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Capa 1. CARACTERÍSTICAS GERAIS E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS 1.1. Imposto Indireto e o efeito da caracterização na repetição de indébito – Artigo 166 do Código Tributário Nacional Segundo o manual Macroeconomia, da Biblioteca Valor,1 os tributos em geral podem ser divididos em dois grandes grupos: diretos e indiretos. No primeiro grupo se enquadram os tributos incidentes sobre a renda (IRPJ e CSLL, por exemplo) e sobre a propriedade (IPTU, IPVA, ITR etc.). Já no segundo grupo estão os tributos que oneram as operações/prestações (mercantis ou não) que viabilizam a prestação de serviços, circulação e/ou produção de mercadorias e/ou produtos, a exemplo do IPI, ICMS e ISS. Apesar de não ser uma classificação jurídica, e sim econômica, essa divisão tem se mostrado importante porque, na prática, expressa a repercussão financeira do tributo ou, em outras palavras, que seu valor é assumido economicamente pelo adquirente da mercadoria, produto ou serviço. E dessa reflexão surgem questões relevantes do ponto de vista jurídico: nos impostos indiretos (como o ICMS), há sempre a figura do contribuinte de direito (aquele que, revestindo a condição de contribuinte dado pela legislação, se sujeita à regra matriz de incidência) e do adquirente final, que efetivamente suporta a carga tributária incorporada no preço das mercadorias e/ou produtos. Este último é comumente denominado contribuinte de fato. javascript:void(0) Essa é a definição dada por Hugo de Brito Machado Segundo,2 nos seguintes termos: “2.2. Ainda de acordo com essa explicação, o contribuinte de direito seria legalmente obrigado ao pagamento do tributo, eis que integraria a relação jurídico tributária, na condição se sujeito passivo. Já o contribuinte de fato não teria relação com o Fisco, sendo essa a razão do adjetivo “de fato”, pois na prática é ele quem arca com o ônus representado pelo tributo, que lhe é repassado pelo contribuinte de direito. Por outras palavras, o contribuinte de direito é obrigado ao pagamento, mas transfere a outro esse sacrifício pelo aumento de preço ou outro processo econômico de troca. [...] 2.3. Dentro desse quadro, é com muita simplicidade que se diz, por exemplo, que os impostos que incidem sobre o consumo seriam indiretos, ao passo que aqueles que oneram o patrimônio e a renda seriam diretos. O ICMS, v.g., é pago pelo vendedor de um produto (contribuinte de direito), mas, na prática, seria suportado pelo comprador (contribuinte de fato), sendo pelo primeiro embutido no preço e repassado ao segundo. O Imposto de Renda, a seu turno, é pago pelo beneficiário dos rendimentos, que efetivamente suporta o ônus do tributo, reunindo-se assim, na mesma pessoa, as figuras do contribuinte de direito e do contribuinte de fato.” Saber quem são os contribuintes de direito e de fato se afigura imprescindível porque é essa classificação que denota a legitimidade ativa em ações de repetições de indébito, nos termos do artigo 166 do Código Tributário Nacional, que tem a seguinte redação: “Art. 166. A restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido o referido encargo, ou, no caso de tê-lo javascript:void(0) transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la.” A princípio, a leitura do dispositivo leva à conclusão de que somente estará legitimado a pleitear o indébito quem efetivamente suportou seu ônus econômico (contribuinte de fato), a não ser que ele (o contribuinte de fato) expressamente autorize o contribuinte de direito a pleitear a restituição em seu nome. O Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo tem firme entendimento nesse sentido, a exemplo do que se verifica do processo 1000214-163345/2003, AIIM nº 2.051.276-4, que conta com a seguinte ementa: “ICMS. CRÉDITO INDEVIDO. 17% PARA 18%. CORREÇÃO MONETÁRIA. OUTROS. MÉRITO. Creditamento indevido de 1% referente à majoração de alíquota, sem amparo de ordem judicial e sem autorização expressa do terceiro, conforme exige o artigo 166 do CTN. Outros créditos lançados aleatoriamente sem qualquer respaldo documental e legal. Correção monetária dos créditos extemporâneos. Súmula 3 do TIT. Taxa Selic. Súmula 8 do TIT.” (TIT/SP. 8ª Câmara Temporária. Processo 1000214- 163345/2003, AIIM nº 2.051.276-4. Rel. Juíza Silvana Visintin. Julgado em 24 de junho de 2006.) Em um primeiro momento, o Judiciário também caminhou nessa trilha: “ICMS – Creditamento – Pretensão da embargante de se ver autorizada a creditar valores relativos à majoração da alíquota de 17% para 18%, julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, decorrentes de operações de aquisição de bens destinados ao ativo imobilizado ou de bens de uso ou consumo – Inviabilidade – Recolhimento considerado indevido apenas até a vigência da Lei Estadual n. 9.903/97 – Pedido vedado pelo Convênio 66/88 – Hipótese em que a autora se configura como consumidora final, encerrando-se a cadeia tributária – Ausência de violação ao princípio da não cumulatividade – Possibilidade que só foi admitida pela LC n. 87/96 como benefício fiscal, sendo constitucionais os limites constantes do art. 33 do diploma em questão – Repetição de indébito – Impossibilidade – Eventual recolhimento que foi realizado pelos fornecedores – Caracterização como contribuinte de fato que se presta apenas para impor uma condição à restituição a ser pleiteada pelo contribuinte de direito (art. 166 do CTN) – Ilegitimidade ativa reconhecida – Sentença reformada – Pedido improcedente – Recursos oficial e da Fazenda providos, prejudicado o da autora.” (TJSP. 8ª Câmara de Direito Público. Apelação nº 994071849210. Rel. Des. Cristina Cotrofe. Julgado em 29 de setembro de 2010.) “4. Tratando-se de tributo indireto, a exemplo do ICMS, a legitimidade ativa para a ação de repetição de indébito pertence, em regra, ao contribuinte de fato. Permitir o ressarcimento do imposto por aquele que não arcou com o respectivo ônus financeiro caracteriza enriquecimento ilícito desse último. Para que a empresa possa pleitear a restituição, deve preencher os requisitos do art. 166 do CTN, quais sejam, comprovar que assumiu o encargo financeiro do tributo ou que, transferindo-o a terceiro, possua autorização expressa para tanto. Precedentes.” (STJ. REsp 1087562/BA. Rel. Min. Castro Meira. DJe 10/02/2010.) Ocorre que o Superior Tribunal de Justiça modificou expressamente o seu entendimento. De acordo com a novel posição da Corte, o direito à restituição de tributos indiretos é do contribuinte de direito, não do contribuinte de fato, vejamos: “PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. ICMS SOBRE ENERGIA ELÉTRICA. TRIBUTO INDIRETO. DEMANDA CONTRATADA. INDÉBITO. CONSUMIDOR FINAL. ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM. 1. A Segunda Turma, ao julgar o REsp. 928.875/MT na sessão de 11.5.2010, modificou seu entendimento quanto à legitimidade ativa ad causam do consumidor de energia elétrica em relação ao ICMS. 2. A Primeira Seção, ao julgar o REsp. 903.394/AL (Rel. Min. Luiz Fux), sob o regime dos recursos repetitivos, passou a adotar o entendimento de que somente o contribuinte de direito tem legitimidade ativa para restituição do indébito relativo a tributo indireto. 3. No caso da energia elétrica, embora o consumidor possa ser considerado contribuinte de fato, jamais o será de direito nas operações internas, pois não promove a circulação do bem, e tampouco há previsão legal nesse sentido. 4. Recurso Especial provido.” (STJ. REsp 1.273.916/RS. Rel. Min. Herman Benjamin. DJe 24/10/2011.) (grifei) A partir dos fundamentos adotados pela 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça ao julgar do REsp nº 903.394/AL, mencionado na ementa supratranscrita, é possível verificar que a Corte assumiu a premissa de que o artigo 166 do Código Tributário Nacional não pode ser interpretado isoladamente e, em seguida, concluiu que o contribuinte de fato não é parte legítima para repetir o indébito, apenas o contribuinte de direito. Vejamos: “A norma veiculada pelo art. 166não pode ser aplicada de maneira isolada, há de ser confrontada com todas as regras do sistema, sobretudo com as veiculadas pelos arts. 165, 121 e 123, do CTN. Em nenhuma delas está consignado que o terceiro que arque com o encargo financeiro do tributo possa ser contribuinte. Portanto, só o contribuinte tributário tem direito à repetição do indébito. Ademais, restou consignado alhures que o fundamento último da norma que estabelece o direito à repetição do indébito está na própria Constituição, mormente no primado da estrita legalidade. Com efeito a norma veiculada pelo art. 166 choca-se com a própria Constituição Federal, colidindo frontalmente com o princípio da estrita legalidade, razão pela qual há de ser considerada como regra não recepcionada pela ordem tributária atual. E, mesmo perante a ordem jurídica anterior, era manifestamente incompatível frente ao Sistema Constitucional Tributário então vigente” (Marcelo Fortes de Cerqueira, in ‘Curso de Especialização em Direito Tributário – Estudos Analíticos em Homenagem a Paulo de Barros Carvalho’, Coordenação de Eurico Marcos Diniz de Santi, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 2007, págs. 390/393) 6. Deveras, o condicionamento do exercício do direito subjetivo do contribuinte que pagou tributo indevido (contribuinte de direito) à comprovação de que não procedera à repercussão econômica do tributo ou à apresentação de autorização do "contribuinte de fato" (pessoa que sofreu a incidência econômica do tributo), à luz do disposto no artigo 166, do CTN, não possui o condão de transformar sujeito alheio à relação jurídica tributária em parte legítima na ação de restituição de indébito.” (STJ. REsp 903.394/AL. Rel. Min. Luiz Fux. DJe 26/04/2010.) Posteriormente aos julgamentos dos aludidos REsp 1.273.916/RS e REsp 903.394/AL, a própria 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça revisitou o tema em relação à discussão do titular do direito de propositura da ação à restituição do ICMS indevidamente calculado na conta de energia elétrica. Fala-se, aqui, do quanto fora julgado no REsp 1.299.303/SC. Segundo lá foi dito, o regime jurídico de concessões públicas (para fornecimento de energia elétrica) não permite que se adote, aos casos de ICMS indevido sobre energia elétrica, o entendimento adotado pela 1ª Seção quando do julgamento do REsp 903.394/AL, cuja relação jurídica tinha como objeto o fornecimento de bebidas. Vejamos abaixo a ementa da decisão e, logo após, trechos relevantes da decisão: RECURSO ESPECIAL. REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. ART. 543-C CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. CONCESSÃO DE SERVIÇO PÚBLICO. ENERGIA ELÉTRICA. INCIDÊNCIA DO ICMS SOBRE A DEMANDA "CONTRATADA E NÃO UTILIZADA". LEGITIMIDADE DO CONSUMIDOR PARA PROPOR AÇÃO DECLARATÓRIA C/C REPETIÇÃO DE INDÉBITO. - Diante do que dispõe a legislação que disciplina as concessões de serviço público e da peculiar relação envolvendo o Estado-concedente, a concessionária e o consumidor, esse último tem legitimidade para propor ação declaratória c/c repetição de indébito na qual se busca afastar, no tocante ao fornecimento de energia elétrica, a incidência do ICMS sobre a demanda contratada e não utilizada. - O acórdão proferido no REsp 903.394/AL (repetitivo), da Primeira Seção, Ministro Luiz Fux, DJe de 26.4.2010, dizendo respeito a distribuidores de bebidas, não se aplica aos casos de fornecimento de energia elétrica. Recurso especial improvido. Acórdão proferido sob o rito do art. 543-C do Código de Processo Civil. (STJ. 1ª Seção. REsp 1.299.303/SC. Rel. Min. Cesar Asfor Rocha. Dje 14/08/2012) Trechos relevantes da decisão do REsp 1.299.303/SC: [...] Ocorre que, no caso dos serviços prestados pelas concessionárias de serviço público, a identificação do "contribuinte de fato" e do "contribuinte de direito" deve ser enfrentada à luz, também, das normas pertinentes às concessões, que revelam uma relação ímpar envolvendo o Estado-concedente, a concessionária e o consumidor. Os dois primeiros, observo, ao longo de toda a exploração do serviço de fornecimento de energia elétrica, de competência da União (art. 21, inciso XII, alínea "b", da CF/88),trabalham em conjunto, estando a concessionária em uma posição de quase total submissão, sob pena de rescisão do contrato de concessão na hipótese de desrespeito a alguma diretriz, política pública, projeto ou norma imposta pelo Estado- concedente. Politicamente, portanto, nas relações contratuais em geral estabelecidas com o poder público, a concessionária sempre evitará embates desgastantes e que gerem prejuízos aos serviços ou aos interesses públicos. Mas não é só. Sem dúvida alguma, sobretudo no tocante à cobrança, ao cálculo e à majoração dos tributos – à exceção do imposto de renda –, o poder concedente e a concessionária encontram-se, na verdade, lado a lado, ausente qualquer possibilidade de conflitos de interesses. Com efeito, a Lei n. 8.987/1995, que "dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos previsto no art. 175 da Constituição Federal, e dá outras providências", e que se aplica também à concessões de energia elétrica (cf. art. 4º da Lei n. 9.074/1995), estabelece, expressamente, que: "Art. 9º A tarifa do serviço público concedido será fixada pelo preço da proposta vencedora da licitação preservada pelas regras de revisão previstas nesta Lei, no edital e no contrato. [...] § 2º Os contratos poderão prever mecanismos de revisão das tarifas, a fim de manter-se o equilíbrio econômico-financeiro. § 3º Ressalvados os impostos sobre a renda, a criação, alteração ou extinção de quaisquer tributos ou encargos legais, após a apresentação da proposta, quando comprovado seu impacto, implicará a revisão da tarifa, para mais ou para menos, conforme o caso" Veja-se que, quando se trata de "criação ou alteração" de tributos, devendo-se incluir aí as modificações na forma de calcular e na base de cálculo, a concessionária encontra-se sempre protegida, impondo a lei nesses casos, para preservar o "equilíbrio econômico-financeiro", a majoração da tarifa. Sob esse enfoque é que o Estado-concedente e a concessionária do serviço público encontram-se lado a lado, no mesmo polo, em situação absolutamente cômoda e sem desavenças, inviabilizando qualquer litígio em casos como o presente. O consumidor da energia elétrica, por sua vez, observada a mencionada relação paradisíaca concedente⁄concessionária, fica relegado e totalmente prejudicado e desprotegido. Esse quadro revela que a concessionária assume o papel de contribuinte de direito apenas "formalmente", assim como o consumidor também assume a posição de contribuinte de fato em caráter meramente "formal". [...] Daí que a própria Lei n. 8.987/1995, observada a polarização de forças em favor do Estado-concedente e da concessionária, determina em prol do consumidor: "Art. 7º Sem prejuízo do disposto na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, são direitos e obrigações dos usuários: [...] II – receber do poder concedente e da concessionária informações para a defesa de interesses individuais ou coletivos;" Sem dúvida, no caso das concessionárias do serviço público, diante de tudo o que foi dito acima, entendo que a legitimidade do consumidor final permanece. Decidir de forma diversa impede qualquer discussão, por exemplo, sobre a ilegalidade – já reconhecida neste Tribunal Superior – da incidência do ICMS sobre a demanda "contratada e não utilizada", contrariando as normas que disciplinam as relações envolvidas nas concessões de serviço público. Isso porque, volto a afirmar, em casos como o presente, inexiste conflito de interesses entre a Fazenda Pública, titular do tributo, e as concessionárias, que apenas repassam o custo tributário à tarifa por força do art. 9º, §§ 2º e 3º, da Lei n. 8.987/1995. Também reitero a norma do art. 7º, inciso II, da Lei n. 8.987/1995, igualmente reproduzida, que garante ao usuário do serviço público o direito de defender os seus interesses diante do Estado-concedente e da concessionária, preservando os princípios da ampladefesa e do acesso ao Poder Judiciário. Com efeito, apesar de o art. 166 do Código Tributário Nacional conferir, em regra geral, ao contribuinte de direito a legitimidade para exigir, judicialmente, a restituição do imposto indevido, não fica afastada a norma específica do art. 7º, inciso II, da Lei n. 8.987/1995, a qual, na minha compreensão, confere a legitimidade ativa ao usuário da energia elétrica. Situação diversa é a da fabricação e do comércio de bebidas, objeto do REsp 903.394/AL (repetitivo), não aplicável ao caso em debate. Se o fabricante simplesmente repassar ao preço do seu produto de venda o valor do ICMS cobrado indevidamente, as suas vendas poderão cair. Em virtude da concorrência no setor privado – o que dificilmente ocorre no fornecimento de energia elétrica –, o distribuidor (adquirente da bebida) poderá buscar outro fabricante, com produtos inferiores ou importados, com preços menores. Para compensar o ICMS pago a mais e a fim de não reduzir as vendas, terá o fabricante que reduzir custos e lucros, ao menos até que volte a dominar o mercado. Sem dúvida, portanto, nessa situação, há conflitos de interesses entre o credor do tributo e o fabricante, o que viabiliza o ingresso de ações na Justiça por parte deste. Quanto ao usuário de energia elétrica, ou paga a tarifa com o ICMS eventualmente ilegal ou ficará sem o serviço, o que implica em desligar lâmpadas, geladeiras, televisores, equipamentos indispensáveis à saúde de enfermos, equipamentos industriais, etc., ou lançar mão de outras fontes de energia, excessivamente caras e não produtivas. Reforço, aqui, a idéia de que, no campo do fornecimento de energia elétrica, inexiste ou praticamente inexiste concorrência capaz de impor à concessionária atitudes no sentido de defender o interesse do consumidor. Veja-se que a Lei n. 9.074/1995 viabiliza a concorrência apenas em relação ao "Produtor Independente de Energia Elétrica", definido como "pessoa jurídica ou empresas reunidas em consórcio que recebam concessão ou autorização do poder concedente, para produzir energia elétrica destinada ao comércio de toda ou parte da energia produzida, por sua conta e risco" (art. 11). E, ainda, a opção do consumidor depende, conforme o caso concreto, da respectiva carga, sempre muito alta. [...] Assim, a reduzidíssima possibilidade de concorrência se circunscreve a consumidores com carga superior a 3.000 ou a 10.000 kW, conforme o caso. Com isso, na minha compreensão, a "mínima possibilidade de concorrência" é sinônimo de "ausência", já que a maior parte dos consumidores nem mesmo poderá escolher o fornecedor da energia elétrica que irá consumir. Concluindo, estando o poder concedente e a concessionária, principalmente quando se cuida de majoração de tributos (com exceção do imposto de renda), no mesmo polo, não há como reconhecer a ilegitimidade ativa do consumidor do serviço de energia elétrica, lembrando que, em Direito Tributário, o que vale é a verdadeira natureza das coisas e das suas relações. Ante o exposto, conheço do recurso especial e nego- lhe provimento. Pela leitura dessa transcrição, depreende-se que o Superior Tribunal de Justiça teve como premissas de seu raciocínio as seguintes proposições: (i) a contratação de energia elétrica junto à determinada concessionária é compulsória pelo contribuinte, isto é, a ele não é dado escolher, ou não, a contratação; (ii) o Poder Público e as concessionárias mantêm relação simbiótica, posto que elas (as concessionárias) prestam serviços que deveriam sê-los pela Administração Pública. E segundo a decisão, isso fica claro quando se verifica, por exemplo, que quando há criação ou alteração de tributos deve haver a majoração da tarifa de energia para manter o equilíbrio econômico-financeiro da concessão e, sob esse enfoque, o Poder Público e a concessionária encontram-se lado a lado, em situação cômoda e sem desavenças, inviabilizando qualquer litígio. Por outro lado, o consumidor da energia elétrica observa essa relação paradisíaca e fica desprotegido. Ao desenvolver e assentar essas premissas, a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça sustentou que, face ao aliamento da concessionária e do Poder Público, em especial quando da criação e majoração de tributos, seria inócuo relegar ao contribuinte de direito (a concessionária) a legitimidade para se propor a ação judicial para questionar (e recuperar) tributo ilícito, conforme orientação contida no REsp 903.394/AL, porquanto a concessionária jamais o faria porque não tem interesse econômico para isso. Afinal, a ela está garantido o reajustamento da tarifa e o respectivo repasse ao consumidor. E se o assim o é, disse o Superior Tribunal de Justiça, o único interessado na discussão é o consumidor, mesmo porque não tem sequer a opção de adquirir energia de uma outra concessionária. Por essas razões, a Corte conferiu a ele a titularização da ação judicial. Dado que a decisão acima foi proferida em sede de Recurso Repetitivo, nas ações que versam sobre cálculo indevido de ICMS sobre energia elétrica as Turmas do Superior Tribunal de Justiça estão seguindo o que fora decido no REsp 1.299.303/SC. Tenha-se como exemplo a recente decisão proferida no AgRg no AREsp 519.395/BA. Dje de 17/04/2015: TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. ICMS. REPETIÇÃO DE INDÉBITO. DEMANDA CONTRATADA E NÃO UTILIZADA DE ENERGIA ELÉTRICA. LEGITIMIDADE ATIVA DO CONSUMIDOR. RESP 1.299.303/SC, PROCESSADO SOB O RITO DO ART. 543-C DO CPC. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA PELO STF. SOBRESTAMENTO DO FEITO NO STJ. DESNECESSIDADE. 1. A Primeira Seção desta Corte, no julgamento do REsp 1.299.303/SC, de relatoria do Ministro Cesar Asfor Rocha, DJe 14/08/2012, processado sob o rito dos feitos repetitivos, firmou a compreensão no sentido de que: "Diante do que dispõe a legislação que disciplina as concessões de serviço público e da peculiar relação envolvendo o Estado-concedente, a concessionária e o consumidor, esse último tem legitimidade para propor ação declaratória c/c repetição de indébito na qual se busca afastar, no tocante ao fornecimento de energia elétrica, a incidência do ICMS sobre a demanda contratada e não utilizada." 2. A repercussão geral reconhecida pela Suprema Corte, nos termos do art. 543-B do CPC, não enseja o sobrestamento dos recursos especiais que tramitam neste Superior Tribunal de Justiça. Precedentes: AgRg no AgRg no AREsp 110.184/CE, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 30/10/12 e AgRg no REsp. 1.267.702/SC, Quinta Turma, Rel. Ministro Jorge Mussi, DJe 26/9/11. 3. Agravo regimental a que se nega provimento. (STJ. 1ª Turma. AgRg no AREsp 519.395/BA. DJe 17/04/2015) Penso, contudo, que o Superior Tribunal de Justiça não caminhou bem quando do julgamento do REsp 1.273.916/RS, REsp 903.394/AL ou mesmo do REsp 1.299.303/SC, porque nenhuma das razões lá sustentadas encontra respaldo nos dizeres do artigo 166 do Código Tributário Nacional. Parece ser especialmente relevante fazer uma crítica aos dizeres contidos no REsp nº 903.394/AL. Segundo o Superior Tribunal de Justiça naquele julgamento, “a norma veiculada pelo art. 166 não pode ser aplicada de maneira isolada, há de ser confrontada com todas as regras do sistema, sobretudo com as veiculadas pelos arts. 165, 121 e 123, do CTN. Em nenhuma delas está consignado que o terceiro que arque com o encargo financeiro do tributo possa ser contribuinte. Portanto, só o contribuinte tributário tem direito à repetição do indébito”. A crítica que se faz, aqui, se resume ao fato de que o artigo 166 não estabelece uma nova modalidade de contribuinte, daí ser despiciendo interpretá-lo com as regras do Código Tributário Nacional que definem o que é ser contribuinte, sujeição passiva (artigos 121 e 123) e o direito à repetição de indébito (artigo 165) . Como se disse alhures, a figura do contribuinte de fato não é uma caracterização jurídica, sim econômica que tem apenas o objetivo de identificar quem suporta o ônus financeiro do tributo. E, nas situações em queo tributo repercute financeiramente no preço, o Código Tributário Nacional entendeu por criar regra diversa àquela do artigo 165. Nesses casos, foi disposto que o direito ao indébito não é do contribuinte de direito, mas sim daquele que arcou com o tributo indevido no preço. Quanto ao teor da decisão tomada no REsp 1.299.303/SC, o caminho escolhido para se estabeler as razões de decidir trilhou argumentos que passam ao largo dos dizeres legais contidos no artigo 166 do Código Tributário Nacional. Questões como existência (ou não) de concorrência em determinado mercado relevante (no caso, de energia elétrica), possibilidade de contratação com outros fornecedores, aliamento do contribuinte (distribuidora de energia) com o Poder Público, e quaisquer outras mercadológicas que se possa levantar, não estão dispostas no artigo 166. E se não estão lá, decerto não podem ser criadas pelo intérprete em razão da antiga regra de hermenêutica, segundo a qual ao intérprete é vedado ir além das disposições legais. Nesse sentido, parece ser mais adequado (e lícito) compreender as razões do artigo 166 do Código Tributário Nacional consoante suas próprias disposições, excluídas quaisquer referências externas. Conforme será visto detalhadamente nas seções 4.10 e 8.1, pelo fato de o ICMS compor a sua própria base de cálculo, ele (o ICMS) é componente do preço de venda da mercadoria ou serviço. Em consequência disso, o imposto faz parte integrante da receita bruta auferida pelo contribuinte na operação. Por essa razão, caso se constate posteriormente que o ICMS calculado é indevido, o contribuinte de direito (vendedor da mercadoria ou serviço) não terá o seu patrimônio lesado, justamente porque o tributo indevido foi por ele recebido por via de sua inserção no preço final de venda. Nessa perspectiva, a lesão patrimonial pelo tributo indevido é do contribuinte de fato, que efetivamente suportou o ônus financeiro de um tributo calculado indevidamente no preço pago pela mercadoria ou serviço. Daí a razão de o artigo 166, do Código Tributário Nacional, dispor que o indébito, a princípio, deve ser repetido pelo contribuinte de fato, podendo o contribuinte de direito fazê-lo, desde que tenha autorização para tanto. É esse realmente o espírito do artigo 166 do Código Tributário Nacional. A confirma-lo, segue abaixo a transcrição de trechos relevantes da exposição de motivos do Código Tributário Nacional, que pode ser aferida pelos proncuncimaentos da Comissão Especial3 responsável pela elaboração do Projeto do Código Tributário Nacional, em substituição ao Anteprojeto antes elaborado por Rubens Gomes de Souza. Vejamos: Texto dos artigos 130 e 131 do Projeto do Código Tributário Nacional, que vieram a ser positivados nos artigos 165 e 166 Art. 130. O contribuinte tem direito, independentemente de prévio protesto, à restituição total ou parcial do tributo, seja qual for a modalidade de seu pagamento, nos seguintes casos: [...] Art. 131. Existindo disposição legal expressa que determine ou faculte ao contribuinte a transferência do tributo a terceiro, o direito referido no artigo anterior fica subordinado à prova de que a transferência não ocorreu efetivamente, por impossibilidade material ou jurídica, em face das circunstâncias do caso. Parágrafo único. O terceiro, que faça prova de lhe haver sido transferido o tributo pelo contribuinte nos termos deste artigo, sub-roga-se no direito daquele à respectiva restituição. [...] RELATÓRIO Apresentado pelo Prof. Rubens Gomes de Souza, relator geral, e aprovado pela Comissão Especial nomeada pelo Ministro da Fazenda para elaborar o Projeto de Código Tributário Nacional [...] javascript:void(0) Ao contrário, o Projeto não assegurou a restituição ao contribuinte, qualquer que fosse a natureza do tributo. Visava o Anteprojeto, neste passo, reformar a jurisprudência dominante, que recusava ao contribuinte legal a restituição dos impostos indiretos, sob o fundamento de que o respectivo ônus financeiro terá sido transferido ao contribuinte “de fato” ou “econômico”. A Comissão, sem embargo das razões de ordem jurídica aduzidas pelo autor do Anteprojeto em contrário a essa orientação (GOMES DE SOUZA, “Restituição de Impostos Indiretos”, em Revista de Direito Administrativo 21/24), preferiu mantê-la, no interesse de impedir o enriquecimento ilícito do contribuinte legal, quando o contribuinte de fato não exerça contra ele o direito o direto de regresso (GIULIANI FONROUGE, Anteproyecto de Código Fiscal, p. 420). Todavia, a fim de não impor ao contribuinte legal a prova negativa da transferência do imposto, circunscreveu-se, no artigo 131, a hipótese aos casos em que a lei expressamente determine ou faculte aquela transferência; e, para impedir que o fisco possa reter tributos indevidos, assegurou-se, no § único daquele artigo, a sub-rogação, no direito à restituição, ao contribuinte de fato que prove ter suportado o ônus financeiro do tributo [...] Por essa leitura fica bem claro que as motivações que guiaram a Comissão Especial do Código Tributário Nacional eram no sentido de restringir a entrega, ao contribuinte de direito, do direito amplo e irrestrito à repetição de indébito. Assim é que cabe a ele (contribuinte de direito) o direito ao indébito, salvo se o tributo repercutir financeiramente no preço, ocasião em que caberá àquele que suportou o encargo financeiro do tributo ilícito. Eis, aí, a melhor interpretação aos artigos 165 e 166 do Código Tributário Nacional. 1 MOURA, Marcelo; ANDRADE, Eduardo. Macroeconomia. São Paulo: Publifolha, 2003. p. 15. (Coleção Biblioteca Valor.) 2 MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brigo. Repetição do tributo indireto: incongruências e contradições. São Paulo: Malheiros: 2011. p. 13. 3 Trabalho da Comissão Especial do Código Tributário Nacional. Rio de Janeiro: Oficinas do Serviço Gráfico do IBGE, 1954, p. 58 e 223. 1.2.1. Fiscalidade, extrafiscalidade e seletividade Consoante ao artigo 11, § 1º, da Lei nº 4.320/64, os impostos constituem receitas correntes da União, Estados e Municípios. Sua finalidade é atender às despesas correntes e às despesas de capital destes entes, salvo quando não forem financiadas por tributos vinculados. Afigura-se incontroverso, pois, que por configurarem a principal fonte de riqueza entre as denominadas receitas derivadas, a função precípua dos impostos é abastecer os cofres públicos, razão pela qual são classificados como fiscais. Entretanto, há certos impostos que visam outros objetivos além da mera arrecadação tributária, como a regulação de mercados e a desoneração da circulação de bens e serviços essenciais à população, ao comércio e às indústrias. Trata-se dos denominados impostos extrafiscais, como o são, por exemplo, o IPI, o IOF, o Imposto de Importação e o Imposto de Exportação. Hugo de Brito Machado4 estabelece bem a diferença entre ambas as naturezas: “Assim, quanto a seu objetivo, o tributo é: a) Fiscal, quando seu principal objetivo é a arrecadação de recursos financeiros para o Estado. b) Extrafiscal, quando o seu objetivo é a interferência no domínio econômico, buscando um efeito diverso da simples arrecadação de recursos financeiros.” (destaques do original) No regime constitucional anterior, o antigo ICM ostentava caráter eminentemente fiscal, afinal, conforme dispunha o artigo 23, II, § 5º, da Constituição Federal de 1967, com redação dada pela Emenda Constitucional nº javascript:void(0) 23/83, suas alíquotas eram as mesmas para todas as mercadorias. Seu objetivo era apenas arrecadar receitas aos entes competentes a instituí-lo. In verbis: “Artigo 23. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sôbre (sic): [...] II – operações relativas à circulação de mercadorias realizadas por produtores, industriais e comerciantes, imposto que não será cumulativo e do qual se abaterá, nos termos do disposto em lei complementar, o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou por outro Estado. A isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação,não implicará crédito de imposto para abatimento daquele incidente nas operações seguintes. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 23, de 1983.) […] § 5º – A alíquota do imposto a que se refere o item II será uniforme para todas as mercadorias nas operações internas e interestaduais, bem como nas interestaduais realizadas com consumidor final; o Senado Federal, mediante resolução tomada por iniciativa do Presidente da República, fixará as alíquotas máximas para cada uma dessas operações e para as de exportação.” (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 23, de 1983.) Para finalizar o estabelecimento de premissas do presente raciocínio, cumpre informar que, especificamente em relação aos serviços de comunicação, o artigo 21, VII, da Constituição Federal de 1967, dava competência à União para instituir imposto sobre esses serviços (de comunicação, salvo os de natureza estritamente municipal) e, naquela época, também não havia qualquer disposição acerca de sua eventual seletividade. Mas, na Constituição Federal de 1988, o imposto incidente sobre os serviços de comunicação passou a ser de competência dos Estados e do Distrito Federal e foi abrangido na sigla ICMS, juntamente com os serviços de transporte intermunicipal e interestadual. Pois bem, no regime constitucional inaugurado em 1988, a natureza do ICMS passou a ser fiscal e extrafiscal, concomitantemente. Realmente, sua vocação não é apenas constituir importante fonte de receita aos entes competentes à sua instituição, mas também propiciar a facilitação da circulação de mercadorias e prestação de serviços essenciais à sociedade, conforme determinado no artigo 155, § 2º, III, da Constituição Federal: “Artigo 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993) […] II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993) [...] § 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993) [...] III – poderá ser seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços;” Assim é que, além de levar receitas aos Estados e ao Distrito Federal, o ICMS é também um instrumento extrafiscal à desoneração de mercadorias essenciais ao seio social. Por isso, a tributação sobre as operações com mercadorias e prestações de serviços deve (ou deveria) ser inversamente proporcional à sua essencialidade ao meio social. 4 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 68. A legislação do ICMS optou por determinar o quantum devido pela aplicação de uma determinada alíquota à base de cálculo do imposto, que é o valor da operação mercantil ou da prestação de serviços. Por essa razão, a veiculação da seletividade do ICMS pode ser por via do manejo das alíquotas do imposto ou pela redução de sua base de cálculo, afinal, para esses fins (da seletividade) o que é relevante é o encargo econômico-tributário repassado no preço de venda ao consumidor final. É o que ocorre, por exemplo, com os produtos da cesta básica no Estado de São Paulo. Não há dúvidas de que estas espécies de produtos são essenciais e, por essa razão, a legislação paulista optou por manter a alíquota geral de 18%, mas, consoante o artigo 3º, Anexo II, do RICMS/SP, determinou a redução da base de cálculo do imposto incidente, de modo que a carga tributária efetiva seja equivalente a 7%. Essa alternativa posta à opção do legislador fora notada por Regiane Binhara Esturilo,5 conforme vai transcrito adiante: “Mas se para o fim de determinar o valor do tributo são utilizadas duas variáveis, a base de cálculo e a alíquota, duas seriam as maneiras de promover a seletividade dos impostos em referência. Uma a partir da variação da base de cálculo, mediante acréscimos ou reduções/deduções, mantendo estável a alíquota. Outra maneira é fazer variar a alíquota para o fim de selecionar produtos, mercadorias e/ou serviços.” Obviamente, a opção por um ou outro método esbarra em outros pontos que devem ser analisados pelo Estado quando da implementação de sua política fiscal, por exemplo, o estorno proporcional de créditos pelo adquirente quando da saída subsequente da mercadoria javascript:void(0) de seu estabelecimento, conforme será examinado detalhadamente na seção 6.2.5.1 deste livro. 5 ESTURILO, Regiane Binhara. A seletividade no IPI e no ICMS. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 100. A doutrina ainda não é uniforme quanto à carga cogente da seletividade em relação ao ICMS. José Eduardo Soares de Melo6 a entende como uma faculdade dos Estados e do Distrito Federal ao dizer que “constitui princípio constitucional a ser rigorosamente obedecido no âmbito do IPI, e de modo permitido no caso do ICMS”. Mas, por outro lado, Roque Antonio Carrazza7 se manifesta expressamente pela obrigatoriedade de sua observância: “Convém salientarmos, desde logo, que, a nosso ver, este singelo ‘poderá’ equivale, na verdade, a um peremptório ‘deverá’. Não está, aí, diante de uma mera faculdade do legislador, mas de uma norma cogente, de observância obrigatória. Ademais, quando a Constituição confere a uma pessoa política um ‘poder’, ela, ipso facto, lhe impõe um ‘dever’. É por isso que se costuma falar que as pessoas políticas têm poderes deveres (Celso Antônio Bandeira de Mello). [...] Portanto, a nosso sentir, a seletividade, no ICMS, tanto quanto no IPI, é obrigatória. Melhor elucidando, o ICMS, deverá ser seletivo em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços. Com isso, pode e deve ser utilizado como instrumento de ordenação político-econômica, estimulando a prática de operações ou prestações havidas por úteis ou convenientes ao País e, em contranota, onerando outras que não atendam tão de perto ao interesse nacional. É por isso, aliás, que, em algumas operações com produtos supérfluos, a alíquota é de 25% (o valor da operação) e, em outras, com javascript:void(0) javascript:void(0) produtos essenciais, as alíquotas baixam para 18%, 17% e, até, 12% e 9%.” Afilio-me a este último posicionamento. O termo poderá realmente deve ser interpretado como deverá, porquanto a Constituição Federal, ao traçar as regras do Sistema Tributário Nacional, não propõe recomendações aos entes tributantes, mas determinações cogentes a eles. Nesse sentido, segue o entendimento de Maria Sylvia Zanella Di Pietro:8 “Embora o vocábulo ‘poder’ dê a impressão de que se trata de faculdade da Administração, na realidade trata-se de ‘poder-dever’, já que reconhecido ao poder público para o exerça em benefício da coletividade; os poderes são, pois, irrenunciáveis.” Em razão dessa força cogente imiscuída à seletividade constitucional, que com ela inclusive se confunde, o ICMS deve, sempre, ser utilizado como mecanismo de perseguição de objetivos que estão além do mero abastecimento do Erário. E não é só. A seletividade do ICMS deve (ou deveria) se realizar apenas em função da mercadoria comercializada e/ou do serviço prestado, não em razão de quaisquer outros critérios extrínsecos à operação/prestação tributada, como a capacidade econômica dos contratantes. Afinal, determinadas mercadorias ou serviços podem ser tão essenciais para as classes mais ricas como o são para as classes mais pobres (nos casos da energia elétrica e dos serviços de telecomunicação são de fato, conforme será visto em linhas adiante). Valho-me mais uma vez da doutrina de Roque Antonio Carrazza,9 que discorre com proeminência sobre o tema: javascript:void(0) javascript:void(0) “Cumpre-se o princípio da seletividade comparando- se mercadorias ou serviços. Nunca, evidentemente, discriminando-se contribuintes, em função de raça, sexo, ocupação profissional etc., que a isto obsta o artigo 5º, I, da CF. As mercadorias de primeira necessidadedevem, necessariamente, ser menos onerados, por via de ICMS, que os supérfluos ou suntuários.” O IPI também é um tributo seletivo, nos mesmos moldes vistos acima. Tanto assim que não há tributação de IPI sobre a energia elétrica, porquanto consta na Tabela de Incidência do IPI (TIPI) como “NT” – não tributada – independentemente da condição econômica de quem consumi-la. Outros produtos relevantes ao meio social têm suas alíquotas de IPI reduzidas à zero, como é o caso de certos alimentícios, farmacêuticos, entre outros. Penso que esse imposto (o IPI) segue bem o princípio constitucional da seletividade. Não é o que ocorre, contudo, com o ICMS. Isso fica bem claro quando se analisa a incidência do imposto sobre o fornecimento de energia elétrica e serviços de comunicação, conforme será examinado nas linhas seguintes. 6 MELO, José Eduardo Soares de. ICMS: teoria e prática. 7. ed. São Paulo: Dialética, 2004. p. 264. 7 CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 361. 8 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 86. 9 CARRAZZA, Roque Antonio. Op. cit. p. 361. Sem Nome Sem Nome Sem Nome Sem Nome Sem Nome 1. CARACTERÍSTICAS GERAIS E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS 1. CARACTERÍSTICAS GERAIS E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS 0 1.2.4. O ICMS, o princípio da seletividade, os serviços de comunicação e o fornecimento de energia elétrica Não há, atualmente, quem duvide que os serviços de comunicação se afiguram essenciais à vida moderna. De fato, na sociedade atual, marcada pela (ágil) divulgação da informação, a humanidade seria subjugada pelo caos em pouco tempo se não fossem os serviços de comunicação. Basta pensar em como seria a vida hodierna sem Internet, telefonia e sistemas fac-símile. Negócios não seriam devidamente formalizados, o que influenciaria direta e indiretamente não só a macroeconomia, mas também a micro. Mercados financeiros inteiros voltariam a funcionar baseados em informações falsas. A própria globalização da economia não teria sido levada a efeito não fosse a comunicação. Em verdade, sem os serviços de comunicação, a humanidade estaria fadada a viver em feudos medievais. Também a energia elétrica é um bem deveras essencial. Todas as pessoas, desde as classes economicamente mais desfavorecidas até as mais ricas, não teriam condições dignas de vida. Alimentos pereceriam, a segurança pública seria colocada em xeque. Postes de iluminação pública não teriam utilidade alguma e os alarmes contra roubos de casas, indústrias e comércios também seriam inúteis. O trânsito entraria em colapso. Hospitais contabilizariam mais e mais óbitos em razão da paralisação de equipamentos médicos. Mercados financeiros inteiros ruiriam da noite para o dia. Nem mesmo este livro teria sido publicado, afinal, não haveria como redigi-lo ou mesmo imprimi-lo porque as máquinas de impressão da gráfica não teriam força motriz para tanto. A essencialidade dos serviços de comunicação e do fornecimento de energia elétrica, portanto, é indubitável. E por ostentarem essas características, o ICMS incidente sobre eles (serviços de comunicação e fornecimento de energia elétrica) deveria ser diferenciado, minorado, conforme expressamente determinado pelo artigo 155, § 2º, III, da Constituição Federal. Mas não é o que ocorre, porquanto as alíquotas de ICMS aplicáveis aos serviços de comunicação e ao fornecimento de energia elétrica, em regra, são as mais altas. Em relação aos serviços de comunicação, por exemplo: no Estado de São Paulo a alíquota é de 25% (artigo 55, I, do RICMS/SP), assim como no Estado de Minas Gerais (artigo 42, I, a, do RICMS/MG); e no Estado do Rio de Janeiro atualmente a alíquota é de 25% (conforme artigo 14, VIII, do RICMS/RJ), mas era fixada em 37% até 31/12/1998, sendo gradualmente reduzida até chegar a 28% em 31/03/2000, quando então passou a vigorar pelo atual percentual de 25%. Também quanto ao fornecimento de energia elétrica as alíquotas do ICMS são de 25% nos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro. No Estado de Minas Gerais, a alíquota pode chegar a 30%, a depender da condição do consumidor e da quantidade de energia consumida. Tais discrepâncias veiculam efeitos jurídicos à regra matriz que instituiu o ICMS, taxando-lhe a pecha da inconstitucionalidade que, cumpre frisar, pode ser alegada pelo contribuinte em seu favor. O Judiciário, por sua vez, ao exercer sua atividade típica a partir da provocação do contribuinte, poderá construir uma norma jurídica individual e concreta afastando a incidência da alíquota, aplicar aquela geral incidente sobre operações e prestações não individualizadas em disposições específicas, sem que, com isso, exerça função legislativa atípica às suas funções. São essas possibilidades que serão demonstradas doravante. Segundo o vernáculo, princípio é o começo, início, primeiro momento da existência de algo ou de uma ação ou processo.10 Mas, para o Direito, consoante a lição de Paulo de Barros Carvalho,11“os princípios aparecem como linhas diretivas que iluminam a compreensão de setores normativos, imprimindo-lhe caráter de unidade relativa e servindo de fator de agregação num dado feixe de normas”. Mas é possível sustentar que princípios jurídicos são normas jurídicas? A incidência jurídica se dá pela projeção da linguagem prescritiva sobre o campo das condutas intersubjetivas, que as organiza deonticamente. Bem se nota, portanto, que a incidência normativa não é automática e infalível, consoante entendia Alfredo Augusto Becker,12 porquanto depende, sempre, da intervenção humana para que o teor da norma jurídica seja construído a partir dos textos normativos. Vai se afigurando nessas linhas que normas jurídicas são significações construídas pelo intérprete a partir de um enunciado prescritivo válido no ordenamento jurídico, expressadas em linguagem prescritiva, capazes de instalar uma relação jurídica cujo modal deôntico será neutro e interproposicional, caso se esteja diante de uma norma geral e abstrata,13 ou modalizado com um dos três operadores deônticos, quais sejam: “permitido” (P), “obrigatório” (O) ou “proibido” (V), quando então será eminentemente intraproposicional. Para isso, deve-se operar com a premissa da homogeneidade lógica das estruturas normativas, segundo a qual, no antecedente, javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) deve haver a descrição de uma classe de fatos na condição de suposto implicando, no tópico do consequente, uma consequência jurídica de cunho relacional.14 Muito bem. Segundo Paulo de Barros Carvalho,15 tais normas estão sempre impregnadas de valores que, por sua vez, exercem influência sobre o ordenamento. Esses valores são justamente os “princípios”. Mas, segundo ele, além de meros valores, os “princípios” também podem denotar os limites objetivos da norma, que são postos para “atingir certas metas, certos fins”. Vejamos sua lição: “Assim, nessa breve reflexão semântica, já divisamos quatro usos distintos: a) como norma jurídica de posição privilegiada e portadora de valor expressivo; b) como norma jurídica de posição privilegiada que estipula limites objetivos; c) como os valores insertos em regras jurídicas de posição privilegiada, mas considerados independentemente das estruturas normativas; e d) como o limite objetivo estipulado em regra de forte hierarquia, tomado, porém, sem levar em conta a estrutura da norma. Nos dois primeiros, temos ‘princípio’ como ‘norma’; enquanto nos dois últimos, ‘princípio’ como ‘valor’ ou como ‘critério objetivo’. [...] O deparar-se com valores leva o intérprete, necessariamente, a esse mundo de subjetividades, mesmo porque eles se entrelaçam formando redes cada vez mais complexas, que dificultam a percepção da hierarquia e tornam a análise uma função de ideologias dos sujeitos cognoscentes. Quanto aos ‘limites objetivos’, nada disso está em jogo, ficando muito mais simples a construção do sentido dos enunciados. E na aplicação prática do direito, esses limitessaltam aos olhos, sendo de verificação pronta e imediata. javascript:void(0) javascript:void(0) [...] Atente-se, porém, para o seguinte: os limites objetivos são postos para atingir certas metas, certos fins. Estes, sim, assumem o porte de valores. Aqueles limites não são valores, se os considerarmos em si mesmo, mas se voltam para realizar valores, de forma indireta, mediata.” Cristiano Carvalho16 também aborda a questão e a esclarece. Segundo ele, o núcleo do ordenamento são os princípios constitucionais. Os princípios que enunciam valores são aqueles que fundamentam o sistema jurídico. Já os enunciados que determinam limites objetivos para que se busquem esses valores são as ferramentas de sua instrumentalização. Uma fórmula bastante útil para se estabelecer a diferença entre valores e limites objetivos é, segundo o autor, identificar elementos de mensuração e exaurimento: se se encontrar comensurabilidade, estar-se- á diante de limites objetivos; do contrário serão valores obtidos pelo exame desses limites objetivos. Logo, segundo a doutrina, os princípios jurídico- tributários não são normas jurídicas, propriamente, mas a fonte dos limites objetivos. É a partir desses limites objetivos que se torna possível extrair norma jurídica vertida em linguagem prescritiva implicacional. A Constituição Federal valoriza o ICMS como um instrumento extrafiscal, devendo as operações com mercadorias e prestações de serviços serem tributadas na medida inversa de sua essencialidade, de sua necessidade pela população. Seguem as palavras de Aliomar Baleeiro17 sobre o tema: “a seletividade significa discriminação ou sistema de alíquotas diferenciadas por espécies de mercadorias, como adequação do produto à vida do maior número de javascript:void(0) javascript:void(0) habitantes do país. As mercadorias essenciais à existência civilizada deles devem ser tratadas mais suavemente, ao passo que as maiores alíquotas devem ser reservadas aos produtos de consumo restrito, isto é, supérfluo das classes de maior poder aquisitivo”. Mas o artigo 155, § 2º, III, da Constituição Federal, também indica a seletividade como um limite objetivo do ICMS, afinal, de sua análise é possível se extrair a seguinte norma jurídica: “dada a competência tributária dos Estados e do Distrito Federal para instituir o ICMS em seus respectivos territórios, deve ser a seletividade do imposto em razão da essencialidade das mercadorias e serviços”. Tal norma jurídica é em verdade uma norma jurídica de estrutura. Mas o que é isso? Consoante a Teoria Autopoiética aplicada ao Direito, embora receba influências externas, o sistema jurídico é fechado e responsável por sua própria construção. Nas palavras de Fabiana Del Padre Tomé:18 “A peculiaridade do sistema autopoiético confere-lhe as seguintes características: (i) autonomia: é capaz de subordinar toda a mudança de modo que permaneça sua auto-organização; (ii) identidade: mantém sua identidade em relação ao ambiente, diferenciando-se deste ao determinar o que é e o que não é próprio ao sistema; (iii) não possui inputs ou outputs: o ambiente não influi diretamente no sistema autopoiético; não é o ambiente que determina suas alterações, pois quaisquer mudanças decorrem da própria estrutura sistêmica que processa as informações vindas do ambiente. A auto-referenciabilidade também se apresenta como pressuposto da autoprodução do sistema, pois, para que este possa autogerar-se, isto é, substituir seus componentes por outros, é necessário que haja elementos que tratem de elementos [...] em relação ao javascript:void(0) sistema jurídico, normas que prescrevam a produção de outras normas jurídicas. Para tanto, o sistema tem de olhar para si próprio, precisa falar sobre si mesmo, nessa citada auto-referenciabilidade.” Desse modo, o sistema jurídico é autorreferenciável, porquanto comporta não só normas de conduta, cujo objeto é a disciplina das relações intersubjetivas em si mesmas, mas também normas de produção normativa, cujo escopo é a determinação de regras à produção de outras normas jurídicas, sejam elas gerais e abstratas, ou individuais e concretas. Tárek Moysés Moussallem,19 ao examinar a autorreferenciabilidade do direito, assim esclarece o conceito: “É usual a distinção entre regra de estrutura e regra de comportamento. Norberto Bobbio, idealizador da classificação em tela, reconhece que o ordenamento, ao lado de regular o comportamento das pessoas, prescreve também o modo de produção normativa. Esta última é denominada norma de estrutura (normas para produção de outras normas) e aquelas, norma de conduta. [...] São tidas como normas de produção normativa aquelas que outorgam competência, que estabelecem procedimentos legislativos, administrativos e judiciais.” Eis a demonstração emblemática da máxima o direito regula sua própria criação. E sendo norma jurídica de estrutura do ICMS, a seletividade deve ser necessariamente observada para que a regra matriz do imposto, instituída pelos Estados e pelo Distrito Federal, seja válida perante o sistema jurídico em vigor. Pois bem, consoante exposto alhures, as alíquotas aplicáveis aos serviços de comunicação são as mais altas, javascript:void(0) conforme fora demonstrado quando expostos os exemplos das legislações dos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, os quais atualmente preveem a alíquota de 25%. Já com relação à energia elétrica, o artigo 52, V, do RICMS/SP, dispõe as seguintes alíquotas aplicáveis: a) 12% (doze por cento), em relação à conta residencial que apresentar consumo mensal de até 200 (duzentos) kWh; b) 25% (vinte e cinco por cento), em relação à conta residencial que apresentar consumo mensal acima de 200 (duzentos) kWh; c) 12% (doze por cento), quando utilizada no transporte público eletrificado de passageiros; d) 12% (doze por cento), nas operações com energia elétrica utilizada em propriedade rural, assim considerada a que efetivamente mantiver exploração agrícola ou pastoril e estiver inscrita no Cadastro de Contribuintes do ICMS. O tratamento tributário conferido à comercialização de energia elétrica no Estado do Rio de Janeiro não é diferente. Conforme o artigo 14, VI, do RICMS/RJ, a distribuição das alíquotas do ICMS sobre estas operações ocorre da seguinte forma: a) 18% (dezoito por cento), até o consumo de 300 quilowatts/hora mensais; b) 25% (vinte e cinco por cento), quando acima do consumo estabelecido no item anterior, uniformemente aplicada sobre todo o consumo verificado; c) O fornecimento para consumo residencial de energia elétrica é isento do ICMS, nos seguintes casos: (1) até a faixa de consumo de 50 (cinquenta) quilowatts/hora mensais; e (2) até a faixa de consumo de 200 (duzentos) quilowatts hora/mensais, quando gerada por fonte termoelétrica em sistema isolado. No Estado de Minas Gerais há um agravante em relação a São Paulo e Rio de Janeiro. Segundo o artigo 41, I, c, do RICMS/MG, a alíquota aplicável às operações envolvendo energia elétrica destinada ao consumo residencial não é de 25%, mas de 30%, o que revela um ônus tributário ainda maior. Ocorre que a energia elétrica é sempre essencial, independentemente da quantidade consumida, ou mesmo se ela (a energia elétrica) é destinada a residências, ao comércio, a indústrias ou a produtores rurais, ou ainda se sua comercialização e consumo se dão no Estado de São Paulo, Rio de Janeiro, ou Minas Gerais. De fato, contribuintes de alta ou baixa renda, paulistas, fluminenses ou mineiros, precisam igualmente consumir energia elétrica para se manter e, sob esse enfoque, a energia elétrica se lhes afigura essencial. Afinal, sem a energia elétrica, não poderiam iluminar suas residências, pôr em funcionamento seus aparelhos elétricos e eletrodomésticos, trabalhar ou mesmo ter tempos de lazer e bem-estar. Não gerariam riquezas e também não propiciariam circulação de riquezas porque, ante a falta de rendimentos e a falta de uma força motriz capaz de colocar máquinas em funcionamento, as pessoas simplesmente não adquiririammais bens de consumo duráveis e não duráveis, o que desencadearia uma estagnação econômica generalizada. E em razão de sua essencialidade a contribuintes financeiramente abastados, carentes, paulistas, fluminenses, mineiros, ou de quaisquer outras regiões do país, as alíquotas do ICMS incidente sobre a energia elétrica devem ser favorecidas, isto é, minoradas em relação às demais mercadorias e serviços tributados pelo imposto. É isso o que leciona José Eduardo Soares de Melo20 acerca da essencialidade como característica do próprio bem, não daquele que o consome: “É certo que sempre hão de ser tomadas em conta a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88), o desenvolvimento nacional (art. 5º, II, da CF/88) (sic), a erradicação da pobreza, da marginalização e redução de desigualdades sociais (art. 5º, III, da CF/88). [...] Note-se que a essencialidade consiste na distinção entre cargas tributárias, em razão de diferentes produtos, mercadorias e serviços, traduzidos basicamente em alíquotas descoincidentes.” O mesmo raciocínio se aplica aos serviços de comunicação e, portanto, em quaisquer dos casos (energia elétrica e serviços de comunicação) a tributação pelo ICMS não respeita o princípio da seletividade. Exatamente por ser uma desconformidade da norma de estrutura do imposto, que pode ser vertida em linguagem prescritiva implicacional aos Estados e Distrito Federal, os contribuintes podem questionar sua violação no Judiciário, requerendo-lhe uma tutela jurisdicional que obrigue os entes tributantes a observarem-na quando da instituição do ICMS em seus respectivos territórios. Explico. javascript:void(0) O estudo científico do direito demandou o exame fracionado das normas jurídicas em norma jurídica primária dispositiva, norma jurídica primária sancionadora. É o que fora proposto por Lourival Vilanova,21in verbis: “Na primária, estatuem-se relações jurídicas deonticamente modalizadas como eficácia da realização dos pressupostos fáticos descritos no antecedente, impondo ao polo passivo um dado comportamento obrigatório, permitido ou proibido. Na secundária, preceituam-se consequências sancionadoras, no pressuposto do não cumprimento do estipulado na norma primária, determinante da conduta juridicamente devida. Tem-se, assim, o descumprimento da norma primária como pressuposto de incidência da norma secundária.” Para fins de esclarecimentos, cumpre salientar que o que o doutrinador chama norma jurídica secundária é denominado por mim como norma jurídica primária sancionadora. E, nesses termos, o que quer dizer o professor (com quem concordo) é que o descumprimento da conduta prescrita na norma primária dispositiva veicula uma sanção ao agente que a descumpriu. A correção desse descumprimento deve ser instrumentalizada pela norma jurídica secundária, que são as normas processuais vigentes. É o que ensina Marcelo Fortes Cerqueira22 nas linhas abaixo: “Critério fundamental da distinção entre normas primárias e secundárias reside na circunstância de esta última, a secundária, expressar no consequente uma relação de cunho jurisdicional, de natureza adjetiva, em que o titular do direito comparece diante do Estado-juiz para obter, coativamente, a prestação insatisfeita. A regra jurídica secundária é processual. Logo, as relações que não revestirem essa forma estarão nas normas primárias. O cerne da distinção reside, destarte, na possibilidade do emprego da coatividade jurídica, javascript:void(0) javascript:void(0) prevista na norma secundária. Esta, uma das características fundamentais do direito.” No mesmo sentido é a doutrina de Eurico Marcos Diniz de Santi:23 “A norma primária sancionadora, como a norma secundária, tem por pressuposto o não cumprimento de deveres ou obrigações; carece, entretanto, da eficácia coercitiva daquela. Nas normas primárias situam-se as relações jurídicas de direito material (substantivo), nas normas secundárias, as relações de direito formal (adjetivo ou processual) em que o direito subjetivo é o da ação (em sentido processual).” Em outras palavras, o titular do direito ofendido pode se valer dos mecanismos processuais em vigor para buscar a tutela do Estado-juiz, restabelecer a norma jurídica primária ofendida e, com ela, a norma jurídica completa. No tema a que me propus enfrentar, afigura-se-me claro que, sendo a seletividade uma norma jurídica de estrutura (norma jurídica primária dispositiva) que obriga diretamente Estados e Distrito Federal ao instituírem o ICMS, seu descumprimento permite ao contribuinte buscar o Judiciário e lhe instigar a veiculação de uma norma individual e concreta (a sentença) dispondo sobre a alíquota aplicável ao caso concreto, de acordo com o princípio da seletividade. Nessa trilha caminha a doutrina de Roque Antonio Carrazza:24 “Sem embargo de doutas opiniões em sentido contrário, pensamos que o Poder Judiciário está apto a controlar o cumprimento deste princípio constitucional [a seletividade]. [...] javascript:void(0) javascript:void(0) Com efeito, o Poder Judiciário não está menos autorizado do que o Poder Legislativo a investigar qual o alcance das expressões ‘essencialidade das mercadorias e dos serviços’. Não estamos sustentando que o Judiciário vai legislar, no lugar do Legislativo, mas averiguar se os critérios adotados por este Poder foram adequados e racionais.” A doutrina de Guilherme Cezaroti25 sobre o tema acompanha o entendimento aqui proposto: “Alimentos, medicamentos e vestuário são itens de primeira necessidade que sequer deveriam ser tributados. A partir deste ponto, tem-se que itens necessários à manutenção da vida devem sofrer uma incidência tributária reduzida. Mas adiante, produtos como energia elétrica podem ser tributados, sem se esquecer que é essencial para a própria existência da sociedade moderna. Por fim, itens como o tabaco e armas de fogo não se traduzem em necessidades, razão pela qual o legislador deve gozar da mais irrestrita liberdade para tributá-los. Veja a aplicação de alíquotas mais gravosas para o consumo de energia elétrica implica entendê-la como item absolutamente desnecessário ao uso corrente, desconsiderando que é insumo essencial para as indústrias (às quais, inclusive, é negado o aproveitamento do crédito do imposto pago), para as atividades comerciais e para o uso corriqueiro. O argumento de que os Poderes Executivo e Legislativo têm ampla discricionariedade para fixar a alíquota do ICMS incidente sobre as operações de energia elétrica cede ante o caráter imperativo do art. 155, § 2º, inciso III, da Constituição Federal que, como Texto Constitucional, deve ser observado por todos. Além disso, qualquer inconstitucionalidade cometida por quaisquer dos Poderes Pode ser submetida ao exame do Poder Judiciário, sob pena de violação da cláusula de livre acesso ao Judiciário, ainda mais em hipótese que o exercício da competência tributária javascript:void(0) desbordou dos limites constitucionais de forma tão clara.” Os incautos diriam açodadamente que tal tutela jurisdicional não pode ser concedida em razão da jurisprudência já firmada nos tribunais superiores, segundo a qual o Judiciário não pode atuar como legislador positivo, a exemplo do que decidiu o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do RMS nº 20.676/ES.26 Mas, a mim esse não é o melhor raciocínio. É que o Judiciário apenas atuaria como legislador positivo caso determinasse a aplicação de uma alíquota não prevista na legislação, ou se aplicasse uma alíquota enumerativa, isto é, reservada a certas mercadorias e/ou serviços. Entretanto, se ao verificar os critérios adotados à aplicação da seletividade do ICMS em relação à tributação das prestações de serviços de comunicação e/ou operações com energia elétrica, o Judiciário entender que a alíquota de 25% prevista na legislação não atende a essencialidade da mercadoria, então poderá afastar a aplicabilidade dessa alíquota ao argumento da inconstitucionalidade. Em sequência, o Judiciário poderá determinar a aplicação da alíquota geral, também previstana legislação, que preencha esse requisito. Estar-se-á, com isso, consagrando-se a seletividade do ICMS e cumprindo-se a norma jurídica secundária, que autoriza o Judiciário a veicular uma norma jurídica individual e concreta para aquele contribuinte específico que teve seu direito ofendido. Rafael Ristow,27 jovem juiz do Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo, assim se pronunciou sobre essa possibilidade: “Ademais, tal posicionamento não se sustenta, uma vez que o Poder Judiciário, ao analisar contendas acerca da aplicação do princípio da seletividade, não age como javascript:void(0) javascript:void(0) legislador positivo, fixando a alíquota aplicável ao caso, mas, sim, determina a aplicação da alíquota prevista para as mercadorias em geral. De modo específico para o ICMS, tal solução é possível uma vez que há sempre uma alíquota geral e algumas alíquotas específicas, como por exemplo, a incidente sobre a eletricidade. Assim, o Poder Judiciário, ao declarar inconstitucional, por violação ao princípio da seletividade, um determinado dispositivo legal, que fixa alíquota específica para certo bem, exclui-o do ordenamento de modo a fazer incidir a alíquota geral.” Com base nesses fundamentos, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro declarou a inconstitucionalidade da alíquota de ICMS aplicada às operações com energia elétrica, conforme segue abaixo: “Arguição de Inconstitucionalidade em sede de Mandado de Segurança. Art. 14, VI, ‘b’, da Lei nº 2.657/96, do Estado do Rio de Janeiro, com nova redação dada pela Lei nº 4.683/2005, que fixa em 25% (vinte e cinco por cento) a alíquota máxima de ICMS sobre operações com energia elétrica. Anterior declaração de inconstitucionalidade do art. 14, VI, item 2 e VIII, item 7, do Decreto Estadual nº 27.427/2000, regulamentador daquela lei, na Arguição nº 27/2005 julgada pelo Órgão Especial deste Eg. Tribunal de Justiça. Lei impugnada que adota idênticos fundamentos do decreto, violando os princípios da seletividade e da essencialidade assegurados no art. 155, § 2º, da Carta Magna de 1988. Procedência da Arguição de Inconstitucionalidade do art. 14, VI, ‘b’, da Lei 2.657/96, do Estado do Rio de Janeiro. Decisão Unânime.” (TJRJ. Órgão Especial. Arguição de Inconstitucionalidade nº 0029716-92.2008.8.19.0000 (2008.017.00021). Rel. Des. José Mota Filho. Julgado em 20/10/2008.) Embora os efeitos da aludida decisão tenham sido suspendidos por decisão monocrática proferida pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal nos autos da Suspensão de Segurança (SS) nº 4187/RJ, fato é que seu mérito ainda não foi julgado. Tudo indica que o fará no bojo do julgamento do RE nº 714.139 RG/SC, onde a Corte Suprema reconheceu a repercussão geral da matéria aqui em causa, cuja ementa está assim vazada: “IMPOSTO SOBRE A CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E SERVIÇOS – ENERGIA ELÉTRICA – SERVIÇOS DE TELECOMUNICAÇÃO – SELETIVIDADE – ALÍQUOTA VARIÁVEL – ARTIGOS 150, INCISO II, E 155, § 2º, INCISO III, DA CARTA FEDERAL – ALCANCE – RECURSO EXTRAORDINÁRIO – REPERCUSSÃO GERAL CONFIGURADA. Possui repercussão geral a controvérsia relativa à constitucionalidade de norma estadual mediante a qual foi prevista a alíquota de 25% alusiva ao Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços incidente no fornecimento de energia elétrica e nos serviços de telecomunicação, em patamar superior ao estabelecido para as operações em geral – 17%.” (STF. Plenário. Min. Relator: Marco Aurélio. RE 714.139/SC. Julgado em 14/05/2014) É importante mencionar, contudo, que alguns Tribunais de Justiça não se afiliam ao entendimento aqui apresentado, à exemplo do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,28 que decidiu que a norma contida no artigo 155, § 2º, III, da Constituição Federal é de conteúdo programático, que não tem o efeito de gerar ao contribuinte um direito subjetivo. Em razão da isenção doutrinária a qual a presente obra pretende buscar, cumpre salientar que, na Corte Paulista, a inaplicabilidade dos argumentos relativos à seletividade especificamente sobre a energia elétrica e os serviços de comunicação ficou muito clara na decisão abaixo transcrita: “APELAÇÃO Ação ordinária Alíquota de ICMS incidente sobre serviço de comunicação Alegação de javascript:void(0) que a alíquota seria excessiva e, por esta razão, deveria ser considerada ilegal e inconstitucional Sentença de improcedência – [...] Mérito Artigo 155, § 2º, III, da CF/88 que faculta aos Estados a possibilidade de estabelecer alíquotas diferenciadas de acordo com a essencialidade das mercadorias e dos serviços Decisão do Órgão Especial pela constitucionalidade da alíquota de 25% - RE 714.139/SC, com repercussão geral, que pende de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal, razão pela qual não pode ser utilizado como paradigma e não obsta o julgamento da ação Manutenção da r. sentença Desprovimento do recurso.” (TJSP. 1ª Câmara de Direito Público. Processo nº 1024853-04.2017.8.26.005. Julgado em 02 de abril de 2019.) “Apelação Cível Mandado de Segurança Preventivo Liminar indeferida Pretensão de restituição de quantias supostamente pagas a maior, decorrente de aplicação de alíquotas de ICMS sobre energia elétrica e serviços de comunicação Alegação de serviços essenciais que deveriam ter alíquota em percentual menor do que o previsto em lei própria Inocorrência – Sentença que julgou improcedente a ação Caso em que não se aplica o princípio da seletividade, por não haver o suporte da carga tributária alegada – Recurso desprovido.” (TJSP. 7ª Câmara de Direito Público. Processo nº 9185895-08.2005. Julgado em 30 de janeiro de 2012.) 10 Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm? verbete=princ%EDpio&stype=k>. 11 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 147. 12 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1972. p. 280. 13 Consoante as lições de Paulo de Barros Carvalho, o dever-ser constante de normas gerais e abstratos é neutro, isto é, não está modalizado com os operadores deônticos. Sua finalidade é apenas a de vincular condicionalmente o antecedente ao consequente, de modo que “se o antecedente, então deve ser o consequente”, ou, em linguagem formalizada: p -> q (se p, então q). 14 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 31-57. 15 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 144-146. 16 CARVALHO, Cristiano. Sistema, competência e princípios. In: DE SANTI, Eurico Marcos Diniz (Org.). Curso de especialização em Direito Tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 874. 17 BALEEIRO, Aliomar. Introdução ao estudo do imposto sobre produtos industrializados. Revista de Direito Público, v. 11, 1970, p. 75-85. 18 TOMÉ, Fabiana Del Padre. A prova no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2005. p. 43. 19 MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Curso de especialização em Direito Tributário: fontes do Direito Tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 102. 20 MELO, José Eduardo Soares de. ICMS: teoria e prática. 7. ed. São Paulo: Dialética, 2004. p. 264 e 266. 21 VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 64. 22 CERQUEIRA, Marcelo Paulo Fortes de. Repetição de indébito no sistema tributário brasileiro. 1998. p. 77. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo. 23 SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Lançamento tributário. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2001. p. 43. 24 CARRAZZA, Roque Antonio. Op. cit. p. 363-364. 25 CEZAROTI, Guilherme. ICMS sobre operações com energia elétrica. Inconstitucionalidade da aplicação da alíquota de produtos supérfluos. In: BORGES, Eduardo de Carvalho; LEME, Delvani (Coord.). Tributação no Setor Elétrico. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 161-162. 26 “3. O recorrente também deduz pedido no sentido de que, além da inconstitucionalidadedas alíquotas fixadas pelo referido Decreto estadual, seja, desde logo, fixada nova alíquota, no percentual de doze por cento (12%). No entanto, essa postulação é indevida, na medida em que é vedado ao Poder Judiciário, no julgamento da lide, atuar como legislador positivo, principalmente em sede de controle de constitucionalidade.” 27 RISTOW, Rafael. A seletividade do ICMS e as alíquotas incidentes sobre o consumo de energia elétrica. Revista Fórum de Direito Tributário, Belo Horizonte: Fórum, nº 53, 2011, p. 35-55. 28 TJSP. Apelação Cível com Revisão nº 579.820-5/9-00. Rel. Des. Peiretti de Godoy, julgado em 9 de maio de 2007. Conforme o artigo 155, § 2º, I, da Constituição Federal, o ICMS é não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores. O funcionamento da não cumulatividade será examinado com mais detalhes no Capítulo 6. Basta dizer, por ora, que a redação constitucional deixa claro que o método de não cumulatividade adotado é o método crédito de tributo, que se diferencia e muito do método adotado a outros tributos, a exemplo do método subtrativo indireto aplicado ao PIS e à Cofins. Sem Nome Sem Nome Sem Nome Sem Nome Sem Nome 1. CARACTERÍSTICAS GERAIS E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS 1. CARACTERÍSTICAS GERAIS E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS 0 1.4. Princípios da anterioridade e anterioridade nonagesimal na prorrogação da impossibilidade de créditos sobre bens de uso e consumo, bem como a majoração da alíquota de 17% para 18% Conforme é sabido, por ser um imposto extrafiscal, não se aplica ao IPI os princípios da anterioridade, anterioridade nonagesimal e, de certa forma, também o princípio da legalidade (afinal, a legislação permite que, por decreto, haja redução das alíquotas a zero, ou sua majoração em até 30 pontos percentuais). Em relação ao ICMS, contudo, não há tais exceções, de modo que o imposto estadual está inteiramente sujeito aos aludidos princípios constitucionais. É natural que, dessa afirmação, surjam as seguintes indagações: (i) quanto às sucessivas majorações de alíquotas levadas a efeito em alguns anos pelo Estado de São Paulo (de 17% para 18%), há violação ao princípio da anterioridade nonagesimal? (ii) e quanto às prorrogações à tomada de créditos sobre aquisições de bens para uso e consumo do contribuinte, bem como de energia elétrica para utilização nas atividades do estabelecimento, há, ou não, tal violação? A resposta à primeira indagação é positiva, mas não a resposta à segunda. A prorrogação da majoração da alíquota do imposto interfere nos critérios quantitativo e temporal da regra- matriz de incidência, afinal, o imposto era calculado a determinada alíquota quando da realização corrente das operações mercantis e havia a expectativa de que, em determinado tempo, a alíquota aplicável não seria mais de 18%, sim de 17%. Entretanto, a introdução de regra jurídica prorrogando a aplicabilidade da alíquota de 18% modificou clara e indubitavelmente o critério quantitativo, porquanto por mais um determinado período (em regra, um ano), o imposto será calculado pelo percentual adicional de 1%. Ora, se há tal modificação, então só se pode concluir que a majoração de 1% na alíquota do ICMS paulista modifica a própria regra-matriz de incidência, razão pela qual, a partir da prorrogação, inicia-se um novo ciclo de incidência restrita, que majora a carga fiscal e atrai a aplicação do princípio da anterioridade nonagesimal. Contudo, deve ser dito que o Supremo Tribunal Federal rechaçou a tese aqui defendida, porquanto entendeu não ser aplicável o princípio da anterioridade nonagesimal à majoração da alíquota de ICMS no Estado de São Paulo. In verbis: “TRIBUTÁRIO. ICMS. MAJORAÇÃO DE ALÍQUOTA. PRORROGAÇÃO. INAPLICABILIDADE DO PRAZO NONAGESIMAL (ARTIGO 150, III, C, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL). RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO. 1. A Lei paulista 11.813/04 apenas prorrogou a cobrança do ICMS com a alíquota majorada de 17 para 18%, criada pela Lei paulista 11.601/2003. 2. O prazo nonagesimal previsto no art. 150, III, c, da Constituição Federal somente deve ser utilizado nos casos de criação ou majoração de tributos, não na hipótese de simples prorrogação de alíquota já aplicada anteriormente. 3. Recurso extraordinário conhecido e provido para possibilitar a prorrogação da cobrança do ICMS com a alíquota majorada.” (STF. Plenário. RE 584.100/SP. Rel. Min. Ellen Gracie. DJe 04/02/2010.) Quanto à prorrogação do direito ao crédito sobre energia elétrica e bens destinados a uso e consumo do contribuinte, penso que não há como ser defendida a aplicabilidade da anterioridade nonagesimal, afinal, os créditos do imposto são disciplinados por regras jurídicas distintas da regra-matriz de incidência. Conforme será visto com mais detalhes no Capítulo 6, o artigo 20, § 1º, da Lei Complementar nº 87/96, garante ao contribuinte o direito à apropriação de créditos de ICMS em relação a todas as aquisições de bens e serviços relacionadas à atividade do estabelecimento. Mas, o artigo 33 da mesma Lei Complementar nº 87/96 estabelece restrições temporais à tomada de alguns créditos. Realmente, ao disciplinar a apropriação de créditos relacionados às aquisições de bens destinados ao uso e consumo do contribuinte, a redação original do inciso I do artigo 33 da Lei Complementar nº 87/96 permitia a respectiva apropriação a partir de 1º de janeiro de 1998. Entretanto, pela redação dada pela Lei Complementar nº 92/97, o direito foi postergado para a partir de 1º de janeiro de 2000. Posteriormente, houve a prorrogação dessa restrição para: (i) 1º de janeiro de 2003 pela Lei Complementar nº 99/99; (ii) 1º de janeiro de 2007 pela Lei Complementar nº 114/02; (iii) 1º de janeiro de 2011 pela Lei Complementar nº 122/06; e (iv) 1º de janeiro de 2020 pela Lei Complementar nº 138/10. Já em relação à aquisição de energia elétrica consumida nas atividades do estabelecimento, a redação original do artigo 33, II, da Lei Complementar nº 87/96 garantia o direito ao respectivo crédito a partir da data da entrada em vigor da própria Lei Complementar nº 87/96. Ocorre que a Lei Complementar nº 102/00 veio dispor que somente dará direito a crédito a entrada de energia elétrica no estabelecimento: a) quando for objeto de operação de saída de energia elétrica; b) quando consumida no processo de industrialização; c) quando seu consumo resultar em operação de saída ou prestação para o exterior, na proporção destas sobre as saídas ou prestações totais; e d) a partir de 1º de janeiro de 2003, nas demais hipóteses, prazo este que veio a ser prorrogado para 1º de janeiro de 2007 pela Lei Complementar nº 114/02, para 1º de janeiro de 2011 pela Lei Complementar nº 122/06 e, depois, para 1º de janeiro de 2020 pela Lei Complementar nº 138/10. Segundo penso, essas prorrogações não afetam a regra-matriz de incidência do imposto. Afinal, a incidência do ICMS ocorre na saída de mercadoria do estabelecimento do contribuinte, sendo o seu valor calculado pela aplicação de uma alíquota ao valor da operação. Este é o montante de imposto devido (despesa de ICMS), que será pago por: (i) créditos do imposto; e (ii) dinheiro.29 Ora, se os créditos em nenhum momento se vinculam à regra-matriz de incidência, apenas o seu pagamento, então está claro que as sucessivas prorrogações à utilização de créditos não se sujeitam ao princípio da anterioridade e anterioridade nonagesimal. 29 Para melhor compreensão destes conceitos, é recomendável o exame dos lançamentos contábeis do Capítulo 8. javascript:void(0) Sem Nome Sem Nome Sem Nome Sem Nome Sem Nome 1. CARACTERÍSTICAS GERAIS E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS 1. CARACTERÍSTICAS GERAIS E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS 0 1.5. Imunidade de ICMS nas operações com livros, jornais, revistas e papéis destinados à sua impressão Conforme a lição do professor Luciano Amaro,30 a Constituição Federal não cria tributos, mas outorga competências tributárias aos entes políticos para fazê-lo. Realmente, o que o constituinte
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