Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Guia completo de AVC para fonoaudiólogo PARA VOCÊ, QUE DESEJA ATENDER, COM EXCELÊNCIA, PACIENTES QUE SOFRERAM ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL (AVC). C R F a : 2 - 1 7 8 5 5 Copyright © 2020, PAOLA PUCCI, Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte desse e-Book, sem autorização prévia por escrito do autor, poderá ser reproduzida ou transmi�da sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros. Autora Paola Pucci site www.paolapucci.com.br e-mail contato@paolapucci.com.br Saber atender, de forma global, pacientes que sofreram um acidente vascular cerebral (AVC) é fundamental para qualquer fonoaudiólogo que trabalhe ou deseje trabalhar na área da neurologia. O AVC é a principal causa de incapacidades por sequelas neurológicas no Brasil. Você sabia disso? Um profissional da neurologia que não saiba atender um caso de AVC adequadamente está, definitivamente, perdendo oportunidades de trabalho ou prejudicando dezenas de pacientes. Por isso, decidi te presentear com esse livro digital, que, espero, abra sua mente para uma nova abordagem terapêutica. Ótima leitura pra você! Paola Pucci Capítulo 1 revisão 05Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Antes de partirmos para a abordagem terapêutica, que tal uma “revisãozinha”? Cabe dizer que AVC é a sigla mais popular e mais antiga para o acidente vascular encefálico (AVE). Eu criei o hábito de falar AVC, porque é assim que os pacientes e as famílias estão mais habituados. Enfim, nós sabemos que é a mesma coisa, então você usa a que achar melhor, combinado? O AVC é uma alteração transitória ou definitiva de uma área cerebral. É uma isquemia (falta de sangue) ou um sangramento (derramamento de sangue), causado por um processo vascular. Por isso, o nome “acidente vascular”. Os fatores de risco para desenvolver um AVC são muitos. Vou citar os principais aqui: - Hipertensão arterial sistêmica (HAS); - Diabetes; - Alterações cardíacas, como: insuficiência cardíaca congestiva (ICC), coronariopatia, arritmia, valvopatia; - Alcoolismo; - Uso de anticoncepcional; - Tabagismo; - Hiperlipidemia. Mas não são só esses. A população mais jovem tem sido acometida também por AVC e acaba apresentando mais fatores de risco além daqueles, como: - Vasculites do sistema nervoso central (SNC); - Arterites (infecciosas ou por uso de drogas). Todos esses fatores podem aumentar o risco de ocorrência do AVC. Como eu te disse, o AVC pode ser uma isquemia ou um sangramento, ou seja, ele pode ser isquêmico ou hemorrágico. Capítulo 1 - BREVE REVISÃO AVC Isquêmico (AVCi) Não confunda AVC isquêmico (AVCi) com episódio isquêmico transitório (EIT). O EIT dura menos de 24 horas e não deixa sequelas, enquanto o AVCi é causado por uma oclusão na artéria, um infarto na artéria, podendo ser trombótico ou embólico. AVCi trombótico: Oclusão da artéria por placa de ateroma que se forma no local (HAS, arteriosclerose). AVCi embólico: Oclusão da artéria por gordura ou coágulo, que é lançado à distância (às vezes pode vir do coração), gerando uma transformação hemorrágica. O que isso significa? Que ele é comprimido e depois explode a artéria e tem essa transformação hemorrágica. AVC Hemorrágico (AVCh) O AVCh pode ser intraparenquimatoso, por hemorragia subaracnóide (HSA) ou simples. AVCh intraparenquimatoso: Ruptura de uma pequena artéria, formando um coágulo no interior de um tecido cerebral (hematoma). AVCh por hemorragia subaracnóide (HSA): Ruptura de aneurisma cerebral com extravasamento de sangue ao redor do cérebro, no espaço subaracnóide. AVCh s imples : Pode ter grandes compl icações, como ressangramento nas primeiras 24 horas, mesmo após ser drenado; vasoespasmo, que acontece a partir de 72 horas e pode levar a um infarto cerebral; e hidrocefalia, por excesso de líquido que se espalha na área cerebral. Capítulo 1 - BREVE REVISÃO 06Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - O quadro clínico de qualquer caso de AVC vai sempre depender do local da lesão, mas poderemos encontrar: - Hemiparesia: metade do corpo fica com baixa sensibilidade, movimentação e força reduzidas; - Hemiplegia: paralisia de metade do corpo (o mais comum é a hemiparesia, que é reversível); - Hipoestesia: diminuição da sensibilidade; - Hemianopsia: dificuldade em perceber um lado do próprio corpo ou as coisas que se situam daquele lado; - Afasia: dificuldade de comunicação; - Alterações do nível de consciência; - Ataxia cerebelar: quando a lesão é próxima ao tronco encefálico, ao cerebelo, pode acontecer uma condição de movimentação involuntária, imprecisa e não-programada, já que o cerebelo cuida da coordenação motora fina; - Disartria: alteração na fala; - Disfagia: alteração da deglutição; - Alteração de motricidade ocular: pacientes podem apresentar dificuldade em buscar coisas à esquerda ou à direita e isso costuma aparecer no teste de leitura; - Agnosia: pode ser visual, auditiva ou tátil. Apesar de o paciente manter a função sensorial intacta, a agnosia impede que ele reconheça ou identifique objetos, pessoas e formas; - Apraxia: desprogramação motora da fala; - Alterações de memória e atenção. Capítulo 1 - BREVE REVISÃO 07Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - No AVCh por hemorragia subaracnóide, o paciente pode apresentar, no momento da lesão e/ou da internação: - Cefaleia súbita, de forte intensidade; - Náuseas e vômitos; - Perda de consciência/coma; - Rigidez na nuca. Esses sintomas podem aparecer todos juntos, ou só alguns deles. Nem sempre o paciente desmaia ou acontece algo muito dramático, muitas vezes os sinais são sutis. As sequelas que iremos tratar podem vir só depois que esses primeiros sinais surgem. Capítulo 1 - BREVE REVISÃO 08Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - CAPÍTULO 2 CASO CLÍNICO Eu acredito que a melhor forma de aprender e entender realmente como funciona um atendimento, seja com um caso clínico real. É por isso que os meus cursos são todos baseados na prática. Quer dizer que teoria não é importante? Lógico que é, muito importante, fundamental. Porém, teoria e prática devem andar sempre juntas, nunca separadas. Não existe prática sem teoria, nem teoria sem prática. Apesar de estarmos aqui totalmente dependentes de uma comunicação por leitura e escrita (já que é um livro digital), farei o possível para descrever com detalhes, para que você consiga visualizar bem o caso. O paciente teve um AVC de uma maneira não muito comum. A maioria dos casos é decorrente de uma falta de estrutura de saúde, metabólico ou uso de drogas, álcool, pílula anticoncepcional, por isso uma galera jovem está tendo AVC agora. Mas tem AVC por casos que nos deixam chocados. Tem gente que tem AVC fazendo esporte! Temos alguns acidentes vasculares que realmente não são esperados e este é um caso assim. Este paciente é um psiquiatra, casado, que começou a observar que a esposa estava desviando dinheiro da própria família. Ela pegava o dinheiro e jogava, apostava. Ele ficou muito decepcionado com isso, conversou com ela, mas não resolveu. Ela sempre desviava dinheiro da conta conjunta deles e usava para jogar. CAPÍTULO 2 - CASO CLÍNICO 10Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Então, ele começou a tomar medidas para proteger o dinheiro da família. E nessa, que ele começou a controlar os gastos, as saídas dela, mostrar os estratos do banco, ficar marcando mais em cima, ele descobriu que ela o estava traindo com um amigo dele e eles estavam fazendo uma poupança com o dinheiro da família. Ele ficou muito decepcionado ao saberda traição da esposa com o amigo, que além de tudo era sócio dele no consultório. A história do vício era uma invenção, só para distrair o real motivo, que era a traição. Calma, que isso não é só fofoca, não! Já vou chegar onde quero… Vou chamar esse paciente de Rubens, ok? Um nome fictício. Quando o Rubens soube da traição, ele ficou tão transtornado, que, sendo médico, fez uma auto medicação para se matar… Ficou desacordado, entrou numa situação grave e, quando a esposa chegou (o que ele não estava contando que aconteceria), não sabia que tinha sido tentativa de suicídio, chamou o SAMU e começou o socorro. Rubens foi parar no hospital onde eu atendia, na época. Chegando lá, esse paciente estava completamente desacordado, bem grave do ponto de vista respiratório. Houve um bloqueio respiratório por conta da intoxicação (intoxicação exógena) e esse paciente teve um AVC . Você deve saber que quando ocorre algum problema no mecanismo de circulação respiratória, em que a gente não consegue oxigenar o cérebro, pode acontecer um acidente vascular por falta dessa oxigenação. Foi o que aconteceu com o Rubens. CAPÍTULO 2 - CASO CLÍNICO 11Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Muito triste essa história, né? Mas vamos focar agora no AVC dele. A gente imagina que o AVC hemorrágico seja o bafão, que derrama sangue pela cabeça, deixa o paciente gravíssimo, mas, na verdade, os casos mais graves costumam ser de AVC isquêmico, porque o AVC hemorrágico é passível de drenagem. Muitas vezes a equipe consegue “sugar” o sangue derramado e conter o problema. No AVC isquêmico, como falta irrigação, falta sangue na região, quanto mais tempo o paciente fica sem atendimento, maior e mais profundo o acometimento. Então, o AVC isquêmico é, no geral, mais grave do que o hemorrágico e, nesse caso, esse paciente não teve um AVC hemorrágico, ele teve um isquêmico. O socorro, infelizmente, não foi tão rápido assim e ele teve um acometimento muito grande. Gigantesco! O Rubens teve uma lesão que foi parietotemporoccipital. Parietal é a região do arquinho de cabelo (ou tiara); temporal é a área lateral, acima das orelhas, mais ou menos; e occipital é a região perto da nuca (dá uma olhadinha na imagem abaixo, para visualizar melhor). Toda essa área foi lesionada, principalmente do lado esquerdo, mas com muito acometimento do lado direito também, pegando quase todo o cérebro. Essa lesão foi bem grande, bem profunda. CAPÍTULO 2 - CASO CLÍNICO 12Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Quando o Rubens chegou no hospital, passou por todos os exames, para escolher a medicação para melhorar o fluxo sanguíneo, para oxigenar o que desse pra oxigenar e manter o paciente vivo. A equipe conseguiu salvar o Rubens. Nós achamos isso bom, mas ele não… Lembre-se de que o Rubens tentou se matar e, agora, além de continuar vivo, ele teria uma vida infinitamente mais difícil pela frente. Você consegue imaginar como estava esse paciente quando eu fui atende-lo? Além de já ter motivos suficientes para estar deprimido, ele estava sozinho no quarto da internação. Ele tinha uma filha só, que não era muito presente, e uma esposa que estava em outra. Então, o que a gente observava de vínculos, que são muito importantes nesses atendimentos, é que quem o acompanhava mais, quem mais ia visitá-lo eram os amigos médicos. Um desses amigos foi quem me contou todo o caso dele, pois a informação era apenas de que ele foi intoxicado. CAPÍTULO 2 - CASO CLÍNICO 13Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - A primeira coisa que você conta para o seu colega é como está o paciente, o que aconteceu com ele, onde ele estava, e com quem ele estava. E, claro, a situação visível do paciente. Tudo isso é extremamente importante para sabermos quem é a pessoa que vamos atender, pelo que ela está passando. Rubens estava traqueostomizado, com uma traqueo plástica, com cuff insuflado. Tinha uma gastrostomia exclusiva, não estava conseguindo se comunicar, mas o que mais chamava atenção era a extrema sialorréia. Ele estava todo molhado, pescoço, lábios, blusa… Ele havia acabado de passar pela higienização e a enfermagem falava que era algo que não dava pra conter, era muita sialorréia. A intoxicação levou a um problema respiratório, que levou a um AVC e toda essa situação levou a uma traqueostomia. Rubens ficou entubado, fez cirurgia e foi tratado clinicamente antes de eu, como fonoaudióloga, poder alcançá-lo. Quando eu cheguei para atender o caso, esse paciente já havia passado 35 dias na UTI, foi entubado, passou por ventilação mecânica, começou a melhorar em relação à respiração (e isso deixou a equipe muito feliz), mas ele estava traqueostomizado, com intensa sialorréia, o que prejudicaria a decanulação nesse momento, pois essa saliva excessiva pode ser aspirada, cair no pulmão e piorar mais o quadro dele. Nada de via oral nesse tempo todo, ou seja, sem estímulo nenhum. Nadinha de nada. Rubens já tinha 63 anos, não era um paciente idoso, mas também não era jovem. Qual seria a sua atitude ao entrar no quarto de um paciente grave de AVC? CAPÍTULO 2 - CASO CLÍNICO 14Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Mas de onde vem a linguagem, afinal? A linguagem vem das habilidades de: memória, da lembrança de qual é o seu rosto, qual é o assunto, de como funciona a língua portuguesa; vem também da atenção, ao que os outros dizem, fazem, ao que acontece ao seu redor; do planejamento, de como se faz para se comunicar. Então, antes do paciente ter uma comunicação, ele tem essas habilidades cognitivas que estimularam a linguagem dele. Quando você pega um paciente nessas condições acima, você está com um paciente cognitivo. Portanto, você vai começar trabalhando as habilidades cognitivas: atenção, memória, planejamento e execução. Vai treinar a atenção, estimulando os 5 sentidos: estímulos visuais, sonoros, táteis, gustativos, olfativos. Voltando ao Rubens, vamos combinar que a gente tem muita coisa para ver nele, né? Além da sialorréia, que é importante olharmos, sim, precisamos saber qual é o nível cognitivo dele, porque se a cognição estiver muito ruim, a deglutição vai degringolar, mímica facial também, nada vai funcionar sem o cognitivo. Então, começaremos por aí! Mas como vou testar o cognitivo? Vou testar entrando no quarto e “conversando” com ele. É claro que antes disso eu li todos os prontuários dele, vi o que as pessoas falam sobre o caso. E não tinha nenhum dado concreto sobre comunicação. Alguém colocou que não era responsivo, outro colocou que o paciente estava articulando, mas sem sentido. CAPÍTULO 2 - CASO CLÍNICO 15Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Quando entrei no quarto, o paciente estava acordado, eu dei um sorriso e disse: - Bom dia, Sr. Rubens. Tudo bem? E ele deu um sorriso. Pelo amor de Deus, o que isso significa? Sim, uma resposta a um estímulo. Dei um estímulo sonoro e visual (sorriso) e ele sorriu de volta. Significa que esse paciente tem linguagem oral? Ele respondeu “tudo bem”? Não. Pode ser que ele não tenha entendido nada do que eu falei, mas ele entendeu cognitivamente! Eu sorri, ele sorriu de volta. Uma das minhas maiores preocupações era com a visão dele, já que a lesão atingiu região occipital, onde acontece o processamento visual. Com essa resposta dele, notei que, visualmente, aparentemente, estava tudo ok. Ele estava entendendo qual mímica facial era aquela que eu estava fazendo (sorriso). Vamos organizar o raciocínio do que esperar dessa lesão, então, para você acompanhar melhor o caso. Em uma lesão occipital, como eu disse, eu esperoque o paciente tenha uma dificuldade em reconhecimento visual; em uma lesão parietal, eu espero que ele tenha dificuldade comunicativa; e uma lesão temporal que ele vai ter dificuldade para compreender a linguagem. Ele pode ter ficado surdo também, pois pegou uma área do auditivo, no temporal. CAPÍTULO 2 - CASO CLÍNICO 16Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Portanto, não sabemos se na hora que ele sorriu, ele entendeu o som ou só entendeu o visual, a mímica. E agora é a hora de você matar todas essas curiosidades! Será que ele está ouvindo? Será que ele está entendendo? Como está a compreensão? Como saber? Poderia avaliar a atenção, para saber se ele localiza uma fonte sonora, para ver se ele viraria em direção à fonte, se ele ouve sua voz, se ele tem hemianopsia (enxerga de um lado, mas não enxerga do outro). Testar se está vendo, ouvindo, sentindo cheiro e gosto, é muito importante. Então, o passo 1 é avaliar os 5 sentidos. Rastreei e vi que os 5 sentidos estão ok. O Rubens estava atento durante os testes. Agora, o passo 2 é avaliar as 4 habilidades cognitivas: atenção, memória, planejamento e execução de tarefas. Afinal, já conversamos aqui que essas habilidades são fundamentais para o desenvolvimento e reabilitação da linguagem, certo? Para avaliar tudo isso, você precisa ter em mente que toda a nossa cognição foi formada através das nossas experiências de vida. Então, o que eu lembro quando eu vejo um abacaxi não é o mesmo que você lembra, olhando o mesmo abacaxi. Todas essas habilidades serão incluídas ao longo da vida do ser humano e, por isso, é muito particular. Portanto, avaliar um paciente sem ter nenhum cuidador informal junto, uma esposa, um filho, sem nenhum dado de quem mora junto, é super difícil. CAPÍTULO 2 - CASO CLÍNICO 17Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Sem dados da vida da pessoa, fica muito complicado fazer essa avaliação. Tentem falar antes com a família, de alguma forma, por ligação talvez, pra não perder nada importante. Nesse caso, eu não conhecia o paciente, mas o amigo médico dele me passou informações importantes: ele gostava de whisky, fumava bastante, tinha hábitos autodestrutivos, gostava de chegar em casa de madrugada, beber, não fazia exercícios. Ele gostava muito da carreira dele e era judeu praticante. Era muito fechado com a família e muito aberto com os amigos. Só de saber disso, eu fiz o seguinte: pedi fotos desses amigos que ele gostava muito, que eram ligados à carreira, pois ele era médico e gostava muito do pessoal da medicina. Com as fotos e o nome dos 10 amigos dele, que era o que eu tinha, fui testar a habilidade visual desse paciente. Falei o menos possível, porque na avaliação de linguagem é assim. Você vai fazendo, mostra pro paciente, faz ele fazer também. Ele estava respondendo sempre com sorrisos, até que eu mostrei uma foto de um amigo dele no meu celular e ele fez uma careta, de interrogação. Eu falei: – Seu amigo, né? Ele fez que sim com a cabeça, mas não sabemos se ele entendeu o que eu falei ou o que eu fiz. Peguei dois nomes desse amigo e escrevi. Veja como as coisas são muito interligadas: eu estou avaliando se ele está enxergando, mas acabei fazendo uma tarefa de avaliação de linguagem (leitura). CAPÍTULO 2 - CASO CLÍNICO 18Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Então, eu coloquei, na frente dele, um nome qualquer e o nome real desse amigo e fiz ele apontar, mas eu fiz primeiro, dando um exemplo com outro amigo. Ele fez uma cara de reconhecimento e eu mostrei os dois nomes para ele escolher um. Eu falava: - Esse ou esse? (Apontando para um e para outro). O Rubens conseguiu identificar o nome certo do amigo. Ele soube casar a feição do amigo com o nome escrito. Ficou atento a sessão inteira. Concluí que ele estava visualmente compreendendo bem. O processamento visual foi testado das duas formas, com a imagem e com a leitura, um rastreio cognitivo. É muito importante começar pela parte cognitiva, mesmo que não pareça a mais crítica, pois ela vai mandar no seu tratamento inteiro. Apesar de ter feito uma prova visual, se ele bateu o olho e lembrou o nome dos amigos, temos um indício de que a memória está legal. Mas eu precisava avaliar mesmo assim, para confirmar. Então, terminei a prova com o nome de todos os amigos e depois eu falei: - Vou mostrar todos de novo e você aponta qual eu mostrei primeiro. Ele apontou certinho. A chance de ele entender o que eu estava falando era muito grande, concorda? Atenção ok. Memória ok. Precisamos avaliar o planejamento. O jeito mais fácil para entender como (ou se) o paciente planeja é pedindo para ele fazer alguma coisa. Podemos avançar, porque ele parece estar entendendo algo. O ideal é que essa solicitação ao paciente não tenha nenhuma pista de como deve ser executada. CAPÍTULO 2 - CASO CLÍNICO 19Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Exemplo: dar uma pasta de dente e uma escova para o paciente, sem dixer nada; apenas entregar. Espera-se que ele consiga colocar a pasta na escova, certo? O Rubens estava com hemiparesia. Se eu peço uma coisa complicada dessas para um paciente com AVC, ele pode não conseguir, motoramente falando, não por inabilidade cognitiva. Então, precisa tomar cuidado com o tipo de ação que você vai pedir ao paciente. Nesse caso, precisava ser uma ação que utilizasse apenas uma das mãos. Eu sempre peço ao paciente que escreva. Segurei a folha e dei a caneta nas mãos dele. Ele estava com uma hemiparesia do lado predominante, mas quase achei que ele fosse tetra, de tão poucos movimentos que ele tinha de corpo, quase foi uma lesão cruzada, tinha muita lesão no hemisfério direito, apesar da lesão principal ter sido no hemisfério esquerdo (por isso, a paresia era muito pior no hemicorpo direito). Como Rubens era destro, teria que usar a mão esquerda, por isso pedi para ele fazer uma bola, em vez de escrever (ninguém merece escrever com a mão não-dominante, até quando não passou por um AVC). Ele começou fazendo uma reta primeiro, pra depois fazer uma curva. Ele errou o plano, certo? Porque quando planejamos fazer um círculo, já começamos fazendo o círculo. Pode começar de cima, de baixo, do lado, mas já fazendo o círculo. No plano de fazer o círculo, não tem linha reta, concorda? O legal é testar o planejamento de um paciente com algo que não tenha outro jeito de fazer. CAPÍTULO 2 - CASO CLÍNICO 20Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Exemplo: quando o paciente não é muito grave, você pede pra fazer um café. Aí, você vê que ele está meio perdido. Ele começa ligando o fogo, para depois procurar onde está o pó, os utensílios. Você percebe que a pessoa não se planeja, está meio atrapalhada. São nessas pequenas tarefas que você vai analisar o planejamento. É claro que a tarefa vai sair meio esquisita, a execução será ruim, porque o plano saiu errado. Rubens está cognitivamente meio perdido. É um paciente que sorri, está prestando atenção, mas está com problemas de planejamento. Isso pode ser uma alteração ligada ao occipital, mas muito mais do parietal, que é a região que vai planejar como eu respondo uma pergunta, que decisão eu vou tomar. O planejamento, motor e linguístico, está muito ligado a essa área parietal, por isso era esperado que ele estivesse meio confuso mesmo. Se o Rubens estivesse melhor, de forma geral, andando, conversando, ele seria um paciente que se você falasse “vamos no mercado?”, ele falaria “vamos”, mas não pegaria a chave do carro, a lista de compras, a carteira. Não tem planos para executar uma ação, ele simplesmentesai fazendo. Sem planos, as ações ficam mal feitas, gastam mais energia, o paciente fica mais confuso e demora mais. CAPÍTULO 2 - CASO CLÍNICO 21Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Recapitulando... - Avaliar os 5 sentidos; - Avaliar a cognição (atenção, memória, planejamento e execução); - Sempre com um paciente neurológico, olhar: mímica facial, deglutição, fala, linguagem e cognição. Entrando no quarto do paciente, você já olha a mímica facial: Rubens, por exemplo, tinha uma alteração de rima, já vi que o lado esquerdo inferior, dois terços inferiores, estão paralisados. Ele sorri sempre de forma assimétrica. Ou seja, o lado esquerdo da face está com paralisia central, que é do mesmo lado da lesão principal dele (hemisfério esquerdo). Quer dizer que já tem coisa pra fazer, estimular essa mímica. Na deglutição, de cara, a gente vê o paciente traqueostomizado, ou seja, já é um paciente com risco para disfagia. Não precisa desconfiar tanto, pois esse paciente já está mostrando uma secreção fluida, incolor, a cara da saliva. Sai pela boca e em volta da traqueo. Ele tem ausência de deglutição. Ele tem muita saliva, então ele deglute pouquíssimo. Normalmente, seria um paciente que dorme muito, está muito desatento, nunca está engolindo. Não é o caso do Rubens, que está atento e acordado. Você já viu que a deglutição é grave, pelo menos para a saliva. Não está sentindo, não está percebendo a saliva que está no rosto dele, até porque tem paralisia facial. Da nossa listinha, a mímica está alterada, a deglutição está alterada e a linguagem e a cognição ainda precisam ser aprofundadas, fazer um teste bem feito. A fala será testada conversando com o fisioterapeuta da equipe multi, para ver se neste momento pode ser desinsuflado o cuff. O cuff é um balonete que fica na traqueostomia; precisamos desinsuflar para livrar essa região, deixar o ar passar pela laringe, vibrar as pregas vocais e ele conseguir falar. A avaliação de fala é para ver a musculatura, a respiração, a articulação, a ressonância, a prosódia, tudo isso. CAPÍTULO 2 - CASO CLÍNICO 22Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - A ideia desse capítulo era te mostrar que todo o tratamento dependerá de como você vai olhar para o paciente na PRIMEIRA vez que você o vir. Quando chegar um paciente muito grave, seja capaz de olhar para ele sem se distrair com a sialorréia que está demais, com a gastro, com a traqueo. Você tem algo muito maior pra ver agora, porque você não é mais um avaliador de disfagia. Você é um avaliador da neuro. Já tem jogo de cintura, fala com a família antes, descola umas fotos, um copo, algo que seja próximo do paciente, já entende que o quanto e como ele levou a vida vai interferir na avaliação. Esta é a realidade do atendimento ao paciente neurológico. CAPÍTULO 2 - CASO CLÍNICO 23Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - CAPÍTULO 3 EXERCÍCIOS PARA TERAPIA Se você já fez algum dos meus cursos, sabe que eu gosto que os casos sejam raciocinados, para que a gente consiga bolar os próprios exercícios e não fique fazendo sempre a mesma coisa com vários pacientes. Percebo que algumas pessoas fazem os cursos em busca de uma lista, sem saber como criar seu próprio arsenal de exercícios. Eu não quero que você pense que eu vou te entregar uma lista aqui, pois isso tiraria a humanização do seu atendimento e o raciocínio clínico também. Meu objetivo é te fazer entender os casos; depois, você pode usar técnicas complementares, como laser, eletro, bandagem, porque temos que nos atualizar mesmo. A raiz do problema da nossa insegurança para atender é a dificuldade em raciocinar. Então, quero que, independente de você ter alguns instrumentos ou não, consiga trabalhar com o paciente, a partir de um raciocínio clínico bem estruturado. Então, vamos lá! Primeiro ponto importante: Lembre-se sempre que, conforme já falei no capítulo anterior, a avaliação de pacientes neurológicos, independente se você for atender um alzheimer, um avc, um parkinson, deve envolver: - Mímica facial; - Deglutição; - Linguagem e cognição; - Fala. Se quando nós vamos avaliar um paciente, temos que olhar para todo esse quadro, na hora de seguir o planejamento terapêutico faremos exatamente a mesma coisa: reabilitar mímica facial, deglutição, linguagem/cognição e fala. CAPÍTULO 3 - EXERCÍCIOS PARA TERAPIA 25Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Quando eu comecei a atender, eu ficava pensando: “E agora? Eu dou 3 séries de 15 aqui? 2 séries de 20?”. Eu não sabia como passar exercício para os meus pacientes! Então, eu comecei a procurar materiais sobre fisiologia do exercício, mas só encontrei de músculos grandes (os fisioterapeutas que se dão bem com isso). Resumindo, não tinha publicação sobre a fisiologia do exercício na neuro, para fonoaudiólogos. Pode ter na MO, em outras áreas, mas na neuro, não. O problema é que a deglutição é uma função neurofisiológica e precisamos raciocinar do ponto de vista da neuro, não da MO! Depois de quebrar muito minha cabeça, cheguei a uma conclusão, que coloco a seguir pra você, como o segundo ponto importante a ser considerado. Segundo ponto importante: Quanto mais exercícios você indicar para o seu paciente (em quantidade mesmo), menos ele vai aderir ao tratamento. Vamos pensar que tudo isso é novo pra ele, nem todos vão achar legal, porque a terapia tira o paciente da zona de conforto. Tem paciente que fala: “Eu não vou ficar mandando beijinho pro espelho, colocando a língua pra fora, não tenho mais idade pra isso”. CAPÍTULO 3 - EXERCÍCIOS PARA TERAPIA 26Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Precisamos ter empatia com nossos pacientes. O atendimento do adulto é muito mais complexo, porque temos que trabalhar muito a aderência ao tratamento, o paciente tem que querer fazer fono. No caso dos neurológicos, existem questões de saúde mental envolvidas também, muitos ficam deprimidos. Um acidente de carro que tira os movimentos, um aneurisma que tira a possibilidade de falar, tudo gera muita carga emocional. Então, a motivação na terapia fica por nossa conta, terapeutas. É claro que a terapia é um contrato, o paciente vai fazer a parte dele, os cuidadores também, assim como a equipe multi. Mas a gente sabe que a vida real não é perfeita, não são todos da equipe multi que se especializaram em neuro, não é todo mundo da família que colabora, não é todo paciente que está de bom humor, não é mesmo? “Como fazer, então, Paola?” Sugiro que você ofereça um exercício que contemple a maior quantidade de alterações que esse paciente apresentou. Isso faz com que você passe menos exercícios para seu paciente e aumenta a chance de ele aderir ao tratamento e colaborar com a terapia. Sabendo que temos muitas questões para avaliar, vamos traçar um plano que englobe todas as alterações. Vamos pensar juntos? Faz de conta que eu acabei de avaliar um paciente e estou te contando o que eu avaliei: CAPÍTULO 3 - EXERCÍCIOS PARA TERAPIA 27Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - O paciente tem um AVC e fui avaliar a deglutição dele em domicílio, acompanhando uma refeição principal; nesse caso, o almoço. Ele está hemiparético à direita e é destro, então não conseguiu pegar no garfo de primeira. Fiquei treinando muito tempo com ele, antes de começar a sessão, explicando para a cuidadora que não dá pra dar comida na boca dele. O paciente ficou muito feliz e tentou fazer a primeira garfada. Ele chegou do hospital com uma dieta de sólidos amolecidos. No almoço, tinha pra eleum feijão cheio de caldo, meio papado; um arroz papa; uma carne desfiadinha; tudo bem molhadinho, achei super adequado, de acordo com a receita que veio do hospital. Quando ele foi comer, ele misturou as 3 coisas numa colherada. Então, ele colocou arroz, feijão, carne, uns legumes cozidos. Ele comeu umas 2 ou 4 colheradas e deu uma parada, disse que não queria mais, e começou a tossir. Ele teve uma tosse tardia. É nessa hora que a gente anota que com essa dieta ele teve tosse tardia. Agora, eu preciso descobrir qual dos alimentos que ele pegou que está dando problema, qual está deixando resíduos na valécula ou em seios piriformes, fazendo ele tossir depois. Então, eu pedi para ele comer separadamente cada alimento, para ver se o desempenho era igual e qual não estava indo bem. Ele pegou o feijão, mastigou, engoliu, foi auscultado, livre de ruído, saturação mantida, tudo certo. Chegou a vez do arroz pastoso: ele mastigou bastante, mais lento e engoliu. Quando ele engoliu o arroz, a elevação da laringe quase não apareceu. CAPÍTULO 3 - EXERCÍCIOS PARA TERAPIA 28Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Pedi para ele comer o arroz novamente; ele teve um tempo de trânsito oral elevadíssimo e, quando engoliu, quase não dava pra ver a elevação da laringe. Na ausculta, percebi um ruído, um barulhinho. Vamos pensar: o que tem no arroz que não tem no feijão? O feijão tinha muito caldo, quase líquido. O arroz era mais seco que o feijão. Pedi para ele comer a carne, que era desfiada e com molho. O paciente mastigou bastante e quando foi engolir fez uma super elevação da laringe, engoliu e nada de ruído. O paciente estava com a voz limpinha. Entendi que a dieta talvez não estivesse tão adequada pra ele, ou foi prescrita uma dieta no hospital, mas quando chegou em casa mudou. Conclusão: quando tem mais líquido, ele tem um desempenho melhor; e alimento muito pastoso, consistente, ele ainda não aguenta. E por que a elevação da laringe foi baixinha com o arroz? Porque a ejeção oral foi fraca. Ele ficou muito tempo mastigando e, na hora de engolir, ele não colocou muita força, porque se colocasse, a laringe ia entender que era pra elevar também. Teremos que adaptar a dieta dele, concorda? Tentei colocar o caldo de feijão por cima do arroz e o paciente mastigou por menos tempo, teve uma ausculta limpa e engoliu com mais força, a ejeção foi melhor. Não tinha resíduo na cavidade oral; se tivesse, esse resíduo também poderia escorregar e trazer uma tosse tardia. CAPÍTULO 3 - EXERCÍCIOS PARA TERAPIA 29Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Acompanhei a refeição até o final, pois só com algumas colheradas não dá pra avaliar. Entendi que esse paciente para de comer quando começa a tossir; e que quando a comida ficou mais líquida, a refeição foi bem até o final, não teve mais episódio de tosse. Na hora de avaliar o líquido fino, ele já se desorganizou todo e teve uma tosse antes da deglutição. Ele não consegue organizar o líquido na boca antes de engolir, tem escape posterior e ele se engasga. Pensei que o paciente tivesse uma ausência de controle oral. Então, antes de começar a espessar, eu tento controlar só no cognitivo, já que o paciente estava razoável do ponto de vista cognitivo. E aí, quando ele foi tomar, pedi pra colocar só um pouco de líquido (porque talvez fosse o excesso de líquido que estivesse atrapalhando). Controlei o quanto ele colocou na boca, pedi para segurar e engolir só quando eu falasse “já”. - Quando eu falar “já”, o sr. abaixa a cabeça (fiquei preocupada com escape prematuro) e engole. Ele engoliu; ausculta ok, paciente ok. Fiz isso até o final do copo. Quando falei “não engole”, ele foi obrigado a organizar esse líquido dentro da boca, ou seja, o que a vida toda foi involuntário, neste momento se tornou voluntário. O paciente precisou prestar atenção, ele precisou usar outras células. CAPÍTULO 3 - EXERCÍCIOS PARA TERAPIA 30Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Isso é plasticidade neural! Em relação ao líquido, não senti segurança para deixar o treino oral para a família, pois se alguém esquecesse as orientações, o paciente ia broncoaspirar. Então, resolvi testar líquidos finos, mas um pouco mais estimulantes, para ver se acorda essa região intraoral na hora que o líquido entra na boca e esse paciente se organiza melhor. É possível que, estimulando mais o trigêmeo, ele tenha melhor controle. Olha o raciocínio deste atendimento! Essa é só a avaliação. Se você não fizer uma avaliação bem feita, você não terá o exercício, entende? Peguei uma água bem gelada, ele tomou uns 3 goles e já deu uma tossidinha. Testei água com gás, gelada. Ele demorou mais para deglutir, ficou mais atento, engoliu e não tossiu. A água gelada com gás funcionou pra ele. Então, prescrevi que tudo que ele fosse tomar precisava ser gaseificado. Testei o café e ele deglutiu tranquilamente. A cuidadora pontuou que ele toma tudo, mas só na água ele se engasga. Por que isso acontece?! Porque a parte sensorial (sabor, temperatura) ajuda muito. Prescrevi líquidos quentes ou muito gelados, com sabor; e se for água, gaseificada e gelada. Perguntei como era o café da manhã. A família relatou que era uma papinha de café com leite. Ele colocava o pão, que amolecia nesse leite, e comia o pão amolecido. Isso é uma coisa super perigosa: misturar consistências (um líquido muito fino com um sólido), porque o paciente tem que controlar a mastigação e mais a deglutição desse líquido. CAPÍTULO 3 - EXERCÍCIOS PARA TERAPIA 31Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Sugeri que até eu voltar fosse oferecida uma fruta amolecida e liquidificada, fruta com iogurt, banana amassada com mel, ao invés do pão com o leite. Cerquei toda a alimentação do paciente para eliminar os riscos. É isso que o fonoaudiólogo faz na avaliação. Viu que o ambiente é tranquilo, que ele se senta à mesa, o paciente foi orientado a comer com a própria mão... Estava tudo sob controle. “Poderia indicar canudo para os líquidos, Paola?” O uso do canudo não foi recomendado, pois é artificial. Se ele sempre tomou líquidos no gole, essas células de memória vão entender que já viram aquilo antes. O uso de alternativas artificiais, canudos, espessantes, são o último caso, quando o paciente não dá conta de todas as alternativas naturais que você tentou. Da parte de deglutição, essa foi a avaliação. As recomendações foram as seguintes: - Arroz com muito caldo; - Tornar todo pastoso mais úmido; - Colocar gás na água natural e ofertar gelada; - Ofertar líquidos com sabor, quentes ou gelados, gaseificados. Mas nossa avaliação ainda não acabou, hein? Faltam mais 3 áreas. Vamos à avaliação da linguagem agora. CAPÍTULO 3 - EXERCÍCIOS PARA TERAPIA 32Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Sobre a compreensão: Esse paciente tinha uma compreensão auditiva de média complexidade: frases curtas, olhando no olho, coisas do cotidiano, ele ia super bem. Compreensão de leitura também de média complexidade: ele lia frases curtas e entendia. Se ele lia uma notícia, já começava a se confundir na interpretação de texto, nas respostas. Compreensão de fotos, objetos: ele sabia que sabonete é para tomar banho, por exemplo; tem uma compreensão razoável. Sobre a expressão: Como ele teve uma lesão fronto-parieto-temporal, acabou apresentando uma apraxia de fala muito evidente. Ele falava palavras automáticas e trocava muito, ensaiava e saía outra palavra, acabava ficando chateado, pois sabia que não tinha saído certo. Não conseguia falar tudo o que precisava falar, usava muitos gestos,apontava, pegava a pessoa e levava até a cozinha, por exemplo, quando não estava conseguindo se fazer entender. A dificuldade dele estava mais na expressão oral, a expressão escrita era razoável, escrevia uma palavra, um endereço, mas muita coisa ele não conseguia, nem sob ditado, nem copiando. A expressão dele era à base de mímica. Mesmo com uma paralisia facial, tinha expressão gestual razoável. Ele se virava. CAPÍTULO 3 - EXERCÍCIOS PARA TERAPIA 33Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - A família disse que é muito difícil entender o que ele quer e ele ficava chateado. Então, deixei umas fotos de coisas importantes pra ele, com o nome escrito embaixo. Pedi para usar o álbum de figura; quando quisesse chamar alguém, ele apontava na foto. Foto das coisas de comer que ele mais gostava, pra ele poder escolher; fotos de roupas que ele gostava de vestir, pois ele não conseguia ir caminhando sozinho até o quarto etc. O primeiro atendimento é fundamental! Reparou quantas orientações essa família já recebeu? O paciente tinha uma apraxia e uma compreensão de média complexidade de leitura, auditiva, mas era bom em mímicas, gestos, fotografias e objetos. Deixei para ele uma funcional comunicação suplementar. Não era perfeita, pois precisava de mais dados e mais tempo, era emergencial. Apraxia é alteração motora ou linguística? Gagueira, apraxia de fala, neologismos, parafasias, anomia, essas são alterações na expressão oral, mas é uma alteração linguística. Apraxia não é motora, é alteração no planejamento motor e planejar a parte motora é função da linguagem. Avaliação de linguagem finalizada. Hora de avaliar a fala! CAPÍTULO 3 - EXERCÍCIOS PARA TERAPIA 34Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - A fala produzida automaticamente é uma função cognitiva, mas você vai focar agora, nessa parte da avaliação, na respiração, para ver se tem alguma disartria, se tem alguma alteração muscular, respiratória, que interfira na fala. Percebi que esse paciente tinha uma voz rouca, hipernasal e a família relatou que a voz mudou completamente após o AVC, estava mais grossa e mais baixa. São 5 bases da fala que precisamos avaliar: - Respiração; - Ressonância; - Articulação; - Fonação; - Prosódia. Percebi a ressonância hipernasal e alteração na qualidade da voz, na intensidade (loudness) e pitch. Portanto, problema nas bases de respiração e fonação. Diferente da apraxia, a disartria é uma alteração motora (mecânica também), tem muita associação cognitiva, mas principalmente, a capacidade de ar não é suficiente para vibrar as pregas vocais, aí a pessoa fala baixo. Se a elasticidade da prega está prejudicada, a pessoa fala mais grosso. Se a língua está paralisada ou tem fasciculação, perde a mobilidade. Essas são bases de como a fala é formada, o som da fala é formado. Isso é uma avaliação de fala, diferente da avaliação de linguagem expressiva. CAPÍTULO 3 - EXERCÍCIOS PARA TERAPIA 35Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Sobre a mímica facial, esse paciente tinha uma paralisia facial central, ou seja, só no terço inferior, no lado esquerdo, no mesmo lado da lesão do paciente. Se ele tem paralisia facial e alteração para deglutir o líquido, faz sentido que ele não tenha um controle oral tão bom assim, né? Quando aumentamos a sensibilidade, ele respondeu melhor. Por quê? A sensibilidade da região da paralisia fica comprometida, a sensibilidade da hemilíngua também. O aparelho é o mesmo, falamos e comemos utilizando o mesmo aparelho. É esse o pensamento que você deve ter na hora de planejar exercícios. Então, como esse paciente volta a sentir? Ele precisa estar com uma pressão intraoral bacana, lábios vedados, sensibilidade intraoral perfeita e o cognitivo funcionando bem. Qual exercício trabalharia tudo isso? Na mímica facial, o paciente pode se imaginar fazendo esses movimentos, pois isso vai mandar mensagem para o cérebro, onde tem a lesão, e lá alguém fica encarregado de receber essa informação para mexer o músculo. É uma aprendizagem e tem que repetir muitas vezes. Estimulação tátil-térmica-gustativa (ETTG): sempre, antes de escovar os dentes, o paciente pega um cafezinho, ou um limão, ou algo que goste muito, esfrega com a escova de dentes as regiões intraorais da paralisia, onde tem falta de sensibilidade evidente. Quando pensar em engolir, engole sorrindo, repetindo isso muitas vezes ao longo do dia. Dez deglutições na escovação da manhã, 10 na escovação da tarde e 10 na da noite. CAPÍTULO 3 - EXERCÍCIOS PARA TERAPIA 36Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Só neste exercício, você já matou o exercício do sorriso (que é da mímica facial) e a sensibilidade intraoral (que vai beneficiar a região da paralisia facial e o problema de controle oral que ele está tendo). Agora, como fazer para ter uma ejeção oral mais forte (pois está muito pesado e difícil de engolir)? Quando trabalhamos o controle oral e a sensibilidade, a língua tem chance de perceber o momento de fazer mais força. Vamos raciocinar sem usar os exercícios de MO. Para melhorar uma função, fazemos aquela função. Por exemplo: se eu quiser aprender a tocar piano e ficar só fazendo exercícios de força e alongamento de dedos, quando eu for tocar piano, eu vou conseguir? Claro que não. Para aprender a tocar piano, eu preciso tocar piano. Então, esquece “kakaki”, “língua pra fora - língua pra dentro”. Esquece tudo isso! Usaremos apenas se for funcional, mas isolado não. Não vamos trabalhar força de língua, isoladamente, jamais. Isso não leva o cérebro a entender nada. Estamos ensinando ao cérebro funções antigas, mas para células novas. Para ejeção oral com mais força, podemos treinar deglutição com esforço, que é uma manobra da Logemann. Ajudaria e você ainda poderia colocar a deglutição com esforço no mesmo exercício da ETTG; quando for engolir, abaixa a cabeça, pois o esforço da língua é muito maior, e associa a força pra engolir com o sorriso. Englobei todos os problemas que ele tem, inclusive a paralisia facial, no mesmo exercício. Masako, neste caso, não seria o ideal, pois a língua pra fora tira o entendimento do cérebro de vedamento labial. Exercício que mantém o lábio aberto, nesse caso, não é bom. CAPÍTULO 3 - EXERCÍCIOS PARA TERAPIA 37Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Entendeu o esquema? Pega tudo o que o paciente tem e enfia no mesmo exercício, pra ele fazer várias vezes. Para paralisia facial, dá pra colocar metas: faz uma marquinha no rosto e ele tem que alcançar com o músculo, como uma aula de yoga. No primeiro dia de yoga, abaixamos e a mão chega no joelho, mas o foco é a mão alcançar os pés, sem dobrar as pernas. A paralisia facial é isso, estimular com o pensamento, com as intenções, pois as intenções são os movimentos neurológicos, os comandos musculares. Além disso, acordamos a região com estimulação sensorial, por dentro e por fora, com gaze, escovinha, alternando objetos táteis durante as sessões. Até agora, esse paciente teve 3 ou 4 alterações e apenas 2 exercícios para fazer. Nenhum deles é exercício de MO. Percebe? Bom, o paciente já tem exercícios para paralisia facial, deglutição, mas sabemos que ele tem apraxia de fala também. O exercício para a apraxia vai ser de formação dos fonemas. Você mostra o fonema e ele vai memorizar qual é o plano para produzir aquele fonema. Ele tem que lembrar que para fazer um “be”, ele precisa ocluir os lábios. Escolha 3 ou 4 fonemas para treinar. Você pode usar o FonoSpeak também, que já tem o vídeo das bocas articulando. Por que vamos optar pelo tratamento baseado na produçãofonêmica por neurônio espelho? Porque isso também vai beneficiar o vedamento labial, a paralisia facial e os órgãos fonoarticulatórios que servem para mastigar. CAPÍTULO 3 - EXERCÍCIOS PARA TERAPIA 38Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Dá pra fazer isso de várias formas: massagem facial, bandagem, não existe “não pode”. O que eu quero que você entenda é que se você passar milhões de exercícios, o paciente pode não aderir, você também ficará cansado de ser personal trainer de boca (que ninguém merece) e que existe uma saída! Você pode levar uma coisa eficiente, do ponto de vista neurofisiológico, e muito mais prazeroso. Além disso, os pacientes vão entrar em alta mais rápido. Bom, você fez tudo isso, toda essa estimulação, e o paciente está trabalhando a fala, enquanto ele está trabalhando a motricidade. Maravilha. Aí você pensa: “ele tem a voz muito fraca e grossa, o que vou fazer com isso?”. Vamos usar o exercício de produção fonêmica para trabalhar respiração. Na hora que ele for produzir, vai ter que puxar o ar, expandir o diafragma, você vai treinar respiração diafragmática com ele, e quando ele soltar o ar, ele vai soltar com a maior intensidade que conseguir. Assim, você estimula também a movimentação das pregas vocais e a capacidade de pegar ar pra gente aumentar a intensidade. Vamos usar só sons hiponasais nesse começo, porque queremos treinar esse paciente a falar com uma ressonância mais equilibrada. Com 3 exercícios, tratamos 8 alterações. Olha que incrível! Era aqui que eu queria chegar. Poucos exercícios, para muitas alterações. Precisamos de uma vez por todas desvincular a motricidade orofacial da disfagia e da apraxia de fala. CAPÍTULO 3 - EXERCÍCIOS PARA TERAPIA 39Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Tem gente que faz MO pra apraxia, MO pra disfagia, pra dor de ouvido, dor de dente. Não é assim! Esquece MO, quando estiver atendendo neuro. A motricidade orofacial é uma ciência incrível, maravilhosa, neurofisiológica também, que não é só exercício combinado, tem muito exercício funcional, mas não tem como foco a deglutição, não tem o objetivo de prevenir broncoaspiração, entende? Todo esse raciocínio é pra você tentar sair da casinha. Pegue seus casos e reveja os exercícios que você está passando para seus pacientes. Você pode dizer: “ah, mas você não trabalhou a compreensão com ele”. Pois é, mas enquanto ele está fazendo o exercício, você pode dizer frases longas pra ele; quando ele terminar o exercício, você faz uma pergunta sobre essas frases. Você vai acomodar as alterações do paciente dentro do seu treino, pra não ficar aquela coisa chata, monótona. Alterne muito as coisas que você está fazendo, para o paciente não te achar a(o) fono chata(o). Tudo o que o paciente não faz você tem que treinar, porque são habilidades que ele sempre teve, o cérebro é capaz de reaprender. Quando a compreensão está muito comprometida, os exercícios devem ser de uma forma menos ativa, sem metas, por exemplo. Seria a mesma coisa, de frente para o espelho, com estímulo tátil-térmico-gustativo, pede esforço por neurônio espelho, ele vai imitar. Se ele entender mímica, que é bem rudimentar na comunicação, ele já consegue fazer terapia. CAPÍTULO 3 - EXERCÍCIOS PARA TERAPIA 40Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Não tem mistério, o que tem é pre-gui-ça! E você não é uma pessoa preguiçosa, porque se fosse, não teria chegado até essa parte do livro digital. Você leu tudo até aqui, estudou, está com disposição para aprender e fazer um trabalho melhor. Então, agora é só colocar em prática. Diga adeus aos exercícios decorados, padrãozinho, e seja muito bem vinda(o) ao mundo de quem faz um atendimento personalizado e individual! Com o conteúdo deste livro, você já consegue abrir a mente e expandir os horizontes para prestar um atendimento melhor e mais completo, mas se vocêdeseja se aprofundar nesse assunto e se tornar uma referência entre osprofissionais da neuro, atendendo com mais segurança, conseguindo umaremuneração melhor, você pode entrar agora mesmo no curso AVC na Prática. Se matriculando agora, você terá muito mais do que a visão completa do atendimento ao paciente com AVC. Será capaz de pegar qualquer caso deneuro e ainda descobrirá como gerenciar sua carreira, como cobrar melhor pelos seus serviços e como cuidar da sua imagem, para passar uma impressão mais profissional e confiante. Afinal, não basta ser bom profissional, é necessário saber usar isso a seu favor também! Clique no link a seguir, para ter mais informações sobre o curso e realizar sua matrícula: CAPÍTULO 3 - EXERCÍCIOS PARA TERAPIA 41Paola Pucci - Guia completo de AVC para Fonoaudiólogos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - https://hotm.art/e-book-avc-na-pratica Distúrbios neurológicos adquiridos : fala e deglutição Distúrbios neurológicos adquiridos : linguagem e cognição Cem bilhões de neurônios Neurologia básica para profissionais da saúde Language Intervation Strategies in Aphasia and related neurogenic communication disorders Manual of aphasia and aphasia therapy Referências Bibliográficas Além de ler os livros acima sugiro que você estude artigos na scielo ou pubmed das seguintes autoras: -Furkim e Silva -Logeman -Letícia Mansur -Karin Ortiz REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS www . p a o l a p u c c i . c om . b r www.paolapucci.com.br
Compartilhar