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Luíza Barreto – Medicina 2021.1 Caso 1 – Deficiência de G6PD Paciente C.R.S., sexo masculino, 5 anos, natural de Salvador, procedente de Boca do Rio. Apresenta febre há 5 dias, com temperatura máxima de 38,9ªC, fazendo uso de paracetamol e ibuprofeno de forma intercalada e nega uso de dipirona por indicação médica. Refere diagnóstico prévio de deficiência de G6PD e calendário vacinal atualizado. Genitora refere alimentação rica em farinhas, em horários desregulados e pouca ingesta de frutas, verduras e legumes, tendo consumo de biscoitos, sucos e salgadinhos industrializados. Ao exame físico, apresenta regular estado geral, descorado 1+/4, hidratado, anictérico, normotenso, taquicárdico e eupneico em ar ambiente. Altura 1,10m; Peso 20kg; PA 90x50mmHg; FC 155bpm; FR 24ipm; Tax 38,6ªC. Pele sem alterações; Cabeça normal, apresentando apenas orofaringe levemente hiperemiada em úvula e palato, sem petéquias ou hipertrofia de amigdalas; Pescoço apresentando gânglios cervicais e submandibulares; Aparelhos respiratório, cardiovascular e gastrointestinal sem alterações; Membros e sistema nervoso sem alterações ao exame. Hemograma evidenciando uma pancitopenia. DEFICIÊNCIA DE G6PD INTRODUÇÃO E FISIOPATOLOGIA: O monômero do G6PD humano é uma proteína de 514 aminoácidos. A forma ativa é um homodímero ou tetrâmero, e catalisa o primeiro passo da via das Pentoses-Fosfato (PPP), a oxidação da glucose- 6-fosfato a 6-fosfogluconolactona com a redução concomitante de NADP a NADPH. NADPH é essencial na célula vermelha para protegê-la contra os danos causados pelos altos níveis fisiológicos de oxidação; essa proteção ocorre por meio da manutenção de um alto nível de glutationa reduzida (GSH) na célula, mantendo assim um ambiente de redução. Por meio da Glutarredoxina (GRX), GSH protege da oxidação os grupos sulfidrila na hemoglobina e na membrana da célula vermelha Na maioria das células outras reações dependentes de NADP podem fornecer grande quantidade de NADPH, necessária em condições normais, mas G6PD é a única enzima que produz NADPH que pode ser ativada em resposta a estresse oxidativo e, como tal, age como guardião do potencial de redução das células. Nas hemácias, onde não há outra fonte disponível, G6PD é essencial para defesa contra o estresse oxidativo. Se as concentrações de NADPH não puderem ser mantidas, como ocorre na deficiência de G6PD, os níveis de GSH caem e ocorre dano oxidativo que poderá levar à hemólise. A hemólise aguda, ou crise hemolítica aguda, em pessoas com variantes de G6PD, ocorre quando agentes oxidantes são gerados após a ingestão de certas drogas, ingestão de feijão fava ou durante infecção aguda. Em casos extremamente raros de variantes esporádicas mais graves, agentes oxidantes produzidos durante o metabolismo normal de células vermelhas causam depleção de GSH e podem levar à hemólise crônica. A deficiência de G6PD é um traço recessivo ligado ao cromossomo X, provocando maior risco de doença sintomática em homens. Várias centenas de variantes genéticas de G6PD são conhecidas, porém a maioria é inofensiva. Apenas duas variantes, designadas G6PD– e G6PD Mediterrânea, causam a maioria das anemias hemolíticas clinicamente significativas. G6PD– está presente em aproximadamente 10% dos negros americanos; G6PD Mediterrânea, como o nome implica, é prevalente no Oriente Médio. Acredita-se que a alta frequência dessas variantes em cada população tenha origem em um efeito protetor contra a malária por Plasmodium falciparum. Variantes de G6PD associadas à hemólise resultam na configuração defeituosa da proteína, o que a torna mais suscetível à degradação proteolítica. Em comparação com a variante normal mais comum, G6PD B, a meia-vida da G6PD– é moderadamente reduzida, enquanto a da G6PD Mediterrânea é mais acentuadamente anormal. Uma vez que os elementos eritroides maduros não sintetizam novas proteínas, as atividades enzimáticas da G6PD– ou da G6PD Mediterrânea caem rapidamente a níveis inadequados para proteger contra o estresse oxidativo à medida que as hemácias vão envelhecendo. Portanto, células mais velhas são muito mais propensas à hemólise que as mais novas. As variantes de G6PD foram classificadas inicialmente em quatro grupos, de acordo com a atividade enzimática nas hemácias: classe I – causam hemólise crônica; classe II – deficiência grave (incluem-se aqui as variantes Mediterrânea, Santamaria e Cantão); classe III – deficiência moderada (incluindo as variantes A-, Africana, Seattle, Chatam); classe IV – não deficientes. O gene do G6PD está localizado na região telomérica do braço longo do cromossomo X (banda Xq28), próximo aos genes responsáveis pela hemofilia A, pela disceratose congênita e pelo daltonismo. Todas as mutações do gene do G6PD que levam a alguma deficiência enzimática afetam a sequência codificadora. SELEÇÃO PELA MALÁRIA: A distribuição mundial da malária é notavelmente similar à distribuição dos alelos mutados de G6PD, tornando bem aceita a hipótese da deficiência de G6PD proteger contra a malária. A primeira hipótese para explicar essa associação seria que a esquizogênese intracelular de parasitas, e não a invasão, é afetada nas hemácias com deficiência de G6PD, nas quais pode ocorrer o dano oxidativo do parasita. Estudos posteriores demonstraram que células vermelhas com deficiência de G6PD infectadas com parasitas sofrem fagocitose por macrófagos num estágio anterior de maturação parasitária do que as hemácias normais com infecção parasítica, o que poderia ser um mecanismo protetor adicional contra a malária. EPIDEMIOLOGIA: No Brasil a frequência de deficiência de G6PD é de 2 a 3% da população. Quase 98% dos casos deve-se à variante. Africana (nt 202G>A), que é facilmente detectada por amplificação por PCR do exon 4 do gene da G6PD e digestão com a enzima de restrição NlaIII. Os demais casos devem-se às variantes Mediterrânea, Seattle, Santamaria, Chatam ou outras mais raras. Em vista da alta incidência na população, não é incomum encontrar-se mulheres homozigotas ou com dupla heterozigose. Luíza Barreto – Medicina 2021.1 DIAGNÓSTICO: O diagnóstico definitivo da deficiência de G6PD é baseado numa estimativa de atividade enzimática pela análise espectrofotométrica quantitativa da razão de produção de NADPH de NADP. Para uma triagem rápida da população, vários métodos semiquantitativos já foram aplicados, como o teste de Motulsky (dye-decolouration test) em 1961, e teste de fluorescência (geração de NADPH) que indica a deficiência de G6PD pela ausência de fluorescência no sangue sob luz ultravioleta. Outros testes semiquantitativos também já foram usados, mas exigem confirmação definitiva para resultados anormais. A reação de G6PD (glicose-6-fosfato + NADP + → 6- fosfogluconolactona + NADPH + H+ ) reduz NADP + para NADPH. A formação de NADPH e NADH pode ser observada diretamente devido à fluorescência no espectro visível quando iluminada com comprimento de onda de luz ultravioleta. Dúvida diagnóstica pode surgir quando se mede a atividade enzimática durante uma crise aguda de hemólise ou na presença de altos níveis de reticulócitos, pois o nível de atividade dos eritrócitos novos é mais elevado que em células mais maduras, levando a resultados falso-negativos para deficiência de G6PD. Dificuldades também podem surgir ao avaliar neonatos, pois estes apresentam maior população de hemácias jovens. Nenhum dos testes de triagem consegue identificar com segurança mulheres heterozigotas, cuja inativação de X extremamente desviado acarreta atividade variando de hemizigótica a normal. A medida da atividade enzimática e a análise molecular são os métodos que permitem diagnóstico definitivo do status da deficiência na mulher. As mutações mais comuns (Mediterrânea, A-, Seattle)podem ser rapidamente detectadas pela análise de digestão por enzima de restrição, após amplificação por PCR do exon apropriado. MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS: Felizmente, a maioria dos indivíduos com deficiência de G6PD permanecerá assintomática durante toda a vida e nem saberá da deficiência. Deficiência de G6PD não parece afetar a expectativa de vida, a qualidade de vida ou a atividade dos indivíduos afetados. A deficiência de G6PD geralmente se manifesta através de anemia hemolítica induzida por infecção ou por drogas, favismo, icterícia neonatal ou anemia hemolítica não esferocítica crônica. Qualquer que seja a causa da hemólise aguda na deficiência de G6PD, esta costuma se manifestar clinicamente através de fadiga, dor nas costas, anemia, icterícia e colúria. As síndromes mais clinicamente significativas de deficiência de G6PD são anemia hemolítica aguda (AHA), icterícia neonatal (INN) e, raramente, AHCNE. A anemia hemolítica aguda é a apresentação clínica mais drástica da deficiência de G6PD com hemólise intravascular aguda após a exposição a um estresse oxidativo. O estresse oxidativo inclui a ingestão de certos medicamentos, tais como compostos contendo primaquina ou sulfa, a exposição ao naftaleno (naftalina), ingestão de feijão fava ou infecção, sendo este último a causa mais comum de hemólise. Os sintomas apresentados incluem irritabilidade, febre, náuseas, dor abdominal e diarreia dentro de 48 horas de exposição oxidante. Ocorrem hemoglobinúria, icterícia e anemia. O baço e o fígado podem estar aumentados e macios. Os casos de anemia grave pode precipitar insuficiência cardíaca congestiva. Os achados laboratoriais incluem anemia normocítica com anisocitose e reticulocitose. Podem ser observados poiquilócitos e células mordidas. Os corpúsculos de Heinz, um achado clássico na G6PD, podem ser observados, porém são um achado inconsistente em função de estas células danificadas serem rapidamente retiradas da circulação no baço. Os resultados laboratoriais adicionais incluem hemoglobinúria e a presença de hemoglobina livre no sangue. Outra síndrome clinicamente significativa de deficiência de G6PD é a icterícia neonatal. A icterícia está raramente presente ao nascimento, com a incidência máxima de aparecimento entre os segundo e terceiro dias de vida. A gravidade da hiperbilirrubinemia é variável. Pode ser grave, resultando em kernicterus ou até mesmo em morte. Na maioria dos casos, no entanto, a hiperbilirrubinemia é adequadamente tratada com fototerapia. Em INN, é importante notar que a anemia é muito raramente grave. A etiologia de INN permanece controversa. INN é aumentada em crianças com deficiência de G6PD que também portam um polimorfismo do gene de uridina-difosfato-glucoronil transferase (UDPGT1) associado à síndrome de Gilbert. Cerca de um terço de neonatos do sexo masculino nascidos com icterícia neonatal tem deficiência de G6PD. A icterícia se faz evidente em torno do 1o ao 4o dia de vida, semelhante à icterícia fisiológica, mas é observada num período posterior ao da icterícia por aloimunização de grupo sanguíneo. A exposição materna a drogas oxidantes, Luíza Barreto – Medicina 2021.1 remédios herbais ou efeito de bolinhas de naftalina canforadas colocadas para preservar as roupas do bebê podem contribuir para diferenças na expressão clínica da icterícia, e é mais grave em bebês prematuros. A hemólise não parece contribuir tanto para a icterícia quanto a dificuldade do fígado, também deficiente em G6PD, em conjugar a bilirrubina. A anemia hemolítica não esferocítica crônica está associada às variantes raras de deficiência de G6PD, geralmente enzimas mutantes incapazes de manter a produção basal de NADPH. A apresentação pode ser no período neonatal quando a INN é acompanhada por anemia em um indivíduo do sexo masculino. O grau de anemia crônica na AHCNE devido a deficiência de G6PD tem sido variável. Alguns pacientes têm hemólise compensada, enquanto outros requerem transfusões intermitentes. A dependência de transfusão ocorre em casos mais graves. Em alguns pacientes, variantes da deficiência de G6PD causam hemólise crônica, levando à assim chamada anemia hemolítica congênita não esferocítica. Muitos pacientes com anemia hemolítica congênita não esferocítica, causadas pela deficiência de G6PD, têm um histórico de icterícia neonatal grave, anemia crônica exacerbada por estresse oxidativo que tipicamente requer transfusão sanguínea, reticulocitose, cálculos biliares e esplenomegalia. As concentrações de bilirrubina e de lactato desidrogenase ficam elevadas e, diferentemente do que ocorre na anemia hemolítica aguda descrita acima, a hemólise costuma ser extravascular. Muito raramente, essa anemia é dependente de transfusão, fazendo-se necessária a quelação de ferro. Anemia hemolítica induzida por infecção: As infecções representam provavelmente a causa mais típica de hemólise em pessoas com deficiência de G6PD. Os vírus da hepatite A e B, citomegalovírus, pneumonia e febre tifoide são causas notáveis. Vários fatores podem afetar a gravidade da hemólise, incluindo drogas administradas, função hepática e idade. Em hemólise grave, transfusões imediatas podem ser necessárias. Falência renal aguda é uma complicação em potencial, decorrente de hepatite viral concomitante à deficiência de G6PD; fatores patogênicos incluem necrose tubular aguda devido à isquemia renal e à obstrução tubular causadas por depósitos de hemoglobina. Alguns pacientes com hemólise requerem hemodiálise. A falência renal aguda é rara em crianças. Favismo: O favismo pode se desenvolver após a ingestão de favas secas ou congeladas, mas tem maior probabilidade de ocorrer após o consumo de favas frescas. Divicina, convicine e isouramil, que parecem ser os constituintes tóxicos das favas, aumentam a atividade da via de hexose- monofosfato, promovendo hemólise em pacientes com deficiência de G6PD. Bebês em aleitamento materno cujas mães consomem favas também correm risco de hemólise. Apresenta-se como anemia hemolítica aguda, geralmente em torno de 24 horas após o consumo das favas. A hemoglobinúria é mais grave do que aquela causada por crises hemolíticas desencadeadas por drogas ou por infecção, apesar de as concentrações de bilirrubina serem mais baixas. A anemia é geralmente aguda e grave, levando à falência renal aguda em alguns pacientes, devido à isquemia ou à precipitação de depósitos de hemoglobina e pode requerer transfusão de hemácias. Deficiência de G6PD em outros tecidos A enzima G6PD está presente em todos os tecidos e sua deficiência, teoricamente, poderia causar defeitos funcionais em todos estes. Nas variantes comuns do G6PD, tais como G6PD A- e G6PD Mediterrânea e mesmo na maioria das variantes gravemente deficientes, não há, em geral, nenhum defeito na função ou no número de leucócitos. Porém, há relatos de disfunção leucocitária associada a variantes raras, gravemente deficientes de G6PD. Pacientes com deficiência de G6PD não têm tendência a sangramentos e os estudos plaquetários fornecem resultados conflitantes. Ocasionalmente, tem sido observada catarata em pacientes com as variantes de G6PD que produzem anemia hemolítica não esferocítica, e a incidência de cataratas senis pode estar aumentada na deficiência de G6PD, mas continua uma questão controversa. Diminuição na produção de insulina e dos níveis de cortisol após estimulação com ACTH tem sido relatada em homens com deficiência de G6PD. TRATAMENTO: O melhor tratamento para o indivíduo com AHA é a prescrição cuidadosa de medicamentos e a prevenção de agentes precipitantes de hemólise. Fora dos episódios hemolíticos agudos, estes pacientes não necessitam de qualquer tratamento especial. Os episódios da AHA são tratados com especial atenção às complicaçõeshematológicas, cardiopulmonares e renais da hemólise. O tratamento da INN não difere da que se recomenda para outras causas de hiperbilirrubinemia neonatal. Na AHCNE, o tratamento é expectante. A exposição aos estresses oxidativos deve ser evitada. As transfusões de sangue podem ser necessárias durante os episódios hemolíticos agudos. Em casos graves de AHCNE, a esplenectomia pode melhorar a anemia. (CECIL 24ªED) A estratégia mais efetiva para controlar a deficiência de G6PD é prevenir a hemólise, evitando estresses oxidativos. Esta abordagem, porém, requer que o paciente tenha consciência de sua deficiência, o que ocorre como resultado de algum episódio hemolítico prévio ou de um programa de triagem. Felizmente, a hemólise aguda nos indivíduos com deficiência de G6PD costuma ser breve e não requer tratamento específico. Antioxidantes como a vitamina E e o selênio parecem ter efeito em pacientes com hemólise crônica, mas não há dados consistentes que sustentem esta estratégia. Pacientes com anemia hemolítica congênita não esferocítica às vezes desenvolvem esplenomegalia, mas a esplenectomia geralmente não lhes traz benefícios. Há relatos de diagnóstico pré-natal de deficiência de G6PD, mas esta abordagem ainda é questionada, pois a mortalidade e morbidade da deficiência de G6PD é baixa. Para os casos de deficiência grave, que são refratárias a outros tratamentos, a terapia gênica permanece uma questão a ser considerada. (ZAGO) REFERÊNCIAS: Patologia Básica (Robbins); Tratado de Hematologia (Zago); Medicina Interna (Cecil)
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