e a imaginação e ao sabor das intuições. Como, por isso, não se pôde ir além da reflexão e das relações intelectuais, obedece-se inconscientemente aos desdenhados processos habituais de dedução e raciocínio. Na minha Ciência lógica desenvolvi completamente a natureza do saber especulativo. Neste presente ensaio, apenas acrescento, num ou noutro ponto, alguns esclarecimentos sobre a marcha das idéias e o método. E, como a matéria é tão concreta e contém tanta diversidade, não cuidei de sublinhar em todos os pormenores a continuidade lógica. Poderia isso ser considerado como supérfluo pois, por um lado, supõe-se conhecido o método científico e, por outro lado, será por si mesmo evidente que tanto o conjunto como o desenvolvimento das partes se fundam no espírito lógico. Queria eu, todavia, que se considerasse e julgasse este tratado tendo em especial atenção esse aspecto, pois aquilo de que se trata é a ciência e na ciência o conteúdo encontra-se essencialmente ligado à forma. Aqueles que parecem mais preocupados com o que há de mais profundo, esses poderão decerto dizer que a forma é algo de exterior e alheio à natureza da coisa, e esta é tudo o que importa; poderão dizer que a missão do escritor, e sobretudo do filósofo, é descobrir verdades, afirmar verdades, divulgar verdades e conceitos válidos. Mas, se depois de os ouvir, formos verificar como na realidade cumprem essa missão, o que encontraremos será sempre o mesmo velho palavreado, cozido e recozido. Terá esta ocupação o mérito de formar e despertar sentimentos, mas antes deverá considerar-se como uma agitação supérflua. "Têm eles Moisés e os profetas ouçam-nos" (Lc 16, 29). O que sobretudo nos espanta é o tom e a pretensão que assim se manifestam, como se o que sempre tivesse faltado no mundo fossem esses zelosos propagadores de verdades, como se a velha sopa recozida trouxesse novas e inauditas verdades, como se fosse sempre "precisamente agora" a ocasião de as ouvir. Por outro lado, verifica-se que um lote de tais verdades propostas aqui é submergido e abafado por outras verdades da mesma espécie divulgadas ali. Como é que se pode distinguir dessas considerações informes e infundadas o que nesse turbilhão de verdades não é velho nem novo, mas permanente? Como isso se pode distinguir e assegurar, senão pela ciência? Aliás, no direito, na moralidade e no Estado, a verdade é tão antiga como o seu aparecimento e reconhecimento nas leis, na moral pública e na religião. Uma vez que o espírito que pensa não se limita a possuí-Ia nessas formas, imediatas, só pode ter para com ela a atitude de a conceber e de encontrar uma forma racional para um conteúdo que já o é em si. Em conseqüência, este conteúdo ficará justificado para o pensamento livre que, em vez de se encerrar no que é dado - esteja este dado apoiado na autoridade positiva do Estado ou no acordo entre os homens ou na autoridade do íntimo sentimento e do testemunho imediato da aprovação do espírito -, só a si mesmo toma como princípio e por isso tem de estar intimamente unido à verdade. A atitude do sentimento ingênuo é simplesmente a de se limitar à verdade publicamente reconhecida, com uma confiante convicção, e de, sobre esta firme base, estabelecer a sua conduta e a sua posição na vida. A esta atitude simples desde logo se opõe a dificuldade que resulta da infinita diversidade de opiniões, que não permite distinguir e determinar o que nelas poderá haver de universalmente válido; facilmente se pode, no entanto, imaginar que esta dificuldade, verdadeira e seriamente, provém da natureza das coisas. Mas, na realidade, aqueles que julgam tirar partido desta dificuldade ficam na situação de não ver a floresta por causa das árvores: estão em face de um obstáculo e de uma dificuldade que eles mesmos ergueram. Mais ainda: tal obstáculo é a prova de que o que pretendem não é o que é reconhecido e válido universalmente, não é a substância do direito e da moralidade objetiva. Pois se disso verdadeiramente se tratasse, e não da vaidade e da individualidade da sua opinião e do seu ser, não se afastariam do direito substancial, das regras da moralidade objetiva e do Estado, e a elas conformariam suas vidas. Mas o homem pensa e é no pensamento que procura a sua liberdade e o princípio da sua moralidade. Este direito, por mais nobre e divino que seja, logo se transforma em injustiça se o pensamento só a si mesmo reconhece e apenas se sente livre quando se afasta dos valores universalmente reconhecidos, imaginando descobrir algo que lhe seja próprio. Dir-se-ia que, atualmente, é nas questões que se referem ao Estado que se encontra a mais forte raiz daquelas representações segundo as quais a prova de que um pensamento é livre seria o inconformismo e até a hostilidade contra os valores publicamente reconhecidos e, por conseguinte, uma filosofia do Estado deveria ser especialmente formulada para inventar e expor mais uma teoria mas, bem entendido, uma teoria nova e particular. Quando se considera tal concepção, bem como os processos que dela resultam, chega a parecer-nos que nunca houve ainda sobre a Terra, como ainda não haverá hoje, nenhum Estado nem nenhuma Constituição Política. Seria a partir de "agora" (e este "agora" renova-se sempre indefinidamente) preciso recomeçar tudo desde o princípio, pois o mundo moral teria esperado atéo momento presente que fosse profundamente pensado e se lhe desse uma base. Quanto à natureza, concede-se que a filosofia deve conhecêla tal como ela é, que, se em algum lugar se oculta a pedra filosofal, sempre será a natureza que se encontra, que ela contém em si a sua razão, razão que a natureza deve conceber, não nas formas contingentes que à superfície se mostram, mas na sua harmonia eterna; é a sua lei imanente e a sua essência que a ciência deverá investigar. Pelo contrário, o mundo moral, o Estado, a razão tal como existe no plano da consciência de si nada ganhariam em ser realmente aquilo onde a razão se ergue ao poder e à força, se afirma imanente a essas instituições. O universo espiritual deveria ser abandonado à contingência e à arbitrariedade, ser abandonado de Deus, embora, segundo este ateísmo do mundo moral, a verdade se encontre fora deste mundo, de onde resulta que também a razão se encontra fora dele e que, portanto, a verdade tem uma existência problemática. Daí provém o direito e também o dever de cada pensamento levantar o seu vôo, mas não para procurar a pedra filosofal, pois na filosofia do nosso tempo a investigação é dispensável e todos têm a certeza de sem esforço poderem dispor daquela pedra. Acontece, então, que aqueles que vivem na realidade efetiva do Estado e nisso encontram a satisfação do seu saber e da sua vontade (e esses são muitos mais do que os que disso têm consciência pois, no fundo, todos aí vivem) ou, pelo menos, aqueles que conscientemente encontram a sua satisfação no Estado, desdenham de tanta presunção e segurança, tomam-nas como uma brincadeira sem sentido, mais ou menos séria, mais ou menos perigosa. Esta inquieta agitação da reflexão e da vaidade, o acolhimento e o favor de que goza seriam coisa sem importância que se manifestaria no seu ambiente e à sua maneira, se, por causa dela, a filosofia não se expusesse ao desprezo e ao descrédito. A forma mais grave de tal desprezo consiste, como se disse, em cada um estar convencido de saber, de uma vez por todas, algo sobre a filosofia em geral e estar em condições de a discutir. Nenhuma arte, nenhuma ciência está exposta a tão fundo grau de desprezo como quando qualquer um pode julgar dominá-la. Efetivamente, quando vemos o que, sobre o Estado, a filosofia contemporânea produziu com toda sua pretensão, temos de admitir que quem tiver a fantasia de se meter nesses assuntos com boas razões se pode persuadir de que facilmente tira de si mesmo qualquer coisa de semelhante, e assim concluir que está na posse da filosofia. Aliás, essa chamada filosofia expressamente declarou que a verdade não pode ser conhecida, ou é o que cada um ergue de dentro de si, do seu sentimento e do seu entusiasmo sobre os objetos morais, particularmente sobre o Estado, o Governo, a Constituição. O que não se disse a este respeito, sobretudo no gosto da juventude e que a juventude escuta de bom grado! A frase da Escritura: "Ele dá aos eleitos durante o sono" foi aplicada à ciência e não houve sonhador que não se contasse entre os eleitos. Os conceitos que assim recebem enquanto dormem deveriam, pois, construir a verdade. Um corifeu desta vil doutrina, que dá a si mesmo o nome de filósofo, um tal Fries, não se envergonhou de, numa solenidade pública que ficou célebre, fazer um discurso sobre o projeto do Estado e da Constituição, em que propunha esta idéia: "No povo onde reina um verdadeiro espírito comum, as funções de interesse público devem possuir uma vida que lhes vem de baixo, do povo. A tudo o que for obra de cultura popular e de serviço do povo se devem consagrar as sociedades, indissoluvelmente unidas pelos sagrados laços da amizade", e assim sucessivamente. Esta sensaboria consiste essencialmente em fundamentar a ciência não no desenvolvimento dos pensamentos e dos conceitos, mas no sentimento imediato e na imaginação contingente, e em dissolver no fervilhar do coração, da amizade e do entusiasmo a rica articulação íntima do mundo moral que é o Estado, a sua racional arquitetura, que, pela nítida distinção do que é a vida pública e sua respectiva legitimidade, pelo rigor do cálculo que segura cada pilar, cada arco, cada contraforte, constrói a força do todo, a harmonia dos seus membros. Como Epicuro faz com o mundo em geral, esta concepção abandona, ou, antes, deveria abandonar, o mundo moral à contingência subjetiva da opinião e da arbitrariedade. Este remédio caseiro, que consiste em tornar dependente do sentimento o trabalho muitas vezes milenar do pensamento e do intelecto, talvez sirva para dispensar todo o esforço de cognição e inteligência racional dirigidos pelos conceitos do pensamento. Em Goethe (uma boa autoridade), Mefistófeles diz o que já citei noutro livro: "Se desdenhares da inteligência e da ciência, que são os dons mais altos da humanidade, entregas-te ao diabo e estás perdido." Àquela concepção só faltava vestir também as roupagens da piedade. E que processos procuraram para se autorizar? Na santidade divina e na Bíblia julgaram encontrar a mais alta justificação para desprezar a ordem moral e a objetividade das leis. É que é, sem dúvida, a piedade que relaciona a verdade, que no mundo se explicita num domínio organizado, com a intuição mais simples do sentimento. Mas, se ela for de uma pura espécie, abandona a forma própria a esta região e logo sai do domínio interior para entrar na luz da renúncia, onde a riqueza da Idéia se revela. O que conserva da prática do serviço divino é o respeito por uma verdade e uma lei existentes em si e para si e elevadas acima da forma subjetiva do sentimento. Podemos também aqui observar a forma particular de má consciência que se manifesta na eloqüência com que aquela vulgaridade se enfatua. Em primeiro lugar, onde é menos espiritual é que fala mais do espírito; onde a sua linguagem é mais morta e coriácea é onde mais pronuncia as palavras "vida" e "vivificar"; onde manifesta mais amor-próprio e orgulhosa vaidade é onde tem sempre na boca a palavra "povo". Mas o mais característico sinal que traz na fronte é ódio à lei. O direito, a moralidade e a realidade jurídica e moral concebem-se através de pensamentos, adquirem a forma racional, isto é: universal e determinada, por meio de pensamento. É isso o que constitui a lei, e esta sentimentalidade que se arroga o arbitrário, que faz consistir o direito na convicção subjetiva, tem bons motivos para considerar a lei como o seu pior inimigo. A forma que o direito assume no dever e na lei aparece-lhe como letra morta e fria, como uma prisão. Nela não se pode reconhecer, nela não se pode encontrar a sua liberdade, pois a lei é a razão em cada coisa e não permite que o sentimento se exalte na sua própria particularidade. A lei é também, como se verá no decurso deste manual, a pedra de toque com que se distinguem os falsos amigos e os pretensos irmãos daquilo a que chamam o povo. Ora, como estes trapaceiros do livre-arbítrio se apossaram do nome da filosofia e conseguiram convencer uma grande parte do público de que tal maneira de pensar é a filosofia, tornou-se quase uma desonra falar filosoficamente da natureza do Estado, e não podemos queixar-nos das pessoas honestas que manifestam a sua impaciência ao ouvir falar de uma ciência filosófica do Estado. Menos nos admiraremos de ver os governos acabarem por se acautelar de tal filosofia, tanto mais que entre nós a filosofia não é cultivada, à maneira dos gregos, como uma arte privada, mas possui uma existência pública ao serviço, principalmente, da coletividade ou até, exclusivamente, do Estado. Os governos que afirmaram a sua confiança nos sábios consagrados a esta disciplina, à responsabilidade deles, entregando completamente o desenvolvimento e a continuidade da filosofia, ou aqueles que, menos por confiança do que por indiferença para com esta ciência, certas cadeiras mantiveram por tradição (como, ao que sei, se mantiveram na França as cadeiras de metafísica), tais governos viram-semal pagos da confiança que os moveu; e se, em um ou outro caso, foi a indiferença que os terá movido, o resultado obtido, que é a decadência de todo o conhecimento profundo, poderá ser considerado como o castigo dessa indiferença. É certo que, à primeira vista, aqueles pensamentos vulgares serão perfeitamente conciliáveis com a ordem e a tranqüilidade exteriores, pois não chegam a aflorar, nem sequer a pressentir a substância das coisas e, do ponto de vista policial, de nada se poderão acusar. Mas o Estado contém em si a exigência de uma cultura e de uma inteligência mais profundas e carece da satisfação da ciência. Além disso, depressa aquele gênero de pensamentos por si mesmo cai, quando considera o direito, a moralidade e o dever, nos princípios que, em cada um desses domínios, constituem precisamente o erro superficial, os princípios dos sofistas que Platão nos transmitiu, os princípios que fundamentam o direito em finalidades e opiniões subjetivas, no sentimento e na convicção particulares, os princípios de que provêm não só a destruição da moralidade interior, da consciência jurídica, do amor e do direito entre pessoas privadas, como também a da ordem pública e das leis do Estado. Não podemos iludir-nos sobre a significação que tais fenômenos são suscetíveis de adquirir para os governos que podem deixar-se transviar pelo prestígio de títulos com os quais, e apoiando- se na confiança concedida e na autoridade das funções, se exige do Estado que feche os olhos à corrupção dos princípios gerais, origem substancial dos atos, e que alimente assim a revolta como se isso não fosse contraditório. Um velho gracejo diz que "a quem Deus dá uma função dá também a competência"; hoje ninguém o tomará a sério. Se as circunstâncias despertaram nos governos o sentido da importância dos métodos e do espírito da filosofia, é preciso não desconhecer a proteção e o auxílio de que, em muitos outros aspectos, o estudo da filosofia hoje carece. Efetivamente, quando se lêem as produções de ciência positiva ou religiosas ou literárias, não só se verifica como ó desprezo da filosofia se manifesta em pessoas que, completamente desatualizadas quanto ao desenvolvimento das idéias e visivelmente estrangeiras à filosofia, a tratam como algo ultrapassado, mas também como abertamente se encarniçam contra ela e declaram que o seu conteúdo - o conhecimento conceituai de Deus e da natureza física e espiritual, o da verdade - é uma presunção louca ou pecaminosa. Sempre e incessantemente, a razão é acusada, diminuída e condenada. Sempre, pelo menos, se dá a entender que, na prática científica ideal, as reivindicações do conceito são incômodas. Quando nos vemos em face de tais fenômenos, é lícito perguntarmo-nos se a tradição ainda terá suficiente força para honrosamente assegurar ao estudo da filosofia a tolerância e a existência públicas'. Tais declarações e tais ataques, hoje correntes, contra a filosofia oferecem-nos pois este curioso espetáculo: por um lado, só são possíveis devido à degenerescência e degradação desta ciência, por outro lado têm a mesma base que essas idéias que assim atacam com ingratidão. Com efeito, essa chamada filosofia, ao dizer que o conhecimento da verdade é uma tentativa insensata, torna idênticos a virtude e o vício, a honra e a desonra, a sabedoria e a ignorância, nivelando todos os pensamentos e todos os objetos de modo análogo ao que o despotismo imperial de Roma utilizou para a nobreza e os escravos. Assim, os conceitos de verdade, as leis morais nada mais serão do que opiniões e convicções subjetivas e, enquanto convicções, os princípios criminosos são colocados na mesma categoria das leis. Não haverá, por conseguinte, objeto que, por mais pobre ou mais particular, nem matéria que, por mais vazia, não possa ter a mesma dignidade daquilo que constitui o interesse de todos os homens que pensam e dos laços do mundo moral. Todavia, devemos considerar como foi uma felicidade para a ciência (aliás, é isso que está de acordo com a necessidade das coisas) que tal filosofia, que podia ter se desenvolvido em si mesma como uma doutrina escolar, viesse se apresentar na mais íntima relação com a realidade, onde os princípios do direito e do dever acabam sempre por se afirmar com seriedade e onde sempre reina a luz da consciência. Aí a ruptura tinha, desde logo, de se manifestar. É por causa desta situação da filosofia perante a realidade que os erros se evidenciam, e repito o que já antes observei: porque é precisamente o fundamento do racional, a filosofia é a inteligência do presente e do real, não a construção de um além que só Deus sabe onde se encontra ou que, antes, todos nós sabemos onde está – no erro, nos raciocínios parciais e vazios. No decurso desta obra indicarei que A República de Platão, imagem proverbial de um ideal vazio, se limita essencialmente a apreender a natureza da moralidade grega. Teve Platão a consciência de um princípio mais profundo cuja falta era uma brecha nessa moralidade mas que, na consciência que dele assim possuía, apenas podia consistir numa aspiração insatisfeita e tinha portanto de aparecer como um princípio corrupto. Arrebatado por esta aspiração, procurou Platão um recurso contra isso; mas tal recurso, tal socorro só podia vir do alto e, por isso, nada mais podia fazer do que procurá-lo numa forma exterior e particular daquela moralidade. Julgando que assim se tornava senhor da corrupção, o que alcançava era apenas ferir intimamente o que havia de mais profundo: a personalidade livre infinita. No entanto, mostrou Platão o grande espírito que era pois, precisamente, o princípio em volta do qual gira tudo o que há de decisivo na sua idéia é o princípio em volta do qual gira toda a revolução mundial que então se preparava: O que é racional é real e o que é real é racional Esta é a convicção de toda consciência livre de preconceitos e dela parte a filosofia tanto ao considerar o universo espiritual como o universo natural. Quando a reflexão, o sentimento e em geral a consciência subjetiva de qualquer modo consideram o presente como vão, o ultrapassam e querem saber mais, caem no vazio e, porque só no presente têm realidade, eles mesmos são esse vazio. Quanto ao ponto de vista inverso, o daqueles para quem a Idéia só vale no sentido restrito de representação da opinião, a esses opõe a filosofia a visão mais verídica de que só a idéia, e nada mais, é real, e então do que se trata é de reconhecer na aparência do temporal e do transitório a substância que é imanente e o eterno que é presente. Com efeito, o racional, que é sinônimo da Idéia, adquire, ao entrar com a sua realidade na existência exterior, uma riqueza infinita de formas, de aparências e de manifestações, envolve-se, como as sementes, num caroço onde a consciência primeiro se abriga mas que o conceito acaba por penetrar para surpreender a pulsação interna e senti-Ia bater debaixo da aparência exterior. São infinitas as diversas situações que surgem nesta exterioridade durante a aparição da essência, mas não cumpre à filosofia regulá-las. Se o fizesse, misturar-se-ia com assuntos que não lhe pertencem, e pode portanto dispensar- se de dar conselhos sobre eles. Bem podia Platão ter-se dispensado de recomendar às amas que nunca estivessem quietas com as crianças e incessantemente as embalassem nos braços, como Fichte de querer aperfeiçoar o policiamento das identificações a ponto de pretender que se pusesse nos bilhetes de identidade dos suspeitos não apenas os seus sinais, mas também os seus retratos. Em tais declarações não há o menor traço de filosofia, que antes deve despreocupar-se de tão extrema prudência, precisamente porque lhe cumpre mostrar-se liberal para com essa imensa espécie de pormenores. Assim se apresentará imune daquela hostilidade que uma crítica vazia dirige às circunstâncias e às instituições, hostilidade em que a mediocridade quase sempre se compraz porque nela obtém a satisfação desi mesma. É assim que este nosso tratado sobre a ciência do Estado nada mais quer representar senão uma tentativa para conceber o Estado como algo de racional em si. É um escrito filosófico e, portanto, nada lhe pode ser mais alheio do que a construção ideal de um Estado como deve ser. Se nele está contida uma lição, não se dirige ela ao Estado, mas antes ensina como o Estado, que é o universo moral, deve ser conhecido: Hic Rhodus, hic saltus. A missão da filosofia está em conceber o que é, porque o que é a razão. No que se refere aos indivíduos, cada um é filho do seu tempo; assim também para a filosofia que, no pensamento, pensa o seu tempo. Tão grande loucura é imaginar que uma filosofia ultrapassará o mundo contemporâneo como acreditar que um indivíduo saltará para fora do seu tempo, transporá Rhodus. Se uma teoria ultrapassar estes limites, se construir um mundo tal como entenda dever ser, este mundo existe decerto, mas apenas na opinião, que é um elemento inconsciente sempre pronto a adaptar-se a qualquer forma. Um pouco modificada, a fórmula expressiva seria esta: Aqui está a rosa, aqui vamos danar. O que há entre a razão como espírito consciente de si e a razão como realidade dada, o que separa a primeira da segunda e a impede de se realizar é o estar ela enleada na abstração sem que se liberte para atingir o conceito. Reconhecer a razão como rosa na cruz do sofrimento presente e contemplá-la com regozijo, eis a visão racional, medianeira e conciliadora com a realidade, o que procura a filosofia daqueles que sentiram alguma vez a necessidade interior de conceber e de conservar a liberdade subjetiva no que é substancial, de não a abandonar ao contingente e particular, de a situar no que é em si e para si. Isso é também o que constitui o sentido concreto do que já designamos, de maneira abstrata, como unidade da forma e do conteúdo. Com efeito, em sua mais concreta significação, a forma é a razão como conhecimento conceitua) e o conteúdo é a razão como essência substancial da realidade moral e também natural. A identidade consciente do conteúdo e forma é a Idéia filosófica. Uma grande obstinação, mas que dá honra ao homem, a de recusar reconhecer o que quer que seja dos nossos sentimentos que não esteja justificado pelo pensamento, obstinação característica dos tempos modernos. É esse, aliás, o princípio do protestantismo. O que Lutero começara a apreender, como crença, no sentimento e no testemunho do espírito é o que o espírito, posteriormente amadurecido, se esforçou por conceber na forma de conceito para assim no presente se libertar e reencontrar. Uma frase célebre ensina que meia filosofia afasta de Deus é aquela metade que atribui ao saber uma aproximação da verdade), mas que a verdadeira filosofia conduz a Deus, e o mesmo acontece com o Estado. Assim também a razão não se contenta com uma aproximação, que não é nem quente nem fria e portanto tem de ser vomitada (Ap 3, 16). Tampouco se contenta com aquele frio desespero que, reconhecendo que neste mundo tudo está mal, mais ou menos mal, acrescenta que nada pode haver de melhor, e conclui que o que é preciso é viver em paz com a realidade; ora, a paz que nasce do verdadeiro conhecimento é uma paz mais calorosa. Para dizermos algo mais sobre a pretensão de se ensinar como deve ser o mundo, acrescentaremos que a filosofia cega sempre muito tarde. Como pensamento do mundo, só aparece quando a realidade efetuou e completou o processo da sua formação. O que o conceito ensina mostra-o a história com a mesma necessidade: é na maturidade dos seres que o ideal se ergue em face do real, e depois de ter apreendido o mundo na sua substância reconstrói-o na forma de um império de idéias. Quando a filosofia chega com a sua luz crepuscular a um mundo já a anoitecer, é quando uma manifestação de vida está prestes a findar. Não vem a filosofia para a rejuvenescer, mas apenas reconhecê-la. Quando as sombras da noite começaram a cair é que levanta vôo o pássaro de Minerva. É tempo de terminar este prefácio. Como prefácio, apenas pretendeu indicar, exterior e subjetivamente, o ponto de vista do escrito que precede. Se filosoficamente se tem de falar de um assunto, o único método adequado é o científico e objetivo e, por isso, o autor considerará como acréscimo subjetivo, comentário arbitrário e, portanto, indiferente toda a refutação que não assuma a forma de um estudo científico do objeto. Berlim, 25 de junho de 1820. Responda às seguintes questões: 1) Em que medida pode-se relacionar universidade e razão na filosofia do direito moderno e como tal relação se distingue ou se aproxima dos pensamentos jurídicos anteriores, clássico e medieval? 2) Como se deve entender o seguinte texto de Hegel nos "Princípios da Filosofia do Direito"? Neste texto em específico contra que Filosofia do direito ele fala e o que propõe? Por quê? "Em certo tempo, falou-se muito da oposição entre a moral e a política, e da exigência de a primeira dirigir a segunda. Apenas devemos mostrar que o bem do estado tem uma legitimidade muito diferente da do bem dos indivíduos e da substância moral, que o Estado adquire imediatamente a sua existência, quer dizer, o seu direito em algo concreto e não abstrato." Agora leia atentamente o texto e identifique resumidamente as principais críticas entabuladas por Marx à Filosofia do Direito de Hegel: Para a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel Karl MARX I N T R O D U Ç Ã O No caso da Alemanha, a crítica da religião foi em grande parte completada; e a crítica da religião é o pressuposto de toda a crítica. A existência profana do erro está comprometida, depois que a sua celestial oratio pro aris et focis foi refutada. O homem, que na realidade fantástica do céu, onde procurara um ser sobre-humano, encontrou apenas o seu próprio reflexo, já não será tentado a encontrar a aparência de si mesmo – um ser não humano – onde procura e deve buscar a sua autêntica realidade. É este o fundamento da crítica irreligiosa: o homem faz a religião; a religião não faz o homem. E a religião é, de facto, a autoconsciência e o sentimento de si do homem, que ou ainda não se conquistou ou voltou a perder-se. Mas o homem não é um ser abstracto, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Este Estado e esta sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoria geral deste mundo, o seu resumo enciclopédico, a sua lógica em forma popular, o seu point d’honneur espiritualista, o seu entusiasmo, a sua sanção moral, o seu complemento solene, a sua base geral de consolação e de justificação. É a realização fantasmal da essência humana, porque aessência humana não possui verdadeira realidade. Por conseguinte, a luta contra a religião é indirectamente a luta contra aquele mundo cujo aroma espiritual é a religião. A miséria religiosa é, ao mesmo tempo, a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o âmago de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. É o ópio do povo. A abolição da religião enquanto felicidade ilusória dos homens é a exigência da sua felicidade real. O apelo para que eles deixem as ilusões a respeito da sua situação é o apelo para abandonarem uma situação que precisa de ilusões. A crítica da religião é, pois, em germe a crítica do vale de lágrimas de que a religião é a auréola. A crítica colheu nas cadeias as flores imaginárias, não para que o homem suporte as cadeias sem fantasia ou sem consolação, mas para que lance fora as cadeias e colha a flor viva. A crítica da religião liberta o homem da ilusão, de modo que ele pense, actue e configure a sua realidade como homem que perdeu as ilusões e recuperou o entendimento, a fim de que ele gire à volta de si mesmo e, assim, à volta do seu verdadeiro sol. A religião é apenas o sol ilusório quegira à volta do homem enquanto ele não gira à volta de si mesmo. Por isso, a tarefa da história, depois que o além da verdade se desvaneceu, é estabelecer a verdade do aquém1. A imediata tarefa da filosofia, que está ao serviço da história, é desmascarar a autoalienação humana nas suas formas não sagradas, agora que ela foi desmascarada na sua forma sagrada. A crítica do céu transformase deste modo em crítica da terra, a crítica da religião em crítica do direito, a crítica da teologia em crítica da política. A seguinte exposição2 – um contributo para semelhante empreendimento – não se ocupa directamente do original, mas de uma cópia, a filosofia alemã do Estado e do direito, pela simples razão de versar sobre a Alemanha. Se se pretendesse começar pelo próprio status quo na Alemanha, mesmo da maneira mais adequada, isto é, negativamente, o resultado seria ainda um anacronismo. A própria negação do nosso presente político é já um facto poeirento na arrecadação histórica dos povos modernos. Posso negar as perucas empoadas, mas fico ainda com perucas desempoadas. Se nego a situação alemã de 1843 dificilmente chego, segundo a cronologia francesa, ao ano de 1789, e ainda menos ao centro vital do período actual. A história alemã orgulha-se, de facto, de um movimento que nenhuma outra nação antes realizou ou virá alguma vez a imitar no firmamento histórico. Participámos nas restaurações de povos modernos, sem termos tomado parte nas suas revoluções. Fomos restaurados, primeiro, porque houve nações que ousaram fazer revoluções e, em segundo lugar, porque outras nações sofreram contrarevoluções; no primeiro caso, porque os nossos governantes tiveram medo e, no segundo, porque nada recearam. Nós, com os nossos pastores à frente, só uma vez nos encontrámos na sociedade da liberdade, no dia do seu enterro. Uma escola que legitima a infâmia de hoje pela infâmia de ontem, uma escola que considera todo o grito do servo sob o látego como grito de rebelião, desde que o látego se tornou um látego venerável pela idade, ancestral e histórico, uma escola à qual a história, como o Deus de Israel ao seu servo Moisés, só mostra o seu a posteriori, a Escola histórica do direito3, teria, pois, inventado a história alemã, se ela não fosse realmente uma invenção da história alemã. Um Shylock, mas um Shylock servil, que jura por cada libra de carne cortada do coração do povo, pela sua caução, pela sua caução histórica, pela sua caução germano-cristã. 1A contraposição é aqui entre ‘além’ – ‘aquém’, isto é, entre o ‘outro mundo’ e ‘este mundo’, como pressuposto na visão religiosa, sobretudo judeocristã – objecto da crítica marxiana. 2Alusão de Marx ao seu projecto de um escrito crítico da Filosofia do Direito de Hegel, a que estas páginas serviriam de introdução. 3O corifeu da Escola histórica foi F. K. von Savigny (1719-1861), sobretudo com o seu programa expresso no livro Vom Beruf unserer Zeit für Gesetzgebung und Rechtswissenschaft (Da vocação da nossa época para a legislação e a jurisprudência), Heidelberg, 1814. Marx assistiu às suas lições na Universidade de Berlim em 1836-7; atraíram-no mais, porém, as lições de Eduard Gans (1798-1839), hegeliano liberal influenciado por Saint-Simon que, no seu ensino e nos seus escritos, realçava o papel da razão na evolução do direito, além de ser o principal opositor de Savigny em Berlim. Em contrapartida, entusiastas bonacheirões, chauvinistas alemães pelo sangue e liberais esclarecidos por reflexão, buscam a nossa história de liberdade para lá da nossa história, nas primitivas florestas teutónicas. Mas qual a diferença da história da nossa liberdade em relação à história da liberdade do javali selvagem, se apenas se encontrar nas florestas? Além disso, como é sabido: o que na floresta se grita, a floresta o ecoa. Por isso, paz às primitivas florestas teutónicas! Guerra à situação na Alemanha! Sem dúvida! Semelhante situação está abaixo do nível da história, abaixo de toda a crítica; mas continua a ser um objecto da crítica, tal como o cristianismo, que está abaixo do nível da humanidade, continua a ser objecto do carrasco. Na luta contra esta situação, a crítica não é uma paixão da cabeça, mas a cabeça da paixão. Não é um bisturi anatómico, mas uma arma. O seu alvo não é um inimigo que ela procura refutar, mas destruir. Pois o espírito de tal situação já foi refutado. Não é em si e por si um objecto digno do nosso pensamento; é uma existência tão desprezível como desprezada. A crítica já não necessita da ulterior elucidação do seu objecto, porque já chegou a um acordo. A crítica já não é fim em si, mas apenas um meio; a indignação é o seu pathos essencial, e a denúncia a sua principal tarefa. Trata- se de descrever a pressão sufocante que as diferentes esferas sociais exercem umas sobre as outras, o mau humor universal, mas passivo, a estreiteza de espírito complacente, mas que se ilude a si própria; incorporada num sistema de governo que vive pela conservação da indigência e que é a própria indigência no governo. Que espectáculo! A sociedade encontra-se infinitamente dividida nas mais diversas raças, que se defrontam umas às outras com suas mesquinhas antipatias, má consciência e grosseira mediocridade; e que precisamente por causa da sua situação ambígua e suspeitosa, são tratadas sem distinção, embora de modos diferentes, como existências apenas toleradas pelos senhores. E vêem-se forçadas a reconhecer e a admitir o facto de serem dominadas, governadas e possuídas como uma concessão do céu! Do outro lado encontram-se os próprios governantes, cuja grandeza está numa relação inversa ao seu número! A crítica que se ocupa deste assunto é a crítica num combate corpo a corpo; e semelhante combate não oferece vantagem para saber se o adversário é da mesma categoria, se é nobre ou interessante – o que conta é atingi-lo. Trata-se de recusar aos Alemães um instante sequer de ilusão e de resignação. A pressão deve ainda tornar-se mais urgente pelo facto de se despertar a consciência dela, e a ignomínia tem ainda de se tornar mais ignominiosa pelo facto de se trazer à luz pública. Cada esfera da sociedade alemã deve descrever-se como a partie honteuse da sociedade alemã; e estas condições sociais petrificadas têm de ser compelidas à dança, fazendo-lhes ouvir o canto da sua própria melodia! O povo deve aprender a aterrar-se de si mesmo, de modo a ganhar coragem. Satisfazer-se-á assim uma imperiosa necessidade da nação alemã, e as necessidades dos povos são justamente as causas finais da sua satisfação. Mesmo a respeito das nações modernas, a luta contra o teor limitado do status quo alemão não carece de interesse; para o alemão, o status quo constitui a evidente consumação do ancien regime e o ancien régime é a imperfeição oculta do Estado moderno. A luta contra o presente político dos Alemães é a luta contra o passado dos povos modernos, que ainda se vêem continuamente importunados pelas reminiscências do seu passado. Para as nações modernas, é instrutivo ver o ancien régime, que na sua história representou uma tragédia, desempenhar um papel cómico como espectro alemão. A sua história foi trágica, porque era o poder preexistente do mundo, ao passo que a liberdade era uma fantasia pessoal; numa palavra, enquanto acreditou e tinha de acreditar na sua própria legitimidade. Enquanto o ancien régime, como ordemdo mundo existente, lutou contra um mundo que estava precisamente a emergir, houve da sua parte um erro histórico, mas não um erro pessoal. O seu declínio, portanto, foi trágico. Em contrapartida, o actual regime alemão, que é um anacronismo, uma flagrante contradição em face de axiomas universalmente aceites – a nulidade do ancien régime revelada a todo o mundo -, supõe apenas que acredita em si e pede a todo o mundo para compartilhar a sua ilusão. Se acreditasse na sua própria natureza, tentaria ele ocultá-la sob a aparência de uma natureza estranhae buscar a salvação na hipocrisia e num sofisma? O moderno ancien régime é apenas o comediante de uma ordem do mundo cujos heróis reais já estão mortos. A história é sólida e passa por muitas fases, ao levar uma formação antiga ao sepulcro. A última fase de uma formação histórico- mundana é a comédia. Os deuses gregos, já mortalmente feridos na tragédia de Ésquilo, Prometeu Agrilhoado, tiveram de suportar uma segunda morte, uma morte cómica, nos diálogos de Luciano. Porque tem a história este curso? Para que a humanidade se separe alegremente do seu passado. Reivindicamos este rejubilante destino histórico aos poderes políticos da Alemanha. Mas logo que a crítica se ocupa da moderna realidade social e política, logo que a crítica se eleva assim aos autênticos problemas humanos, tem ou de sair do status quo alemão ou de apreender o seu objecto sob o seu objecto. Um exemplo! A relação da indústria, do mundo da riqueza em geral, ao mundo político, é um dos problemas fundamentais da idade moderna. De que maneira começa este problema a preocupar os Alemães? Sob a forma de tarifas proteccionistas, do sistema de proibição, da economia política. O chauvinismo alemão passou dos homens para a matéria, de modo que um belo dia os nossos cavaleiros do algodão e heróis do ferro se viram metamorfoseados em patriotas. A soberania do monopólio na Alemanha começou a ser reconhecida desde que se começou a atribuir-lhe a soberania em relação ao exterior. Por conseguinte, na Alemanha, começa-se por aquilo que na França ena Inglaterra já chegou ao fim. A ordem antiga e podre, contra a qual estas nações se revoltam teoricamente e que apenas suportam como cadeias, é saudada na Alemanha como a aurora de um futuro glorioso que, até agora, a custo ousa mover-se de uma teoria astuta4para uma prática implacável. Enquanto na França e na Inglaterra o problema se põe assim: economia política ou o domínio da sociedade sobre a riqueza, na Alemanha apresenta-se deste modo: economia nacional ou domínio da propriedade privada sobre a nacionalidade. Portanto, na Inglaterra e na França trata-se de abolir o monopólio, que se desenvolveu até às últimas consequências, ao passo que na Alemanha se trata de caminhar para as consequências finais do monopólio. Além, trata-se de uma solução; aqui, trata-se apenas de uma colisão. É um exemplo suficiente da forma alemã dos problemas modernos, um exemplo de como a nossa história, tal como um recruta principiante, só teve, até agora, de fazer exercícios adicionais em assuntos históricos velhos e banais. Se a totalidade do desenvolvimento alemão não fosse além da evolução política alemã, seria impossível que um alemão tivesse mais interesse nos problemas contemporâneos do que um russo. Se o indivíduo singular não é coarctado pelas barreiras da nação, ainda menos a nação será libertada através da libertação de um indivíduo. O facto de um cita ter sido um dos filósofos gregos 5 não capacitou os Citas para dar sequer um passo em direcção à cultura grega. Felizmente, nós, Alemães, não somos citas. Assim como os povos do mundo antigo viveram a sua préhistória na imaginação, na mitologia, assim nós, Alemães, vivemos a nossa pós-história no pensamento, na filosofia. Somos os contemporâneos filosóficos da actualidade, sem sermos os seus contemporâneos históricos. A filosofia alemã constitui o prolongamento ideal da história alemã. Por isso, ao criticarmos, em vez das oeuvres incomplètes da nossa história real, as oeuvres posthumes da nossa história ideal, a filosofia, a nossa crítica está no centro dos problemas acerca dos quais a época actual afirma: that is the question. O que nos povos mais avançados constitui uma ruptura prática com as modernas condições políticas é, na Alemanha, onde estas condições ainda não existem, um corte crítico com o reflexo filosófico destas condições. A filosofia alemã do direito e do Estado é a única história alemã que está al pari com a época moderna oficial. O povo alemão vêse, pois, obrigado a ligar a sua história onírica com as condições existentes e a sujeitar à crítica não só estas condições existentes, mas também a sua continuação abstracta. O seu futuro não pode restringir-se, nem à negação directa das suas circunstâncias jurídicas e políticas reais, nem à imediata realização das suas circunstâncias jurídicas e políticas ideais, pois que a negação directa das suas circunstâncias reais já 4Em alemão, listigen; Marx faz aqui um trocadilho com o nome de Friedrich List (1789-1846), o apóstolo do capitalismo industrial numa forma nacionalista e proteccionista, que em 1840 publicou o influente livro Das nationale System der politischen Ökonomie. 5Anácarsis, cita do séc. VI a. C., que viajou muito e terá sido embaixador do seu povo. Este, depois, livrou- se dele, assassinando-o, talvez por causa da sua adesão aos costumes gregos. Terá tido contactos com Sólon e são-lhe atribuídos vários aforismos. Os Cínicos viram nele um “nobre selvagem”, que contrapunham aos cultos e “degenerados” Helénicos. existe nas circunstâncias ideais, enquanto ela quase sobreviveu à realização das suas circunstâncias ideais na contemplação dos povos vizinhos. É com razão, pois, que o partido político prático na Alemanha exige a negação da filosofia. O seu erro não consiste em formular tal exigência, mas em limitar-se a uma exigência que ele não leva, nem pode levar a cabo. Crê que é capaz de realizar esta negação voltando as costas à filosofia, de cabeça virada par outro lado – murmurando umas quantas frases triviais e mal-humoradas. Devido à sua tacanha maneira de ver, não considera a filosofia como parte da realidade alemã e considera até a filosofia como abaixo do nível da vida prática alemã e das teorias que a servem. Como ponto de partida exige-se o real germe de vida, mas esquece-se de que o real germe de vida do povo alemão só nasceu, até agora, no seu crânio. Em suma, é impossível abolir a filosofia sem a realizar. O mesmo erro foi cometido, mas em sentido oposto, pela facção teórica que se originou na filosofia. Na presente luta, esta facção viu apenas o combate crítico da filosofia contra o mundo alemão; não considerou que também a anterior filosofia pertence a este mundo e constitui o seu complemento, embora seja apenas um complemento ideal. Crítica no que respeita à sua contraparte, é acrítica em relação a si própria. Tomou como ponto de partida os pressupostos da filosofia; e ou aceitou as conclusões a que a filosofia chegara, ou apresentou como exigências e conclusões filosóficas imediatas exigências e conclusões que derivou de qualquer outro campo. Mas estas – supondo que são legítimas – só podem obter-se mediante a negação da filosofia anterior, isto é, da filosofa enquanto filosofia. Fornecemos, à frente, uma descrição mais pormenorizada desta facção. O seu principal defeito pode resumir-se assim: pensou que poderia realizar a filosofia, sem a abolir. A crítica da filosofia alemã do direito e do Estado, que teve a mais lógica, profunda e completa expressão em Hegel, surge ao mesmo tempo como a análise crítica do Estado moderno e da realidade a ele associada e como a negação definitiva de todas as anteriores formas de consciência na jurisprudência e na política alemã, cuja expressão mais distinta e mais geral, elevada a ciência, é precisamente a filosofia especulativa do direito. Só na Alemanha era possível a filosofa especulativa do direito, este pensamento extravagante e abstracto acerca do Estado moderno, cuja realidade permanece no além, mesmo se este além fica apenas no outro lado do Reno; o representante alemão do Estado moderno, pelo contrário, que não toma em linha de conta o homem real, só foi possível porque e na medida em que o próprio Estado moderno abstrai do homem real ou unicamente satisfaz o homem total de maneira ilusória. Em política, os Alemães pensaram o que os outros povos fizeram. A Alemanha foi a sua consciência teórica.A abstracção e a presunção do seu pensamento ia a passo com o carácter unilateral e atrofiado da sua realidade. Se, pois, o status quo do sistema político alemão exprime a consumação do ancien régime, o cumprimento do espinho na carne do Estado moderno, o status quo da ciência política alemã exprime a imperfeição do Estado moderno em si, a degenerescência da sua carne. Já como adversário decidido da anterior forma de consciência política alemã, a crítica da filosofia especulativa do direito se não perde em si mesma, mas mergulha em tarefas que só podem ser resolvidas por um único meio: a práxis. Surge então a questão: pode a Alemanha chegar a uma práxis à la hauteur des principes, quer dizer, uma revolução que a elevará não só ao nível oficial dos povos modernos, mas ao nível humano, que será o futuro imediato destes povos? A arma da crítica não pode decerto substituir a crítica das armas; a força material só será derrubada pela força material; mas a teoria em si torna-se também uma força material quando se apodera das massas. A teoria é capaz de se apossar das massas ao demonstrar-se ad hominem, e demonstra-se ad hominem logo que se torna radical. Ser radical é agarrar as coisas pela raiz. Mas, para o homem, a raíz é o próprio homem. O que demonstra, fora de toda a dúvida, o radicalismo da teoria alemã, e deste modo a sua energia prática, é o facto de começar pela decidida abolição positiva da religião. A crítica da religião termina com a doutrina de que o homem é para o homem o ser supremo. Termina, por conseguinte, com o imperativo categórico de derrubar todas as condições em que o homem surge como um ser humilhado, escravizado, abandonado, desprezível – condições que dificilmente se exprimirão melhor do que na exclamação de um francês, por altura da proposta de imposto sobre cães: “Pobres cães! Já vos querem tratar como homens!” Mesmo do ponto de vista histórico, a emancipação teórica possui uma importância especificamente prática para a Alemanha. De facto, o passado revolucionário da Alemanha é teórico – é a Reforma. Assim como a revolução surgiu então no cérebro de um monge, assim começa hoje no cérebro do filósofo. Lutero venceu, sem dúvida, a servidão pela devoção, mas porque pôs no seu lugar a escravidão mediante a convicção. Abalou a fé na autoridade, porque restaurou a autoridade da fé. Transformou os padres em leigos, mudando os leigos em padres. Libertou o homem da religiosidade exterior, fazendo da religiosidade a essência mais íntima do homem. Libertou o corpo das suas cadeias, porque com cadeias acorrentou o coração. Mas, embora o protestantismo não fosse a verdadeira solução, pôs pelo menos o problema de modo correcto. Já não se tratava, pois, da luta do leigo com o padre fora dele, mas da luta contra o seu próprio padre interior, contra a sua natureza sacerdotal. E se a metamorfose protestante dos leigos alemães em padres emancipou os papas- leigos – os príncipes, juntamente com o clero, os privilegiados e os filisteus -, a metamorfose filosófica dos alemães eclesiásticos em homens emancipará o povo. Mas, assim como a emancipação se não confinará aos príncipes, também a secularização dos bens se não restringirá à confiscação da propriedade da Igreja, que foi sobretudo praticada pela hipócrita Prússía. Nesse tempo, a Guerra dos Camponeses, o mais radical acontecimento na história alemã, malogrou- se por causa da teologia. Hoje, que a teologia sofreu um desastre, o fenómeno menos independente na história alemã – o nosso status quo – será abalado pela filosofia. Na véspera da Reforma, a Alemanha oficial era a mais incondicional servidora de Roma. Na véspera da sua revolução, a Alemanha é incondicional servidora dos que são inferiores a Roma: da Prússia e da Áustria, de fidalgos mesquinhos e de filisteus. Parece, porém, que uma revolução radical na Alemanha irá embater numa grande dificuldade. As revoluções precisam de um elemento passivo, de uma base material. A teoria só se realiza num povo na medida em que for a realização das suas necessidades. Corresponderá à monstruosa discrepância entre as exigências do pensamento alemão e as respostas da realidade alemã uma discrepância semelhante entre a sociedade civil e o Estado, no interior da própria sociedade civil? Serão as necessidades teóricas directamente necessidades práticas? Não bastaque o pensamento instigue a realizar-se; a realidade deve igualmente compelir ao pensamento. Mas a Alemanha não atravessou ao mesmo tempo que os povos modernos o estádio intermédio da emancipação política. Não atingiu ainda na prática os estádios que já ultrapassou na teoria. Como poderia a Alemanha, em salto mortale, superar não só as suas próprias barreiras, mas também as dos povos modernos, isto é, as barreiras que na realidade tem de experimentar e atingir como uma emancipação das suas próprias barreiras reais? Uma revolução radical só pode ser a revolução de necessidades reais, para a qual parecem faltar os pressupostos e o campo de cultivo. Mas se a Alemanha acompanhou a evolução dos povos modernos apenas através da actividade abstracta do pensamento, sem tomar parte activa nas lutas reais desta evolução, experimentou também as dores deste desenvolvimento sem participar nos seus prazeres e nas suas parciais satisfações. A actividade abstracta, por um lado, tem a sua contrapartida no sofrimento abstracto, por outro. E um belo dia, o alemão encontrar-se-á ao nível da decadência europeia, antes de alguma vez ter atingido o nível da emancipação europeia. Será comparável a um feiticista que sofre das doenças do cristianismo. Se, antes de mais, se examinarem os governos alemães, descobrirse-á que as condições do tempo, a situação da Alemanha, o ponto de vista da cultura alemã e, por último, o seu próprio instinto afortunado, tudo os impele a combinar as deficiências civilizadas do mundo político moderno, de cujas vantagens não desfrutamos, com as deficiências bárbaras do ancien regime, de que fruímos na quantidade devida; assim a Alemanha tem de participar cada vez mais, se não na sensatez, pelo menos na insensatez dos sistemas políticos que ultrapassam o seu status quo. Haverá, por exemplo, algum país em todo o mundo que, como a chamada Alemanha constitucional, participe de todas as ilusões do regime constitucional, sem ter parte nas suas realidades? E não terá sido, por necessidade, um governo alemão que teve a ideia de combinar os tormentos franceses de Setembro 6, que pressupõem a liberdade de Imprensa? Assim como os deuses de todas as nações se encontravam no Panteão romano, também os pecados de todas as formas de Estado se encontrarão no Sacro Império Romano Germânico. Que semelhante eclectismo atingirá um grau sem precedentes é garantido sobretudo pela glutonaria político- estética de um rei alemão, que decide desempenhar todas as funções da realeza – feudal ou burocrática, absoluta ou constitucional, autocrática ou democrática -, se não na pessoa do povo, pelo menos na sua própria pessoa, e se não para o povo, ao menos para si mesmo 7. A Alemanha, como deficiência 6As leis de Setembro de 1835, que aumentaram as garantias financeiras exigidas pelos editores de jornais e introduziram sanções mais pesadas para as publicações “subversivas”. 7Alusão a Frederico Guilherme IV. da actual política constituída em sistema, não será capaz de demolir as barreiras alemãs específicas, sem demolir as barreiras gerais da política actual. O sonho utópico da Alemanha não é a revolução radical, a emancipação humana universal, mas a revolução parcial, meramente política, que deixa de pé os pilares do edifício. Qual a base de uma revolução parcial, meramente política? Apenas esta: uma secção da sociedade civil emancipa-se e alcança o domínio universal: uma determinada classe empreende, a partir da sua situação particular, uma emancipação geral da situação. Tal classe emancipa a sociedade como um todo, mas só no caso de a totalidade da sociedadese encontrar na mesma situação que esta classe; por exemplo, se possuir ou facilmente puder adquirir dinheiro ou cultura. Nenhuma classe da sociedade civil pode desempenhar este papel a não ser que consiga despertar, em si e nas massas, um momento de entusiasmo em que se associe e misture com a sociedade em liberdade, se identifique com ela e seja sentida e reconhecida como o representante geral da referida sociedade; os seus objectivos e interesses devem verdadeiramente ser os objectivos e os interesses da própria sociedade, da qual se torna de facto a cabeça e o coração social. Só em nome dos interesses gerais da sociedade é que uma classe particular pode reivindicar a supremacia geral. Para alcançar esta posição libertadora e a direção política de todas as esferas da sociedade, não bastam a energia e a consciência revolucionárias. Para que a revolução de um povo e a emancipação de uma classe particular da sociedade civil coincidam, para que uma classe represente o todo da sociedade, outra classe tem de concentrar em si todos os males da sociedade, uma classe particular deve encarnar e representar um obstáculo e uma limitação geral. Uma esfera social particular terá de surgir como o crime notório de toda a sociedade, a fim de que a emancipação de semelhante esfera surja como uma emancipação geral. Para que uma classe seja classe libertadora par excellence, é necessário que outra classe se revele abertamente como a classe opressora. O significado negativo e universal da nobreza e do clero francês suscitou o significado positivo e geral da burguesia, a classe que junto deles se encontrava e que a eles se opôs. Mas, na Alemanha, todas as classes carecem da lógica, do rigor, da coragem e da inconsideração que delas fariam o representante negativo da sociedade. Mais: falta ainda em todas as classes a grandeza de alma que, por um momento apenas, as identificaria com a alma popular; a genialidade que instiga a força material ao poder político, a audácia revolucionária que arremessa ao adversário a frase provocadora: Nada sou e tudo serei. A essência da moralidade e da honra alemãs, tanto dos indivíduos como das classes, é um egoísmo modesto que ostenta e deixa imperar contra si a sua própria mesquinhez. A relação entre as diferentes esferas da sociedade alemã não é, portanto, dramática, mas épica. Cada uma destas esferas começa por saber de si e por se estabelecer ao lado das outras, não a partir do momento em que é oprimida, mas desde o momento em que as condições da época, sem qualquer acção da sua parte, originam uma nova esfera que ela, por sua vez, pode oprimir. Mesmo o sentimento de si moral da classe média alemã só tem por base a consciência de ser o representante da mediocridademesquinha e limitada de toda as outras classes. Por conseguinte, não são apenas os reis alemães que sobem ao trono mal à propos. Cada esfera da sociedade civil sofre uma derrota antes de alcançar a vitória; levanta a sua própria barreira, antes de ter destruído a barreira que se lhe opõe; exige a estreiteza das suas vistas, antes de ostentar a sua generosidade; assim, todas as oportunidades de desempenhar um papel importante desapareceram antes de propriamente terem existido, e cada classe, no preciso momento em que inicia a luta contra a classe superior, fica envolvida numa luta contra a classe inferior. Por esta razão, os príncipes encontram- se em conflito com o monarca, a burocracia com a nobreza, a burguesia com todos eles, enquanto o proletariado já está a encetar a luta com a burguesia. A classe média dificilmente ousa conceber a ideia da emancipação a partir do seu ponto de vista, antes da evolução das condições sociais, e o progresso da teoría política mostra que este ponto de vista já se encontra antiquado ou é, pelo menos, problemático. Na França, basta ser qualquer coisa para desejar ser tudo. Na Alemanha, ninguém tem o direito de ser qualquer coisa, sem a tudo renunciar. Na França, a emancipação parcial é o fundamento para a emancipação total. Na Alemanha, a emancipação total constitui uma conditio sine qua non para qualquer emancipação parcial. Na França, é a realidade, na Alemanha a impossibilidade de uma emancipação progressiva, que deve dar origem à completa liberdade. Na França, toda a classe do povo é politicamente idealista e se considera, antes de mais, não como classe particular, mas como representante das necessidades gerais da sociedade. Por conseguinte, o papel de libertador pode passar sucessivamente num movimento dramático para as diferentes classes do povo francês até que, por fim, alcança a classe que realiza a liberdade social; não já pressupondo certas condições externas ao homem, criadas todavia pela sociedade humana, mas organizando todas as condições da existência humana sob o pressuposto da liberdade social. Na Alemanha, pelo contrário, onde a vida prática é tão pouco intelectualquanto a vida intelectual é prática, nenhuma classe da sociedade civil sente a necessidade, ou tem a capacidade, de conseguir uma emancipação geral, até que a isso é forçada pela situação imediata, pela necessidade material e pelas próprias cadeias. Onde existe então, na Alemanha, a possibilidade positiva de emancipação? Resposta: Na formação de uma classe que tenha cadeias radicais, de uma classe na sociedade civil que não seja uma classe da sociedade civil, de uma classe que seja a dissolução de todas as classes, de uma esfera que possua caráter universal porque os seus sofrimentos são universais, e que não exige uma reparação particular porque o mal que lhe é feito não é um mal particular, mas o mal em geral, que já não possa exigir um título histórico, mas apenas o título humano; de uma esfera que não se oponha a consequências particulares, mas que se oponha totalmente aos pressupostos do sistema político alemão; por fim, de uma esfera que não se pode emancipar a si mesma nem emancipar-se de todas as outras esferas da sociedade sem as emancipar a todas – o que é, em suma, a perda total do homem, portanto, só pode redimir-se a si mesma mediante uma redenção total do homem. A dissolução da sociedade, como classe particular, é o proletariado. Na Alemanha, o proletariado está ainda só a começar a formar-se, como resultado do movimento industrial; pois o que constitui o proletariado não é a pobreza naturalmente existente, mas a pobreza artificialmente produzida, não é a massa do povo mecanicamente oprimida pelo peso da sociedade, mas a massa que provém da desintegração aguda da sociedade e, acima de tudo, da desintegração da classe média. Desnecessário se torna dizer, porém, que os números do proletariado foram também engrossados pelas vítimas da pobreza natural e da servidão germano-cristã. Quando o proletariado anuncia a dissolução da ordem social existente apenas declara o mistério da sua própria existência, porque é a efetiva dissolução desta ordem. Quando o proletariado exige a negação da propriedade privada, apenas estabelece como princípio da sociedade o que a sociedade já elevara a princípio do proletariado e o que esteja involuntariamente encarna enquanto resultado negativo da sociedade. O proletário encontra-se assim, em relação ao mundo que está ainda a surgir, no mesmo direito em que o rei alemão está relativamente ao mundo já existente, quando chama ao povo o seu povo ou a um cavalo o seu cavalo. Ao declarar o povo como sua propriedade privada, o rei afirma simplesmente que quem detém a propriedade privada é rei. Assim como a filosofia encontra as armas materiais no proletariado, assim o proletariado tem as suas armas intelectuais na filosofia. E logo que o relâmpago do pensamento tenha penetrado profundamente no solo virgem do povo, os Alemães emancipar-se-ão e tomar-se-ão homens. Façamos agora a síntese dos resultados: A emancipação dos Alemães só é possível na prática, se se adotar o ponto de vista da teoria, segundo a qual o homem é para o homem o ser supremo. Na Alemanha, aemancipação em relação à Idade Média só é possível enquanto emancipação ao mesmo tempo das vitórias parciais sobre a Idade Média. Na Alemanha, nenhum tipo de servidão será abolido, se toda a servidão não for destruída. A Alemanha, que é profunda, não pode fazer uma revolução, sem se revolucionar a partir do fundamento. A emancipação do alemão é a emancipação do homem. A filosofia é a cabeça desta emancipação e o proletariado o seu coração. A filosofia não se pode realizar sem a abrogação do proletariado, o proletariado não se pode abrogar sem a realização da filosofia. Quanto se tiverem satisfeito todas as condições internas, anunciarse-á o dia da ressurreição alemã com o cantar do galo gaulês. Questão: Identifique resumidamente as principais críticas entabuladas por Marx a Hegel:
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