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À maneira desigual e combinada, o Bra- sil de Bolsonaro, neste primeiro ano de governo neofascista, se moderniza e se torna cada vez mais desigual, exibindo todo o caráter recente e simultanea- mente decrépito do nosso capitalismo financeirizado, digital e on demand. As altas dosagens de machismo, homofo- bia e militarismo ajudam a conservar ativa e funcional a velha plantation, e, por detrás da máscara do moderno empreendedor e ativista da filantro- pia, não há senão o tacanho, sórdido e vetusto rosto do senhor de engenho de antanho. Se o futuro proposto por esses velhos-novos senhores é, em uma palavra, uma barbárie moderna (ou um futuro bárbaro), cabe então aos es- cravos do tempo presente a tarefa de construir um verdadeiro amanhã, no qual armas, opressões e Bolsonaros não poderão ter lugar senão nos livros e museus de História. Essa hercúlea tarefa, para que seja ao menos tentada a sério, não pode prescindir de uma interpretação rigo- rosa do processo real, à escala estrutu- ral e conjuntural, o que em linguagem marxista se costuma chamar de uma análise concreta de uma situação con- creta. De modo lacunar e certamen- te dotado de imperfeições, é isso que, modestamente, a presente coletânea pretende oferecer ao leitor. Composta por artigos escritos no calor de um tor- velino de acontecimentos, esta peque- na obra tem como objeto de investiga- ção justamente o governo neofascista de Bolsonaro em seu primeiro ano – trágico e nada monótono, arriscamos dizer. A multiplicidade de fatos, ques- tões e aspectos presentes neste início de governo praticamente impele seus eventuais intérpretes a fazer opções te- máticas e recortes analíticos, dos quais evidentemente não pudemos escapar. Nesse sentido, o conjunto das reflexões aqui contidas oferece uma entre vá- rias interpretações possíveis dentro da perspectiva marxista acerca do primei- ro ano do neofascismo brasileiro no poder. A partir dos autores e assuntos selecionados, escolhemos um caminho interpretativo do governo Bolsonaro que nos pareceu, por ora, o mais inte- ressante – cientes, claro, de que, ao me- nos nesse caso, o caminho não é um só. felipe demier Historiador e Profes- sor Adjunto da Faculdade de Serviço Social da UERJ. Pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Orçamento Público e Seguridade Social (GOPSS/ UERJ). Entre outros trabalhos, é au- tor dos livros O Longo Bonapartismo Brasileiro (1930-1964): um ensaio de in- terpretação histórica (Mauad X, 2013), Depois do Golpe: a dialética da demo- cracia blindada no Brasil (Mauad X, 2017) e Crônicas do caminho do Caos: democracia, blindada, golpe e fascismo no Brasil atual (Mauad X, 2019). Mi- litante do PSOL, é colunista do portal Esquerda Online. juliana fiuza cislaghi Professo- ra Adjunta da Faculdade de Serviço So- cial da UERJ. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Orçamento Público e Seguridade Social (GOPSS/ UERJ). Especialista nas temáticas da Previdência, Saúde, contrarreformas e financeirização, é autora de artigos publicados em revistas e livros científi- cos. Militante do PSOL, é colunista do portal Esquerda Online. C riado nos porões de tortura de uma ditadura nunca sepultada, nutrido com o que há de mais sórdido na política brasileira, Bolsonaro é criatura ainda mais peri-gosa do que seus criadores. Sem nenhum escrúpulo ou pejo, vomita torrentes de barbaridades que o igualam às piores expressões do nazifascismo: racismo, sexismo, homofobia, promiscuidade com milícias, desprezo pelos trabalhadores. O ovo da serpente ostenta como símbolo o culto da morte e do ódio (“arminha”). Ódio contra a cultura, contra a educação, a ciência e o conhecimento, ódio contra a igualdade humana. Na Presidência da República, as conquistas democráticas são espezinhadas uma a uma, atropeladas por medidas provisórias, decretos, contorcionismos políticos e jurídicos. A devastação é rá- pida e acontece ao lado de um espetáculo terrível de indigência intelectual, acrescido de estratégias de comunicação e manipulação altamente invasivas. O ovo da serpente vem embrulhado de religião, embora seu conteúdo seja satânico. O aspecto de farsa não diminui a gravidade da conjuntura, que precisa ser enfrentada a sério e sem descanso. Não é apenas uma ameaça vaga ou distante, mas um processo em curso que pode nos levar para uma catástrofe sem precedentes. Analisar o fascismo histórico é uma condição para enfrentar o que vivemos. O pro- tofascismo larvar que se escancara diante de nós torna todas as nossas tarefas urgentes: decifrar suas características, socializar o conhecimento, mobilizar e organizar para a resis- tência e o enfrentamento. É o que faz este livro, sem concessões. VIRGÍNIA FONTES Historiadora 9 788569 437772 ISBN 978-85-69437-77-2 ISBN 978-85-69437-77-2 C O N SEQ U ÊN C IA JULIAN A CISLAGHI E FELIPE DEM IER (ORGS.) O NEOFASCISM O NO PODER (ANO I) CONSEQUÊNCIA O NEOFASCISMO NO PODER (ANO I) Análises críticas sobre o governo Bolsonaro ORGANIZAÇÃO DE JULIANA FIUZA CISLAGHI E FELIPE DEMIER TEXTOS DE ANA ELIZABETE MOTA, CARLOS ZACARIAS DE SENA JÚNIOR, CLEIER MARCONSIN, ELAINE ROSSETTI BEHRING, GILBERTO CALIL, GUILHERME LEITE GONÇALVES, MARCELO BADARÓ MATTOS, MIRA L. M. CAETANO, TATIANA POGGI E VALÉRIO ARCARY Capa-Neo-fascismo-no-Brasil.indd 1 25/11/2019 19:11:16 CONSEQUÊNCIA O neofascismo no poder (ano I) Análises críticas sobre o governo Bolsonaro JULIANA FIUZA CISLAGHI E FELIPE DEMIER (ORGANIZADORES) Ana Elizabete Mota Carlos Zacarias de Sena Júnior Cleier Marconsin Elaine Rossetti Behring Gilberto Calil Guilherme Leite Gonçalves Marcelo Badaró Mattos Mira L. M. Caetano Tatiana Poggi Valério Arcary © 2019, dos autores Direitos desta edição reservados à Consequência Editora Rua Alcântara Machado, 36 sobreloja 210 Centro - Cep: 20.081-010 Rio de Janeiro - RJ Brasil Contato: (21) 2233-7935 ed@consequenciaeditora.com.br www.consequenciaeditora.com.br Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação do copyright (Lei no 9.610/98). Conselho editorial João Rua Alvaro Ferreira Ruy Moreira Carlos Walter Porto-Gonçalves Marcelo Badaró Mattos Marcos Saquet Timo Bartholl Coordenação editorial e projeto gráfico: Consequência Editora Revisão: Patricia Mafra Capa: Letra e Imagem. Sobre tela de Hieronymus Bosch, Salita al Calvario, circa 1516. Diagramação: Luiz Oliveira N438 O neofacismo no poder (ano I): análises críticas sobre o governo Bolsonaro / Juliana Fiuza Cislaghi, Felipe Demier. - Rio de Janeiro : Consequência, 2019. 240 p. ; 15,5 x 23cm. Inclui bibliografia e índice. ISBN: 978-85-69437-77-2 1. Política. 2. Neofascismo. 3. Governo. 4. Brasil. 5. América Latina. I. Cis- laghi, Juliana Fiuza. II. Demier, Felipe. III. Título. 2019-2174 CDD 320.981 CDU 32(81) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410 SUMÁRIO Apresentação ....................................................................................................... 11 Juliana Fiuza Cislaghi e Felipe Demier CAPÍTULO 1. Mais que uma analogia: análises clássicas sobre o fascismo histórico e o Brasil de Bolsonaro .................................................. 17 Marcelo Badaró Mattos CAPÍTULO 2. Gramsci e o fascismo .............................................................. 47 Gilberto Calil CAPÍTULO 3. Fascismo à brasileira ............................................................... 69 Tatiana Poggi CAPÍTULO 4. Bolsonaro é ou não um neofascista? ................................... 101 Valério Arcary CAPÍTULO 5. Democracia e bonapartismo no Brasil pós-Golpe ............ 117 Felipe Demier CAPÍTULO 6. A cultura da crise e as ideologias do consenso no ultraneoliberalismo brasileiro ......................................................................... 135 Ana Elizabete Mota CAPÍTULO 7. Crise,expropriações e autoritarismo .................................. 149 Guilherme Leite Gonçalves CAPÍTULO 8. Emprego ou direitos: a “escolha de Sofia” dos trabalhadores na contemporaneidade brasileira .......................................... 161 Cleier Marconsin, Mira L. M. Caetano CAPÍTULO 9. Crise do capital e ultraneoliberalismo: a capitalização da Previdência Social no Brasil....................................................................... 179 Juliana Fiuza Cislaghi CAPÍTULO 10. O protofascismo bolsonarista e a universidade pública no Brasil ............................................................................................... 205 Carlos Zacarias de Sena Júnior CAPÍTULO 11. Devastação e urgência ........................................................ 223 Elaine Rossetti Behring Sobre as autoras e os autores ........................................................................... 238 47 CAPÍTULO 2 Gramsci e o fascismo1 Gilberto Calil A experiência histórica não vale para os pequenos burgueses, que não conhecem história. A ilusão é o alimento mais tenaz da consciência coletiva. A história ensina, mas não tem alunos. Antonio Gramsci, Escritos políticos2 Entre 1921 e 1922, Antonio Gramsci escreveu um conjunto de artigos analisando a ascensão do fascismo e a ineficácia das estratégias utilizadas pela organização majoritária da esquerda italiana no seu enfrentamento. Parte desses artigos está reunida no segundo volume da coletânea Escri- tos políticos, publicada pela Civilização Brasileira, sob a rubrica geral “So- cialismo e fascismo”.3 Como Trotsky recordaria dez anos depois, Gramsci foi o único dirigente do Partido Comunista Italiano (PCI) que antevia a possibilidade de uma ditadura fascista. A reflexão de Gramsci é extrema- mente rica e pertinente para pensar contextos e conjunturas distintos, ainda que com as devidas mediações e com a necessidade de evitar qual- quer transposição mecânica. O contexto em que esses artigos foram escritos coincide com o pro- gressivo avanço do fascismo, tanto em termos eleitorais quanto – e sobre- tudo – nas ações violentas perpetradas pelas milícias fascistas contra as organizações operárias e camponesas. Gramsci fala desde a perspectiva de um partido comunista recém-constituído – o PCI foi criado em ja- 1 Este texto reúne, com algumas modificações, seis pequenos artigos publicados no sítio eletrônico Esquerda Online. 2 GRAMSCI, Antonio. Itália e Espanha. In: Escritos políticos. 1921-1926. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. v. 2, p. 48. 3 Idem. Socialismo e fascismo. In: Escritos políticos, op. cit., p. 23-126. 48 O NEOFASCISMO NO PODER (ANO I): ANÁLISES CRÍTICAS SOBRE O GOVERNO BOLSONARO neiro de 1921, a partir de uma cisão com o Partido Socialista Italiano (PSI) – e sistematicamente acusado de “divisionismo” pelos dirigentes do PSI, que permanecia numericamente majoritário na esquerda italiana. Seus escritos desse período eram marcados pela angústia do militante que acreditava que a estratégia de enfrentamento ao fascismo estava equi- vocada e que esta se baseava em inúmeras ilusões, como a crença em que a Justiça colocaria limites ao fascismo ou em que o enfrentamento ao fascismo poderia se dar utilizando os mesmos métodos usados contra as organizações políticas tradicionais da burguesia. O objetivo deste capítu- lo é identificar e discutir os principais aspectos da interpretação produ- zida por Gramsci naquele momento crucial de ascensão do fascismo que precedeu sua chegada ao controle do Estado. O fracasso da política de apaziguamento dos socialistas Embora não deixasse de reconhecer a cumplicidade do Estado burguês e especialmente do Judiciário, inteiramente complacente com os crimes fascistas, Gramsci avaliava que a esquerda reformista, articulada no Par- tido Socialista, tinha enorme responsabilidade na criação das condições favoráveis à ascensão fascista. O Partido Socialista sabotou as ocupações de fábrica em Turim durante o “biênio rosso” (1919-1920), criticando o “radicalismo” da classe operária que se organizava para a revolução social, e apostou sistematicamente em uma política de apaziguamento com setores da classe dominante e os próprios fascistas, com drásticas consequências. A política de apaziguamento dos socialistas atingiu seu ápice com a assinatura do Pacto de Roma, em 3 de agosto de 1921, por meio do qual socialistas e fascistas acordaram “a imediata cessação de ‘ameaças, vias de fato, represálias, punições, vinganças, pressões e violências pessoais’ entre os militantes socialistas e fascistas, bem como o respeito recíproco aos símbolos dos dois partidos”.4 Gramsci atacou violentamente esse acordo e ironizou a confiança suicida dos socialistas, qualificando o pacto como “orientação cega e politicamente desastrosa”.5 4 Idem. Notas ao texto. In: Escritos políticos, op. cit., p. 447. 5 Idem. Os partidos e as massas. In: Escritos políticos, op. cit., p. 91. Gramsci e o fascismo 49 Também os acordos com setores da classe dominante tidos como “de- mocráticos”, ao custo de renúncia à perspectiva revolucionária e à auto- nomia política e organizativa dos trabalhadores, eram entendidos como uma forma de rendição. Apontando que os dirigentes políticos e sindicais do socialismo “aproveitam-se da ocasião para concluir que é preciso cola- borar com ‘as forças não rigidamente revolucionárias e classistas que são contrárias ao golpe de Estado’”, Gramsci recuperava as recentes experiên- cias alemã e húngara. Na Alemanha de março de 1920, “os ‘colaboradores não rigidamente revolucionários’, que em nada haviam contribuído para a resistência, opuseram-se à continuação do movimento insurrecional”, impondo um recuo que tornou possível que “as forças reacionárias não fossem reprimidas, que pudessem recuar em ordem, dispersar-se segun- do um plano preestabelecido e retomar o trabalho de armamento, de re- crutamento, de organização, que hoje dá a Kapp e Lüttwitz uma maior probabilidade de êxito”.6 Sua conclusão é que a política de apaziguamento é diretamente responsável por permitir que a ameaça tenha subsistido e então se recolocasse com maior força. Por sua vez, a experiência da Hun- gria, onde em 1919 a República Socialista Húngara foi esmagada por uma ampla coalizão de direita, igualmente é mencionada por Gramsci como expressão da miséria da política de apaziguamento dos reformistas: A experiência húngara deixou uma lição: os reacionários, para derrotar os comunistas, primeiro acariciam os socialistas, assumem compromis- sos com eles, fazem acordos de pacificação; depois, uma vez derrotados os comunistas, os compromissos e acordos são ignorados e também os socialistas experimentam a forca e o fuzilamento. Assim, as indecisões, a inépcia e a incapacidade dos dirigentes socia- listas em compreender as situações políticas agravaria o “risco de [a Itá- lia] ser arrastada num caos de barbárie sem precedentes na história de nosso país.7 A reflexão de Gramsci ao longo desse biênio é marcada pela angústia de quem via se desenvolver o enredo de uma tragédia anunciada, não tendo como impedi-la, a despeito de sua intensa militância, dada a insu- 6 Idem. Golpe de Estado. In: Escritos políticos, op. cit., p. 78-79. 7 Ibidem, p. 79. 50 O NEOFASCISMO NO PODER (ANO I): ANÁLISES CRÍTICAS SOBRE O GOVERNO BOLSONARO ficiência dos instrumentos com que então contava a organização comu- nista para fazer frente à ascensão dos fascistas e barrar a barbárie que por eles seria perpetrada. Em março de 1921, frustrado com a reafirmação de proposições burocráticas vazias no congresso da principal central sindi- cal italiana, Gramsci registrava que “aumentou nosso pessimismo, mas é sempre viva e atual nossa divisa: pessimismo de inteligência, otimismo da vontade”.8 A tragédia histórica que se seguiu confirma que sua inteligên- cia pessimista compreendeu o processo em curso. A criminosa omissão da burocracia sindical Uma das consequências da política de apaziguamentodos socialistas re- formistas foi a direção por eles imprimida à Condererazione Generale del Lavoro (CGdL), principal central sindical italiana. Essa orientação, na visão de Gramsci, era marcada pelo reformismo e pela omissão perante os crimes fascistas. Em março de 1921, após a realização do Congresso da CGdL, Gramsci lamentava a opção das lideranças sindicais pelo não en- frentamento à ameaça fascista, denunciando vigorosamente tal conduta: O Congresso não pôs e não resolveu nenhum dos problemas vitais para o proletariado no atual período histórico: nem o problema da emigração, nem o do desemprego, nem o das relações entre operários e camponeses, nem o das instituições melhor aparelhadas para expressar o desenvolvi- mento da luta de classes, nem o da defesa material das sedes dos órgãos de classe e da integridade pessoal dos militantes operários. A única preo- cupação da maioria congressual foi a de salvaguardar e garantir a posição e o poder político dos atuais dirigentes sindicais, de garantir a posição e o poder (poder impotente!) do Partido Socialista.9 Esse “poder impotente” tornava possível a continuidade das agressões fascistas, que se originaram um ano e meio antes da ascensão de Musso- lini ao poder, e com total cumplicidade das instituições do Estado liberal. Assim, “o terreno da luta rapidamente se tornou trágico: incêndios, tiro- 8 GRAMSCI, Antonio. Burocratismo. In: Escritos políticos, op. cit., p. 43. 9 Ibidem, p. 41. Gramsci e o fascismo 51 teios, rajadas de metralhadoras, dezenas e dezenas de mortos”.10 A indife- rença dos dirigentes sindicais diante do fuzilamento de operários e cam- poneses cometido pelas hordas fascistas era explicada por Gramsci pelo transformismo desses dirigentes, convertidos de trabalhadores em buro- cratas afastados das condições concretas enfrentadas pela classe operária: Esses homens não vivem mais para a luta de classes, não sentem mais as mesmas paixões, os mesmos desejos, as mesmas esperanças vividas pelas massas: entre eles e as massas se criou um abismo insuperável. O único contato entre eles e as massas é o registro das contribuições e o fichamen- to dos filiados. Esses homens já não veem o inimigo na burguesia, mas nos comunistas: têm medo da concorrência, são líderes que se tornam banqueiros de homens em regime de monopólio.11 Ao invés de resistir ao fascismo, a burocracia sindical preferia oferecer seus serviços de apaziguamento da luta de classes à burguesia italiana. Na visão de Gramsci, foram sua impotência e incapacidade política que levaram à desastrosa tentativa dos socialistas de um entendimento com os fascistas, concretizada no Pacto de Roma – cujo compromisso estabe- lecido jamais foi cumprido pelos fascistas –, que, como dito há pouco, su- postamente garantiria respeito mútuo aos símbolos e à integridade física dos militantes de ambas as organizações.12 Burocratizados, os sindicalistas socialistas já não mais exerciam lide- rança sobre os trabalhadores, pois “as massas não mais obedecem aos líderes que as abandonaram covardemente no momento do perigo e dos massacres”13. Portanto, também deixavam de ser úteis às classes domi- nantes, que, sem maiores remorsos, descartavam os antigos aliados, já que “os líderes sindicais só são respeitados na medida em que se crê que eles gozam de confiança das grandes massas trabalhadoras, na medida em que possam evitar greves e convencer os operários a aceitar resig- 10 Ibidem. 11 Ibidem. 12 Ver a respeito: CALIL, Gilberto. Gramsci e o fascismo: o fracasso da política de apaziguamento dos socialistas. Esquerda Online. Disponível em: <https://esquerdaonline. com.br/2018/09/17/gramsci-e-o-fascismo/>. Acesso em: 12 out. 2019. 13 GRAMSCI, Antonio. Os líderes e as massas. In: Escritos políticos, op. cit., p. 72. 52 O NEOFASCISMO NO PODER (ANO I): ANÁLISES CRÍTICAS SOBRE O GOVERNO BOLSONARO nadamente a exploração e a opressão do capitalismo”14. É por essa razão que, pateticamente, sem condições de atuar como efetivos representantes dos trabalhadores, assumiam uma política errática e suicida, fragilizando a resistência ao fascismo. A incapacidade de pensar a realidade a partir da luta de classes os levou a uma negociação com os fascistas, no exato mo- mento em que estes golpeavam e atacavam trabalhadores e camponeses. Poucos meses depois, Gramsci registrava que a atividade sindical estava inteiramente destroçada, mas que nada disso preocupava os burocratas da CGdL: Os Stenterellos15 da Confederação Geral do Trabalho estão perma- nentemente alegres. Inteiras regiões são postas a ferro e fogo pela guarda branca, a atividade sindical está completamente destroçada, não subsiste mais nenhuma garantia constitucional para os indivíduos e as associa- ções, os operários e camponeses são fuzilados impunemente por bandos armados de mercenários que se deslocam livremente de região a região – mas nem por isto os Stenterellos sindicais da Confederação perdem o apetite e o bom humor.16 Diante da ascensão do fascismo e do crescimento dos ataques propa- gados pelos fascistas, a reflexão de Gramsci expressava enorme angústia com os resultados facilmente previsíveis da política de apaziguamento e conciliação levada adiante pelos burocratas sindicais – bem como pelos dirigentes do partido socialista. Em contraposição, propugnava a necessi- dade da organização política dos trabalhadores para a resistência e também o direcionamento da luta política para a construção de uma greve geral. Nesse sentido, enfatizou que foi a realização de uma exitosa greve geral na Alemanha que, em março de 1920, permitiu a derrota de um golpe de Estado reacionário17 e se entusiasmou com a greve geral dos trabalhado- res de Turim contra a condenação de operários injustamente acusados.18 14 Ibidem, p. 73. 15 “Stenterello é uma máscara do teatro florentino, criada por Luigi Del Buono no final do século XVIII, que representa o falso esperto.” GRAMSCI, A. Notas ao texto. In: Escritos políticos, op. cit., p. 447. 16 Idem. Golpe de Estado. In: Escritos políticos, op. cit., p. 77. 17 Ibidem, p. 77. 18 GRAMSCI, Antonio. Contra a magistratura. In: Escritos políticos, op. cit., p. 102. Gramsci e o fascismo 53 Embora a organização do Partido Comunista estivesse em crescimento, a agremiação era ainda insuficiente para capitanear a resistência e organizar uma greve geral de âmbito nacional, o que explica a angústia de Gramsci, que via o fascismo crescer em organização e violência e – ao contrário da direção socialista – antevia a concretização de um golpe fascista. Fascismo e pequena burguesia Uma das características fundamentais do fascismo, em suas distintas ex- periências históricas, é o fato de que, embora quando no poder tenha expressado os interesses do grande capital (como as políticas concretas dos regimes fascistas comprovam fartamente), ele não se constituiu ini- cialmente como organização impulsionada pela grande burguesia. Ao contrário, sua ascensão foi impulsionada fundamentalmente por seto- res intermediários, muito especialmente a pequena burguesia. Essa ca- racterística foi observada também durante a ascensão do nazismo por Wilhelm Reich, que, observando os dados eleitorais, comprovou o apoio majoritário da pequena burguesia urbana e rural ao nazismo, enquanto os trabalhadores mantiveram-se majoritariamente fiéis à social-demo- cracia ou aos comunistas.19 Da mesma forma, na análise do processo ita- liano, esse fenômeno não passou desapercebido no estudo de Gramsci. O termo “pequena burguesia”, na tradição marxista, não designa uma burguesia de menor porte, como o nome pode erroneamente sugerir, e sim um estrato com características particulares que implicam uma contradi- ção insanável: esse vasto estrato social, que reúne pequenos comerciantes, artesãos e pequenos proprietários rurais, tem em comum com a burguesia o fato de que são proprietários, e com a classe trabalhadora o fato de que necessitam do próprio trabalho para sua subsistência. De um lado, elesse identificam com a condição de proprietários, pois detêm o controle dos recursos produtivos do qual depende seu negócio (seja ele uma loja, restau- rante, serralheria, oficina ou uma pequena propriedade rural). De outro, ao contrário da grande burguesia e assim como os trabalhadores, tiram a so- 19 REICH, Wilhelm. Psicologia de massas do fascismo. São Paulo: Martins Fontes, 2001. Situação não muito distinta é a que se observa atualmente no Brasil, onde a base social e eleitoral do fascismo é fundamentalmente recrutada junto à pequena burguesia. 54 O NEOFASCISMO NO PODER (ANO I): ANÁLISES CRÍTICAS SOBRE O GOVERNO BOLSONARO brevivência do seu próprio trabalho (e, na maior parte dos casos, também do trabalho de sua família). Seu negócio de pequeno porte, mesmo que eventualmente conte com alguns trabalhadores assalariados, não tem esca- la suficiente para permitir a seus donos viver apenas da extração de mais- -valia alheia. Essa condição contraditória determina a impossibilidade de sustentarem um projeto de sociedade próprio e autônomo (uma sociedade de pequenos proprietários é de tal forma anacrônica que mesmo em ter- mos ideológicos sua eficácia é limitadíssima) e, portanto, sua ação política se dá necessariamente atrelada a uma das classes fundamentais – burguesia e trabalhadores. O fascismo é relevante precisamente porque permite his- toricamente colocar a pequena burguesia a serviço da grande burguesia e mais ainda por conformar tropas de choque em defesa dos interesses desta. É impressionante a atualidade da definição gramsciana sobre o sig- nificado do fascismo em um contexto de crise econômica e do papel da pequena burguesia nisso: O que é o fascismo, visto em escala internacional? É a tentativa de resolver os problemas da produção e da troca através de rajadas de metralhadoras e de tiros de pistola (...) Criou-se uma unidade e simultaneidade de crises nacionais, que fazem com que a crise geral seja extremamente aguda e incontornável. Mas existe em todos os países um estrato da população – a pequena e média burguesia – que considera ser possível resolver estes gigantescos problemas com metralhadoras e pistolas. É este estrato que alimenta o fascismo, que fornece seus efetivos.20 Em janeiro de 1921, Gramsci observava o fenômeno então novo da realização de grandes manifestações de rua reacionárias, e o relacionava à “perda de importância da pequena burguesia”, “afastada de qualquer fun- ção vital no terreno da produção”, que, tentando reagir a esse processo, “busca de todos os modos conservar uma posição de iniciativa história: ela macaqueia a classe operária, também faz manifestações de rua”.21 A referência ao “povo dos macacos”, da novela O livro da selva, de Rud- yard Kipling,22 enseja uma ácida analogia de Gramsci sobre o sentimento 20 GRAMSCI, A. Itália e Espanha. In: Escritos políticos, op. cit., p. 46-47, grifo meu. 21 Idem. O povo dos macacos. In: Escritos políticos, op. cit., p. 31. 22 RUDYARD, Kipling. O livro da selva: as histórias de Mogli. São Paulo: Scipione, 2009. A edição original é de 1894. Gramsci e o fascismo 55 de superioridade de classe e brutal incoerência dos discursos moralizan- tes da pequena burguesia: “o povo dos macacos, que acredita ser superior a todos os outros povos da selva, que acredita possuir toda a inteligência, toda a intuição, todo o espírito revolucionário, toda a sabedoria de gover- no, etc. Ocorreu o seguinte: a pequena burguesia, que se pusera a serviço do poder governamental por meio da corrupção parlamentar, modifica a forma de prestação de serviços, torna-se antiparlamentarista e busca corromper as ruas.”23 Curiosamente, toda agressividade, violência e mili- tarismo de sua ação, que buscam expressar força e potência, na realidade expressaria justamente sua incapacidade orgânica. Depois de ter corrompido e arruinado a instituição parlamentar, a peque- na burguesia corrompe e arruína também as demais instituições, os sus- tentáculos fundamentais do Estado: o exército, a polícia, a magistratura. Corrupção e ruína realizadas a fundo perdido, sem nenhuma finalidade precisa (a única finalidade precisa deveria ser a criação de um novo Esta- do: mas o “povo dos macacos” se caracteriza precisamente pela incapaci- dade orgânica de criar para si uma lei, de fundar um Estado).24 O artigo é escrito quase dois anos antes da Marcha sobre Roma, marco da ascensão do fascismo ao poder, e por isso é particularmente interes- sante observar a clareza que Gramsci tinha sobre a verdadeira impotência que movia a pequena burguesia, crescentemente subordinada, de forma subjetiva e objetiva, ao grande capital, por mais que disfarçasse essa su- bordinação com tiros de pistola ou proclamações pretensamente “contra a ordem”. Seu balanço é arrasador: A pequena burguesia, mesmo nesta sua última encarnação política que é o “fascismo”, revelou definitivamente sua verdadeira natureza de serva do capitalismo e da propriedade agrária, de agente da contrarrevolução. Mas revelou também que é fundamentalmente incapaz de desempenhar qualquer tarefa histórica: o povo dos macacos enche as crônicas, não faz história; deixa traços nos jornais, não oferece material para livros. A pe- quena burguesia, depois de ter arruinado o Parlamento, está arruinando 23 GRAMSCI, A. O povo dos macacos. In: Escritos políticos, op. cit., p. 31-32. 24 Ibidem, p. 32, grifo meu. 56 O NEOFASCISMO NO PODER (ANO I): ANÁLISES CRÍTICAS SOBRE O GOVERNO BOLSONARO o Estado burguês: ela substitui, em escala cada vez maior, a “autoridade” da lei pela violência privada; exerce (e não pode agir de outro modo) essa violência de modo caótico, brutal, e faz com que se ergam contra o Esta- do, contra o capitalismo, segmentos cada vez mais amplos da população.25 Se a última frase expressava o “otimismo da vontade” de Gramsci em relação à possibilidade de derrotar o fascismo através da concretização da revolução socialista, o restante assemelha-se assustadoramente com o processo que estamos vivendo no Brasil. Até recentemente, podíamos ressalvar que ainda não se evidenciava a constituição de uma base mili- tante organizada nos moldes de tropa de choque e a escalada da violência que a caracteriza. Não é possível mais ter a mesma segurança e, portanto, é urgente reconhecer o fenômeno do fascismo e os elementos que o par- ticularizam, assim como a exigência imediata de seu enfrentamento. A cumplicidade do Estado e da Justiça O período em que Gramsci escreveu o conjunto de artigos aqui anali- sados – que corresponde à ascensão do fascismo (1921-1922) e prévio à efetiva tomada do poder estatal pelos fascistas – foi marcado por centenas de ataques terroristas, atentados, assassinatos, massacres e incêndios de sedes comunistas e sindicais promovidos pelas milícias fascistas. A cres- cente violência fascista era explícita e evidente. Nesse contexto, enquanto os socialistas clamavam ao Estado para que contivesse a violência e che- gavam a negociar com os próprios fascistas um “pacto de não agressão”, Gramsci tinha clareza da cumplicidade do Estado liberal italiano – e em especial do Poder Judiciário – em relação aos crimes do fascismo. Pelas suas características constitutivas, o fascismo sempre se apre- senta como “antirregime” e “antissistema”, de forma a poder captar a re- volta social e imprimir a ela um sentido reacionário. Esta é uma aparên- cia necessária, sem a qual os fascistas não teriam êxito, e que se repete em movimentos fascistas nos mais distintos contextos e temporalidades. Gramsci reconhecia a necessidade dessa aparência, mas apressava-se em denunciar que não correspondia ao processo concreto em sua es- 25 Ibidem, p. 34. Gramsci e o fascismo 57 sência e que, portanto, era “preciso insistir para fazer compreender que o proletariado hoje não tem contra si apenas uma associação privada, mas todo o aparelho estatal”,26 considerando que “o fascismo está orga- nicamente ligado à atual crise do regime capitalista e só desaparecerácom a supressão deste regime”.27 Confiar na tradição democrática do Estado – ainda mais em um contexto como o italiano, no qual este era bastante frágil – seria demasiado ingênuo. Ao contrário, considerava imprescindível reconhecer a complementariedade entre a violência ile- gal promovida pelo fascismo e a repressão legalmente produzida pelo Estado, podendo-se mesmo prever uma crescente articulação entre am- bas até que finalmente se unificassem: Existem hoje na Itália dois aparelhos punitivos e repressivos: o fascismo e o Estado burguês. Um simples cálculo de custo e benefício leva a prever que a classe dominante, em certo momento, buscará amalgamar também oficialmente estes dois aparelhos; para isto, tentará quebrar as resistências opostas pela tradição do funcionamento estatal através de um golpe de força contra os organismos centrais do governo.28 A cumplicidade ativa do Estado, especialmente da parte ligada às fun- ções repressivas e à Justiça, era, segundo Gramsci, uma das chaves expli- cativas imprescindíveis para a compreensão do fascismo, sem a qual seu êxito não poderia ser compreendido: Os fascistas só puderam realizar suas atividades porque dezenas de mi- lhares de funcionários do Estado, em particular dos organismos de se- gurança pública (delegados de polícia, guardas-régias, carabineiros) e da Magistratura, tornaram-se seus cúmplices morais e materiais. Estes fun- cionários sabem que a manutenção de sua impunidade e o êxito de suas carreiras estão estreitamente ligadas aos destinos da organização fascista, e, por isso, têm todo interesse em apoiar o fascismo em qualquer tentativa que este faça no sentido de consolidar sua posição política.29 26 GRAMSCI, Antonio. Os arditi del popolo. In: Escritos políticos, op. cit., p. 75. 27 Ibidem, p. 74 28 GRAMSCI, Antonio. Golpe de Estado. In: Escritos políticos, op. cit., p. 78. 29 Idem. Socialistas e fascistas. In: Escritos políticos, op. cit., p. 66. 58 O NEOFASCISMO NO PODER (ANO I): ANÁLISES CRÍTICAS SOBRE O GOVERNO BOLSONARO É a cumplicidade estatal que explica a ampla liberdade com que os fascistas contaram enquanto produziam incêndios, assassinatos e espan- camentos à luz do dia e, mesmo, muitas vezes com a participação direta de seus agentes integrando as fileiras do fascismo. Gramsci não pôde dei- xar de observar que tal cumplicidade agravava a crise do Estado liberal e favorecia a imposição do fascismo, seus métodos e sua política, em um processo de gradativa transferência das funções repressivas do aparato estatal para o aparato privado do fascismo. Se o governo deixa que a Constituição seja impunemente violada; se per- mite a formação no país de bandos armados (...), isto significa apenas uma coisa: que o governo, responsável pelo soberano, violou o juramento de fidelidade à Constituição. Significa apenas que está sendo preparado, por parte dos organismos estatais que se agrupam no poder executivo, um golpe de Estado. Significa apenas que já vivemos na Itália o ambiente do qual decorre necessariamente o golpe de Estado.30 Esse lúcido alerta de Gramsci, um ano antes da Marcha sobre Roma dos fascistas, não era levado a sério pela burocracia sindical nem pelos dirigentes do Partido Socialista, que “chegam mesmo a rir diante da sim- ples hipótese do golpe de Estado”.31 No interior do aparato repressivo do Estado italiano, o Poder Judiciá- rio ocupava um papel da maior importância, e Gramsci não se cansou de lembrar o quanto as fragilidades da democracia burguesa estabelecida na Itália conformaram uma magistratura especialmente reacionária: Na Itália – dado que jamais existiu um poder judiciário independente, mas apenas uma ordem judiciária submetida ao poder governamental –, jamais existiu a democracia, mas só um regime paternal, adocicado e mitigado (...) Onde, como na Itália, a força armada depende do governo (que pode, quando assim o desejar, dissolver a Câmara com as baionetas), não existe democracia: existe ditadura, isto é, a reação permanente.32 30 Idem. O sustentáculo do Estado. In: Escritos políticos, op. cit., p. 100. 31 Idem. Golpe de Estado. In: Escritos políticos, op. cit., p. 77. 32 Idem. Contra a magistratura. In: Escritos políticos, op. cit., p. 104. Gramsci e o fascismo 59 São observações certamente pertinentes e que ajudam a pensar outras autocracias burguesas em tempos distintos. Reafirmando que “a magis- tratura italiana não age contra os fascistas”,33 Gramsci considerava im- prescindível denunciar o caráter cúmplice e classista da Justiça italiana; por isso entusiasmou-se com a greve geral ocorrida em Turim no final de 1921 contra a condenação de operários acusados injustamente por um assassinato. Esperando que este fosse o “primeiro episódio de uma luta sem tréguas contra a organização da justiça burguesa”,34 Gramsci saudava a greve por permitir explicitar e propagar às massas que, ao contrário do que proclamavam os reformistas italianos, não podiam contar com a Justiça. A greve geral de Turim, portanto, não representa nada de substancial- mente novo: é um simples episódio da luta geral que a classe operária trava contra os seus opressores e exploradores, contra todas as formas de opressão e exploração exercidas pela burguesia sobre o povo traba- lhador. Se há uma novidade nesta greve, ela é de caráter ideológico (...) A greve geral de Turim tem um grande valor e um grande significado, ela significa que a classe operária libertou-se finalmente desta forma de opressão espiritual, que a classe operária começa a ver nos tribunais nada mais do que uma arma da ditadura burguesa que é preciso quebrar e destruir.35 Praticamente cem anos depois, lidas desde um país onde não apenas o fascismo constitui uma ameaça concreta, mas onde também o caráter classista da Justiça é inegável e sua função repressiva é demarcada por monstruosidades, como a Lei de Segurança Nacional e a Lei Antiterroris- mo, é impossível não perceber de imediato a pertinência e atualidade da reflexão gramsciana nesse aspecto. 33 Ibidem, p. 105. 34 Ibidem, p. 102. 35 Ibidem, p. 104-105. 60 O NEOFASCISMO NO PODER (ANO I): ANÁLISES CRÍTICAS SOBRE O GOVERNO BOLSONARO O comportamento da grande burguesia Nos escritos de Gramsci, é clara a compreensão de que o fascismo não sur- ge como expressão normal e direta da grande burguesia, mas ao contrário, como expressão política da pequena burguesia. Nos estágios iniciais de seu desenvolvimento, o movimento fascista confronta o regime liberal em um momento no qual este ainda é a forma de dominação burguesa em vigên- cia. Daí coloca-se uma questão relevante: de que forma a grande burguesia se relaciona com o fascismo durante sua ascensão até que chegue ao gover- no e reconfigure o regime político destruindo as instituições liberais? O ponto de partida da reflexão gramsciana é o reconhecimento da fragilidade da democracia italiana e seu entendimento de que essa fra- gilidade se explica pelas limitações de uma burguesia reacionária, que jamais trabalhou a favor do – ou permitiu o – pleno desenvolvimento de uma democracia liberal, optando pela implementação de um regime autocrático: “a ausência nos burgueses de todo espírito de civismo e leal- dade em face das instituições sempre impediram a existência de um Es- tado parlamentar bem organizado.”36 Em consequência, diante do desafio representado pela organização dos trabalhadores, não se poderia esperar qualquer compromisso democrático da burguesia: “A realidade mostrou, de modo mais evidente possível, que a legalidade é uma só, e existe so- mente enquanto se concilia com os interesses da classe dominante;”37 Sua adesão ao liberalismo seria estritamente instrumental. No dia em que o sufrágio e o direito de organização se tornaram meios de uma ofensiva contra a classe patronal, esta última renunciou a qual- quer legalidade formal e passou a obedecer apenas a sua verdadeira lei, ou seja, à lei do seu interesse e da sua conservação. Uma a uma, as prefei- turas foram sendoarrancadas pela violência das mãos da classe operária; as organizações foram dissolvidas com o uso da força armada; a classe operária e camponesa foi expulsa das posições conquistadas, a partir das quais ameaçava para além da conta a existência da propriedade privada. Surgiu assim o fascismo, que se afirmou e impôs fazendo da ilegalidade a única coisa legal. Nenhuma organização, salvo a fascista; nenhum direito 36 GRAMSCI, Antonio. O Estado operário. In: Escritos políticos, op. cit., p. 29. 37 Idem. Legalidade. In: Escritos políticos, op. cit., p. 84. Gramsci e o fascismo 61 de voto, a não ser quando dado aos representantes dos latifundiários e dos industriais. É esta a legalidade que a burguesia reconhece quando é obrigada a repudiar a legalidade formal.38 Vale destacar que esses registros, indicando claramente a imposição das leis de exceção fascistas, foram feitos mais de um ano antes da chega- da de Mussolini ao governo, o que sublinha ainda mais a capacidade de percepção de Gramsci em sua compreensão de que “existe um momento na história em que a burguesia é obrigada a repudiar o que ela mesma criou”.39 Acreditar na subsistência de uma burguesia consistentemente li- beral seria então um grave equívoco: Chamar de liberais aos burgueses de hoje em dia, que perderam a cons- ciência do valor moral da liberdade, é algo muito pior do que apenas es- tranho, assim como é falta absoluta de compreensão política acreditar que são liberais os partidos burgueses atuais ou, pior ainda, o bloco no qual estes desapareceram.40 Não havia, portanto, nenhum espaço para dúvidas ou esperanças em relação a qualquer compromisso democrático ou legalista da burguesia, que abdica de qualquer veleidade democrática e adere alegremente à bar- bárie proposta pelas tropas de choque que o fascismo coloca à sua dispo- sição: A classe proprietária repete, em face do poder executivo, o mesmo erro que comete em face do Parlamento: acredita que pode se defender me- lhor dos assaltos da classe revolucionária abandonando as instituições de seu Estado aos caprichos histéricos do “povo dos macacos”, da pequena burguesia.41 Mussolini, como a maior parte dos líderes fascistas, era um perso- nagem caricato e intelectualmente limitado, que pareceria incompatível 38 Ibidem, p. 84-85. 39 Ibidem, p. 85. 40 GRAMSCI, Antonio. Liberalismo y bloques. In: Sobre el fascismo. México: Ediciones Era, 1979. p. 77, tradução livre. 41 Idem. O povo dos macacos. In: Escritos políticos, op. cit., p. 33. 62 O NEOFASCISMO NO PODER (ANO I): ANÁLISES CRÍTICAS SOBRE O GOVERNO BOLSONARO com a orgulhosa burguesia italiana, pretensa herdeira da tradição clássi- ca. Aparecia, portanto, como uma espécie de “monstro”, fazendo com que muitos acreditassem que seria repudiado pelos cultos burgueses italia- nos. Gramsci nunca compartilhou dessa ilusão: Os burgueses hoje, meio amedrontados e meio estupefatos, encaram esse homem [Mussolini] que se colocou a seu serviço como uma espécie de novo monstro, como alguém que revoluciona as situações reais e cria his- tória. Nada mais falso. A incapacidade de articular entre si os elos de uma construção histórica é tão grande neste epiléptico quanto é no subversi- vismo malthusiano dos líderes burgueses tradicionais. São todos uma só família. Representam, tanto um como os outros, a mesma impotência (...) A luta contra as reivindicações e a resistência contra a desforra operária partem de bases bem mais concretas; mas é certamente significativo, para a seriedade da vida política italiana, que – no topo da construção que se conserva de pé graças a um poderoso sistema de forças reais – encontre- -se este homem que se deleita proclamando sua própria força e se mas- turbando com as palavras.42 Desta forma, meses antes da chegada de Mussolini ao poder, Gramsci já via no fascismo a expressão orgânica da burguesia, compreendendo que o processo de ajustamento entre o movimento e a classe dominante já estava concretizado: O fascismo é um movimento social, é a expressão orgânica da classe pro- prietária em luta contra as exigências vitais da classe trabalhadora (...) Nessa luta, a iniciativa pertence, todavia, à classe proprietária, assim como ao fascismo pertence a iniciativa da guerra civil: a classe trabalha- dora é a vítima da guerra de classe e não pode haver paz entre a vítima e o verdugo.43 Tragicamente, a história italiana subsequente daria razão a Gramsci e, como um bloco, a grande burguesia italiana em suas distintas frações apoiaria a ascensão e consolidação do fascismo, sem vacilação ou crise 42 Idem. Subversivismo reacionário. In: Escritos políticos, op. cit., p. 69-70. 43 Idem. El verdugo y la víctima. In: Sobre el fascismo, op. cit., p. 84, tradução livre. Gramsci e o fascismo 63 de consciência. Acreditar nas convicções liberais da burguesia era, para Gramsci, uma perigosa ilusão análoga à crença nas instituições do Estado e da Justiça. Eleição, governo e ditadura A constituição dos regimes fascistas na Itália e na Alemanha passam por êxitos eleitorais dos respectivos partidos, mas isso não significa que ela tenha sido resultado direto de processos eleitorais. A consolidação de di- taduras fascistas se deu em três etapas sucessivas: a obtenção de um re- sultado eleitoral expressivo (mas não majoritário); a chegada ao governo (ainda que sem maioria parlamentar); e o fechamento progressivo do re- gime, com a destruição sucessiva das garantias e liberdades democráticas. No caso alemão, o Partido Nazista (NSDAP) logrou eleger parlamentares na eleição de 1930, no contexto de agravamento da crise econômica de- corrente do crash de 1929. Dois anos depois, passou para 232 parlamen- tares, não atingindo, ainda assim, a maioria parlamentar. Foi na condição de força minoritária no parlamento que o Partido Nazista, em janeiro de 1933, foi alçado ao governo, quando rapidamente passou a perseguir seus adversários, visando a estabelecer um regime abertamente ditatorial. Para isso, utilizou como principal pretexto o incêndio do Reichstag (par- lamento alemão), ocorrido em fevereiro de 1933, pelo qual responsabili- zou os comunistas. Na Itália, o processo foi mais lento. O Partido Nacional Fascista foi constituído sob liderança de Benito Mussolini em 1919, a partir de outra organização de menor relevância (o Partido Revolucionário Fascista). Seu principal êxito eleitoral rumo ao poder se deu em maio de 1921, quando elegeu 35 deputados (pouco mais de 6% dos 535 deputados), integrando a coalizão conservadora Bloco Nacional, que, ao todo, elegeu 105 deputa- dos. Embora o setor de centro-esquerda, liderado pelo Partido Socialista (123 deputados), e de centro, liderado pelo Partido Popular (108 deputa- dos), somassem maior número de parlamentares, a grande fragmentação do parlamento determinou uma crise política permanente que só se agra- vou ao longo dos dois governos que se constituíram na sequência (Ivanoé Bonomi, socialista reformista, entre julho de 1921 e fevereiro de 1922, e Luigi Facta, liberal, entre fevereiro e outubro de 1922). 64 O NEOFASCISMO NO PODER (ANO I): ANÁLISES CRÍTICAS SOBRE O GOVERNO BOLSONARO Na eleição de 1921, o recém-constituído Partido Comunista Italiano elegeu apenas 15 deputados. Às vésperas da eleição, Gramsci registrava a dramaticidade daquele processo, considerando que “a guerra abriu a maior crise já ocorrida na história, crise que não é de um governo ou de um Estado, mas de um regime e de um mundo”, e que, portanto, “a tática seguida nos anos da paz e da tranquilidade para nada mais serve no momento atual”.44 A política de apaziguamento do reformismo seria particularmente ineficaz: Tudo aquilo que antes podia parecer um passo à frente, toda ação que há algum tempo servia para garantir um pouco de liberdade, para dar um pouco de justiça aos trabalhadores, hoje serve apenas para aguçar ain- da mais a crise, para enfurecer os inimigos, para provocar reações ainda mais fortes, para tornar a vida mais dura e abatalha mais áspera.45 Passada a eleição, Gramsci registrava que “os comunistas foram der- rotados”, como resultado de uma “formidável crise de desencorajamento e de depressão”. Essa derrota se deu em um contexto de forte coação em- presarial e de restrição às liberdades, mas tais dificuldades não impedi- ram uma dura avaliação autocrítica de Gramsci. Os comunistas são perseguidos nas fábricas; em cada seção, há dois ter- ços de pessoas que sofreram “retaliações”. A luta eleitoral – em função da dimensão universal dada pelo sentimento popular – tinha um significado de afirmação da legalidade burguesa contra a barbárie e a ferocidade fas- cistas. O proletariado de Turim acreditou que podia não se interessar por esta afirmação. Esta apatia não é indicadora de capacidade política, mas, ao contrário, é sintoma de dissolução e de confusão mental (...) A absten- ção jamais pode ser assumida como prova de capacidade política, mas é somente comprovação de dissolução e de depravação moral.46 Da mesma forma, a responsabilidade do Partido Comunista Italiano não era mascarada, mas proclamada explicitamente: 44 Idem. Socialista ou comunista? In: Escritos políticos, op. cit., p. 61. 45 Ibidem, p. 61. 46 Ibidem, p. 64-65. Gramsci e o fascismo 65 O pouco entusiasmo das massas se justifica em função do pouco entu- siasmo e da debilidade dos comunistas organizados. Deve ser feito um grande trabalho de reorganização dos elementos melhores e mais cons- cientes. Mas os comunistas não devem se perder em processos de res- ponsabilidade formal. O melhor modo de julgar as responsabilidades é constituir uma organização mais sólida.47 Conforme já discutimos, Gramsci avaliava que a política de apazigua- mento dos socialistas conduziria ao desastre e, portanto, via como única alternativa o rápido e intenso fortalecimento da organização dos comu- nistas, condição para que pudesse colocar em prática sua estratégia de enfrentamento ao fascismo. Em fevereiro de 1922, com a queda do governo Bonomi, a crise agra- vou-se, e uma vez mais, Gramsci apontou a fragilidade das instituições do Estado liberal e sua completa perda de legitimidade, registrando que “aos olhos do país, todo o Parlamento não passa de um corredor escuro e sem saída”.48 Nesse contexto, a perda de identidade e combatividade do Parti- do Socialista o fazia ser identificado com a carcomida ordem vigente: “em algumas zonas, sobretudo rurais e de pequenas regiões, há estratos infe- riores da população trabalhadora que não fazem mais distinção entre os dois partidos [Partido Socialista e Partido Popular].”49 Na sua avaliação, as tentativas de manter alguma aparência de legalidade em meio aos ataques das classes dominantes, que permeavam a política de socialistas reformis- tas e populares, conduziriam ao desastre: “O novo regime articulará as mais obscuras características de nossas tradicionais camorras com os novos tra- ços do Estado socialdemocrata, cínico, demagogo, hipócrita, corruptor e corrupto. Bonomi, deste ponto de vista, foi um verdadeiro precursor.”50 O fascismo, ainda que se apresentasse como externo ao sistema, seria, na ver- dade, justamente um instrumento de sua reconfiguração: Para atingir plenamente o objetivo, é preciso atravessar um período de ajustamento. Um deles foi atravessado pela crise de violência do fascismo. (...) Uma outra fase do período de ajustamento é representada pelas crises 47 Ibidem, p. 65. 48 GRAMSCI, Antonio. A substância da crise. In: Escritos políticos, op. cit., p. 111. 49 Ibidem, p. 112. 50 Ibidem, p. 113. 66 O NEOFASCISMO NO PODER (ANO I): ANÁLISES CRÍTICAS SOBRE O GOVERNO BOLSONARO parlamentares. É no Parlamento que se deve efetuar a ligação entre os elementos dirigentes das velhas e novas camorras.51 Quando Mussolini marchou sobre Roma com sua milícia fascista, conseguindo a demissão do governo Facta e sua própria nomeação como primeiro-ministro, Gramsci encontrava-se em Moscou, tratando de pro- blemas de saúde, de onde enviou um artigo recapitulando os vários fato- res que conduziram à constituição do governo Mussolini: a fragilidade da burguesia italiana; sua completa falta de compromisso democrático; o agravamento da crise da dominação em virtude das tentativas de manter a estabilidade do sistema através de concessões paternalistas; o impacto das greves operárias e das sublevações camponesas; a traição do PSI à greve do Piemonte em 1920 e a desmoralização das classe trabalhadora decorrente dessa traição; e a articulação entre as confederações empresa- riais, associações rurais e fascismo.52 Todos esses fatores tornaram o re- gime liberal insustentável e conduziram à constituição do governo Mus- solini, que, embora mantivesse uma formalidade legal, era diretamente decorrente de um ato de força – a Marcha sobre Roma. Finalmente, é importante observar que a constituição do governo Mussolini não implicou de imediato a constituição de um regime fascis- ta. Entre novembro de 1922 e junho de 1926, a Itália tinha um governo liderado por um fascista – tal como temos atualmente no Brasil –, mas em uma condição de transição na qual subsistiam determinadas liberda- des. Nesse contexto, Gramsci, ao longo de 1923, fundamentou a proposta de investir na articulação política entre o operariado do Norte e o cam- pesinato do Sul como caminho para efetivar um processo revolucionário e derrotar o fascismo. Em abril de 1924, em eleições que se realizaram ainda com certas condições de liberdade, Gramsci foi eleito deputado e retornou à Itália para assumir seu mandato. Pouco depois de Gramsci ter assumido o cargo, o deputado socialista Giacomo Matteoti foi assas- sinado por fascistas logo após ter proferido um discurso denunciando a fraude eleitoral e o agravamento da violência política. Gramsci então de- fendeu que a única alternativa de resistência seria a convocação imediata 51 Ibidem, p. 113. 52 GRAMSCI, Antonio. As origens do Gabinete Mussolini. In: Escritos políticos, op. cit., p. 122-126. Gramsci e o fascismo 67 de uma greve geral, rompendo com o imobilismo legalista e confrontan- do abertamente o governo fascista. Sua posição não se impôs, e a escalada repressiva seguiu seu curso, até que, ao longo de 1926, completou-se a reconfiguração do regime italiano. Em novembro daquele ano, Gramsci teve seu mandato cassado e sua prisão decretada. As estratégias de apa- ziguamento e conciliação, a crença em que as instituições do Estado se- riam capazes de conter o fascismo ou que ele seria destruído pelos seus próprios erros acabavam, enfim, por produzir o resultado tantas vezes antecipado por Gramsci. A experiência histórica demonstrou o extraordinário acerto da análise de Gramsci. A ameaça fascista era real, ao contrário da crença generali- zada dos socialistas e mesmo da maior parte dos comunistas italianos. A despeito da crítica de Gramsci, as ilusões e equívocos que permeavam as ações políticas da esquerda reformista não foram superados e pavimen- taram caminho para a chegada ao poder e construção do regime fascista. Minimização do risco fascista, política conciliatória dos reformistas, pa- ralisia e burocratização sindical, crença em que as instituições do Estado colocarão limites ao fascismo, e ilusão em relação à possibilidade de que a grande burguesia e as organizações políticas a ela vinculadas resistissem de forma efetiva ao fascismo... foram estes os ingredientes da tragédia italiana. Diante da ameaça fascista concreta e inegável que enfrentamos hoje, é imprescindível encarar tais equívocos e ilusões para que se possa construir uma efetiva resistência ao fascismo.
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